DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO
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As sociedades de capital de risco não se caracterizam como instituições financeiras para efeito de incidência de imposto de selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo.
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O tribunal arbitral é competente para apreciar da legalidade dos atos tributários, independentemente dos vícios que conduziram à sua rejeição, pois estamos no domínio da impugnação judicial e, portanto, da ação arbitral, cujo domínio também é a apreciação da legalidade do ato tributário, objeto mediato do pedido de pronuncia arbitral.
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Considerando que à data em que é apresentada a reclamação graciosa, ainda não se encontrava esgotado o prazo dentro do qual a revisão oficiosa podia ser pedida e ordenada, estando reunidos os demais pressupostos e recaindo sobre a administração tributária o poder dever de proceder à convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão do ato de autoliquidação, não podia o pedido de reclamação dirigido à administração ser indeferido por intempestividade.
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Relatório
[٠], com o número único de matrícula e identificação fiscal [٠], com sede na [٠], doravante designada por “Requerente, veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do n.º 1 do artigo 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem (RJAT) e dos artigos 1.º e da Portaria n.º 112-A/2011, requerer a constituição do Tribunal Arbitral, pedindo:
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A declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento proferida em sede de procedimento de reclamação graciosa, e consequentemente dos atos tributários de liquidação de Imposto do Selo realizados no período compreendido entre Julho de 2020 e Abril de 2022, no âmbito das comissões de gestão cobradas aos fundos de capital de risco (“FCR”) por si geridos;
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a Condenação da AT a reembolsar a Requerente do imposto de Selo liquidado em excesso no montante € 35.030,15, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios em excesso.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”),
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, a qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo.
Em 14 de março de 2023, as partes foram notificadas da designação do árbitro não tendo arguido qualquer impedimento.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 3 de abril de 2023.
Notificada para o efeito por despacho de 11 de abril de 2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação e exceção, invocando a intempestividade da impugnação direta dos atos de liquidação e a incompetência material do Tribunal Arbitral referente ao período de julho de 2020.
O Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar sobre o mérito da matéria de exceção, o que esta fez por requerimento de 7 de junho de 2023 no qual consolidou a posição apresentada no pedido de pronuncia arbitral.
Por despacho de 19 de junho de 2023, o Tribunal, atendendo a que havia sido exercido o contraditório quanto à matéria de exceção, cuja apreciação foi relegada para decisão final, atendendo a que as questões que subsistiam eram essencialmente de direito e que não foi requerida qualquer prova testemunhal, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas.
Ambas as partes apresentaram prescindiram de apresentar alegações, dando por reproduzido o aduzido nos articulados produzidos.
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Descrição sumária dos factos
II. 1 Posição da Requerente
A Requerente é uma Sociedade de Capital de Risco (doravante SCR), regularmente constituída ao abrigo da legislação nacional, em particular do atual Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializada, estabelecido na Lei n.º 18/2015, de 4 de Março, que tem como atividade principal a gestão e representação de Fundos de Capital de Risco (doravante “FCR”), em todos os aspetos da sua atividade económica e jurídica.
Atualmente, a Requerente é uma sociedade gestora independente no mercado nacional e centrada em gerir investimentos alternativos, com uma carteira de ativos composta por fundos de capital de risco focados em construir uma posição de crescimento sustentável no sector de private equity, e cobra comissões de gestão àqueles FCR, sobre as quais tem vindo sempre a liquidar Imposto do Selo, à taxa de 4%, nos termos da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), com base no pressuposto incorreto de as SCR se qualificarem como instituições financeiras para efeitos de aplicação daquela norma.
A liquidação do Imposto de Selo decorria do antecedente histórico de as SCR serem qualificadas como sociedades financeiras nos termos e para os efeitos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
Sucede, porém, que as alterações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) pelo Decreto‐Lei n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, conduziram à revogação da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º, circunstância que levou ao afastamento, inequívoco, da qualificação jurídica das SCR como sociedades financeiras e consequentemente ao seu enquadramento no conceito de instituição financeira.
Nos termos do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, este imposto “incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral”.
O disposto na verba 17.3.4 da TGIS, a qual estabelece que se encontram sujeitas a Imposto do Selo, à taxa de 4%, as “comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões”, verba de que apenas abrange as “operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras (…)”[1].
Em virtude da alteração ao RGICSF, operada pelo Decreto Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro e do estabelecido na Lei n.º 18/2015, de 4 de Março, entende a Requerente que as referidas comissões de gestão cobradas aos fundos de capital de risco por si geridos deixaram de estar sujeitas a Imposto do Selo, uma vez que a sujeição a Imposto do Selo depende do facto de as comissões cobradas serem realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a estas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras.
Não prevendo a legislação fiscal uma definição dos conceitos “instituição de crédito”, “sociedade financeira” ou “instituição financeira”, deverá atender‐se ao disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT e, como tal, recorrer‐se às definições previstas nos ramos do direito dos quais provenham aqueles conceitos. socorrendo-se a Requerente, para efeitos de PPA, dos conceitos constantes do direito bancário e do financeiro português, cujo diploma fundamental é o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto‐Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
A Requerente apresentou uma reclamação graciosa das liquidações de Imposto do Selo supra identificadas, na qual solicitou à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) a anulação das mesmas, por considerar que os serviços de gestão, administração e comercialização por si prestados aos FCR não preenchem os requisitos de incidência da Verba 17.3.4 da TGIS.
Na sequência da apresentação do pedido de reclamação graciosa, a Requerente foi notificada do projeto de decisão da mesma[2], no qual a AT concluiu que “as comissões em análise preenchem cumulativamente, os elementos de natureza objectiva e subjectiva, previstos na Verba 17.3.4 da TGIS, e, em conformidade, estão sujeitas a Imposto do Selo por força do disposto no n.º 1 artigo 1.º do Código do Imposto do Selo.”
Na mesma decisão a AT sustenta a intempestividade parcial da reclamação, designadamente quanto ao período de julho de 2020, por considerar ter sido ultrapassado o prazo legal de dois anos para reclamar relativamente àquele período.
A este propósito afirma a Requerente que ainda após o esgotamento do decurso do prazo de reclamação graciosa, a AT tinha o dever ‐ o qual não logrou cumprir ‐ de convolar a reclamação graciosa em pedido de revisão oficiosa, uma vez que se encontravam preenchidos os requisitos de que depende a apresentação de tal pedido por parte do sujeito passivo, nomeadamente o prazo e a imputabilidade do erro na liquidação à AT, avocando em defesa da sua posição vasta jurisprudência nos nossos tribunais superiores.
Defende não ser admissível que da revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT se faça uma interpretação que redunde numa situação precisamente oposta à que existia, isto é, deixando de imputar‐se culpa aos serviços da AT e negando qualquer proteção ao contribuinte por qualquer erro que este cometa em autoliquidações de imposto quando, além do mais, o contribuinte atuou em sintomia com orientações da Administração Tributária, como é o caso.
