Sumário: I. Compete à AT a demonstração do facto base da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, segundo a qual os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, que não revistam outra natureza, são considerados como adiantamentos por conta de lucros abrangidos pela incidência da categoria E (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS).
II. Não podem ser qualificadas como despesas não documentadas aquelas que se encontram suportadas por documento justificativo da sua natureza e com identificação das partes intervenientes, sem prejuízo do escrutínio que deva ser feito quanto à sua dedutibilidade fiscal, face aos critérios estabelecidos no artigo 23.º do CIRC.
III. Não pode ser aplicada a norma especifica anti-abuso prevista nos nºs 13 e 14 do artigo 51.º do CIRC, quando o que estiverem em causa atos ou negócios efetuados por terceiros que a AT considerou como abusivos, mas, relativamente aos quais, não aplicou, em devido tempo, a cláusula geral anti-abuso.
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Decisão arbitral
1. Relatório
A..., S.A., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., Porto, com o capital social de € 77.334.456,00 (doravante, “Requerente” ou “A...”), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante “RJAT”), pedindo:
A anulação parcial da liquidação adicional de IRC n.º 2022..., referente ao exercício de 2020, a respetiva liquidação de juros com os n.os 2022..., consubstanciadas na demonstração de acerto de contas n.º 2022..., da liquidação adicional de retenções na fonte de IRS com o n.º 2022... referente ao exercício de 2020, e as respetivas liquidações de juros com os n.os 2022... a 2022..., consubstanciadas na demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRS com o n.º 2022...;
a condenação na indemnização prevista nos artigos 171.º do CPPT e 53.º da LGT, caso venha a ser julgada indevida a garantia que a Requerente apresentou com vista à suspensão de processo de execução fiscal instaurado em virtude do não pagamento voluntário da dívida de IRC cuja legalidade ora se contesta;
a condenação na restituição dos pagamentos de retenções na fonte de IRS indevidamente pagos pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios contados desde, pelo menos, o seu pagamento e até à emissão de nota de crédito,
caso se julgue pertinente, se proceda ao reenvio prejudicial das questões formuladas, ao abrigo do disposto no artigo n.º 267 do TFUE.
Os atos impugnados resultaram de uma ação de inspeção tributária externa de âmbito parcial, levada a cabo pela AT e que, inicialmente, incidiu sobre o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas da Requerente - tendo o referido âmbito sido, no decurso da inspeção, alterado para abranger também as retenções na fonte de IRS -, do exercício de 2020, da qual resultaram correções à coleta da Requerente refletidas nas liquidações adicionais do IRC e de retenções na fonte de IRS e de juros, e nas demonstrações de acerto de contas supra identificadas, donde resulta um total de imposto e juros a pagar de € 1.576.585,63:
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€ 1.560.005,77 relativo a IRC e juros compensatórios referentes ao exercício de 2020, e cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 05.09.2022;
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€ 16.579,86 relativo a retenções na fonte de IRS e juros compensatórios referentes ao exercício de 2020, e cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 31.08.2022.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT)
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 30-11-2022 e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT.
Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.
O tribunal arbitral foi constituído em 06-02-2023.
A AT apresentou Resposta, em que se defendeu por impugnação.
Por Despacho de 12-04-2023, foi agendada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT para a produção da prova testemunhal, a qual se realizou em 02-05-2023, tendo ainda sido ouvido o sócio e administrador da Requerente em declarações de parte.
As partes apresentaram alegações escritas, reproduzindo, no essencial as posições apresentadas nas suas peças anteriores.
Em 07-08-2023, foi proferido Despacho Arbitral que considerando a complexidade da matéria em causa o Tribunal decidiu, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, prorrogar por 2 meses o prazo para a prolação da decisão arbitral.
2. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no artigo 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos pelas partes e não impugnados, nas declarações de parte e das declarações das testemunhas considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
A. A Requerente é uma sociedade anónima com um capital social de € 77.334.456,00 representado por € 77.334.456 ações nominativas (de entre as quais 50.000 de categoria A) com o valor nominal de €1,00 cada, a sua atividade principal está inserida no Código de Atividade Económica (CAE) 70220 - Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão e no âmbito do IRC está enquadrada no regime normal de tributação, adotando um período de tributação coincidente com o ano civil; (cfr. art.º 4 da Resposta).
B. Foi constituída em 4 de Dezembro de 2015, tendo como designação social A..., SGPS, S.A. e um capital social de € 50.000, composto por 50.000 ações de valor nominal de € 1,00, pertencendo 48.000 a B... (doravante, B...) e 2.000 aos seus dois filhos, C... (doravante, C...) e D... (doravante, D...); (cfr. doc. 3 junto com o PPA).
C. Na sua sequência, em Assembleias Gerais da Empresa realizadas em 9 de Dezembro de 2015, 22 de Julho de 2016, 2 de Agosto de 2016 e 9 de Agosto de 2016, foram deliberados quatro aumentos de capital da A..., subscritos por C... e D...; (cfr. doc. 3 junto com o PPA); (cfr. doc. 3 junto com o PPA).
D. No âmbito da Assembleia Geral de 9 de Dezembro, de 2015, foi deliberado converter as 50.000 ações ordinárias que constituíam o capital social da A... em acções de Categoria A, com direitos especiais, que se traduziam no direito a 80% dos lucros da sociedade e, em caso de liquidação, a 80% do ativo remanescente. Já as resultantes do aumento de capital, subscritas por C... e D..., seriam ações ordinárias; (cfr. doc. 3 junto com o PPA).
