Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 155/2023-T
Data da decisão: 2023-09-15  IRS  
Valor do pedido: € 17.562,98
Tema: IRS; domicílio fiscal; residência fiscal; dupla tributação internacional
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SUMÁRIO:

1.O conceito de domicílio fiscal constante do art.º 19.º da LGT não se confunde com o conceito de residência fiscal para efeitos de direito fiscal internacional e direito internacional fiscal.

2.A residência fiscal é regulada por normas jurídicas específicas, na medida em que surge frequentemente associada à questão da alocação do poder tributário entre diferentes Estados. 

3) O artigo 16.º do CIRS estabelece os critérios com base nos quais se determina a residência fiscal em território português.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1RELATÓRIO

 

1. A..., NIF ..., residente no ..., n.º ...,  ..., ...-..., na qualidade de demandante veio, nos termos dos art.°s 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição do presente Tribunal Arbitral para apreciação do litígio  existente entre o Requerente e os serviços da demandada, Autoridade Tributária e Aduaneira, sedeada na Rua da Prata, n.°s 20/22, 2º, 1149-027, Lisboa, submetida obrigatoriamente à jurisdição do douto Tribunal Arbitral pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, artigo 2.o, alínea a), tendo em vista a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do procedimento de Recurso Hierárquico n.º ...2022... da decisão de indeferimento proferida no procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2022..., apresentada contra os seguintes atos tributários: Liquidação de IRS n.º 2022..., e correspondente liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022-..., que originaram a Nota de Cobrança n.º 2022... de valor a pagar no montante de €4.098,72, relativas ao ano de 2018; Liquidação de IRS n.º 2022..., e correspondente liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022-..., que originaram a Nota de Cobrança n.º 2022... de valor a pagar no montante de €3.841,42, relativas ao ano de 2019; Liquidação de IRS n.º 2022..., e correspondente liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022-..., que originaram a Nota de Cobrança n.º 2022... de valor a pagar no montante de €9.307,29, relativas ao ano de 2020, juntamente com a devolução das quantias indevidamente pagas, acrescidas dos juros à taxa legal.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 13.03.2023.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 05.05.2023.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 33.05.2023.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, e depois da correção de um lapso processual, apresentou a sua resposta, em 04.07.2023, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal prescindiu da prevista no artigo 18.º do RJAT, por despacho proferido no dia 06.07.2023, tendo sido dada a oportunidade para alegações finais.

 

8. Em 14.07.2023 foram apresentadas alegações finais produzidas pela Requerente, reiterando os elementos de facto e de direito constantes da petição inicial, prescindindo a Requerida desta faculdade processual.

 

1.1Dos factos alegados pelo Requerente

 

9. O Requerente é nacional de Portugal, tendo sido emigrante no Canadá no período compreendido entre o mês de abril de 1955 e o mês de setembro de 2020, tendo aí auferido rendimentos de trabalho, num primeiro momento e posteriormente de pensões de reforma, ali pagando os impostos estatais e locais que incidiam sobre os proventos obtidos, e todos os demais impostos e taxas existentes no respetivo ordenamento jurídico.

10. No dia 29.09.2020, por motivos de saúde, decidiu-se a regressar definitivamente à sua terra natal, onde ficou a residir definitivamente.

11. O contabilista prontificou-se a regularizar a sua situação fiscal apresentando, erradamente, as declarações modelo 3, do IRS, com referência aos anos de 2018, 2019 e 2020, fazendo constar das mesmas os rendimentos das pensões de reforma auferidos no Canadá, quando o demandante já naquele país tinha pagos os impostos devidos.

12. Das declarações apresentadas ficou a constar que o requerente naqueles anos era residente em Portugal, pelo que os Serviços da demandada processaram as liquidações n.ºs 2022..., 2022... e 2022...dos valores, respetivamente, de € 4.098,72, € 3.841,42 e € 9.307,29, totalizando € 17.247,43, a acrescerem juros compensatórios;

 

13. Em 07/09/2022, o requerente apresentou a Reclamação Graciosa n.º ...2022..., apresentando diversos documentos alegadamente comprovativos da sua qualidade de residente fiscal no Canadá.