Acrescenta que, o erro dos contribuintes nas situações de autoliquidação é imputável aos serviços quando aqueles tenham seguido as orientações da AT, uma vez que haverá um nexo de causalidade entre a atuação da AT e o comportamento do contribuinte, e nesta matéria em particular a AT tem emitido, reiteradamente, orientações nas quais propugna que as SCR são qualificadas como instituições financeiras, orientações seguidas pela Requerente nas liquidações impugnadas.
Pretende, pois, a Requerente que seja declarada quer a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa, quer a ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto do Selo no período compreendido entre Julho de 2020 e Abril de 2022 – e que sejam consequentemente anulados –, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, aos quais corresponde um montante de imposto indevidamente liquidado e pago pela Requerente no valor de € 35.030,15 invocando, em síntese, os seguintes argumentos:
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Desde 01.01.2002, data em que as Sociedades de Capital de Risco deixaram de ser qualificadas pelo RGICSF como “instituições/sociedades financeiras”, não se verifica o requisito da incidência subjetiva consagrado na verba 17.3 da TGIS;
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Também a incidência objetiva consagrada na verba 17.3.4 da TGIS não se verifica, dado que as comissões cobradas pela Reclamante para remunerar os serviços de gestão, administração e comercialização prestados a FCR, não se qualificam como “serviços financeiros” e;
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As SCR não poderão ser enquadradas no conceito de intermediário financeiro; defende também que não podendo as SCR ser incluídas no conceito de instituição financeira, inexiste o elemento subjetivo de incidência, não podendo ser aplicadas às citadas comissões a Verba 17.3.4 da TGIS.
II.2 Posição da Requerida
O pedido apresentado pela Requerente, que constitui o objeto imediato do PPA, é parcialmente intempestivo, no que se refere ao período de julho de 2020, uma vez que a Reclamação Graciosa deu entrada nos Serviços da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) no dia 31-08-2022 sendo o limite do prazo de 20 de agosto de 2022 e, assim sendo, tal pedido foi, nesta parte, rejeitado liminarmente pela AT na decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, por ter sido ultrapassado o prazo legal de dois anos para reclamar.
Atenta a rejeição liminar de parte do pedido deduzido na reclamação graciosa, o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar a decisão na parte que considerou intempestiva a reclamação graciosa, e em consequência a legalidade das respetivas autoliquidações de imposto do selo, consubstanciando, portanto, uma exceção dilatória que se traduz na incompetência do tribunal, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa na parte aqui em causa, devendo determinar a absolvição, nessa parte, da Entidade Requerida.
Acrescenta a Requerida, em defesa da sua tese, a incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer da legalidade dos atos de autoliquidação reportados a julho de 2020, face ao disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT e do artigo 2°, da citada Portaria n° 112-A/2011, isto é, a possibilidade de apreciar dos atos de autoliquidação objeto da matéria de exceção, sem que tenha existido prévio " (...) recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131° a 133°, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (...)", não existindo, fundamento para que fosse diligenciada a sua convolação em revisão oficiosa pela unidade orgânica igualmente competente para a sua apreciação (Despacho n.º 12575/2021, de 24 de dezembro, Diário da República n.º 248/2021, Série II de 2021-12-24; Despacho n.º 13101/2022, de 11 de novembro, Diário da República n.º 218/2022, Série II de 2022-11-11), porquanto, desde a revogação do n.º 2 do artigo 8.º da LGT, o procedimento de revisão no prazo de quatro anos previsto na segunda parte daquele artigo 78.º, n.º 1 da LGT, só é seria aceite se se estivesse perante um erro imputável aos serviços, o que não é o caso.
Quanto ao tema da legalidade das liquidações para a AT importa recuperar o (correto) entendimento relativamente ao elemento subjetivo da norma de sujeição: a verba 17.3 da TGIS e as “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”
Para a Requerida até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, não se questionava se as sociedades de capital de risco (SCR) deviam ou não qualificar-se como sociedades financeiras, uma vez que o RGICSF assim o determinava expressamente, portanto trata-se de saber se, após essa data, a natureza das sociedades envolvidas e as atividades desenvolvidas por aquelas se alteraram de modo a que se justifique ser feita outra qualificação.
A AT sustenta, por um lado que o RGICSF não esgota nem é o único diploma existente no ordenamento jurídico português que elenca, qualifica e densifica, expressamente, as entidades que se enquadram na categoria de instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras, sendo de relevante utilidade, tendo em conta a questão que se analisa, a chamada à colação de alguns dos instrumentos jurídicos europeus que regulam o sistema financeiro na União Europeia como um todo, por outro lado defende que a revogação da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º, operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro não veio desqualificar as SCR como instituições financeiras para efeitos de aplicação da norma de incidência.
Ademais, a norma constante do n.º 5 do artigo 6.º do RGICSF tem por efeito apenas a exclusão das SCR da supervisão do Banco de Portugal e transportá-la para a CMVM, como é reconhecido diretamente no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro. Essa alteração destinou-se a harmonizar o regime de supervisão aplicável aos próprios OIC, que já anteriormente estavam sujeitos à supervisão da CMVM.
Extrai ainda a Requerida da alínea c) do artigo 2º do Decreto-Lei nº 95/2006, de 29 de Maio, dos nºs 4 e 5 do artigo 17º e nº 3 do artigo 45º ambos do regime jurídico do capital de risco, do empreendedorismo social e do investimento especializado (RJCR); e do artigo 66º do regime geral dos organismos de investimento coletivo (RGOIC) que é “forçoso concluir que as SGFCR prestam serviços materialmente financeiros aos FCR por si geridos”, uma vez que toda a atividade das SGFCR está orientada para esse fim, conforme se retira, sem grande esforço, das suas várias disposições” pelo que “importa perguntar se são ou não são os serviços prestados pelas SGFCR, remunerados através da comissão de gestão por si cobrada aos FCR, materialmente financeiros”.
Refere ainda a AT: “também numa perspetiva sistemática, e pese embora tenha sido especificamente legislado para a atividade bancária, nos termos da alínea f) do artigo 3.º do Decreto-Lei 58/2013, de 8 de maio, «Comissões» são “as prestações pecuniárias exigidas aos clientes pelas instituições como retribuição por serviços por elas prestados, ou subcontratados a terceiros, no âmbito da sua atividade”», conceito que se considera aplicável, com as devidas adaptações, a todas e quaisquer comissões cobradas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”.
Quanto à “qualificação das SCR/SGFCR como “instituição financeira” à luz da legislação comunitária” refere que da conjugação dos critérios normativos e interpretativos que estes diplomas comunitários fornecem – Regulamentos (UE) n.º 1092/2010, (UE) n.º 1095/2010, Diretiva 2011/61/UE e ponto 26) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 575/2013 – forçoso é concluir que as SCR/SGFCR, enquanto empresas regulamentadas e autorizadas a gerir profissionalmente FCR, são “instituições financeiras”.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º n.º 1 alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2 alínea a) do RJAT.