E) Em 2020, o capital social encontrava-se assim distribuído:
(i) em 0,062% por B..., titular de 48.000 ações de Categoria A e
(ii) em 99,938% pelos filhos de B... (C... e D...) titulares cada um de 38.643.228 ações, e de 1000 ações de Categoria A; (cfr. art.º 5 da Resposta).
F. O objeto social da A... consiste na “Prestação de serviços de consultadoria de gestão, incluindo financeira e administrativa, realização e gestão de investimentos imobiliários, mobiliários e financeiros, aquisição e alienação de valores mobiliários, locação, construção, reabilitação, gestão, administração e conservação de imóveis”; (cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA).
G. B... e E... são, desde 2016, os administradores da sociedade; (cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA).
H. A principal fonte de rendimentos da Requerente, nos períodos em análise, resulta essencialmente dos dividendos recebidos da sua participada J...; (cfr. RIT, III.4.2)
I. Os atos impugnados resultaram de uma ação de Inspeção Tributária externa realizada pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2021..., ao ano de 2020, tendo sido elaborado o respetivo Relatório de Inspeção Tributária (RIT), em 27/05/2022.
J. O âmbito da Inspeção Tributária no decurso da inspeção, que inicialmente, incidiu sobre o IRC da Requerente foi alterado para abranger também as retenções na fonte de IRS - do exercício de 2020, da qual resultaram correções à coleta da Requerente refletidas nas liquidações adicionais do IRC, de retenções na fonte de IRS e de juros, e nas demonstrações de acerto de contas supra identificadas, donde resulta um total de imposto e juros a pagar de € 1.576.585,63:
a) € 1.560.005,77 relativo a IRC e juros compensatórios referentes ao exercício de 2020, e cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 05.09.2022;
b) € 16.579,86 relativo a retenções na fonte de IRS e juros compensatórios referentes ao exercício de 2020, e cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 31.08.2022.
K. De acordo com o Relatório de Inspeção Tributária que deu origem às liquidações de imposto ora em discussão, estas têm na sua base um conjunto de correções:
(i) Correção referente às despesas incorridas com deslocações e estadas durante o exercício de 2020, constante do ponto III.6 do Relatório de Inspeção Tributária;
(ii) Correção referente aos gastos incorridos com despesas de representação durante o exercício de 2020, constante do ponto III.7 do Relatório de Inspeção Tributária;
(iii) Correção referente ao enquadramento fiscal de mais e menos-valias contabilísticas, por referência ao exercício de 2020, constante do ponto III.8 do Relatório de Inspeção Tributária;
(iv) Correção referente à desconsideração da aplicação do regime de Participation Exemption aos dividendos distribuídos por uma das suas subsidiárias, por referência ao exercício de 2020, RIT pontos III.9 a III.15).
L. Quanto à materialidade das correcções impugnadas, os valores em discussão, por assunto, são os seguintes (cfr. documento n.º 5 junto com o PPA):
M. A Requerente pagou, dentro do prazo legal, a totalidade do montante liquidado a título de retenções na fonte de IRS, no valor de € 16.579,86; (cfr. doc. n.º 6 junto com o PPA).
N. Quanto aos montantes liquidados a título de IRC, a AT instaurou processo de execução fiscal com o n.º ...2022...; (cfr. doc. n.º 7 junto com o PPA).
O. A Requerente requereu a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2022... nos termos do disposto nos artigos 169.º e 195.º do Código de Processo e Procedimento Tributário tendo, para esse efeito, constituído um penhor de ações sobre 265.000 ações da sociedade F..., S.A., não tendo a Requerente apresentado qualquer documento comprovativo de gastos com esta prestação; cujo comprovativo foi devidamente remetido à AT; (cfr. doc. n.º 8 que junto com o PPA).
P. A AT analisou uma série de despesas incorridas pela Requerente com deslocações e estadas, tendo concluído de que não poderiam ser considerados gastos empresariais, mas antes seriam de qualificar como despesas de carácter pessoal e particular do administrador B... e do seu agregado familiar; (cfr. RIT).
Q. A AT aplicou, sobre o montante total dessas despesas, uma taxa liberatória de IRS de 28%;
R. Os gastos com deslocações e estadas analisados no Relatório de Inspeção, e as correções realizadas pela AT são as seguintes:
Fig. 1 – Correções relativas a despesas incorridas com deslocações e estadas
S. A fatura n.º 300/15324 datada de 20/06/2020, emitida pela empresa G..., S.A. no montante de € 5 166,00, foi faturada à Requerente, quando se tratava de um gasto inerente à esfera pessoal e familiar do seu administrador B...; (cfr. art.º 19 do PPA)
T. A Requerente aceita a liquidação adicional de retenção na fonte de IRS a que a referida despesa foi sujeita, aceitando, portanto, a liquidação adicional de retenção na fonte de IRS no valor de € 1.447,04 e acrescido, mantendo a sua discordância em relação a todas as demias correções, no valor total de € 13.149,50; (cfr. art.º 19 do PPA).
U. A AT considerou em falta retenção na fonte de IRS, devido no momento da colocação à disposição, pelo montante de € 14.596,54 no período de 2020, relativamente às faturas reembolsadas pela empresa ao acionista B... . Sujeitou essas despesas a tributação através de retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, em sede de IRS.
V. As despesas de representação postas em causa pela Inspeção Tributária são as constantes do quadro seguinte:
W. Quanto aos gastos elencados com as referências 1 a 7, a Requerente reconheceu que os gastos foram suportados em 2019, pelo que a sua consideração fiscal em 2020 resultou de um simples lapso no valor de € 404,40, que já corrigiu e que não discute.