 

14. O demandante foi notificado do projeto de decisão, em relação à reclamação graciosa e que apontava para o indeferimento, no qual era alegado para fundamentar a proposta de decisão, que o requerente era residente presumidamente, em Portugal, porque assim o declarou nas aludidas declarações modelo 3 de IRS, e também com fundamento no artigo 13.º, n.º 1 do CIRS, que assim transcreveu “… ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo aqui obtenham rendimentos…”, transcrevendo também parte do art.º 19.º, n.º 1, al. a), da LGT e, por fim o n.º 2 do aludido art.º 13.º, transcreveu em parte.

 

15. Da decisão de indeferimento foi interposto recurso hierárquico para o Serviço de Finanças de Caldas da Rainha, a 24.11.2022, tendo-se formado o indeferimento tácito em fevereiro de 2023.

 

1.2Argumentos das partes

16. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão da determinação da residência do sujeito passivo.

17. O Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. Os impostos referentes aos anos de 2018, 2019 e 2020, foram pagos no Canadá porque aí residia o Requerente nesses anos;
  2. Em virtude de um erro do contabilista, que apresentou as declarações modelo 3, do IRS, com referência aos anos de 2018, 2019 e 2020, o Requerente foi vítima de uma situação de dupla tributação, porquanto relativamente a esses anos pagou os seus imposto no Canadá, tendo a demandada voltado a exigir-lhos em Portugal, utilizando um conceito abusivo da definição de residência, com manifesta violação dos art.ºs 8.º, n.º 1, da CRP, 15.º e 22.º da Convenção, 1.º, n.º 1 e 19.º, n.º 1 da LGT, 13.º, n.ºs 1 e 12 e 81.º, n.º 1, do CIRS.
  3. Nos anos de 2002, 2006 e 2011, veio a Portugal no gozo de curtos períodos de férias, tendo requerido no ano de 2011 a emissão do cartão de cidadão e declarado ser residente em Portugal para o poder obter, mas apesar de tal declaração não se pode concluir que, de facto era residente em Portugal;
  4. Mesmo que fosse considerado residente em Portugal, o Serviço de Finanças devia respeitar o disposto no art.º 81.º, n.º 1, do CIRS e, cumulativamente, o disposto no art.º 22.º n.º 2, alínea a) da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Canadá (CDT),  deduzindo aos valores liquidados as quantias pagas no Canadá, o que não fez, sendo que se o tivesse não haveria liquidações a fazer porque os valores pagos em impostos no Canadá era superior ao pretendido pela demandada;
  5. As liquidações padecem de ilegalidades graves, e de um manifesto abuso de poder, por violação da lei e também da jurisprudência, cuja ilegalidade se pretende ver declarada, afigurando-se mais uma situação de confisco do que de âmbito tributário.

 

18. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

  1. O Requerente inicialmente declarou ser residente fiscal em Portugal nos anos de 2018, 2019 e 2020, pelo que pretendendo a alteração do estatuto de residente para o de não residente em território português é ao mesmo que compete o ónus da prova do alegado, de acordo com o que dispõe o artigo 74.º, n.º 1 da LGT;
  2. Os rendimentos declarados pelo requerente no Anexo J das declarações de rendimentos submetidas para os anos de 2018, 2019 e 2020, consistem em rendimentos de pensões da segurança social, que têm enquadramento no artigo 18.º da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Canadá (e não artigo 15.º conforme referido na PI), havendo competência de tributação cumulativa entre o Estado da residência e o Estado da fonte, em conformidade com o disposto no n.º 1 do referido artigo 18.º;
  3. Nos diversos documentos apresentados no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa, emitidos em nome do Requerente, aparece uma morada no Canadá, embora isso não equivalha a dizer que o requerente tinha a sua residência fiscal no Canadá nos anos de 2018, 2019 e 2020;
  4. Os documentos exibidos pelo requerente no âmbito da Reclamação Graciosa, para além de não demonstrarem que o requerente teve a sua residência fiscal nos anos de 2018, 2019 e 2020, também não demonstram em que qualidade foi tributado no Canadá, isto é, não demonstram se o requerente foi tributado no Canadá como residente ou não residente;
  5. Porque o Canadá tem sempre o direito a aceder à tributação das pensões de fonte canadiana, quer enquanto Estado de residência quer enquanto Estado da fonte, não é possível aferir a que título terá sido tributado o requerente no Canadá;
  6. O documento a ser apresentado para comprovar a residência fiscal no Canadá nos anos de 2018, 2019 e 2020, deverá ser o certificado de residência fiscal emitido ao abrigo do artigo 4.º da CDT celebrada entre Portugal e o Canadá, pois é esse o documento que demonstra a sujeição plena a imposto (full tax liability) no Canadá, e que permite aplicar as regras de desempate previstas n.º 2 do artigo 4.º da referida Convenção;
  7. No que se refere à existência de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual em território nacional, nos anos de 2018, 2019 e 2020, o Requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º ..., da freguesia ... concelho de Caldas da Rainha, sito no ..., ...-... ... e que, pelo menos 18/08/2016, tinha o seu domicílio fiscal aí localizado;
  8. Fazendo o domicílio fiscal presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo, existe habitação ao dispor no território nacional nos termos previstos na al. b) do artigo 16.º do CIRS, pelo que o contribuinte é considerado residente em Portugal, incidindo este imposto sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território», em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 15.º do CIRS;
  9. Quanto ao crédito de imposto, analisadas as liquidações de IRS emitidas para os anos de 2018, 2019 e 2021, verificou-se que as mesmas contêm a dedução à coleta para eliminar a dupla tributação internacional, efetuada em conformidade e com limitação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da CDT;
  10. As liquidações de IRS dos anos de 2018, 2019 e 2020, foram efetuadas em conformidade com a informação declarada pelo contribuinte, e contemplando a dedução à coleta para eliminação da dupla tributação internacional, conforme impõe a alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Canadá.

 

1.3. Saneamento  

 

 

19. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

20. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

21. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

22. Com base nos documentos constantes do Processo Administrativo (PA) e trazidos aos autos e são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

  1. Em 21/06/2022, o Requerente procedeu à apresentação de declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2018, que se encontra registada sob o n.º ... - 2018 - ...- ..., declarando o estado civil de “Viúvo” e ser residente fiscal em Portugal durante o ano de 2018, tendo apresentado unicamente o Anexo J (Rendimentos obtidos no estrangeiro), no qual declarou rendimentos de pensões, provenientes do Canadá, no valor de €38.130,00, e correspondente imposto pago no estrangeiro no valor de €5.940,00;
  2. Em 21/06/2022, o Requerente procedeu à apresentação de declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2019, que se encontra registada sob o n.º ... - 2019 - ... - ..., tendo declarado o estado civil de “Viúvo”, bem como ser residente fiscal em Portugal durante o ano de 2019, tendo apresentado unicamente o Anexo J (Rendimentos obtidos no estrangeiro), no qual declarou rendimentos de pensões, provenientes do Canadá, no valor de €37.899,00, e correspondente imposto pago no estrangeiro no valor de €6.517,00;
  3. Em 28/06/2022, o Requerente procedeu à apresentação de declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2020, que se encontra registada sob o n.º ... - 2020 - ... - ..., tendo declarado o estado civil de “Viúvo”, bem como ser residente fiscal em Portugal durante o ano de 2020, tendo apresentado unicamente o Anexo J (Rendimentos obtidos no estrangeiro), no qual declarou rendimentos de pensões, provenientes do Canadá, no valor de €58.157,55, e correspondente imposto pago no estrangeiro no valor de €9.951,70;
  4. Nos três casos o Requerente declarou, nas informações complementares, a Segurança Social como origem da pensão;
  5. O contribuinte em 2002 e 2006 apresentou declarações Modelo 3 de IRS declarando-se residente em Portugal;
  6. Em 18.03.2011 o Requerente obteve o cartão de cidadão tendo declarado ser residente em Portugal;
  7. Nos anos de 2018, 2019 e 2020, o requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º..., da freguesia de ... do concelho de Caldas da Rainha, sito no ... n.º ..., ...-... ...;
  8. O requerente nos anos de 2018, 2019 e 2020, e desde pelo menos 18.08.2016, tinha o seu domicílio fiscal localizado na morada do referido imóvel.

