SUMÁRIO:
A utilização pelo sujeito passivo do procedimento de prova do preço efectivo previsto no artigo 139.º do Código do IRC é condição de impugnabilidade do acto de liquidação que concretizar as correcções previstas no n.º 2 do artigo 64.º do Código do IRC.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Miguel Patrício e José Coutinho Pires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., S.A., NIF..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro de 2011 (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) com o n.º 2022..., de 30 de Novembro de 2022, e a respectiva liquidação de juros compensatórios, no valor total de € 93.513,12, referentes ao período de tributação de 2018.
2. No pedido arbitral a Requerente invocou, em síntese, que no ano de 2018 alienou um prédio por um preço inferior ao valor patrimonial tributário (“VPT”) e que fez prova do preço efectivo da transacção nos termos exigidos nos artigos 64.º, n.º 2 e 139.º do Código do IRC. Alegou também a Requerente que a aplicação literal daquelas normas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) implicava uma situação de injustiça no caso concreto, violadora do princípio da equidade fiscal.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 27 de Março de 2023 pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 17 de Maio de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 6 de Junho de 2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 10 de Julho de 2023, a Requerida apresentou a sua resposta onde invocou, em suma, a inimpugnabilidade do acto de liquidação pelo facto de a Requerente não ter recorrido ao procedimento de prova do preço efectivo previsto no artigo 139.º do Código do IRC. Com base nessa inimpugnabilidade, a Requerida suscitou em simultâneo a incompetência material do Tribunal Arbitral. A final, peticionou pela procedência das referidas excepções dilatórias e pela sua absolvição da instância, bem como pela improcedência, por não provado, do pedido arbitral formulado pela Requerente.
7. Em 11 de Julho de 2023, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório, o que esta veio a fazer em 29 de Agosto de 2023, onde sustentou novamente que demonstrou que o preço efectivo da transacção foi inferior ao VPT, onde defendeu que os artigos 64.º e 139.º do CIRC não impõem o recurso prévio à fase graciosa, onde defendeu uma vez mais a aplicação do princípio da equidade tributária e onde referiu que o acto de liquidação de IRC notificado refere expressamente a possibilidade da sua impugnação nos termos do artigo 102.º do CPPT.
8. Em 19 de Setembro de 2023, foi a Requerida notificada para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo, o que esta veio a fazer em 25 de Setembro de 2023.
9. Em 25 de Setembro de 2023 foi proferido despacho arbitral no qual se dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
II. SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
11. Foi invocada pela Requerida as excepções dilatórias de inimpugnabilidade do acto de liquidação contestado no presente processo e a consequente incompetência material do Tribunal Arbitral.
12. A excepção de inimpugnabilidade do acto de liquidação apenas poderá ser conhecida após a fixação da matéria de facto provada e não provada, pelo que a sua apreciação apenas será realizada a título prévio no âmbito da matéria de direito.
13. Relativamente à excepção de incompetência material, não assiste razão à Requerida. A competência deste Tribunal Arbitral não está dependente da impugnabilidade do acto de liquidação, tendo antes de ser aferida com base no objecto da relação material controvertida tal como configurada pela Requerente, isto é, com base nos concretos pedidos formulados e com base na causa de pedir que os conformam.
14. Do pedido arbitral resulta claro que a Requerente suscitou a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRC acima identificado (pedido), com base na circunstância de ter sido feita prova do preço efectivo da venda do Imóvel em conformidade com o disposto nos artigos 64.º e 139.º do Código do IRC, interpretados de acordo com o princípio da equidade fiscal (causa de pedir).