X. A correção fiscal de tributação autónoma, identificada no artigo 71 do PPA, Agência de Viagens H..., Lda. - Linha 8, é de € 306,00 e não a indicada pela Requerente (€ 612,00); (cfr. art.º 11 da Resposta e ponto III.7 do RIT).
Y. A AT considerou este valor como uma despesa não documentada sujeita à taxa de tributação autónoma de 50%, nos termos do no 1 do artigo 88.º do CIRC, donde resultou IRC em falta, por tributação autónoma devida, no montante de € 306,00 (€ 612,00 x 50%) ; (cfr. pág. 23 do RIT).
Z. A Tributação Autónoma (TA) foi levada a efeito dado tratar-se de uma viagem a Genebra; (cfr. art.º 83 do PPA e 12 da Resposta).
AA. A Requerente reconheceu as despesas de representação de € 3.467,80 como gasto; (cfr. art.º 72 do PPA).
AB. A AT desconsiderou a dedução da totalidade dos gastos para efeitos de IRC na esfera da Requerente, e julgou serem devidas retenções na fonte de IRS sobre parte das despesas, e aplicou tributação autónoma, à taxa de 50%, sobre uma das despesas, considerando que se tratava de uma despesa não documentada ; (cfr. art.º 77 do PPA).
AC. Pela Requerente foi reconhecido como gasto na conta “6251 - Deslocações e Estadas” o valor de € 52.830,50 e da análise efetuada, constante do ponto III.6. do Relatório de Inspeção Tribuária, foi possível concluir que a Requerente pagou viagens e estadias ao acionista/administrador B... e que constituem suas despesas de caráter particular e pessoal ou do seu agregado familiar; (cfr. art.º 24 da Resposta).
AD. O valor de € 52.830,50 não constituiu gasto fiscal da Requerente do ano de 2020, porque foi acrescido no “Campo 752 - Outros acréscimos” do Quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 do ano de 2020; (cfr. art.º 25 da Resposta).
AE. Da análise aos documentos de suporte aos registos contabilísticos efetuados na conta “6251 - Deslocações e Estadas”, a Inspeção Tributária verificou que não estavam identificadas as pessoas que realizaram as viagens e que apenas as faturas relativas às despesas com hotéis mencionavam o acionista e administrador B...; (cfr. fundamentação do RIT).
AF. No decurso da ação inspetiva, a Requerente foi notificada através do ofício n.º 2022... de 25/03/2022, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), para que, no prazo de dez dias e por escrito, prestasse esclarecimentos e comprovasse documentalmente, o seguinte:
“- Identificasse a(s) pessoa(s) que realizou(aram) as viagens constantes das faturas (nome completo e NIF) e indicação do cargo e funções exercidas ao serviço da “A...;
- Indicasse os motivos da deslocação para fora do local de trabalho ao serviço da “A...”. A notificação foi rececionada no dia 30/03/2022”; (cfr. PA).
AG. A Requerente não prestou quaisquer esclarecimentos quanto ao pedido efetuado, nem na data concedida para o efeito, mesmo após prorrogação do prazo, nem até à data da elaboração do Projeto de Relatório da Inspeção Tributária que ocorreu em 05/05/2022; (cfr, o PA).
AH. A Requerente é uma sociedade holding que é acionista de sociedades cotadas em bolsa como a I..., S.A. e a J..., SGPS, S.A. entre outras, e detém ativos financeiros como obrigações e unidades de participação em fundos de investimento.
AJ. No ano de 2020, a Requerente detinha, 10,01% do capital social da J... .
AK. Nesse mesmo ano de 2020, a J... pagou dividendos, tendo sido distribuídos à Requerente € 6.162.385,20, os quais foram deduzidos no Quadro 07, Campo 771 - Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos” da Dec. Mod 22; (cfr. art.º 117 da Resposta).
AL. Entre dezembro de 2015 e agosto e 2016, ocorreu uma série de operações (doações seguidas de aumento de capital pelos donatários) que tiveram como resultado, a transferência da titularidade das ações da J... e da I... de B... e K... para os seus filhos; (cfr. doc. 3 junto com o PPA).
AM. B... e K... vivem em união de facto, e têm, em conjunto, dois filhos: C... e D...; (cfr. art.º 182 do PPA).
AN. Entre outros bens mobiliários, B... e K... detinham em 2015 participações sociais de duas sociedades com sede e direção efectiva em Portugal, a J... e a I...; (cfr. art.º 184 do PPA).
AO. Em 31 de Dezembro de 2014, B... detinha 14.359.708 ações da J..., correspondentes a 7% do capital social desta; (cfr. art.º 185 do PPA).
AP. À mesma data, B... era detentor de 1.402.072 ações da I..., correspondentes a 5,47% do capital social desta, e, por sua vez, K... detinha 670.790 ações da I..., correspondentes a 2,616% do capital social dessa sociedade. Ambas as sociedades são cotadas na bolsa de valores; (cfr. art.º 186 do PPA)
AQ. Através de quatro contratos de doação, celebrados entre 9 de dezembro de 2015 e 9 de agosto de 2016, B... e K... doaram a totalidade das referidas participações sociais que detinham nas sociedades J... e I... aos seus dois filhos, C... e D...; (cfr. art.º 190 do PPA).
AS. Em dezembro de 2015 B... detinha 48.000 ações e os seus filhos detinham 2.000 ações da A...; (cfr. art.º 189 do PPA).
AT. No referido período temporal, durante o qual os contratos foram celebrados, C... e D... eram ainda menores de idade, pelo que esses contratos foram celebrados pelos seus representantes legais, seus pais B... e K...; (cfr. art.º 191 do PPA).
