SUMÁRIO:
1. Considerando a factualidade do caso concreto e o entorno jurídico-tributário aplicável, concluiu-se pela procedência da exceção de incompetência material suscitada pela AT.
2. A incompetência absoluta em razão da matéria consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conduzindo à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A... (doravante Requerente), com residência na Rua ... n.º ..., ...-... Vila Real, sujeito passivo com número de identificação fiscal..., vem requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da Administração Tributária como Residente Não Habitual (doravante RNH), com efeitos a partir de 2020.
Peticiona ainda o Requerente a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS, dos anos de 2019, com o valor de € 6.276,29, de 2020, no valor de € 7.346,30, e de 2021, no valor € 7.865,49, no valor total a pagar de imposto de € 21.478,08, com a consequente anulação e respetiva restituição do montante em causa pago pelo Requerente, acrescido, no caso de procedência do pedido, de juros indemnizatórios à taxa legal aplicável.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de Tribunal Arbitral e do n.º do processo atribuído, em 28-12-2022, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 29-12-2022.
Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
Em 13-03-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.
Síntese da posição das Partes:
1. Do Requerente
Este começa por referir que, em 22-06-2021, através de pedido apresentado no Portal das Finanças, solicitou a sua inscrição no Regime dos Residentes Não Habituais (RNH), nos termos do preceituado no artigo 16.º n.º 8 do CIRS, o qual foi indeferido com fundamento no facto de «o Contribuinte não ter junto aos autos quaisquer documentos que comprovassem a sua residência no estrangeiro de 1 de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2020.»
Sublinha ainda o Requerente que podem solicitar a inscrição como RNH no registo de contribuintes os sujeitos passivos que:
-se tornem fiscalmente residentes em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do CIRS no ano relativamente ao qual pretendam que tenha início a tributação como RNH;
-não sejam considerados residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretendam que tenha início a tributação como residentes não habituais;
-solicitem a inscrição como RNH no ato da inscrição como residentes em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se tornem residentes nesse território.
Invocados vícios de fundamentação nomeadamente no que toca à decisão proferida pela Senhora Subdiretora Geral dos Serviços de Registo dos Contribuintes, em 26-09-2022, versada no Despacho 6490, indeferindo o seu pedido nos seguintes termos: “Concordo. Proceda-se em conforme proposto”, o Requerente argumenta que tal decisão é absolutamente omissa no que tange aos seus fundamentos, uma vez que não consta da mesma qualquer fundamento, de facto ou de direito, da motivação da mesma, considerando que existe falta de fundamentação.
Em março de 2020, alega o Requerente que visando requerer a sua inscrição como RNH, e tendo sentido necessidade de se deslocar junto do Serviço de Finanças de Vila Real a fim de obter informações e esclarecer dúvidas nomeadamente sobre o procedimento a adotar e documentos necessários ao efeito, foi impedido de o fazer em consequência da declaração de Estado de Emergência, em Portugal, a coberto do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
Segundo o Requerente, em Dezembro de 2020, foi contagiado com COVID-19. Este contágio motivou que o mesmo se tenha deslocado de urgência ao Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Douro, sito em Vila Real, de onde acabaria por ser transferido com urgência para a CUF do Porto, onde esteve internado nos cuidados intensivos durante 11 dias, apenas tendo tido alta hospitalar, em 29-12-de 2020.
Em consequência de tudo o descrito, o Requerente não logrou de imediato dar seguimento ao pedido de inscrição como não residente, mas em junho de 2021, com a ajuda de um amigo, conseguiu fazê-lo submetendo tal pedido através do Portal das Finanças.
Por sua vez, acrescenta o Requerente o seguinte:
«O pedido de inscrição como Residente Não habitual tem natureza meramente declarativa (…) A verdade é que o simples facto de o pedido de inscrição como Residente Não Habitual ora em crise ter sido entregue para além do prazo previsto no artigo 16.º n.º 8 do CIRS não pode obstar a que o Contribuinte possa beneficiar daquele regime.
(…) estamos perante um benefício automático que opera quando as condições objetivas de residência e de tempo de permanência no exterior sejam imediatamente conhecidas pela Autoridade Tributária (…). razão pela qual não se pode denegar a concessão desse Estatuto com base no incumprimento do prazo para requerer a inscrição como Residente Não Habitual, como sucede no caso em concreto.
Ora, não pode aceitar-se, sob pena de violação do espírito do próprio regime dos residentes não habituais, que este benefício possa depender apenas do preenchimento dos requisitos do artigo 16.º n.º 2 CIRS e da inscrição do contribuinte em território português e não da sua inscrição como residente não habitual.
Até porque, a inscrição como residente não habitual prevista no artigo 16.º do CIRS constitui tão só uma obrigação declarativa não sendo, portanto, constitutiva do direito. (…) O que significa que a norma do artigo 16.º n.º 10 do CIRS deverá ser entendida como uma norma essencialmente procedimental. (…) Pelo que a decisão ora notificada ao Contribuinte, que em suma considerou que este não pode beneficiar do regime de residente não habitual por não ter respeitado o prazo previsto no artigo 16.º n.º 10 do CIRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual é ilegal, uma vez que o Contribuinte pode beneficiar desse regime desde que o apresente dentro de qualquer um dos 10 anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo, como tem defendido a mais recente Doutrina e Jurisprudência a este propósito.»