As partes gozam de capacidade e personalidade jurídica, são legítimas, (artigo 4.º e 10.º n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
A Requerente tem personalidade e capacidade tributárias, sendo a parte legítima do presente PPA, na qualidade de entidade credora de comissões (sujeito passivo) e titular do interesse económico, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea b), 3.º, n.º 3, alínea s), do Código do Imposto de Selo e dos artigos 15.º, 16.º e 18.º da LGT, e encontra-se regularmente representada.
A Requerida goza de personalidade e capacidade tributárias, tem legitimidade e encontra-se regularmente representada (cf. artigos 4.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
A Requerida suscitou exceções dilatórias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, que serão apreciadas após apreciada a matéria de facto.:
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Matéria de Facto
IV.1 Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A [٠] é uma Sociedade de Capital de Risco (doravante “SCR”), regularmente constituída ao abrigo da legislação nacional, em particular do atual Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializada, estabelecido na Lei n.º 18/2015, de 4 de Março.
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A atividade principal da [٠] consiste na gestão e representação de Fundos de Capital de Risco (doravante “FCR”) em todos os aspetos da sua atividade económica e jurídica, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 17.º do referido regime jurídico.
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Atualmente, a [٠] é uma sociedade gestora independente no mercado nacional e centrada em gerir investimentos alternativos, com uma carteira de ativos composta por fundos de capital de risco focados em construir uma posição de crescimento sustentável no sector de private equity.
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Ora, no exercício da sua atividade, a [٠] cobrou comissões de gestão aos FCR, sobre as quais tem vindo sempre a liquidar Imposto do Selo, à taxa de 4%, nos termos da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”).
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A liquidação do Imposto de Selo assentava no pressuposto de as SCR se qualificarem como instituições financeiras para efeitos de aplicação daquela norma.
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Na Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2017000303 ‐ IVE n.º 11733, com despacho concordante de 07.07.2017, quer na Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2018001066, com despacho concordante de 01.11.2018, a AT qualifica expressamente as SCR como instituições financeiras.(consultáveis em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.taxfile.pt/file_bank/news0718_11_1.pdf e chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.taxfile.pt/file_bank/news4618_10_1.pdf)
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No período compreendido entre julho de 2020 e abril de 2022, a [٠] liquidou Imposto do Selo, à taxa de 4%, sobre as referidas comissões de gestão, no montante total de € 35.030,15, conforme decorre da tabela abaixo:
Data de
pagamento
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Imposto do
Selo (4%)
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Declaração
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20/08/2020
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2.981,06
|
…
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20/11/2020
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2.921,48
|
…
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15/02/2021
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2.921,48
|
…
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21/06/2021
|
2.857,97
|
…
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12/08/2021
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2.764,79
|
…
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14/09/2021
|
8,79
|
…
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16/11/2021
|
2.959,77
|
…
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15/02/2022
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6.402,39
|
…
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12/05/2022
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11.212,42
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…
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Total
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35.030,15
|
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Por entender que a verba 17.3.4 da tabela Geral do Imposto de Selo não é aplicável às sociedades de capital de risco, em 31/08/2022 a [٠] apresentou reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação do IS do período compreendido entre julho de 2020 e abril de 2022, pedindo a respetiva anulação com todas as legais consequências, nos serviços da Unidade de Grandes Contribuintes.
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A [٠] foi notificada da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa em 24-10-2022.
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A AT considerou a reclamação parcialmente intempestiva relativamente aos atos tributários ocorridos durante o período compreendido entre julho de 2020 (declaração entregue em 13-08-2020) e abril de 2022, por ter sido ultrapassado o prazo legal de dois anos para reclamar, porque por referência à declaração de julho de 2020 o limite do prazo era 20 de agosto de 2022, em conformidade com o estabelecido nos artigos 68.º 3 131.º do CPPT, ex vi artigo 49.º do CIS.(Cf. Decisão constante do PA).
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Na parte respeitante à apreciação dos pressupostos procedimentais, pode-se ler-se o seguinte:
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Na parte conclusiva do despacho que recaiu sobre a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente, a AT concluiu o seguinte:
Cf. Decisão de indeferimento junta ao PA
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O ato de indeferimento expresso foi notificado à Requerente por carta registada expedida em 26 de janeiro de 2022.
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O pedido arbitral foi apresentado em 22 de janeiro de 2023.
IV.2 Factos não Provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.
IV.3 Motivação da Matéria de facto
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 317.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal e a sua convicção relativamente à matéria de facto resultou da análise crítica dos documentos e informações constantes dos autos, do processo administrativo apenso, os quais não foram impugnados, bem assim como da posição assumida pelas partes nas respetivas peças processuais.
V. Matéria de Direito
V.1 Questões decidendas
O objeto imediato da presente ação é a apreciação da legalidade do indeferimento expresso do pedido de reclamação graciosa que a Requerente apresentou em 31/08/2022 ao abrigo dos artigos 131.º do CPPT, cujos termos correram sob o procedimento n.º [٠], junto do serviço de finanças de Lisboa 2 e da UGC, e por objeto mediato a apreciação da legalidade das autoliquidações de Imposto de Selo realizadas no período compreendido entre julho de 2020 e abril de 2022, no âmbito das comissões de gestão cobradas aos fundos de capital de risco (“FCR”) por si geridos, no montante de € 35.030,15.
A questão que se impõe decidir nos presentes autos, e que consiste em saber se as sociedades de capital de risco se caracterizam como instituições financeiras para efeitos de incidência de imposto de selo nos termos das verbas 17.3 e 17.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo, já foi objeto de análise e decisão em processos judiciais anteriores, cuja fundamentação se seguirá de muito perto.
No entanto, tendo a Requerida suscitado exceções dilatórias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal apreciará primeiramente tais questões e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência das mesmas, os vícios alegados pela Requerente suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação do referido ato de indeferimento e das referidas autoliquidações (cf. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).
V.2 Das exceções
Tendo em conta a posição das partes, a matéria de facto dada como assente, as exceções a decidir, com referência ao período de julho de 2020, são as seguintes:
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Incompetência material do Tribunal por inidoneidade do meio processual;
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Da incompetência do Tribunal arbitral e da intempestividade para a impugnação direta dos autos de autoliquidação
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Da inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação no que respeita ao período de julho de 2020.
No essencial as exceções invocadas resumem-se à questão de saber se a autoliquidação reportada a julho de 2020 é passível de ser contestada através da impugnação judicial. Em caso afirmativo o Tribunal Arbitral é competente.
V.2.a Da incompetência do Tribunal Arbitral por inidoneidade do meio processual
A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a sua apreciação previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por referência ao período de julho de 2020, entende a AT que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar a decisão que considerou intempestiva a reclamação graciosa e em consequência as respetivas autoliquidações de imposto de selo, uma vez que não foi apreciada a legalidade dos atos tributários de autoliquidação de IS mas apenas a sua intempestividade, não pode a mesma ser sindicável através de impugnação judicial ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, e consequentemente também não o poderá ser por via arbitral.