AU. Os referidos contratos de doação previam uma cláusula modal: os donatários assumiriam o encargo de, uma vez titulares das ações, as utilizar para efeitos de subscrição de um aumento de capital social da A...; (cfr. art.º 192 do PPA).
AV. Nas Assembleias Gerais da Empresa realizadas em 9 de dezembro de 2015, 22 de julho de 2016, 2 de agosto de 2016 e 9 de agosto de 2016, foram deliberados quatro aumentos de capital da A..., subscritos por C... e D..., e realizados mediante a entrega de ações da J... e I...; (cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA).
AW. Na Assembleia Geral realizada em 9 de dezembro de 2015, foi deliberado converter as 50.000 ações ordinárias que constituíam o capital social da A... em ações de Categoria A, com direitos especiais, que se traduziam no direito a 80% dos lucros da sociedade e, em caso de liquidação, a 80% do ativo remanescente; (cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA).
AX. As demais ações resultantes dos aumentos de capital subscritos por C... e D... eram ações ordinárias. (cfr. art.º 195 do PPA).
AY. C... e D... passaram a deter individualmente 38.643 228 ações, onde se incluem 1000 ações de categoria A, pelo que cada um detém 49,969% do capital social.
AZ. B... detém - desde a constituição da A... e até à presente data -, 48.000 ações de Categoria A, que lhe conferem direito a 78,40% dos lucros da sociedade e ativos remanescentes, em caso de liquidação; (cfr. art.º 197.º do PPA).
BA. No início de 2020, a A... detinha 17.292.073 ações da J... (correspondente a uma participação no seu capital social de 8,43%; (cfr. art.º 207º do PPA).
BB. Através de dez transações realizadas em janeiro de 2020; (cfr. pág. 29 da Fundamentação do RIT), a A... adquiriu um total de 3.249.211 ações da J..., mediante recurso a financiamento bancário; (cfr. art.º 208º da PPA).
BC. No final de janeiro de 2020 a A... passou a deter 20.541.248 ações da J... correspondente a 10,01% do capital social desta última; (cfr. art.º 210º do PPA).
BD. A Requerente no período de tributação de 2020, obteve dividendos da participada, J... SGPS, S.A. (J...), no montante de € 6.162.385,20 tendo os mesmos sido contabilisticamente reconhecidos como rendimentos na conta “79 - Juros e rendimentos similares obtidos”; (cfr. art.º 211º do PPA).
BE. A Requerente deduziu na conta “79 - Juros e rendimentos similares obtidos", e deduzidos no “Campo 771 – Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos”, do Quadro 07 da declaração Modelo 22 de 2020, os dividendos pagos pela J...; (cfr. doc. 4 junto o PPA).
3.2. Factos não provados
Não há factos não provados com relevância para a decisão.
3.3. Fundamentação da decisão sobre a Matéria de Facto
O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT).
E, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.
A convicção deste Tribunal Arbitral sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na análise crítica da prova documental junta pelas partes, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas, depoimento de parte e prova testemunhal.
Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, como prevê o artigo 110.º do CPPT, relativa à prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
Da audição da prova produzida, quer o senhor B... que prestou declarações de parte e as testemunhas L... e M... aparentaram depor com isenção e com conhecimento pessoal dos factos que relataram.
4. Matéria de direito
Questões decidendas
Estão em causa nos presentes autos, como questões principais a decidir:
a) Se o pagamento pela Requerente de deslocações e estadas suportadas pelo administrador são passíveis de retenção na fonte enquanto adiantamento por conta de lucros, ainda que não tenham sido consideradas como gasto fiscal;
b) Se as despesas de representação supra identificadas devem ser desconsideradas como gastos fiscais por terem sido realizadas no interesse exclusivo do administrador e sujeitas a retenção na fonte, enquanto adiantamentos por conta de lucros;
c) Se à distribuição de dividendos efetuada pela J... à Requerente em 2020 não deve ser aplicado o regime do artigo 51.º do Código do IRC, por força da norma específica anti-abuso prevista nos n.ºs 13 e 14 do CIRC.
Vejamos
a) A resposta à primeira questão circunscreve-se à possibilidade de aplicação ao caso da presunção estabelecida no artigo 6.º do n.º 4 do CIRS, relativa a lançamentos em contas correntes dos sócios, uma vez que as despesas com deslocações e estadas não foram consideradas como gastos fiscais.
Ora, no que concerne à presunção estabelecida no artigo 6.º n.º 4 do CIRS, importa começar por analisar a forma como vem formulada na lei:
“artigo 6º
Presunções relativas a rendimentos da categoria E
4 - Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
…”.
Estando os adiantamentos por conta de lucros abrangidos pela incidência da categoria E (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS), os preditos lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, que não resultem de outra natureza, serão tidos como tais e, por consequência, sujeitos a tributação à taxa liberatória de 28%, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do referido Código.
Enquanto presunção que é, a mesma pode ser ilidida nos termos previstos no artigo 73.º da LGT.
Isto remete-nos obrigatoriamente para o quadro legal da repartição do ónus da prova, tal como a mesma se encontra prevista no artigo 74.º, n.º1, da LGT. À luz dela, dir-se-á que cabe à AT demonstrar da verificação ocorrência dos factos que servem de base ao funcionamento da presunção invocada.
Sobre a temática da aplicação desta presunção, a Jurisprudência vem firmando os seguintes princípios: ao sujeito passivo caberá, sendo caso disso, “o ónus de produzir prova do contrário (art. 6º, n.º 5 do CIRS), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe”. (CAAD, Processo n.º 385/2022-T).
