SUMÁRIO:
1- Não cabe na competência atribuída por lei ao tribunal arbitral o poder de decidir sobre a designação de perito para proceder à avaliação de despesas realizadas pelo contribuinte num determinado prédio e posterior correcção do acto de liquidação de IRS.
2.- Também não permite a lei ao tribunal arbitral o conhecimento de recurso de decisão de processo de contraordenação em que o contribuinte foi sancionado com coima.
3.- Verificando-se a incompetência em razão da matéria, que é incompetência absoluta, tem a requerida de ser absolvida da instância.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 10/05/2023, profere a presente decisão arbitral, nos termos seguintes:
1. Relatório:
A... e B..., respetivamente contribuintes fiscais números ... e ..., com residência na Rua do ..., ..., ..., ..., ...-... São Francisco, notificados que foram de uma segunda demostração de liquidação de IRS (acerto de contas), e da decisão proferida em sede da RECLAMAÇÃO GRACIOSA que efetuaram, vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 - Diário da República n.º 14/2011, Série I de 2011-01-20, requerer a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos.
1.1 Tramitação e constituição do Tribunal Arbitral:
O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 1/03/23 e aceite no mesmo dia, nos termos regulamentares aplicáveis, tendo o Requerente optado pela não designação de árbitro.
Por despacho de 19/04/2023 do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi designado para árbitro no presente processo o ora subscritor, tendo sido comunicada essa designação no mesmo dia às partes e não tendo havido reclamação da mesma, em 10/05/2023, foi comunicada às partes a constituição do Tribunal Arbitral;
A 12/06/2023, a Requerida apresentou a sua Resposta e fez juntar aos autos o processo administrativo (PA), tendo, nessas mesmas datas, o CAAD notificado o requerente da Resposta da AT e da junção do PA.
Por despacho de 11/07/2023, foi dada possibilidade dos requerentes se pronunciarem sobre a excepção da incompetência absoluta do tribunal arbitral, em razão da matéria, deduzida na resposta da AT, o que eles fizeram por requerimento de 13/07/23.
Por despacho arbitral de 15/09/23, decide-se dispensar a reunião a que se refere o artigo 18º. do RJAT e foram as partes notificadas para apresentar, querendo, no prazo simultâneo de 10 (dez) dias, alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito, o que fizeram.
Mais foi notificada a Requerente para dar oportuno cumprimento ao disposto no artigo 4º-3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ou seja, pagamento, pela forma regulamentar, do remanescente da taxa arbitral, o que também fez.
1.2 – Posição dos Requerentes
Em 28.06.2021, os requerentes apresentaram, uma primeira declaração de rendimentos IRS - Modelo 3, em que no anexo G, apenas declararam os valores de aquisição e de alienação de bens, propriedade do contribuinte A., sendo que consideraram como valores de alienação os valores correspondentes ao valor patrimonial inscrito na matriz, os quais foram determinados na sequência de reconstrução que determinou a avaliação em sede de IMI, concluída pela AT em 2020-06-11 ver Modelo 1 de IMI registo ... e respetivas fichas de avaliação, que, porém, não juntaram.
Por isso, em 30-06-2021, os declarantes procederam à substituição da sua declaração inicial, tendo apresentado nova Modelo 3, nesta incluindo os valores suportados com as referidas obras de construção no valor de €16.391,55.
Com esta nova declaração, de correção à Modelo 3 apresentada no dia 28.06.2021, visavam deduzir estes montantes nos termos do artigo 51.º do CIRS, como despesas e encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos.
Porém, com data de assinatura eletrónica de 07.07.2021, foram os sujeitos passivos notificados que a sua declaração de IRS relativa ao ano de 2020, com a identificação J.../92, havia sido selecionada para análise por ter sido detetada a seguinte situação: “Alienação de imóveis não declarada ou necessidade de comprovação dos valores das despesas, valor da alienação, data de aquisição dos imóveis ou afetação a atividade profissional”, podendo no prazo de 15 dias a contar do 3.º dia seguinte ao do registo postal da notificação ou do 5.º dia posterior ao registo de disponibilização das notificações eletrónicas, prestar os devidos esclarecimentos no portal das finanças (divergências).”
Essa notificação foi enviada com recurso à VIA CTT, não tendo os sujeitos passivos imediato conhecimento da mesma, pois nenhum alerta de entrega foi recebido, nomeadamente de alerta remetido pela AT, fosse por comunicação eletrónica normal (email), fosse por comunicação escrita via postal.