15. Ora, independentemente da apreciação da impugnabilidade do acto de liquidação aqui contestado e do conhecimento do mérito do pedido, certo é que o presente Tribunal Arbitral tem competência para apreciar a ilegalidade de actos de liquidação nos termos conjugados do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pelo que se julga improcedente a excepção dilatória de incompetência material invocada pela Requerida na sua resposta.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
16. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade anónima que exerce como actividade principal a compra e venda de bens imobiliários (CAE 68100);
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Em 12 de Outubro de 2018, a Requerente alienou por € 200.000,00, o imóvel correspondente ao prédio urbano com o artigo matricial ..., da União das Freguesias de ... e ..., concelho de Mafra (“Imóvel”);
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O VPT definitivo do Imóvel era € 624.050,00;
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Na declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC do ano de 2018, submetida em 30 de Junho de 2019, a Requerente não acresceu no campo 745 do Quadro 07 o montante de € 424.050,00, correspondente à diferença positiva entre o VPT definitivo do imóvel e o valor constante do contrato, nem indicou tal valor no campo 416 do Quadro 11;
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Em 28 de Junho de 2022, a Requerente foi sujeita a uma acção inspectiva interna de âmbito parcial ao IRC do exercício de 2018;
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No decurso do procedimento inspectivo a Requerente remeteu aos serviços de Inspecção da Direcção de Finanças de Lisboa (“SIT”) diversos elementos da contabilidade do exercício de 2018, designadamente balancetes analíticos, extractos das contas com os lançamentos contabilísticos da venda do imóvel, um mapa de mais-valias e menos‑valias e cópia da escritura de alienação do imóvel;
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No Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), os SIT concluíram que a diferença positiva de valores no montante de € 424.050,00 concorria para apuramento do resultado tributável do exercício de 2018 por força do disposto no artigo 64.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC;
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Em resultado da correcção aritmética no valor de € 424.050,00, foi apurado um lucro tributável do período de 2018 no montante de € 397.319,64;
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Na sequência das correcções constantes do RIT, foi emitido o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022 ... e a respectiva liquidação de juros compensatórios, referentes ao exercício de 2018, no valor total de € 93.513,12;
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Em 24 de Março de 2023, a Requerente apresentou o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.
§2 – Factos não provados
17. Com relevo para a decisão da causa, não se considera provado que a Requerente tenha utilizado o procedimento de prova do preço efectivo previsto no artigo 139.º, n.º 3 do Código do IRC.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
18. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
19. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
20. O concreto facto constante do ponto 17 supra, cujo ónus probatório recaía sobre a Requerente nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT, foi dado como não provado em virtude da inexistência de elementos nos autos que permitam certificar a utilização do procedimento de prova efectiva do preço de alienação do Imóvel. Com efeito, a Requerente apenas juntou no decurso do procedimento inspectivo os elementos referidos no ponto f) da matéria de facto dada como provada, o que se encontra provado por confronto com o teor e com os anexos constantes do RIT, bem como da resposta da AT. Em todo o caso, a Requerente nunca logrou provar a instauração do mencionado procedimento de prova do preço nem tampouco que foi concedida a autorização de levantamento do sigilo bancário, por si e pelo(s) respectivo(s) administrador(es), nos termos previsto no artigo 139.º do Código do IRC. Na verdade, a Requerente não juntou aos autos qualquer meio de prova, tendo apenas requerido a produção de prova testemunhal. Por conseguinte, ao abrigo do princípio da livre apreciação dos factos previsto que decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, o presente Tribunal Arbitral julgou como não provado aquele facto.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Inimpugnabilidade do acto de liquidação
21. Enquanto ponto de partida, cumpre fixar a base legal aplicável à data dos factos. No artigo 64.º do Código do IRC, com a epígrafe “Correcções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis” dispunha-se, ao que aqui importa, o seguinte:
“1 – Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adoptar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.
2 – Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.
3 – Para aplicação do disposto no número anterior:
a) O sujeito passivo alienante deve efectuar uma correcção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato; (…)”.
22. Já no artigo 139.º do Código do IRC, com a epígrafe “Prova do preço efectivo na transmissão de imóveis” determinava-se o seguinte:
“1 – O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo pode, designadamente, demonstrar que os custos de construção foram inferiores aos fixados na portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 62.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, caso em que ao montante dos custos de construção deverão acrescer os demais indicadores objectivos previstos no referido Código para determinação do valor patrimonial tributário.
3 – A prova referida no n.º 1 deve ser efectuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao director de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.