Ora, o âmbito de competência dos tribunais arbitrais é delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, compreendendo, exclusivamente, a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável que não deem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
Acrescenta o artigo 4.º do RJAT que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de Portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça. E aqueles serviços e organismos vincularam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais nos casos que tenham por objeto a apreciação das acima identificadas pretensões, de valor não superior a € 10 000 000, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, o que abrange de forma inequívoca o IS.
No que se refere à declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação do IS impugnado (e do pedido dependente de juros indemnizatórios), tal pretensão tem cabimento na jurisdição arbitral.
É certo que o indeferimento expresso da Reclamação Graciosa na parte relativa à autoliquidação referente a julho de 2020 não chega a pronunciar-se sobre a legalidade da mesma rejeitando a apreciação dessa legalidade com o único fundamento da intempestividade do meio procedimental utilizado.
Não obstante, a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo pronuncia-se no sentido, que aqui se acompanha, de que, sendo o pedido do contribuinte dirigido à anulação por ilegalidade do ato tributário, está em causa a apreciação dessa mesma ilegalidade, independentemente da razão ou vício que conduziu à rejeição ou indeferimento dessa pretensão, nos termos que se transcrevem:
“A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).
Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
Assim, se na sequência do indeferimento do meio gracioso, o interessado pedir ao tribunal que aprecie a legalidade da liquidação e que, em consequência, a anule (total ou parcialmente), o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa.
Daí que se tenha vindo a afirmar que nestas situações, em que o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (a decisão administrativa) e um mediato (a legalidade da liquidação).
[…]
Importa dizer que sobre esta matéria a posição deste Tribunal tem também sido uniforme no sentido de adotar, na interpretação do pedido formulado, um critério flexível com vista a alcançar uma justiça efetiva e não meramente formal, pois só assim é garantida uma tutela jurisdicional efetiva.”[3]
Assim sendo, tendo a Requerente impugnado os atos de autoliquidação de IS respeitantes aos períodos compreendidos entre julho de 2020 e abril de 2022, o facto de a AT ter considerado intempestiva a Reclamação Graciosa apresentada em 31/08/2022, não impede a apreciação da ilegalidade dos atos tributários de autoliquidação de IS acima mencionados, objeto mediato da presente ação.
Neste sentido a decisão proferida no processo n.º 718/2020-T, cujo excerto se se transcreve de seguida:
Nos termos da jurisprudência citada é indiferente o teor (formal ou material) da decisão dos atos administrativos (em matéria tributária) de segundo ou terceiro grau. Se é pedida pronúncia sobre a legalidade do ato de liquidação, estamos no domínio do meio processual da impugnação judicial, e, portanto, por identidade de razões, da ação arbitral, cujo objeto também é a apreciação da legalidade do ato tributário.
O mesmo se diga quanto ao facto de, segundo a Requerida, estar em discussão a obrigação de convolação da Reclamação Graciosa em PRO, o que, no entender daquela, não caberia nas matérias passíveis de apreciação no processo de impugnação e, portanto, também na ação arbitral. Relembrando o declarado pelo Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que foi indicada a legalidade do ato de liquidação como objeto da ação, o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa (vícios que não respeitam ao ato de liquidação propriamente dito).
Face ao exposto improcede a exceção de incompetência material suscitada pela Requerida.
V.2.b Da incompetência do Tribunal arbitral e da intempestividade para a impugnação direta dos autos de autoliquidação
Defende a AT que admitindo-se que o objeto mediato do pedido é constituído, inquestionavelmente, pelos atos de autoliquidação identificados no ppa (porquanto não foram praticados pela AT), ter-se-á, então, de concluir, que o conhecimento direto da legalidade de tais questões pelo presente Tribunal se lhe mostra vedado face ao disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT e do artigo 2°, da citada Portaria n° 112-A/2011, isto é, a possibilidade de apreciar dos atos de autoliquidação objeto da matéria de exceção, sem que tenha existido prévio " (...) recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131° a 133°, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (...)".
Vejamos:
O objeto imediato do PPA é o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa e o objeto mediato as autoliquidações de Imposto de Selo, por isso, o pedido de pronúncia arbitral constitui um meio adequado e idóneo para reagir contra o ato de indeferimento expresso.
Com efeito, os tribunais arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de atos de indeferimento (expresso ou tácito) das reclamações graciosas, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 2.º do RJAT, mas não são competentes para apreciar diretamente a legalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa os termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
Nos presentes autos não está em causa a impugnação direta de atos de autoliquidação de Imposto de Selo, pelo que, por este motivo e atento o acima já exposto, é este Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio aqui em causa, na parte referente ao período de julho de 2020, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011.
V.2c. Da inimpugabilidade dos atos de autoliquidação no que respeita ao período de julho de 2020
Nesta sede, a Requerida defende que a extemporaneidade da reclamação graciosa não determina a extemporaneidade da impugnação judicial deduzida na sua sequência, mas a inimpugnabilidade do ato tributário.
Por seu turno, a Requerente não nega a intempestividade da Reclamação Graciosa, porém argumenta que quando deduzida a Reclamação Graciosa, bem como o pedido arbitral, a petição da Requerente encontrava-se dentro do prazo de 4 anos para a revisão oficiosa com fundamento em erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Assim, esgotado o prazo de reclamação a AT tinha o dever – o qual não logrou cumprir – de convolar a reclamação em pedido de revisão oficiosa, mesmo tratando-se de um ato tributário liquidado pela Requerente, ao invés do afirmado pela AT.
No que respeita ao poder dever da AT convolar oficiosamente a reclamação graciosa em procedimento se revisão oficiosa, ao abrigo do artigo 78.º n.º1 da LGT vai hoje a linha jurisprudencial que o Supremo Tribunal Administrativo, referindo-se o Acórdão de 14/12/2011, proferido no âmbito do processo n.º 0366/11[4], onde se sumariou:
I - Apesar de não ter sido deduzida reclamação contra o acto de autoliquidação no prazo previsto no artigo 131.º do CPPT, o interessado podia ainda solicitar à administração tributária a revisão oficiosa do acto ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, vez que a lei ficciona que os erros da autoliquidação são imputáveis à administração e esta não pode demitir-se de tomar a iniciativa de revisão quando demandada para o efeito pelo interessado, estando mesmo obrigada a proceder à convolação nesse meio procedimental quando conclui que a reclamação apresentada é intempestiva – artigo 52.º do CPPT.
II – (…)
III – (…)
IV - Considerando o poder-dever atribuído à administração tributária de proceder à convolação da reclamação em pedido de revisão do acto de autoliquidação, e considerando que na data em que é apresentado a reclamação ainda não se encontrava esgotado o prazo dentro do qual a revisão oficiosa podia ser pedida e ordenada, não podia o pedido de anulação do acto que a reclamante dirigiu à administração tributária ser indeferido por intempestividade.