Em outubro de 2021, os reclamantes foram notificados pelo Serviço de Finanças de ... de um projeto de correções à declaração substituída, nomeadamente ao anexo G, com a seguinte fundamentação: “Não foram comprovados os valores declarados no anexo G, pelo que vai ser corrigido conforme os elementos conhecidos da AT. Prazo: 15”
Tal justificação das despesas efectuadas foi submetida, no respetivo endereço, no dia 15.11.2021, tendo sido anexada uma fatura respeitante às despesas efetuadas nos prédios objeto de divergências e nenhuma resposta foi obtida relativamente à justificação apresentada.
Reconhecendo que a AT está legitimada a emitir uma liquidação oficiosa, também entendem que a AT antes de estruturar a liquidação oficiosa estava vinculada à notificação do sujeito passivo em incumprimento declarativo, para cumprir a obrigação no prazo de 30 dias, sendo que só após essa notificação, e caso a situação de incumprimento persistisse, é que pode ter lugar a tributação com base nos elementos que a AT disponha.
Entendem que fizeram uso atempado da possibilidade que lhes é conferida pelo artigo 76.º nº 4 do CIRS, apresentando a respetiva justificação das despesas efetuadas nos prédios sob divergências, facto que carecia da devida ponderação por parte dos serviços da AT.
Entendem, por isso, que existiu por parte da AT uma violação do ónus probatório, porquanto a AT não ponderou os elementos declarados pelos contribuintes, em momento e sede própria, o que consubstanciaria um contorno das exigências probatórias legalmente previstas, com a inerente violação da lei, pelo que havendo vício de violação de lei, por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito e excesso de quantificação, tem como consequência a anulabilidade do ato de liquidação.
É que mesmo que o suprimento das divergências detectadas, ainda que possa ter sido efetuada fora do prazo concedido para o efeito, veio a ocorrer dentro do prazo de caducidade mediante a faculdade consignada no artigo 76.º n.º 4 do CIRS que supra se mencionou, verificando-se que os serviços da AT impedem a regularização voluntária por parte dos sujeitos passivos, uma vez que a não aceitação das despesas de obras realizadas na reconstrução dos bens imóveis alienados, agrava o resultado da sua declaração de rendimentos.
O certo é que entendem os recorrentes que as obras foram realizadas, como atesta a factura junta com a resposta às divergências e agora como o atestam as fotos das obras realizadas.
Por isso, os actos notificados, e em particular o Auto do Noticia que subsequentemente foi notificado, não foram devidamente fundamentados nos termos do CIRS, de quaisquer práticas omitidas e/ou inexatas.
Terminam pedindo “A designação de árbitro, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, e ponderados todos os factos subjacentes ao presente requerimento, a correção do ato de liquidação de imposto (IRS 2021), levando-se em consideração as despesas efetuadas nos prédios alienados, as quais devem ser levadas em consideração para efeitos da respetiva dedução em sede da liquidação do IRS dos sujeitos passivos, tal como previsto no artigo 51.º do CIRS e em consequência se determine a respetiva anulação do Auto de Notícia e respetiva coima.”
1.3 – Posição da Requerida:
Por sua vez, a requerida, atento o pedido formulado pelos ora requerentes, nomeadamente o pedido de anulação do auto de notícia e respetiva coima, refere que a tramitação do processo de contraordenação encontra-se regulado no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), sendo que, nos termos do artigo 2º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciação da decisão de aplicação de coimas, em sede de processo de contraordenação, pelo que existe incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar essa questão.
Relativamente à questão de fundo, referente a despesas e encargos, os requerentes, na declaração de substituição apresentada em 2021JUN30, inscreveram o montante de 16.391,55 € de despesas e encargos nos campos 4006 (8.195,77 €) e 4007 (8.195,78 €) do quadro 4 do anexo G e essa declaração foi objeto de um procedimento de análise e gestão de divergências, tendo sido solicitado aos aqui requerentes a apresentação dos documentos justificativos de tal montante, mas não foram apresentados os mencionados documentos comprovativos dentro do prazo concedido para tal, pelo que foi elaborada declaração oficiosa, tendo sido retirado o montante de despesas e encargos dos campos 4006 e 4007 do quadro 4 do anexo G, pelo que a declaração oficiosa só foi elaborada dessa forma (sem o montante de despesas e encargos nos campos 4006 e 4007), porque os aqui requerentes não vieram apresentar os documentos comprovativos das despesas e encargos no prazo concedido para o efeito.