 

2.2Factos não provados

 

23. Com relevo para a decisão sobre o mérito não se prova sem margem para dúvida que o Requerente tinha residência fiscal no Canadá nos anos de 2018, 2019 e 2020.

 

2.3Motivação

 

24. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

25. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4Questão decidenda

 

26. Nos autos está e causa a em questão – já esgrimida em sede de reclamação graciosa e recurso hierárquico em termos que conduziram a indeferimento tácito – de saber se o Requerente deve ser considerado residente em Portugal nos no de 2018  2019 e 2020 e, em tal caso, se são válidas as liquidações de IRS e crise e as correspondentes liquidações de juros compensatórios.

 

27. De acordo com o disposto no artigo 13.º, nº 1, do CIRS, “[f]icam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.” No âmbito do IRS, a residência é o critério utilizado para determinar o âmbito de aplicação do imposto sendo os residentes sujeitos a um princípio de tributação de base mundial por contraposição com os não residentes, que apenas são sujeitos a tributação na fonte, relativamente aos rendimentos obtidos em Portugal. Com efeito, o artigo 15.º, n.º 1, do CIRS, dispõe que “sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.”  Daqui decorrem evidentes implicações fiscais para quem resida em Portugal e aufira rendimentos de fonte estrangeira. 

 

28. No que respeita aos anos fiscais de 2018, 2019 e de 2020, o Requerente apresentou declarações de rendimentos Modelo 3, declarando ser residente em Portugal, no território do continente. De resto, já havia feito o mesmo nos anos 2002 e 2006, como consta dos autos. Nos termos do artigo 75.º, n.º1, da LGT, “presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei”, pelo que a AT tomou como boa a declaração de residência do Requerente. 

 

29. O artigo 19.º da LGT regula a residência e o domicílio para efeitos fiscais. O n.º 3 dispõe que “[é] obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.”. No n.º 4 do mesmo artigo dispõe-se que “[é] ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.”. O n.º 5 diz que “[s]empre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária”. Estas disposições relevam no caso concreto porque no registo central do contribuinte constante do PA o Requerente é dado como residente em Portugal e sem residência estrangeira, com morada portuguesa tendo como primeira dada de produção de efeitos 18.03.2011, não havendo qualquer registo de comunicação à AT, pelas vias normais, de residência no Canadá durante esses anos.

 

30. Resulta dos autos que nos anos fiscais sub judice, o Requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º..., da freguesia de ... do concelho de ..., sito no ... n.º ..., ...-..., ..., tendo nesses anos o seu domicílio fiscal localizado na morada do referido imóvel. Nos termos do artigo 19.º, nº 1, alínea a), da LGT, o domicílio fiscal é, para as pessoas singulares, o local da residência habitual.

