SUMÁRIO:
-
No caso de dúvida sobre se um SP português é ou não residente na Irlanda a AT tem de aplicar os critérios consagrados no artigo 4.º da CDT entre Portugal e a Irlanda não podendo fazer interpretações unilaterais sem consultar as entidades irlandesas.
-
Um rendimento de trabalho auferido em dezembro de 2016 que foi declarado pela entidade patronal em janeiro de 2017 não é um rendimento de 2017 para os efeitos previstos no artigo 12.º - A do CIRS.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Vasco António Branco Guimarães, árbitro singular designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 03.05.2023, decide o seguinte:
1. Relatório
A..., casado, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ... n.º..., ..., ...-... Pedroso, (doravante designado por “Requerente”), apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista:
a) «…determinar a ilegalidade do ato tributário de liquidação do IRS referente ao ano de 2020», - identificado como Liquidação 2021... - porquanto,
b) O Requerente deverá ser enquadrado no «Programa Regressar» como sujeito passivo passível de beneficiar da exclusão de tributação de 50% dos seus rendimentos, nos termos do artigo 12.º - A do CIRS.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-02-2023.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 13-04-2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2023.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em 12-06-2023 em que por impugnação defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente por não provado.
Por despacho de 17-07-2023 foi decidido ouvir as testemunhas na reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT que teve lugar em 04.09.2023 e determinada a apresentação de Alegações das Partes.
As Partes apresentaram alegações em 14.09.2023.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto.
2.1. Factos provados:
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
A) Em novembro de 2016 o Requerente A... denunciou o contrato de trabalho que tinha com a B...– Sucursal de Portugal com pré-aviso de 60 dias que terminava em janeiro de 2017- Doc. 1.
B) No início do mês de janeiro de 2017 residiu com seus pais na Rua do ... n.º ..., ... ... em Pedroso.
C) Em janeiro de 2017 viajou com a sua família para Dublin onde iniciou funções no C... (DUBLIN).
D) Em janeiro de 2017 e até abril de 2020 o Requerente fixou a sua residência e a do seu agregado familiar em Dublin, Républica da Irlanda.
E) Durante esse período o casal teve uma descendente.
F) O Requerente foi considerado pelas Autoridades fiscais Irlandesas como residente na Irlanda no ano de 2017 até 2020.
G) A Requerida considera que o Requerente foi residente fiscal parcial em Portugal no ano de 2017. cfr. Artigo 25 da douta Resposta da AT.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto.
Os factos provados baseiam-se nos articulados e documentos juntos pelo Requerente e os constantes do Processo Administrativo junto ao processo pela Requerida que, no caso, se limitam aos actos de Reclamação e Recurso Hierárquico instruídos pelo Requerente.
A autenticidade dos documentos não foi posta em causa.
As testemunhas confirmaram com conhecimento direto dos factos a fixação do agregado familiar em Dublin e o nascimento de uma descendente.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
1. Saber se a AT pode considerar o Requerente como residente em Portugal no ano de 2017 por ter estado cerca de 15 dias de janeiro em território português, ter declarado a sua mudança para a Irlanda em 05.09.2017 e ter gozado e recebido o correspondente ao direito ao mês de férias adquirido em 2016 em janeiro do ano de 2017.
2. Saber se o artigo 12.º -A do CIRS tem um particular conceito de residência não previsto no normativo que rege o conceito (artigos 16.º a 19.º do CIRS e CDT entre Portugal e a Irlanda) que exclui o Requerente do benefício fiscal previsto no artigo 12.º -A do CIRS.
3.1. Posições das Partes
O Requerente defende em resumo:
Que foi trabalhar para a Irlanda no início de 2017 onde se manteve até abril de 2020. Aí fixou a sua residência com o agregado familiar teve descendência e permaneceu mais de 183 dias.
A AT defende por impugnação:
Que a conjugação dos factos de o Requerente ter estado em território nacional no início de janeiro, só ter declarado a sua mudança de residência em 05.09.2017 e o ter auferido rendimentos em 2017 o excluem do benefício previsto no artigo 12.º-A do CIRS.
3.2. Saneamento do processo:
As alegações apresentadas reafirmam as posições já explanadas nas peças processuais.
A questão dos conflitos de determinação da residência fiscal está regulada nos princípios fundamentais do TFUE e nas decisões jurisprudenciais do TJUE bem como na CDT entre Portugal e a Irlanda que tem regras específicas para o caso em análise.