É que “as pessoas sujeitas a IRS devem apresentar, no prazo de 15 dias, os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e de outros factos ou situações mencionadas na respetiva declaração, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira os exija”, conforme previsto no n.º 1 do artigo 128º do Código do IRS e os requerentes, em sede de procedimento de gestão e análise de divergências vieram apresentar a documentação, mas fizeram-no após o prazo concedido para o efeito, sendo que, quando apresentaram a documentação já tinha sido proferido o despacho no procedimento (que levou à posterior elaboração da declaração oficiosa aqui controvertida).
Por ter entregue a documentação fora do prazo concedido, essa entrega não produziu o efeito pretendido pelos requerentes, sendo irrelevante o facto de não ter acedido à caixa postal eletrónica em tempo útil para recebimento da notificação (cfr. artº 8 da petição), pois esta foi efetuada eletronicamente “Via CTT”, pelo que com a adesão ao “Via CTT” é o sujeito passivo que tem a obrigação de verificar o recebimento das notificações, o que se alcança dos números 10 e 11 do artigo 39º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que tem como epígrafe “perfeição das notificações”.
E tanto assim é que o aqui requerente, não concordando com a liquidação adicional efetuada pelos serviços, reclamou graciosamente e a referida reclamação graciosa foi apreciada pelo órgão competente para o efeito e houve pronúncia sobre a não aceitação da fatura controvertida a título de encargos com a valorização dos bens, sendo que essa decisão não merece censura.
Nos termos da alínea a) do artigo 51º do Código do IRS (na redação em vigor na data dos factos), devem ser considerados por um lado, os encargos com a valorização dos bens e por outro, as despesas inerentes à aquisição e alienação.
No presente caso, estamos perante a alegação de encargos com a valorização dos bens, tendo em conta que foi junta pelos requerentes ao processo uma fatura relativa a pintura dos imóveis (melhor identificados nos autos) no montante de 16.391,55 €.
Ora, a lei prevê um requisito de natureza substantiva, que é o de se tratar de encargos com a valorização do bem alienado e a expressão "encargos com a valorização dos bens", tem vindo a ser entendida pela Autoridade Tributaria como tal as despesas que, por natureza, trazem ao imóvel um valor intrínseco adicional, excluindo-se as obras destinadas a eliminar ou prevenir um dano, que tenham por escopo a mera preservação do valor do bem ou visem dotar o imóvel das condições de habitabilidade exigidas por lei, mas sim as que se destinam a aumentar o valor físico e material do bem.
Isso resulta da informação vinculativa (processo n.º 2483/2004, com despacho concordante da Diretora de Serviços de 2005-03-04) emitida pela Autoridade Tributaria uma onde se refere que "Os encargos dizem respeito a valorização do próprio bem imóvel, isto é, são as despesas que, por natureza, trazem ao imóvel um valor adicional, como por exemplo as obras de beneficiação (...).".
E, na falta de norma especifica no Código do IRS, aplica-se subsidiariamente o conceito de benfeitoria previsto no artigo 216° do Código Civil.
Como tal, não pode o montante de 16.391,55 € ser considerado a título de encargos com a valorização dos bens, porque não está provada a valorização do imóvel, sendo que são meras obras de conservação.
Acresce que o requerente baseia o seu pedido numa norma que não tem aplicação no caso concreto, pois o requerente constrói as suas alegações em torno do disposto no n.º 3 do artigo 76º do Código do IRS, ao referir no artº 17 da petição que “a AT está vinculada à notificação do sujeito passivo em incumprimento declarativo, para cumprir a obrigação no prazo de 30 dias” e essa disposição legal apenas tem aplicação às situações em que não seja apresentada a declaração pelo sujeito passivo, o que não é o caso na presente situação, tendo em conta que os requerentes apresentaram a declaração de rendimentos modelo 3 respeitante ao IRS do ano fiscal de 2020, pelo que o artigo do Código do IRS aplicável ao caso em análise é o 65º e não 76º, mais concretamente o seu n.º 4.
Em conclusão e de acordo com o supra exposto, bem como com os elementos constantes dos presentes autos, na sua atuação, a Autoridade Tributária cumpriu o estipulado na lei, inexistindo, pois, quaisquer violações de princípios e normas constitucionais e/ou legais em que assenta a tributação das pessoas singulares, ao invés do alegado pelo requerente.
Do mesmo modo a requerida opõe-se à produção de prova testemunhal, por a entender desnecessária e manifestamente inútil.
Termina pedindo que seja julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.
1.4 – Posição do Requerente perante as excepções deduzidas
Notificado da resposta da AT e para, querendo, responder às excepções por esta deduzidas, veio o requerente alegar que, nos termos do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 - Diário da República n.º 14/2011, Série I de 2011-01-20, respeitante ao Regime jurídico da arbitragem em matéria tributária, dispõe-se relativamente à competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável, que (1) A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; c) (Revogada).