No mesmo sentido, “O beneficiário de uma presunção legal fica dispensado de provar o facto a que ela conduz, mas não fica dispensado de provar o facto base da presunção; consequentemente, a tributação em sede de IRS baseada na presunção de que determinados lançamentos em contas de terceiros que contém movimentos a esclarecer, ainda que oriundos das contas de caixa e bancos, constituem lucros ou adiantamento de lucros (artigo 6.º, n.º 4 do CIRS), impõe à AT o ónus de provar o facto base da presunção, isto é, que tais lançamentos são feitos em conta corrente do sócio, e que tais contas de movimentos a regularizar são efetivamente do sócio e que não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”. (CAAD Processo n.º 347/2022-T).
Isto obriga-nos, em primeiro lugar, a avaliar em que medida a AT logrou provar o facto base da presunção, para que a sua aplicação seja admissível. Só se dessa avaliação resultar que a prova foi feita é que se poderá passar à verificação dos argumentos apresentados pela Requerente, no sentido de afastar ou de ilidir a presunção. Finalmente, só se da análise desses argumentos resultar que a ilisão não foi conseguida, é que se poderá concluir pela legalidade da liquidação.
Ora, no caso concreto, não existe a menor evidência do lançamento em contas correntes do sócio, facto que constitui a pedra angular da presunção em causa. A este respeito é ilustrativa a citação feita a págs. 8 da Resposta da Requerida do RIT:
Por outro lado, e não menos importante, para aferir da prova feita pela AT, é a circunstância de que toda a explicação que vem dada no RIT se reportar à pessoa do “administrador” ou do administrador/acionista” e não apenas ao sócio/acionista enquanto tal.
Sabendo-se que se trata de uma empresa familiar, na qual B... acaba por ter a dupla qualidade, a de acionista e a de administrador, ainda assim, seria estritamente necessário que fosse explicitada em que qualidade as despesas em causa foram efetuadas: na qualidade de acionista ou de administrador.
É que ao primeiro são pagos dividendos; ao segundo, remunerações, mesmo quando o sejam com resultados distribuíveis das sociedades que administram.
Com efeito, o bom senso e a prática corrente dizem-nos que não é suposto que os acionistas exerçam funções executivas ou que tenham de efetuar deslocações profissionais. Dizem-nos ainda que essas deslocações tendem a ser feitas pelos administradores, o que nos leva a concluir que terá sido nessa qualidade que B... terá efetuado as deslocações em causa.
Significa isto que se as fez e se, como vem alegado no RIT, as mesmas dizem respeito a despesas de natureza pessoal, o que seria expectável, à luz do quadro legal vigente, seria a sua qualificação como rendimentos do trabalho, face ao disposto no artigo 2.º, n.º 3, b), do CIRS, aspeto que não cabe a este Tribunal suprir, tendo apenas de concluir pela ilegalidade na aplicação da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do mesmo Código.
Pelo exposto é anulada a liquidação adicional no montante de € 13.149,50 e respetivos juros compensatórios.
b) Quanto à segunda questão - as despesas de representação supra identificadas devem ser desconsideradas como gastos fiscais por terem sido realizadas no interesse exclusivo do administrador e sujeitas a retenção na fonte, enquanto adiantamentos por conta de lucros;
Se, quanto ao segundo aspeto, vale o que se acima se disse, importa aqui centrar-nos na temática da dedução dos gastos que deve ser feita à luz da sua empresarialidade, na linha da jurisprudência.
Relembra-se nesta sede a Decisão do CAAD no Processo n.º 639/2019-T, onde se discutia a dedutibilidade de despesas de deslocação, onde se afirma, de forma bastante expressiva, que “A indispensabilidade do custo há-de resultar simplesmente da sua ligação à actividade empresarial. Se o custo não é estranho à actividade da empresa, isto é, se se relaciona com a actividade normal da empresa (independentemente de ser maior ou menor o grau de intensidade ou proximidade), e se se aceita a sua existência (não se está perante um custo aparente ou simulado), o custo é indispensável”;
No mesmo sentido, encontramos a Decisão do CAAD no Processo nº 270/2018-T, onde se afirma “Quanto ao conceito de indispensabilidade de custos, consideramos decisiva a posição expressa no Acórdão do STA de 15-11-2017, proferido no proc. n.º 0372/16:
“Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. [...] O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção dos ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa” (TOMÁS CASTRO TAVARES, Da Relação..., loc. cit., pág. 136.). Dito de outro modo, só não serão indispensáveis os custos que não tenham relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa. É este o entendimento que vem sendo seguido por esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Entre muitos outros, fazendo um exaustivo tratamento do tema, vide o acórdão de 30 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 107/11, disponível em http://www.dgsi.pt.”.
No entanto, no quadro da repartição do ónus da prova, caberá à Requerente demonstrar a sua indispensabilidade, conforme, se reconhece no Acórdão do TCA-Sul de 28 de março de 2019, processo n.º 69/17.9BCLSB.
Ora, percorrendo os gastos a que se referem os n.ºs 8 a 34 do quadro apresentado pela Requerente na sua PPA, ponto 71º, a prova feita pela Requerente, praticamente assente no depoimento de parte, refere-se em geral às despesas com viagens e reuniões, não concretizando em relação a qualquer das despesas em causa as circunstâncias concretas em que foram efetuadas as despesas, pelo que entende o Tribunal que a Requerente não logrou demonstrar a sua empresarialidade.
Por outras palavras, não merece censura a desconsideração feita pela Requerida destas despesas, pelo que se mantém a correlativa correção ao lucro tributável no montante de € 3.063,40 -Recorde-se que da correção de € 3.467,80, a Requerente já havia aceite € 404,40.