É hoje consensual que o conceito de domicílio não se confunde com o conceito de residência e que este exige uma vontade do SP e um grau de adesão ao território e a definição de um «centro de interesses vitais» que deverá ser verificado com base em dados concretos e especificados. Nas Convenções bilaterais para eliminar a dupla tributação jurídica internacional outorgadas entre os Estados soberanos que tem dignidade equiparada à lei ordinária estão fixados os critérios que definem a condição de residente em caso de dupla residência.
Resulta do acima afirmado que a definição da condição de residente não é um poder irrestrito da AT mas um poder de fiscalização que deverá ter em atenção a vontade do SP, a verificação de onde centrou a sua vida pessoal e familiar e o certificado sobre a matéria pelo outro Estado soberano em relação à mesma matéria.
No caso em análise uma vez certificado pelas Autoridades Tributárias irlandesas a residência do Requerente não poderia a AT sem verificar a credibilidade desses documentos ou estar na posse de elementos contrários irrefutáveis pôr em causa esse estatuto de residente na Irlanda apresentado pelo SP para os anos de 2017, 2018 e 2019.
Em caso de dúvida a Administração Tributária portuguesa deveria ter procedido à troca de informações com a sua congénere irlandesa para a verificação da veracidade dos documentos e confirmação do teor das informações neles constantes e não ficar com uma posição de «falta de prova» por parte do SP - que lhe não aproveita por ser informação a que tem acesso de forma automática ou a pedido ao abrigo dos mecanismos europeus de troca de informação em vigor ou ao abrigo dos dispositivos previstos nas CDT em vigor. Esta a posição da jurisprudência do TJUE em vigor sobre os dados detidos ou ao alcance das Administrações competentes que deveria ser seguida pela AT.
Uma outra questão determinante para a boa resolução do caso em apreço é a dificuldade que a Requerida parece apresentar em aceitar que:
i) pode existir conflito entre dois Estados soberanos sobre a determinação da condição de residente fiscal e,
ii) que existe um procedimento próprio para dirimir esse conflito que não passa por tomar posição unilateral sobre a matéria;
iii) há que respeitar a Convenção internacional existente entre Portugal e a Irlanda para eliminar a dupla tributação jurídica internacional na matéria de definição da condição de residente.
O que se pretende deixar claro é que a existir uma dúvida fundada sobre o estatuto de residente ou não de um cidadão europeu ou outro residente, a resolução desta dúvida passa pela consulta e resolução do conflito de aplicação das regras ao nível das autoridades administrativas e não por impor ao contribuinte um comportamento ou definindo-lhe unilateralmente uma situação atribuindo-lhe responsabilidades ou retirando-lhe direitos internos ou externos que estão consagrados em Tratados internacionais a que Portugal enquanto Estado soberano se comprometeu respeitar e fazer respeitar.
Faz-se notar que o conceito de residência fiscal parcial não existe na legislação nacional legalmente consagrado podendo, no entanto, falar-se em dupla residência nas situações previstas na CDT.
Face ao enquadrado elenquemos as questões que são de verificação obrigatória para que possa ser dada ao caso em apreço uma decisão fundamentada:
1. O Requerente no ano de 2017 é residente em Portugal, na Irlanda ou em ambas?
2. O conceito de residente é essencial para a aplicação do artigo 12.º-A do CIRS?
3. Artigo 12.º-A do CIRS tem requisitos específicos de aplicação para além dos expressos na letra da lei?
Feita a introdução e saneamento das questões que nos vão ocupar passemos à sua análise detalhada.
1. O Requerente no ano de 2017 é residente em Portugal, na Irlanda ou em ambas?
Está dado como assente que o Requerente se ausentou de Portugal para ir residir na Irlanda em janeiro de 2017. Isto mesmo resulta provado documentalmente e por testemunhas no processo . Tendo sido suscitada pela Requerida dúvida sobre se o Requerente tinha mantido a situação de residente em Portugal com o argumento de que só em setembro de 2017 é que tinha comunicado este facto à AT há que verificar qual o critério a aplicar na CDT entre Portugal e a Irlanda.
Compulsado o texto legal publicado verifica-se que no artigo 4.º da CDT o conceito de residente é definido com os seguintes critérios:
a. Detenção de habitação permanente;
b. Centro de interesses vitais;
c. Permanência habitual;
d. Nacionalidade;
e. Resolução por acordo entre as autoridades competentes dos Estados contratantes.
f. Em caso de ser residente de ambos os Estados contratantes será considerado residente no Estado onde tiver a sua direção efetiva ou seja, onde conduz os seus negócios e vida pessoal e patrimonial.