Refere a AT na sua contestação que os Requerentes deduziram pedido de pronúncia arbitral que tem por objeto o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente à liquidação nº 2022..., referente ao ano de 2020, bem como o despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa nº ...2022..., pelo que o objeto principal de pronúncia por parte do tribunal arbitral tem por fundamento um ato de liquidação de IRS, matéria incluída nas competências deste Tribunal.
As coimas aplicadas em sede do processo de contraordenação que se seguiu à liquidação oficiosa são subsidiárias ao objeto principal dos autos. Falindo os pressupostos da liquidação terão de falir por inerência os pressupostos que levaram à instauração do processo contraordenacional e a subsequente aplicação de coima.
No seu entender, é assim clara, a existência de competência material do tribunal arbitral enquanto meio alternativo de resolução jurisdicional do conflito em matéria tributária que lhe foi apresentado.
Não alterou, porém, o pedido por si formulado.
Relativamente aos pontos concretos de resposta por parte das testemunhas por referência aos artigos do requerimento inicial, informa-se que se pretende inquirir as testemunhas C..., D..., E... e F... quanto à matéria dos pontos 5, 10, 25 e 29, todos eles relacionados com as obras efetuadas no prédio e consequentemente com as referidas despesas.
2. Despacho saneador:
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são as legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
É suscitada a questão da competência material deste tribunal arbitral.
3. Da competência do Tribunal Arbitral:
1. Na petição inicial do presente pedido de pronúncia arbitral, formulam os Requerentes o seguinte pedido:
A designação de árbitro, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, e ponderados todos os factos subjacentes ao presente requerimento, a correção do ato de liquidação de imposto (IRS 2021), levando-se em consideração as despesas efetuadas nos prédios alienados, as quais devem ser levadas em consideração para efeitos da respetiva dedução em sede da liquidação do IRS dos sujeitos passivos, tal como previsto no artigo 51.º do CIRS e em consequência se determine a respetiva anulação do Auto de Notícia e respetiva coima
Este pedido não foi alterado pelos requerentes, embora nas suas alegações finais, parece formularem, ainda que tardiamente, um pedido diferente de anulação de liquidação, que não constava do pedido inicial e que, por não ser desenvolvimento do pedido inicial, se não admite.
Podem assim detectar-se 3 pedidos neste pedido único formulado no requerimento inicial:
a) pedido de designação de árbitro, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para eventualmente fazer a liquidação do imposto considerando as despesas efectuadas;
b) uma vez ponderados todos os factos subjacentes ao presente requerimento, a correção do ato de liquidação de imposto (IRS 2021) levando-se em consideração as despesas efetuadas nos prédios alienados, as quais devem ser levadas em consideração para efeitos da respetiva dedução em sede da liquidação do IRS dos sujeitos passivos, tal como previsto no artigo 51.º do CIRS e
c) por fim, que se determine a respetiva anulação do Auto de Notícia e respetiva coima.
Ora, na petição inicial, como em qualquer processo, os Requerentes formulam um pedido de tutela jurisdicional solicitando ao tribunal a emissão do dictat autoritário adequado à tutela do seu interesse (artº. 552º, nº. 1, al. e) do Cod. Proc. Civil). O pedido traduz-se, assim, na pretensão do autor, para a qual, sob invocação de um direito ou situação jurídica carecidos de acolhimento e proteção, requerer (em juízo) a concessão de uma concreta providência judiciária.
A dedução/formulação do pedido é essencial (indispensável) para que o tribunal possa resolver (dirimir) o conflito de interesses que a ação pressupõe (artº. 3º., nº. 1 do CPC). O pedido deduzido pelo autor ou pelo réu-reconvinte pode traduzir-se ou na afirmação ou negação de uma situação jurídica subjetiva (ou de um facto jurídico) de direito material (pré-existente) ou numa manifestação da vontade de constituir uma situação jurídica nova com base num direito potestativo.
O pedido, não só conforma ou molda o objeto do processo, como condiciona o conteúdo da decisão de mérito a emitir pelo tribunal competente; isto porque o Juiz, na sentença, deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras (artº. 608, nº 2 ainda do CPC) e não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (artº. 609, nº. 1 também do CPC), sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia, excesso de pronúncia ou condenação ultra petitum, respetivamente (artº. 615, nº 1, alíneas d) e e) do CPC)[1].
Ora, o pedido é relevante para a determinação do órgão a quem cabe julgar certa e determinada causa, ou seja, com competência em razão da matéria para a decisão desse pleito.