Como se disse, já quanto à sujeição a retenção na fonte, como adiantamentos por conta de lucros destas despesas, são válidas as considerações acima feitas a respeito dos gastos com deslocações e estadas, pelo que o Tribunal considera não se verificarem os pressupostos para aplicação da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, pelo que a liquidação efetuada por falta de retenção na fonte deve ser anulada.
Merece uma referência especial, a tributação autónoma enquanto despesa confidencial da fatura emitida pela Agência de Viagens H..., no valor de € 612,00.
Importa considerar que a jurisprudência vem firmando a posição de que as despesas não documentadas a que se refere o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC mais não serão do que “saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário”, como se pode ver dos Acórdãos nºs 235/2020-T e 269/2020-T do CAAD.
Situação diversa é a de uma despesa cujo beneficiário seja conhecido, como o é notoriamente no caso, mas cuja empresarialidade, isto é a sua relação com a atividade desenvolvida pela empresa, não ficou demonstrada.
É, por isso, entendimento do Tribunal, como já ficou referido, que a empresarialidade desta despesa não foi comprovada, mas já não se pode aceitar a sua sujeição a tributação autónoma, por não se verificarem os correlativos pressuspostos legais.
Nestes termos, deve também ser anulada a liquidação da tributação autónoma no montante de € 306,00 e correspondentes juros compensatórios.
c) Finalmente, e quanto à última questão, que se prende com a aplicação do regime do participation exemption aos dividendos pagos pela J... à Requerente em 2020, importa começar por situar o respetivo quadro legal. Como é sabido, nos termos do artigo 51.º do CIRC, os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do seu lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os requisitos previstos no seu n.º 1, que não serão aqui objeto de análise, na medida em que não relevam para a decisão do caso.
Em termos práticos, o regime assim instituído determina, nos casos em que aqueles lucros ou reservas integrem os resultados contabilísticos do sujeito passivo, que os mesmos sejam expurgados do lucro tributável por dedução em campo apropriado da declaração modelo 22.
As partes divergem apenas quanto à aplicação ao caso da norma específica anti-abuso que vem formulada na letra daquele artigo nos termos seguintes:
“Artigo 51º
Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos
…
13 - O disposto no n.º 1 não é aplicável aos lucros e reservas distribuídos quando exista uma construção ou série de construções que, tendo sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e finalidade de eliminar a dupla tributação sobre tais rendimentos, não seja considerada genuína, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes.
14 - Para efeitos do número anterior, considera-se que uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas e não reflita substância económica.”
Ou seja, quando for feita uma construção ou série de construções dirigidas a obter indevidamente a eliminação da dupla tributação o regime é afastado, o que pressupõe, em função da repartição do ónus de prova, que quem a invoque deva fazer:
-
A demonstração de uma construção ou série de construções
-
E que a mesma não seja genuína.
Assim, para a aplicação do direito aos factos sub judice, importa começar por ver os fundamentos invocados pela AT para justificar a existência de predita construção.
A AT começa por enumerar as doações feitas por B... e K... a favor dos seus dois filhos ocorridas em 2015 e 2016, com a já referida cláusula modal que lhe estava subjacente.
Enumera ainda os subsequentes aumentos de capital subscritos pelos filhos menores, deliberados em Assembleias Gerais em que K... interveio na qualidade de representante daqueles.
A ilação que deles retira é que foi realizada uma série de operações que tiveram como resultado a transferência da titularidade das ações da J... e da I... de B... e K... para a sociedade A..., sem que perdesse o controlo societário.
Ou seja, não sustentou em que medida essa transferência de titularidade não foi genuína, o que defende é que o meio usado para efetuar essa transferência se revela artificioso.
Com efeito, apesar de, por força dos aumentos de capital ocorridos, B... ter visto a sua posição societária diluída para apenas 0,062% do capital social, a verdade é que continua a manter interesses patrimoniais na sociedade muito relevantes (correspondentes a 78,40%), em virtude de outras alterações estatutárias entretanto realizadas.
Além disso, continuava a ser presidente do conselho de administração e representava, juntamente com K..., os interesses dos seus filhos menores.
Ou seja, a falta de “genuidade” que a AT atribui à “série de construções” é a de que as doações foram um “expediente” para se evitar que as participações fossem diretamente alienadas à A... . Mais refere que, através delas, B... e K... terão conseguido a valorização das ações por força da sua transmissão gratuita e das regras da respetiva valorização tal como decorre do normativo do CIS.
Por outras palavras, o que poderia ter sido artificioso, na tese da AT, seria o recurso às doações, enquanto forma de evitar o eventual pagamento de IRS sobre a valorização das ações transmitidas na esfera patrimonial de B... e de K... . Com efeito, se não tivessem usado o meio alegamente artificioso (doação) mas o meio normal de transferir para uma holding pessoal os seus interesses empresariais - a compra e venda ou a entrada em espécie - haveria lugar ao apuramento de mais-valias pessoais com a inerente incidência de IRS.
Ou seja, depreende-se do itinerário cognoscitivo percorrido pela inspeção tributária e que fundamenta a liquidação aqui posta em crise que as doações não foram genuínas; outrossim, visaram transferir para a A... as ações nas sociedades detidas por aqueles senhores de forma menos onerosa.
Mas o imposto assim evitado, seria o IRS e não o IRC que está em causa nos presentes autos.
Não se disse, nem se demonstrou, que B... e K... não pretenderam constituir a A..., nem a ausência de racionalidade que esteve subjacente à organização do património.
A este propósito, convém ter presente que o legislador comercial consagrou determinados tipos de sociedades justamente para estes fins. Basta analisar o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 dezembro: “O presente diploma visa, em conformidade, proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permita reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada.”, pelo que não é concebível que se sancione aqueles empresários que justamente adotam o modelo preconizado pelo legislador.