Ora, face aos elementos existentes no processo dúvidas não restam que no ano de 2017 o Requerente e a sua família foram residentes na Irlanda conforme abundante documentação e prova testemunhal produzida.
Nenhum dos critérios do artigo 16.º do CIRS é contrariado pela definição feita na CDT entre Portugal e a Irlanda no seu artigo 4.º.
2. O conceito de residente é essencial para a aplicação do artigo 12.º-A do CIRS?
O critério de aplicação do artigo 12.º-A do CIRS é a conjugação de várias situações. Em 2020 a redação do artigo 12.º-A em vigor que é a da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro que só foi alterado pela Lei n.º 12/2022 de 27/06 dispunha como condições para redução dos 50% dos rendimentos o seguinte:
a. O SP ter-se tornado fiscalmente residente em Portugal em 2019 e 2020;
b. Não ter sido considerado residente em Portugal em qualquer nos três anos anteriores;
c. Tenham sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015;
d. Tenham a sua situação tributária regularizada.
e. Como critério suplementar não é possível beneficiar em simultâneo do estatuto de residente não habitual.
Ora, compulsados os elementos trazidos ao processo resulta claro que todos estes requisitos estão cumpridos.
3. Artigo 12.º-A do CIRS tem requisitos específicos de aplicação para além dos expressos na letra da lei?
A resposta só pode ser uma. Não tem nem pode ter porque a isso se opõe o princípio da legalidade em todas as suas vertentes.
Uma não comunicação atempada por parte do SP relativo à mudança de residência e um erro de apreciação sobre a condição de residente por parte da Requerida não podem impedir o exercício de um direito à redução do IRS que foi consagrado precisamente para permitir a recuperação de quadros jovens para a economia portuguesa.
Uma última questão tem a ver com os rendimentos auferidos pelo SP em janeiro que se referem ao gozo de direito a férias vencido por força de trabalho realizado em 2016 e pago em 2017.
Na agenda fiscal que existe em www.portaldasfinancas.gov.pt pode ler-se referido ao mês de janeiro:
- Declaração mensal de remunerações até dia 10 de janeiro – Envio da Declaração mensal de Remunerações por transmissão eletrónica de dados pelas entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente sujeitos a IRS, ainda que deles isentos……, relativas ao mês anterior.
Parece assim resultar da informação constante da Agenda Fiscal constante do site das Finanças e da legislação aplicável que as remunerações colocadas no site fiscal do SP em janeiro dizem respeito ao ano de 2016 mais precisamente a dezembro de 2016 conforme foi alegado pelo SP.
Existe em conformidade, erro sobre os pressupostos de facto e de Direito por parte da Requerida na apreciação da questão em apreço.
3.3. Apreciação da questão.
Por todas as razões de facto e de direito elencadas no saneamento do processo considero a posição da Requerida tomada no processo em análise feita em erro sobre os pressupostos de facto e de Direito e não pode subsistir na ordem jurídica.
Improcede assim, de facto e de Direito a posição da Requerida no caso em apreciação.
O Requerente não pede juros indemnizatórios. No entanto a recomposição da situação que deveria ter acontecido, tal como preconizado nos termos do artigo 100.º da LGT, implica a sua atribuição pelo Tribunal por se entender ser a consequência da aplicação do princípio da legalidade ao caso em concreto. O artigo 43.º n.º 1 da LGT prevê que são devidos juros indemnizatórios, no caso de procedência de impugnação judicial por erro imputável aos serviços da Requerida de que resulte pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. No caso isso aconteceu pelo que são devidos os juros indemnizatórios à taxa de 4% desde a data do pagamento até integral recebimento pelo SP.
5. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, julgando:
a. como ilegal e anulada a Liquidação n.º 2021... na parte em que liquidou a mais a quantia de 4 066,04 Euro (quatro mil e sessenta e seis Euro e quatro cêntimos) ao SP por não aplicação do benefício fiscal consagrado no artigo 12.º-A do CIRS.
b. Mais condeno a Recorrida - por ser seu o erro que determinou a ilegalidade - a pagar à Requerente juros indemnizatórios à taxa legal desde a data do pagamento feito pelo Requerente até integral reembolso e efetivo pagamento.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 4066,04 (quatro mil e sessenta e seis Euro e quatro cêntimos):
Custas: Vai a AT condenada em custas nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em 612,00 (seiscentos e doze) Euro.
Registe e Notifique.
Lisboa, 26 de setembro de 2023
O Árbitro
(Vasco Branco Guimarães)