V – (…)
No mesmo sentido, o Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 02010/12.6BEPRT refere “A revisão oficiosa é um poder-dever da Administração fiscal, atento o princípio da legalidade, motivo pelo qual a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem sublinhando que, e atendendo ao expressamente disposto no referido n.º 7 do art. 78.º da LGT, a revisão oficiosa nos termos reservados à ATA pode ser realizada a “pedido do sujeito passivo”, que a pode espoletar ainda que se mostre ultra- passado o prazo para a reclamação graciosa, ou que a reclamação graciosa prevista no art. 131.º do CPPT não tenha sequer chegado a ser interposta.
Atendendo a que a ATA se encontra obrigada, para além do mais, ao respeito pelo princípio da colaboração com os contribuintes (cf. art. 59.º da LGT e 48.º, n.º 1 do CPPT), assim como aos princípios da celeridade e eficiência [cf. arts. 55.º da LGT, e 10.º do CPA, na redação então em vigor, aplicável ex vi art. 2.º, alínea d) do CPPT], não estava legitimada a escudar- se na circunstância de as entidades competentes para a decisão da reclamação graciosa e do pedido de revisão serem diferentes, para negar a pretendida convolação do pedido de reclamação em pedido de revisão oficiosa.”
Ora, sendo a revisão oficiosa um poder-dever da AT, além do mais, em obediência ao princípio da legalidade – e atendendo ao expressamente disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nos termos do qual a revisão oficiosa pode ser realizada por “iniciativa do sujeito passivo” - não deixa de estar ao alcance do sujeito passivo espoletar a mesma, ainda que se mostre ultrapassado o prazo para a reclamação graciosa, como é aqui o caso, o que vem igualmente sendo reconhecido pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, quando propugna que a revisão oficiosa é admissível ainda que não tenha sido sequer interposta a reclamação graciosa prevista no artigo 131.º do CPPT, ou ainda que seja ultrapassado o prazo para o efeito, por ser “(…) contrária ao sentido do artº 78º da LGT e se reconduziria a uma restrição das possibilidades de revisão oficiosa, a interpretação (…) de que só seria possível a revisão oficiosa quando o contribuinte tivesse apresentado reclamação no prazo de dois anos”, pelo que “o facto de ter transcorrido o prazo de reclamação graciosa não impede o impugnante de pedir a revisão oficiosa e impugnar contenciosamente o acto de indeferimento desta”.[5]
Desta forma, ainda que após o esgotamento do decurso do prazo de reclamação graciosa, a AT tinha o dever - o qual não logrou cumprir - de convolar a reclamação referida em pedido de revisão oficiosa, uma vez que se encontravam preenchidos os requisitos de que depende a apresentação de tal pedido por parte do sujeito passivo.
O disposto no n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária prevê, na parte inicial, a revisão oficiosa com fundamento em qualquer ilegalidade, quando o pedido é apresentado no prazo da reclamação administrativa, e, na parte final, o pedido de revisão oficiosa formulado depois deste prazo, em que a revisão só pode ter como fundamento erro imputável aos serviços.
É inquestionável que tanto à data da apresentação da reclamação graciosa (31/08/2020) como do presente PPA (22/01/2023), ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos para a revisão oficiosa do ato de liquidação do IS reportado a julho de 2020.
No entanto, com a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, operada pela entrada em vigor da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o erro nas autoliquidações deixou de se considerar imputável aos serviços para efeitos de determinação do prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. No entanto, como referido na Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 678/2021-T[6] a “revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT simplesmente removeu a regra de inversão do ónus probatório de que beneficiavam os atos de autoliquidação, que passam, assim, a estar sujeitos às regras gerais (v. artigos 74.º, n.º 1 da LGT e 342.º, n.º 1 do Código Civil.”[7]
Com efeito, a ratio da alteração legislativa não foi a de afastar a imputabilidade aos serviços relativamente a todos os erros praticados nas autoliquidações nem deixar desprotegidos os sujeitos passivos contra erros cometidos na liquidação de impostos, ou seja, no exercício de uma função tributária para a qual não têm especial formação.
Assim sendo, impõe-se apurar se o erro nas autoliquidações é imputável aos serviços para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Neste sentido, conforme se refere no acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa, no âmbito do processo n.º 317/2022‐T de 3 de Novembro de 2022, “será imputável aos serviços o erro do contribuinte em autoliquidação quando actuou em sintonia com orientações da Administração Tributária, gerais ou não, pois serão casos em que haverá nexo de causalidade entre a actuação da Autoridade Tributária e Aduaneira e o comportamento do contribuinte.”
A este propósito refere Paulo Marques[8] : “dito de outro modo, pela eliminação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, não nos parece estar definitivamente arredada a autoliquidação do objecto do procedimento de revisão. A revogação do mencionado preceito legal apenas colocou termo, expressamente, à determinação legal que considerava imputável aos serviços o erro na autoliquidação, para efeitos de revisão oficiosa, introduzindo-se agora uma maior paridade entre o contribuinte e o fisco. Mas nada nos leva a entender que deva existir um desequilíbrio garantístico entre a liquidação efetuada pelo próprio contribuinte e a liquidação administrativa.”.
Para concluir mais à frente: “consideramos assim também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas, uma vez que em caso de erro, existiu então um cumprimento algo deficiente do dever de colaboração por parte da própria administração tributária.”.
Sustenta a Requerente que se o ato tributário enferma de erro o mesmo deve ser considerado imputável aos serviços da AT que, por mais do que uma vez emitiu orientações nas quais propugna por um entendimento idêntico àquele que, erradamente, foi adotado pela Requerente e do qual resultou uma tributação indevida em sede de imposto de selo sobre as comissões de gestão que cobrou aos fundos por si geridos.
Destarte, quer na Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2017000303 ‐ IVE n.º 11733, com despacho concordante de 07.07.2017, quer na Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2018001066, com despacho concordante de 01.11.2018, a AT qualifica expressamente as SCR como instituições financeiras.
Com efeito, refere a AT que “no quadro da legislação comunitária relevante, pode considerar‐se que, tanto as SCR como os próprios FCR, podem ser inseridos na categoria de ʺInstituições financeirasʺ”.
Também no mesmo sentido se pronunciou o Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros no âmbito do Parecer n.º 25/2013, de 26/8/2013.
Note‐se que a AT tem vindo a reiterar sistematicamente este entendimento, conforme se pode verificar mais recentemente na Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2020000471, com despacho concordante de 02/07/2021.
Pese embora, nenhum dos acima mencionados pedidos de informação vinculativa tenha sido proferido pela AT a pedido da Requerida, não afasta a responsabilidade da AT pelo erro na liquidação, uma vez que o entendimento dos serviços se encontra vertido nas referidas fichas doutrinárias e no parecer do Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT “A administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.”