 

31. Por seu lado, o artigo 13.º, n.º 11 (e n.º 12)[1] , do CIRS, na redação em vigor anos em causa, determinava que “[o] domicílio fiscal faz presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo que pode, a todo o tempo, apresentar prova em contrário.” Com base nesta disposição, e tendo em conta a presunção de verdade e boa fé subjacente às declarações Modelo 3, a AT presumiu que o Requerente tinha habitação própria e permanente em Portugal e considerou-o residente para efeitos fiscais. Trata-se aqui, porém, de uma presunção ilidível a todo o tempo, como resulta do mencionado artigo 13.º do CIRS. 

 

32. O artigo 16.º do CIRS estabelece os critérios com base nos quais se determina a residência fiscal em território português e se recorta o círculo dos “contribuintes domésticos”. O conceito de residência fiscal remete para uma ideia de presença substancial. De acordo com o critério do respetivo n.º 1, alínea a), “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa”. A matéria de facto trazida aos autos não permite responder de forma clara e definitiva à questão de saber exatamente quantos dias o Requerente permaneceu no Canadá ou em Portugal nos anos de 2018, 2019 e 2020.

 

33. À luz do critério da alínea b), do n.º1, do artigo 16.º do CIRS, segundo o qual são residentes em Portugal aqueles que “tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”, o Requerente podia, prima facie, ser considerado residente em Portugal, visto que, tendo por referência os  anos de 2018, 2019 e 2020 o mesmo tinha aí um prédio urbano e domicílio fiscal, presumindo-se a sua habitação própria e permanente, nos termos dos referidos n.º11 e 12 do artigo 13.º do CIRS, na  numeração sucessivamente relevante nesses anos. Tanto mais, como se viu, que não há qualquer registo de comunicação à AT, pelas vias normais, de residência no Canadá durante esse período. Esteve bem, por conseguinte, a AT quando procedeu às liquidações de IRS e notas de cobrança relativas a esses anos.

 

34. Os conceitos de residência e domicílio revestem-se de conteúdo factual específico. Isso significa que, para efeitos de residência fiscal, não interessa apenas a suposição da AT sobre a intenção do sujeito passivo, mas sim o que objetivamente se pode inferir de uma análise de todos os factos e circunstâncias relevantes, nomeadamente respeitantes à efetiva emigração do Requerente para residir e trabalhar no Canadá e às suas viagens a Portugal.[2] Num mundo globalizado, em que pelas mais variadas razões pessoais e profissionais os indivíduos passam partes substanciais do seu tempo em diversos países durante um ano, nem sempre é fácil determinar qual a jurisdição com maior legitimidade para proceder à tributação do rendimento mundial.

 

35. Em abstrato, a questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal não pode ser decidida apenas com base no domicílio fiscal, nomeadamente nos casos em que se comprove que alguém efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro, não sendo inevitável considerá-lo residente em Portugal – mesmo que aí tenha um prédio urbano e domicílio fiscal – e muito menos residente unicamente em Portugal. No entanto, nos termos do artigo 74.º, nº 1, da LGT, cabe ao contribuinte o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que alega e que supostamente lhe permitem ilidir a presunção em causa. A satisfação desse ónus da prova é especialmente exigente num contexto de elevada mobilidade transfronteiriça, em que a indeterminação dos factos joga a favor de uma maior dependência, por parte das autoridades tributárias, do cumprimento das obrigações declarativas por parte dos contribuintes. 

 

36. No direito fiscal, um indivíduo pode ser considerado residente para efeitos fiscais mesmo que não "resida" num país no sentido comum ou social do termo. Além disso, é possível que um indivíduo seja classificado como residente pela legislação doméstica de mais de um Estado, cada um reivindicando para si o direito de tributar o seu rendimento mundial. Uma das funções das CDT consiste em mediar essas disputas. Estes tratados internacionais contêm uma série de critérios de desempate para atribuir residência quando cada um dos Estados contratantes reivindica um determinado indivíduo como seu residente.