4 – O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação, na parte correspondente ao valor da diferença positiva prevista no n.º 2 do artigo 64.º, a qual, no caso de indeferimento total ou parcial do pedido, é da competência da Direcção-Geral dos Impostos.
5 – O procedimento previsto no n.º 3 rege-se pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 86.º da mesma lei.
6 – Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respectivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.
7 – A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 64.º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.
8 – A impugnação do acto de fixação do valor patrimonial tributário, prevista no artigo 77.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e no artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não tem efeito suspensivo quanto à liquidação do IRC nem suspende o prazo para dedução do pedido de demonstração previsto no presente artigo.”.
23. Resulta, portanto, das normas jurídicas citadas que nas situações em que os sujeitos passivos de IRC alienam imóveis por um preço inferior ao VPT, devem acrescer no apuramento da matéria tributável a diferença positiva que se verificar por força do disposto no artigo 64.º do Código do IRC, a menos que recorram ao específico procedimento de prova do preço efectivo previsto no artigo 139.º do Código do IRC, no âmbito do qual a AT poderá aceder à informação bancária do sujeito passivo e dos respectivos administradores ou gerentes.
24. Resulta ainda do disposto no n.º 7 do artigo 139.º do Código do IRC que a prévia utilização do referido procedimento de prova do preço efectivo é condição necessária da impugnabilidade do acto de liquidação que concretizar as correcções previstas no n.º 2 do artigo 64.º do Código do IRC. Dito de outro modo, se não o sujeito passivo não recorrer ao mencionado procedimento, não poderá contestar posteriormente os actos de liquidação emitidos pela AT nos quais se considera como valor da alienação o VPT do imóvel ao invés do preço constante do contrato.
25. É este o entendimento que tem sido reiterada e uniformemente defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que é exemplo o acórdão proferido em 4 de Março de 2020, no âmbito do processo n.º 01104/10.7BELRA, que no respectivo sumário deixou assente que “O pedido previsto no artigo 129.º do Código do IRC constitui condição de procedibilidade da impugnação, sendo que a respectiva omissão determina a inimpugnabilidade do ato tributário quanto às correcções previstas no artigo 58.º-A [actual 64.º] do Código do IRC.”.
26. Na referida decisão o Supremo Tribunal Administrativo referiu quanto à questão de “apurar se é admissível a sindicabilidade da liquidação adicional quanto ao vício de errada quantificação do lucro tributável por aplicação do artigo 58.º-A do Código do IRC (actual artigo 64.º, n.º 2 do Código do IRC), independentemente do recurso (prévio) ao mecanismo previsto para o efeito no artigo 129.º (actual artigo 139.º) do Código do IRC”, o seguinte:
“(…) cabe começar por recordar o que se encontra disposto no n.º 7 do artigo 129.º do Código do IRC (na redacção e numeração à data dos factos), o qual estabelecia que: “A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correcções efectuadas por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 58.º-A, ou, se não houver lugar a liquidação, das correcções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.”
Ora, no presente caso, torna-se notório que o legislador decidiu, a par do que sucede em muitas outras soluções legais, tratar aquele pedido enquanto condição de procedibilidade da impugnação, e cuja omissão determina a inimpugnabilidade do ato tributário quanto a essas correcções – sobre este género de soluções, em que se exige a intervenção prévia do órgão administrativo, vd., em geral, SERENA CABRITA NETO / CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário - Vol. I, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 548 e ss..
É, igualmente, o que este Supremo Tribunal vem sufragando em muitas das suas decisões, acima identificadas no Parecer do Ministério Público e que aqui se dão por reproduzidas, salientando-se, muito recentemente, os Acórdãos proferidos em 06-11-2019, no processo n.º 1264/09.4BELRA, e em 21-11-2019, no processo n.º 0816/08.0BECBR, podendo ler-se lapidarmente nas conclusões daquele que: “A apresentação atempada do pedido para demonstração do preço efectivo (instauração do procedimento), previsto no n.º 3 artigo 129.º do CIRC (actualmente, artigo 139.º do CIRC), é condição de procedibilidade da impugnação judicial quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis.”