Por outro lado, se o legislador fiscal consentiu, no artigo 51.º do CIRC, verificados os correlativos pressupostos, que seja eliminada a dupla tributação económica quanto aos dividendos distribuídos por entidades sujeitas a IRC a outras entidades sujeitas ao mesmo imposto, também não se vê como possa merecer algum tipo de reparo um sujeito passivo que dele beneficie por opção deliberada, no quadro da sua gestão e organização pessoal ou empresarial.
Caso diferente seria não se pretender efetuar uma determinada (re)organização e recorrer artificiosamente a ela para beneficiar de um regime mais favorável, o que não ficou demonstrado no caso sub judice.
Efetivamente, tudo o que vemos resultar dos factos descritos e da própria interpretação que a AT deles fez é que, porventura, B... e K... terão, sob a capa das doações, logrado transferir as participações que detinham para uma sociedade que agregasse as suas participações; não que a própria constituição da sociedade fosse artificiosa ou não genuína.
E se assim o foi, caberia à AT socorrer-se dos meios de que dispõe para, junto daqueles sujeitos passivos de IRS, porventura ao abrigo do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, invocando a clausula geral anti-abuso, desqualificar, para efeitos fiscais, as referidas doações e tributar as transferências feitas como transmissões onerosas, liquidando o correspondente IRS.
Não se pode pretender penalizar um sujeito passivo - no caso a Requerente -, e no quadro de uma ulterior distribuição de dividendos, pelo comportamento de outros sujeitos passivos, os quais, por meio de uma operação porventura feita de forma abusiva, retiraram (estes e não aquele) vantagens fiscais indevidas.
Com efeito, como refere o Prof. Saldanha Sanches, em Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 21, o planeamento fiscal legítimo “consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais”. Já o planeamento fiscal ilegítimo “consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo”.
Os sujeitos passivos não são obrigados a seguir a via fiscalmente mais onerosa, como decorre da Decisão Arbitral do CAAD, no Processo n.º 305/2013-T: “Por outro lado, o facto de a estas operações estar associada uma vantagem fiscal não pode ser considerado um obstáculo à aceitação da opção para efeitos fiscais, pois os contribuintes não são obrigados a optar pelos negócios que sejam fiscalmente mais onerosos, quando a lei lhes propicia mais de um meio para atingir os fins que visam na reestruturação e gestão de sociedades”.
No mesmo sentido encontramos ainda a Decisão Arbitral no Processo n.º 184/2017-T: “Perante dois negócios jurídicos de efeito económico equivalente, o contribuinte não é obrigado a escolher o negócio fiscalmente mais oneroso”.
A este respeito sempre se dirá que se B... e K... tivessem transmitido diretamente as suas participações à A... e pago o IRS por elas devido, a distribuição de dividendos aqui controvertida teria o mesmo enquadramento fiscal. Isto é, continuaria a beneficiar do regime de isenção consignado no artigo 51.º do CIRC.
Por outras palavras, não foi o carácter artificial daquela transmissão que possibilitou ou que modificou a aplicação do regime aos dividendos distribuídos pela J... em 2020.
O regime do participation exemption sempre se aplicaria, sendo certo que a escolha de concentração das participações numa sociedade pelo B... e pela K... não é um comportamento censurável, à luz do direito comercial ou fiscal.
Há substancia económica na operação - a concentração de participações financeiras numa determinada entidade, entidade essa que passa a ser o interlocutor único nas sociedades participadas o que, sobretudo face a menoridade dos filhos do casal, se afigura constituir uma forma prudente de garantir a gestão daqueles ativos, de os mesmos aparecem com uma única voz e de uma forma expedita nas AG das participadas, sem dependerem das limitações da representação dos menores, como o depoimento de parte do B... veio ilustrar.
A escolha das opções menos onerosas não pode, de per se, originar a aplicação das normas anti-abuso. E a escolha que originou a possibilidade de beneficiar do regime de isenção do artigo 51.º não se prende com a operação alegadamente não genuína. Prende-se com uma escolha legítima de estruturação ou organização dos ativos empresariais do casal.
O itinerário percorrido pela Requerida foi: a obtenção de dividendos com isenção é ilegítima, pelo que a constituição de uma sociedade que concentrasse as participações sociais foi apenas um meio, na medida em que se o B... e a K... mantivessem as participações a título individual, não poderiam beneficiar dessa isenção.
Porém, os instrumentos que o legislador comercial colocou à disposição dos empresários são para ser usados. E as possibilidades de isenção que os mesmos possam contemplar foram consentidas pelo legislador fiscal, pelo que não são censuráveis as opções feitas pelos sujeitos passivos que recorram aqueles instrumentos e beneficiem destas possibilidades.
Ou seja, também neste campo, a AT não logrou fazer a prova dos pressupostos de que depende a aplicação da norma específica anti-abuso, pela que a liquidação feita viola o artigo 51.º do CIRC e deve ser anulada.
Firmar a sua aplicação numa mera hipótese: “se as participações da I... e da J... permancessem na titularidad de B... e K...” é admitir que a gestão do património é imutável e que as regras de boa gestão que se impõem a qualquer bom pai de família são impróprias.
Sublinha-se ainda que a J... é uma sociedade cotada na bolsa de valores e que as decisões sobre distribuição de dividendos não dependem de um acionista que, à data em que foram feitas as doações, deteria pouco mais de 7% do capital!
Apesar de se afirmar e insistir na resposta da Requerida que as operações foram efetuadas num curto período de tempo, a verdade é que as mesmas ocorreram entre 2015 e 2016. Não é, por isso, credível que uma empresa cotada esperasse 5 anos para distribuir dividendos ao sabor dos caprichos de um dos seus acionistas.