E quanto à natureza das fichas doutrinárias divulgadas pela AT consubstanciar orientações genéricas, já os tribunais tiveram oportunidade de se pronunciarem, referindo-se a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 11/2021-T, no qual o tribunal fez uma apurada recolha análise da lei em vigor e das decisões dos nossos tribunais superiores, entende que: “Não se reconhece mérito, a este passo, e salvo o devido respeito, à arguição da Requerida [i.e. a AT], quando refere que o PIV n.º 11376 vincula «apenas a AT e em relação àquele caso concreto, e mais ninguém, conforme resulta do disposto no artigo 68.º, n.º 14, da LGT […], sendo, por isso, um ato interno», que portanto «não detém qualquer eficácia externa» (artigos 50.º a 52.º da resposta). Tal arguição corresponde a desconsiderar que a Ficha Doutrinária n.º 3688/2016, elaborada precisamente com base no referido PIV, constitui “orientação genérica”, para os efeitos do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT. Na verdade, o que é uma ficha doutrinária se não for uma ficha de fixação da “doutrina” administrativa da AT?”.
No mesmo sentido, no âmbito do Processo n.º 701/2022-T é referido que “(…) o facto de as informações vinculativas só produzirem efeitos inter partes não significa que sejam desprovidas de relevância jurídica em relação a terceiros, nomeadamente, para efeitos de excluir a culpa dos sujeitos passivos que atuaram em conformidade com a interpretação dos preceitos legais veiculadas em informações vinculativas. Neste sentido, pode ler-se no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de março de 2018, processo n.º 07228/13:
“Embora uma informação vinculativa só produza, enquanto promessa administrativa e por força da regulamentação especial a que está sujeita, efeitos interpartes (artigos 68.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária e 57.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) pode e deve ser excluída a culpa de um sujeito passivo, terceiro àquela relação, quando este actue em conformidade com a interpretação e orientações veiculadas pela Administração Tributária nessa mesma informação.”
As Informações Vinculativas (que devem ser publicadas online nos termos do n.º 17 do artigo 68.º da LGT) são suscetíveis de gerar nos sujeitos passivos, terceiros em relação às mesmas, uma expetativa legítima de que, no futuro, em casos idênticos, a AT irá proceder a uma interpretação e aplicação da lei conforme ao sentido interpretativo nelas expresso. Até porque, ao abrigo do princípio constitucional da igualdade, a AT está “obrigada a proceder de modo coincidente com a conduta que, eventualmente, já tivesse anteriormente adoptado, desde que em presença de casos iguais no plano objectivo.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de abril de 2001, processo n.º 046609). De facto, não é expectável que a AT publicite uma interpretação da lei numa Informação Vinculativa e, sem qualquer aviso prévio, adote uma interpretação contrária da mesma lei em casos concretos idênticos subsequentes.
Atento o acima expendido, conclui-se que o erro em autoliquidações realizadas pelo sujeito passivo em conformidade com uma informação vinculativa pode ser imputável os serviços para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Como a doutrina há muito vem salientando, e faz hoje cada vez mais sentido, a “prestação de informações vinculativas pela administração tributária tem hoje uma importância claramente maior que há vinte o trinta anos atrás, na época em que surgiram estes mecanismos nos sistemas fiscais modernos» atento o encargo crescente que recai sobre o contribuinte, em vários tipos de impostos ou tributações
Para tanto importa saber se nas circunstâncias concretas seria exigível à Requerente, terceiro às informações vinculativas mas que delas teve conhecimento em data anterior às liquidações sob escrutínio[9], uma atuação desconforme com a indicação de que as comissões de gestão cobradas a fundos de capital de risco estão sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da tabela geral do imposto de selo.
Atendendo à obrigatoriedade da publicação das informações vinculativas, bem como ao facto de duas das informações serem anteriores às liquidações, entende este Tribunal que a Requerente teve conhecimento de duas informações suscetíveis de ser interpretadas no sentido de que as comissões de gestão por si cobradas estavam sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da tabela geral do imposto de selo, tendo autoliquidado imposto, erradamente, com base no entendimento veiculado pela AT.
Já na reclamação graciosa apresentada a Requerente esta fundamenta a liquidação do imposto no pressuposto – incorreto – de as SCR serem qualificadas como instituições financeiras para efeitos de aplicação da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo.
Por conseguinte, conforme sumário da decisão proferida no processo 178/2020-T “Recaindo sobre a AT o poder-dever de proceder à convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão oficiosa do ato de autoliquidação, considerando que na data em que é apresentada a reclamação ainda não se encontrava esgotado o prazo dentro do qual a revisão oficiosa podia ser pedida e ordenada, não podia o pedido de reclamação dirigido à administração tributária ser indeferido por intempestividade.”
Atendendo ao poder dever que recai sobre a AT de revogar todos os seus atos ilegais, a exceção invocada não pode proceder, porque contrariamente à pretensão da Requerida, a reclamação do contribuinte é tempestiva por estar em prazo para ser convolada em revisão oficiosa, tal como está em prazo o PPA apresentado, nos termos do artigo 52.º do CPPT, preceito que foi violado no caso em apreço.
Falecendo a exceção invocada pela AT.
V 3. Da legalidade das liquidações
A problemática jurídico-tributária subjacente à questão decidenda já foi objeto de análise em diversas decisões arbitrais, designadamente, as proferidas nos processos n.ºs 5 P. 226/2018 - T; P. 399/2019 - T; P. 791/2019 – T; P. 757/2020 – T, 469/2022-T, tendo todas decidido que com a revogação do artigo 6.º do RGSIF operada pelo Decreto-Lei n.º 319/20, de 23 de setembro, as sociedade de capital de risco (SCR) não se caracterizam comos instituições financeiras para efeito de incidência de imposto de selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo.
Na redação em vigor à data dos factos (julho de 2020 a abril de 2023), as verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo dispunham o seguinte:
“17.3 - Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras - sobre o valor cobrado:
(…)
17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões …… 4%”
A verba 17.3. apenas abrange as “operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras (…)”.
Por conseguinte a sujeição a Imposto do Selo depende do facto de as comissões cobradas serem realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a estas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras.
Impondo-se ao Tribunal apurar se a Requerente, na sua qualidade de SCR, preenche uma daquelas tipologias jurídicas.
Na falta de uma definição de instituição financeira, sociedade financeira ou instituição de crédito na legislação fiscal, deverá atender-se ao disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT e socorrermo-nos das definições previstas nos ramos de direito de que provêm aqueles conceitos, mormente, dos conceitos constantes do direito bancário e do financeiro português, cujo diploma fundamental é o RGICSF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
Com efeito, o RGICSF é o diploma no qual assenta a arquitetura do sistema bancário e financeiro nacional, espelhando a evolução legislativa bancária europeia bem como as intervenções legislativas que, ao longo da história, o Banco de Portugal foi efetuando no âmbito da sua função de regulador do sistema bancário e financeiro português.