Não vislumbramos, por isso, fundamento para nos desviarmos daquelas posições, não obstando às mesmas a alegação de que tal faz precludir o direito à tutela judicial efetiva dos direitos do contribuinte e de que ocorre uma violação do princípio da impugnação unitária, como pretende a Recorrente.
É que, por um lado, a sindicabilidade judicial direta para efeitos de ilisão de uma presunção legal – como é nitidamente aquela contida no artigo 58.º-A, n.º 2 do Código do IRC - não é constitucionalmente exigida pelo direito fundamental a uma tutela judicial efetiva, não ficando esta comprometida pela intervenção prévia de um órgão administrativo capaz de, desde logo, resolver a discordância existente quanto ao cálculo do lucro tributável do sujeito passivo. Por outro lado, o princípio da impugnação unitária não fica prejudicado quando, excepcionalmente e para casos claramente demarcados, se exige uma prévia sindicância administrativa a respeito de um vício imputável ao cálculo do lucro tributável relativo à alienação de uma categoria concreta de ativos e em que a AT se encontra em posição privilegiada de corrigir desfasamentos, prevenindo futuros litígios judiciais; a liquidação que se siga àquele cálculo, não é demais lembrar, continua a ser judicialmente sindicável por todos os demais vícios de que padeça, sem qualquer prejuízo para os direitos do contribuinte.
Acresce a tudo isto que a jurisprudência vertida pela Recorrente na Conclusão XII das suas Alegações não possui correspondência com o caso constante dos autos, pelo que não lhe é aplicável: naqueles acórdãos discutia-se a possibilidade de impugnação judicial no seguimento de indeferimento da reclamação administrativa a que se refere o artigo 129.º do Código do IRC; aqui, ao invés, discute-se precisamente a impugnabilidade direta de uma liquidação de IRC, com fundamento no erro na determinação do valor tributável por aplicação do artigo 58.º-A do Código do IRC, e sem recurso àquela mencionada reclamação.
Por todo o exposto, não assiste, a respeito desta questão, razão à Recorrente.”.
27. Ora, no presente caso a Requerente não provou o recurso prévio ao procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, pelo que não se encontram verificados os requisitos de que depende a abertura da via contenciosa de contestação da legalidade da aplicação do disposto no artigo 64.º do Código do IRC. Significa isto que a Requerente não pode utilizar a arbitragem tributária para sindicar a legalidade do acto de liquidação adicional de IRC e fazer prova de que o preço efectivamente pago na transmissão do imóvel aqui em questão foi inferior ao respectivo VPT.
28. Esta conclusão não é afastada pelo facto de na liquidação adicional de IRC se referir expressamente a possibilidade da sua impugnação nos termos do artigo 102.º do CPPT. É que a circunstância de o acto de liquidação não ser impugnável para efeitos de demonstração do preço efectivo da transacção não significa que o mesmo não seja directa e imediatamente impugnável quanto a outros vícios que eventualmente lhe sejam imputáveis.
29. Por fim, sublinha-se também que a inimpugnabilidade do acto de liquidação não é passível de ser afastada com recurso a critérios de equidade conforme invoca a Requerente. Não só porque tal limitação é expressamente determinada por força do disposto no n.º 7, do artigo 139.º do Código do IRC, mas também porque “Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”, tal como resulta do disposto no n.º 2, do artigo 2.º do RJAT.
30. Em face do exposto, julga-se procedente a excepção dilatória de inimpugnabilidade do acto de liquidação, que impede o conhecimento do mérito e determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos conjugados do artigo 278.º, n.ºs 1, 2 e 3 e do artigo 576.º Código do Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
31. Consequentemente, fica prejudica a apreciação das demais questões submetidas a este Tribunal Arbitral em virtude da apreciação da excepção dilatória acabada de analisar.
V. DECISÃO
Termos em que se decide julgar:
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Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral;
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Julgar procedente excepção dilatória de inimpugnabilidade do acto de liquidação contestado e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 93.513,12.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.754,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 4 de Outubro de 2023
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
(Relatora)
O Árbitro Adjunto,
Miguel Patrício
O Árbitro Adjunto,
José Coutinho Pires