Forçoso é concluir que não há, pelas razões anteriores, uma relação causa/efeito entre as operações que a AT considera não genuínas (doações) e a isenção de que beneficiaram os dividendos.
Pelo exposto, procede o pedido de pronúncia arbitral quanto a esta questão, anulando-se a liquidação adicional e correspondentes juros compensatórios na parte correspondente à correção de € 6.162.385,20.
5. Da prestação de garantia indevida
Para obter a suspensão do Processo de execução PEF ...2022..., a Requerente apresentou penhor de ações, registado sobre 265.000 ações da sociedade F..., S.A., válido até ao trânsito em julgado de decisão judicial que recaia sobre a legalidade da liquidação de IRC supra referida, e subjacente ao processo de execução fiscal.
A Requerente requereu o pagamento da correspondente indemnização por prestação de garantia indevida, invocando o disposto nos artigos 191.º do CPPT e 53.º da LGT, tendo para o efeito alegado e demonstrado que procedeu à apresentação de penhor de ações referidas para obter a suspensão do processo de execução fiscal relativo ao imposto em dívida.
A Requerente não informou os custos que teve com essa constituição de penhor.
O artigo 171.º do CPPT, estabelece que “a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.
O artigo 171.º do CPPT garante a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada, que poderá ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, havendo de entender-se que o processo arbitral é também o meio processual próprio para deduzir esse pedido visto que poderá ter por objeto a apreciação de pretensões relativas à declaração de legalidade de atos de liquidação de tributos (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
“Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou”.
Como resulta do teor expresso do n.º 1 deste artigo 53.º, apenas está prevista indemnização, a que se refere o artigo 171.º do CPPT, nos casos de prestação de garantia bancária ou equivalente e não nos de prestação de garantia da dívida por outros meios.
Neste sentido pronunciou-se o acórdão do STA de 24 de outubro de 2012 proferido no Processo n.º 0528/12, só pode entender-se como garantia para os pretendidos efeitos indemnizatórios a garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer outro meio suscetível de justificar a existência de despesas que possam ocorrer por efeito do decurso do tempo, a que se refere o artigo 199.º, n.º 1, do CPPT, e que têm como limite máximo o valor garantido da taxa dos juros indemnizatórios (artigo 53.º, n.º 3, da LGT).
Assim, improcede o pedido de indemnização por garantia indevida por falta de indicação do custo da constituição do penhor das ações mencionadas e por falta de previsão legal.
6. Juros indemnizatórios
A Requerente em 29-08-2022 pagou a quantia de € 16 579,86 relativa à liquidação adicional de retenção na fonte de IRS e respetivos juros compensatórios.
O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT determina que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
O direito a juros indemnizatórios está regulado no artigo 43.º da LGT, que determina no que se aplica aos presentes autos:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.
Ficou provado nos presentes autos que o erro na liquidação é imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, pois foi esta que a emitiu por sua iniciativa e indicou os pressupostos da liquidação no relatório de inspeção que a fundamenta.
Como consequência desse erro, a Requerente viu-se privada de meios financeiros que lhe eram devidos. Determina o artigo 100.º da Lei Geral Tributária, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Nos presentes autos conclui-se que, da liquidação global de IRS no montante de € 15.253,87 (correspondente a € 14.595,98, a título de deslocações e estadas e € 657,89, de despesas de representação), da qual apenas prevalece a importância de € 1.447,04, julgando-se procedente o pedido quanto a € 13.806,83, tendo os atos tributários julgados procedentes sido emitidos pela Requerida, o erro é imputável aos serviços, pois, foi esta que as elaborou por sua iniciativa.
Os juros indemnizatórios devem ser contados, a partir da data em que foi efetuado pagamento, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
7. Do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE
Quanto ao pedido de reenvio prejudicial, este Tribunal considera não existirem fundamentos que justifiquem esse reenvio, uma vez que quer a Jurisprudência nacional quer a Jurisprudência do TJUE, já procederam à análise de todas as questões aqui tratadas. Assim, não se suscitam dúvidas ao Tribunal sobre o sentido da decisão a proferir, e em especial quanto a matérias que poderiam ser objeto de apreciação pelo TJUE em sede de reenvio prejudicial.
8. Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto aos pedidos de anulação da liquidação adicional de retenção na fonte de IRS e anular a liquidação adicional de retenções na fonte de IRS com o n.º 2022 ... referente ao exercício de 2020, e as respetivas liquidações de juros com os n.os 2022 ... a 2022 ..., consubstanciadas na demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRS com o n.º 2022 ..., no que exceda o valor de: € 1 447,04;
b) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto aos pedidos de anulação parcial das liquidações da liquidação adicional do IRC n.º 2022 ... referente ao exercício de 2020, e respetivas liquidações de juros com os 2022 ..., consubstanciadas na demonstração de acerto de contas n.º 2022 ...; no que excede a correção do lucro tributável no valor de € 3.467,80.
c) Julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida;
b) Condenar a Requererida no reembolso e pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia de € 13.806,83 paga a título de retenções na fonte de IRS, contados desde o seu pagamento e até à emissão de nota de crédito;
e) Julgar improcedente o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE.
9. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1 576 585,63.
10. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 21.114,00 harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira (99,84 %) e o da Requerente (0,16%) na proporção do respetivo decaimento.
Notifique-se
Lisboa, 6 de outubro de 2023
Os Árbitros
___________
(Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro - Presidente),
__________________
(Dr. Jorge Carita - Arbitro Ajunto)
_________________
(Dr. Nuno Pinto Fernandes - Árbitro Adjunto)