Por outro lado, o RGICSF é o único diploma no ordenamento jurídico português que define os conceitos de “instituições de crédito”, “sociedades financeiras” e “instituições financeiras”, elencando de forma clara as entidades que se enquadram naqueles mesmos conceitos, razão pela qual Jorge Belchior Laires e Rui Pedro Martins [10] “considerando a natureza dos conceitos em causa, em nossa opinião, é no direito bancário e financeiro português (…) mais precisamente no RGICSF, publicado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (diploma que sofreu diversas alterações ao longo dos anos). O RGICSF, conforme fica evidente no seu preâmbulo, é o pilar do direito bancário e financeiro português, espelhando a evolução histórica da legislação europeia neste âmbito, bem como as intervenções legislativas que, ao longo da história, foram sendo recomendadas pelo BdP”.(…)
(…) para efeitos da classificação de uma entidade como sendo uma instituição de crédito, deverá atender‐se, em nossa opinião, à regulamentação própria para este tipo de instituições, constante do Decreto‐Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro – diploma que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).”
Neste sentido, veja-se a decisão veja‐se a decisão proferida no âmbito do processo n.º 01391/16, do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito das comissões cobradas pelos bancos às companhias de seguros no exercício da atividade de mediação de seguros e da incidência da verba 17.3 da TGIS sobre aquelas operações, no qual aquele Tribunal reconduz os conceitos de instituição de crédito e sociedade financeira previstos naquela norma fiscal aos artigos 3.º e 6.º do RGICSF, respetivamente.
No mesmo sentido, e a propósito da matéria aqui em discussão (i.e. a qualificação das SCR enquanto instituições financeiras), veja‐se a decisão proferida no âmbito do processo n.º 399/2019‐T, na qual o árbitro em causa afirma que “(…) parece claro que o artigo 6.º do RGICSF, que é a norma por excelência a que o intérprete deve recorrer neste caso em concreto [i.e. determinação do contexto de sociedade financeira], por força do n.º 2 do artigo 11.º da LGT (..)”.
Em traços gerais, o RGICSF divide as instituições financeiras em três grupos distintos, a saber:
-
Instituições de Crédito, como os (i) Bancos e as Caixas Económicas que têm como principal finalidade receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria mediante a concessão de crédito ou (ii) as empresas que tenham por objeto a emissão de meios de pagamento sob a forma de moeda eletrónica;
-
Sociedades Financeiras, integrando as empresas que não sejam instituições de crédito e cuja atividade principal consista em realizar operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, emissão e gestão de outros meios de pagamento, transações por conta própria ou da clientela de instrumentos financeiros, gestão de patrimónios, entre outros; e
-
Outras instituições financeiras, que desenvolvem, a título principal, atividades relacionadas com as anteriores.
Nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, na sua versão originária, as SCR eram qualificadas como “sociedades financeiras” e, consequentemente, integravam o conceito de instituições financeiras.
Aquele diploma sofreu diversas alterações ao longo dos tempos, uma das quais operada pelo Decreto‐Lei n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, quando criou o diploma disciplinador da constituição e atividade das SCR (hoje regulado pela já referida Lei n.º 18/2015, de 4 de Março), que revogou a alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º eliminando a referência expressa às SCR na definição de sociedade financeira afastou, as SCR da qualificação jurídica de sociedade financeira.
Adicionalmente, o próprio regime jurídico da atividade de investimento em capital de risco, publicado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de Março, na sua redação em vigor até 31 de Dezembro de 2019, estabelecia no n.º 1 do artigo 2.º que as SCR não eram “intermediários financeiros.”.
Não obstante esta menção ter sido revogada pelo Decreto‐Lei n.º 144/2019, de 23 de Setembro, o qual produziu efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2020, este mesmo diploma introduziu alterações no RGICSF, entre as quais importa destacar para o efeito, o aditamento do n.º 5 ao artigo 6.º do RGICSF que estabelece que, “não são sociedades financeiras as entidades reguladas no Regime Jurídico da Titularização de Créditos, aprovado pelo Decreto‐Lei n.º 453/99, de 5 de novembro, na sua redação atual, no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado em anexo à Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, na sua redação atual, e no Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado em anexo à Lei n.º 18/2015, de 4 de março, na sua redação atual.”
A este respeito, atente‐se à decisão proferida pelo CAAD no âmbito do Processo n.º 226/2018‐T, a propósito da qualificação das SCR enquanto instituições financeiras, a qual refere que “(…) as SCR estavam expressamente consagradas na alínea h) do aludido art. 6º do RGICSF, a qual veio a ser revogada pelo DL 319/2022, de 28 de Dezembro quando criou o diploma disciplinador da constituição e actividade das SCR (hoje regulado pela já referida Lei 18/2015 de 4 de Março). Quer dizer, é indiscutível que o legislador pretendeu de forma expressa retirar do âmbito do RGICSF as sociedades de capital de risco, não se vislumbrando argumentos que possam justificar interpretação diversa dessa opção legislativa.”
Resulta assim claro do que antecede que as SCR não poderão ser enquadradas no conceito de instituição financeira, aliás como já decidido pelo Tribunal Arbitral a funcionar junto do CAAD no âmbito dos Processos n.ºs 226/2018‐T e 399/2019-T, 791/2019‐T, 757/2020‐T e 469/2022-T.
E pese embora a Requerente se enquadre no conceito do CMVM de investidor profissional[11] a sua inclusão numa lista extensa de entidades, onde estão incluídos os Governos e alguns organismos públicos, que claramente não são sociedades financeiras, em nada contribuiu para a sua qualificação comos instituição financeira.
Neste sentido veja-se a decisão do CAAD proferida no âmbito do processo n.º 399/2019-T, na qual se pode ler: “parece resultar claro que a alínea f) do nº 1 do artigo 3.º do CVM, inserida no Capítulo V “investidores” e epígrafe “investidores profissionais”, se limita a classificar as SCR, como investidores profissionais, tendo em vista os especiais deveres de conduta que certas entidades devem respeitar na sua actuação, ao nível do mercado de valores mobiliários”.
As SCR também não são intermediários financeiros porque o próprio regime jurídico da atividade de investimento em capital de risco, publicado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de março até à redação em vigor até 31 de dezembro de 2019, estabelecia no n.º 1 do artigo 2º que a SCR não eram intermediários financeiros.
Ainda no domínio do CMVM, a AT sustenta que tendo o Decreto Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro atribuído à CMVM a competência para a supervisão prudencial das sociedades gestoras de fundos de investimento, retirando-as do Banco de Portugal, indicia a sujeição destas entidades ao regime das instituições financeiras[12].
No entanto, esta inclusão na qualificação como investidos qualificado, não deve ser extrapolada para outros efeitos que não o do próprio CVM, isso mesmo sustentou o Tribunal Arbitral a operar junto do CAAD no âmbito do processo n.º 226/2018-T, a propósito dos artigos 30.º e 359.º do CMVM (este último define o conjunto de entidades sujeitas à supervisão da CMVM) “(…) tais disposições não têm outro alcance que não seja o de determinar que as SCR tenham o estatuto de investidores qualificados enquanto operadores no mercado de valores mobiliários. Aliás, o art. 110º-A do CVM contempla a possibilidade de outras entidades poderem ter a qualificação, por opção, de investidor qualificado, sem que venham, por esse facto, consideradas como entidades financeiras”.