 

37. Com o objetivo de ilidir a presunção do artigo 13.º do CIRS, o Requerente apresenta documentação fiscal que atesta que pagou imposto no Canadá nos anos de 2018, 2019 e 2020 relativamente aos rendimentos aí auferidos. No entanto, apesar de se estar diante documentos que parecem admitir a inclusão de vários tipos de rendimentos, prever várias deduções e dar o Requerente como residente na província do Ontário, dos mesmos não resulta com absoluta clareza – do ponto de vista de uma autoridade administrativa estrangeira – se a tributação foi feita com base no critério da residência ou da fonte, visto que o Requerente todos os rendimentos têm fonte canadiana.

 

38. Acresce que, nos termos do artigo 4.º, nº1, alínea a), da CDT entre o Portugal e o Canadá – válida na ordem jurídica portuguesa por força do artigo 8.º, nº2, da CRP –,  a expressão “residente”, remetendo embora para conceitos como domicílio, residência ou critérios de natureza similar, não compreende as pessoas que só estão sujeitas a imposto num dos Estado contratantes relativamente aos rendimentos provenientes de fontes situadas nesse Estado, pelo que não permite por si só concluir com segurança pela residência fiscal do Requerente no Canadá nem, muito menos, afastar a residência fiscal em Portugal.

 

39. Por outro lado, a documentação consular que pretende provar a residência do Requerente no Canadá – uma declaração da Embaixada do Canadá em Portugal datada de 29.07.2022 – não tem necessariamente relevância para efeitos fiscais, visto que o conceito de residência fiscal não coincide necessariamente com o conceito de residência para outros fins sociais. O mesmo sucede com a carta de condução canadiana constante do PA ou a documentação bancária e contabilística apresentada. A residência fiscal é regulada por normas jurídicas específicas, na medida em que surge frequentemente associada à questão da alocação do poder tributário entre diferentes Estados. 

 

40. Os residentes do Canadá para efeitos fiscais estão sujeitos a impostos neste pais sobre o seu rendimento mundial, ou seja, de fontes canadianas e estrangeiras. Para evitarem a dupla tributação em Portugal, os mesmos devem exibir um certificado próprio que prove que são residentes no Canadá e têm direito aos benefícios da CDT entre Portugal e o Canadá. O certificado de residência é emitido pela Agência da Receita do Canadá (Canada Revenue Agency-CRA) e confirma que o contribuinte é fiscalmente residente no Canadá e responsável tributário no Canadá. No requerimento do certificado deve ser indicada a CDT para a qual o mesmo é necessário. No caso, o Requerente não apresentou o referido certificado.

 

41. Ainda assim, e este aspeto afigura-se decisivo, atendendo à presunção da verdade declarativa, consagrado no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, as demonstrações das liquidações revelam que foram considerados os valores inscritos nas declarações de rendimentos a título do imposto pago no estrangeiro e concedida a dedução à coleta correspondente, verificando-se que as liquidações de IRS emitidas para os anos de 2018, 2019 e 2020, constantes do PA, contêm a dedução à coleta para eliminar a dupla tributação internacional, efetuada em conformidade e com limitação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da CDT entre Portugal e o Canadá.

 

42. No caso concreto, a questão de saber se o Requerente é ou não residente no Canadá afigura-se irrelevante, na medida em que uma resposta positiva à mesma não seria suficiente para excluir a residência fiscal e consequente tributação em Portugal e a AT não deixou de fazer a dedução à coleta para afastar a dupla tributação internacional, nos termos da CDT entre Portugal e o Canadá. A esta luz, devem julgar-se improcedentes os pedidos do Requerente e ser mantidas as liquidações em causa.

 

3DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral por não provado;
  2. Absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em €  17.562,98, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1 224.00 €, a cargo do Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de setembro de 2023

 

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Passou a n.º 12 a partir da redação da Lei n.º 71/2018, de 31.12, relevante para os anos de 2019 e 2020.

[2] Cfr., neste sentido, Decisão Arbitral do CAAD, Processo n.º 434/2019-T, de 11.08.2020.