A delimitação dessa competência é estabelecida por lei em função da natureza substancial do pleito, rectius o seu objeto (matéria da causa), encarado este, pois, sob ponto de vista qualitativo, sendo que, face à vastidão, complexidade e especificidade normativas dos diversos ramos de direito material, seguiram o legislador constitucional e ordinário, na fixação e determinação da competência em razão da matéria, o princípio da especialização[2], o qual é utilizado pelo reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram[3].
No caso concreto dos Tribunais Arbitrais do Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, essa competência está fixada no art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 - Diário da República n.º 14/2011, Série I de 2011-01-20, respeitante ao Regime jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), onde se determina relativamente à competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável, que (1) A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; c) (Revogada).
Ora, os pedidos formulados pelos requerentes no seu requerimento inicial, não se enquadram em nenhuma das alíneas do citado art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011.
Na verdade, os pedidos a submeter ao Tribunal Arbitral hão-de-ser de anulação de liquidações, qualquer que seja a sua forma, liquidações stricto sensu, autoliquidações, retenção na fonte ou pagamento por conta, sempre que haja arrecadação de tributos ou actos de que resulta a fixação da matéria colectável, mesmo quando dela não ocorrem impostos a pagar. – Cfr. ac. deste tribunal arbitral de 22-2-2016, proferido no Procº. 617/2015-T do CAAD
Ora, no caso presente, os requerentes formulam um pedido de “condenação” do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, a proceder à designação de árbitro para eventual peritagem na verificação das obras por si realizadas, a fim de fixar a matéria coletável para ser liquidado o IRS devido, o que claramente não cabe na competência do CAAD, que pressupõe a prévia liquidação ou de tributos ou a fixação da matéria colectável.
Além disso e em segundo lugar, pedem os requerentes a correção do ato de liquidação de imposto (IRS 2021) levando-se em consideração as despesas efetuadas nos prédios alienado, que não cabe ao tribunal arbitral realizar, pois essa será uma operação de execução posterior a uma anulação de liquidação, sendo que essa correcção não cabe na competência do CAAD como atrás referimos.
Por fim, pedem os requerentes que se determine a anulação do Auto de Notícia e respetiva coima.
Ora, a tramitação do processo de contraordenação encontra-se regulado no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), sendo que, nele se admite, o recurso judicial da decisão que aplique uma coima para o tribunal tributário de 1ª. Instância, hoje fora de Lisboa, deve ser interposto para o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF), nos termos do artº. 80º. do RGIT, sendo que o levantamento do auto de noticia não é passível de recurso a se, pois que quaisquer vícios deste auto deverão ser invocados em sede de recurso final, da decisão punitiva.
Porém, o recurso dessas decisões condenatórias em coima proferidas em processo de contraordenação fiscal, não constam no elenco das questões que podem ser submetidas a decisão do tribunal arbitral, nos termos do artigo 2º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), pelo que, sendo a competência do Tribunal Arbitral uma competência específica fixada por lei, é manifesto que o presente Tribunal não tem competência em razão da matéria para apreciação de recurso decisão de aplicação de coimas, em sede de processo de contraordenação.
Deste modo, conclui-se que o Tribunal Arbitral que funciona no âmbito do Centro de Arbitragem Administrativa não tem competência em razão da matéria para apreciar e decidir os pedidos formulados pelos ora requerentes no presente PPA.
Face ao exposto, declara-se a incompetência absoluta deste tribunal arbitral, em razão da matéria, com a consequência de se absolver da instância a requerida AT de todos os pedidos formulados no presente PPA. – Cfr. artigos 96º., nº. 1, al. a) e artº. 99º., nº. 1, ambos do Cod. Proc. Civil, aplicáveis subsidiariamente aos presentes autos, nos termos do artº. 29º., nº. 1, al. e) do Regime jurídico da arbitragem em matéria tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011 de 2011-01-20
4. Decisão
Nestes termos, decide-se julgar verificada a incompetência absoluta deste tribunal arbitral, em razão da matéria, para conhecer dos pedidos formulados no presente PPA, com a consequência de se absolver da instância a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 7.197,66, por ser o valor da liquidação impugnada.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante total das custas a pagar em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos requerentes.
Lisboa, 30-10-2023
O Árbitro
(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)
Texto elaborado com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990
[1] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 3ª. Edição, Coimbra 2022, pág, 78/79
[2] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, ob. cit., Vol. I, 3ª. Edição, Coimbra 2019, pág, 439.
[3] João de Matos Antunes Varela e Outros, Manual de Processo civil, Coimbra, 2ª. Edição, 1985, pág. 207.