No mesmo sentido, também no processo 757/2020‐T é referido que “(…) a norma limita‐se a classificar as sociedades de capital de risco como investidores profissionais, a par de diversas outras entidades, como instituições de crédito e empresas de investimento, em vista aos deveres de conduta que essas entidades se encontram obrigadas no âmbito do mercado dos valores mobiliários, em consonância com as diretivas europeias”.
Por último, no que respeita ao apelo à lei n.º 26/208, de 5 de julho que aprovou a lei de Branqueamento de Capitais, por forma a qualificar as SCR como instituições financeiras, é hoje entendimento jurisprudencial consolidado que este diploma, por si só, não permite concluir que as sociedades de capital de risco devam ser consideradas como instituições financeiras para efeitos de incidência de imposto de selo, o que ressalta da decisão prolatada no processo 226/2018-T: (…) tal facto, desde logo por não se estar perante um diploma que regulamente actividade financeira, mas que apenas contém “medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo”, não é susceptível de, por si só, atribuir a qualificação de entidade financeira às entidades ali previstas.(…)”
No mesmo sentido, vejam-se as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 399/2019-T, 791/2019-T e 757/2020-T.
Conforme referido na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 701/2022, “Da jurisprudência arbitral relativa a sociedades de capital de risco resulta de forma unânime que, por força do artigo 11.º, n.º 2, da LGT, a classificação das mesmas como sociedades financeiras, entidades legalmente equiparadas a sociedades financeiras, ou instituições financeiras, para efeitos das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, depende essencialmente da classificação contida no artigo 6.º do RGICSF, na redação em vigor à data da cobrança das comissões de gestão pelas sociedades de capital de risco. Segundo esta orientação jurisprudencial, após a alteração do RGICSF pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, as sociedades de capital de risco deixaram de constituir sociedades financeiras para efeitos do RGICSF e, consequentemente, para efeitos das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.”
Entendimento secundado e sufragado por este Tribunal, que assim conclui que as sociedades de capital de risco não podem ser incluídas no conceito de instituição financeira, inexiste o elemento subjetivo de incidência da verba 17.3.4 não sendo, por isso, de aplicar às comissões de gestão cobradas pela Requerente o Imposto de Selo à taxa de 4%.
Por último, defende a AT que no âmbito do quadro regulatório que emana do direito da União Europeia considera as sociedades de capital de risco e as sociedades gestoras de fundos de capital de risco constituem instituições financeiras. Invocam-se, para o efeito, os dois Regulamentos comunitários – o Regulamento (UE) n.º 1092/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 20102 e o Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013.
Ora os Regulamentos mencionados pela AT têm como objetivo a melhoria do funcionamento do mercado interno através da garantia de um nível de supervisão e regulação prudencial elevado, eficaz e coerente, da protecção dos depositantes e investidores, da defesa da integridade, eficiência e bom funcionamento dos mercados financeiros, da manutenção da estabilidade do sistema financeiro e do reforço da coordenação internacional no domínio da supervisão, não podem ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros e podem, pois, devido à escala da acção, ser mais bem alcançados ao nível da União, esta pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade, consagrado no artigo 5.o do Tratado da União Europeia.
Por seu turno a Diretiva 2011/61/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento tem como objetivo garantir um nível elevado de protecção dos investidores através da definição de um enquadramento comum para a autorização e supervisão dos GFIAs.
Ou seja, o que o legislador comunitário pretendeu, foi sujeitar as SCR ao âmbito da aplicação específico desta legislação, mas não resulta de quaisquer das suas disposições que pretendesse mais do que isso.
Como tal, a eventual alusão indireta e por via da remissão da remissão às Sociedades de Capital de Risco, no contexto em que os diplomas citados de inserem, não tem a virtualidade de afastar a legislação nacional, a interpretação das normas jurídicas e o afastamento dos elementos teleológico e sistemático usado na interpretação das normas jurídicas acima enunciadas, nem tão pouco de operar a subsunção das mesmas à noção de entidade financeira presente na verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto de Selo.
Do expendido se conclui que as sociedades de capital de risco não se caracterizam como instituições financeiras para efeitos de incidência de imposto de selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo, pelo que as liquidações de Imposto de Selo impugnadas são ilegais.
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Dos Juros indemnizatórios
Pede a Requerente o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
A este propósito dispõe o artigo 43.º da LGT:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – (…)
3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
(...)
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
Nos termos desta alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, independentemente de a ilegalidade ser ou não imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, há direito da Requerente a juros, em caso de procedência do pedido que determine a ilegalidade da liquidação.
Dispõe ainda a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a AT fica vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que impõe a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, no caso de procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, bem como ao pagamento dos juros, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 24.º do RJAT que remete para a Lei Geral Tributária e para o Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Na sequência da declaração de ilegalidade dos atos das liquidações de IS há assim lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º da LGT e do 61.º n.º 5 do CPPT, estando a AT está obrigada ao seu pagamento desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, calculado sobre a quantia indevidamente paga, à taxa de juros legais.
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Decisão
Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se, julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral e, em consequência:
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Julgar improcedentes as exceções invocadas;
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Declarar ilegal e anular o indeferimento da reclamação graciosa;
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Declarar ilegais os atos de liquidação de Imposto de Selo respeitantes ao período compreendido entre julho de 2020 e abril de 2022;
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Condenar a Requerida a restituir o montante de € 35.030,15;
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Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios até ao integral pagamento do montante que deve ser restituído, nos termos legais.
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Valor do processo
Fixa-se em € 35.030,15 (trinta e cinco mil e trinta euros e quinze cêntimos) nos termos do disposto nos artigos 315.º do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT bem assim como do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 25 de setembro de 2023
A Árbitra Singular
Cristina Coisinha
[1] Cf. verba 17.3 da TGIS.
[2] Convertido em definitivo porque a Requerente optou por não exercer o direito de audição prévia
[3] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR
[4] Consultável em www.dgsi.pt
[5] cfr. Acórdão proferido pelo STA em 29-10-2014, no processo n.º 01540/13, e no mesmo sentido, os acórdãos proferidos em 12-09-2012, no processo n.º 476/12, em 14- 06-2012, no processo n.º 259/12, em 14-03-2012, e no processo n.º 1007/11).
[6] A que faz referência a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 701/2021-T.
[7] Neste sentido as Decisões Arbitral proferidas nos processos n.ºs 468/2019-T, 88/2021-T, 9/2021-T
[8] In, “A Revisão do ato tributário: do mea culpa à reposição da legalidade”, Cadernos IDEFF, n.º 19, 3ª edição revista e atualizada, Almedina, páginas 195 e 221
[9] Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2017000303 - IVE n.º 11733, com despacho concordante de 07.07.2017; Ficha Doutrinária relativa ao processo n.º 2018001066, com despacho concordante de 01.11.2018
[10] In Imposto do Selo”, Edições Almedina, 2019, p.78
[12] Artigo 30 n.º 1 alínea f)