Refere ainda o Requerente relativamente à apresentação do PPA, que em 27-09-2022, foi notificado do indeferimento do Recurso Hierárquico que havia apresentado.
Vem recordar que, de acordo com o artigo 102.º n.º 1 do CPPT: «1 - A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:
a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;
b) Notificação dos restantes actos tributários, mesmo quando não dêem origem a qualquer liquidação;
c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;
d) Formação da presunção de indeferimento tácito;
e) Notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma nos termos deste Código;
f) Conhecimento dos actos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores”.
E que «(…) de acordo com o previsto no artigo 10.º n.º 1 a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, o pedido de constituição do tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias contado dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT».
Ora, sublinha o sujeito passivo que o prazo para apresentação da ação arbitral, terminou em 26-12-2022, precisamente no dia de apresentação do presente PPA.
Ademais, vem o Requerente responder às restantes exceções invocadas pela Requerida, e quanto à impugnação do valor da causa por si fixado, argumenta também o seguinte:
«Conforme consta do Pedido de Pronúncia Arbitral apresentado pelo Requerente, bem como do seu subsequente Requerimento datado, de 05-01-2023, o valor atribuído à presente ação é (…) de € 21.478,00. Conforme se afere através da leitura do referido Pedido de Pronúncia Arbitral e dos documentos juntos aos mesmos, em causa estão os actos de liquidação de IRS apresentados nos anos de 2020, 2021 e 2022 e não os actos de liquidação dos rendimentos auferidos nesses anos, já que se assim fosse obviamente não poderia o Requerente impugnar um ato de liquidação que aquando da apresentação do presente processo no CAAD (em 26-12-2022) ainda não existia, reportando-nos obviamente à liquidação de IRS dos rendimentos auferidos, em 2022, cujo prago de entrega ainda encontra a correr termos na presente data.»
Em suma, o Requerente peticiona:
-
«Que se ordene a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da AT como residente não habitual, com efeitos a partir do ano de 2020, com anulação do ato de indeferimento do pedido que havia formulado nesse sentido; e ainda em consequência,
-
A anulação desse acto administrativo em matéria tributária, assente na anulação dos actos tributários de liquidação de IRS para os anos em crise (…), que geraram os actos liquidatários em crise; e consequentemente,
-
A declaração de ilegalidade e anulação total dos actos de liquidação de IRS de 2020, 2021 e 2022 (…) liquidados pelo Contribuinte;
-
A restituição dos impostos pagos acrescidos dos juros indemnizatórios calculados sobre cada um dos montantes indevidamente pagos, à taxa legal, contados desde a data de pagamento de cada um desses montantes até à data do seu efetivo e integral reembolso, nos termos das disposições conjugadas do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 10.º, n.º 1, alínea a), in fine do RJAT».
2. Da Requerida
No essencial, os argumentos apresentados na Resposta da AT sublinham os seguintes pontos de análise:
A Requerida vem defender-se por exceção, invocando a incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação ao Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais, nos seguintes termos:
«(…) a matéria controvertida nos presentes autos é relativa à não aplicação do regime previsto para os residentes não habituais e, consequentemente, a tributação dos rendimentos do contribuinte à taxa prevista no artigo 72.º do CIRS, não sendo imputado qualquer outro vício às liquidações contestadas. Repita-se nesta sede que, conforme resulta da factualidade aduzida, atenta a causa de pedir subjacente quanto ao recurso hierárquico quer ainda ao presente ppa, (…) manifesto, que está em causa um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual para os anos de 2020, 2021 e 2022, tendo como fundamento a ilegalidade da decisão administrativa, tal como o requerente enuncia várias vezes.
Sendo apenas de forma incidente e consequente que se peticiona a anulação das liquidações de IRS, uma vez que a estas liquidações não se imputa nenhum vício próprio. Em suma, a única causa de pedir subjacente a todos os articulados apresentados pelo Requerente respeita à sua não inscrição como residente não habitual e consequente não aplicação do respetivo regime fiscal de tributação em sede de IRS, pretendendo a correção de tais atos de liquidação por aplicação do regime dos residentes não habituais. Ou seja, sem se apreciar se o Requerente pode ou não estar inscrito como residente não habitual, não há como avançar para a apreciação para a ilegalidade que se imputa aos atos de liquidação de IRS uma vez que decorre tão só de aplicação deste regime de tributação.
Do ppa decorre, inequivocamente, que o Requerente pretende que o Tribunal Arbitral:
1.º Como questão prévia a decidir, ordene a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da AT como residente não habitual com efeitos aos anos de 2020, 2021 e 2022, anulando o ato administrativo de indeferimento do pedido formulado nesse sentido;
2.º E consequentemente, no decurso da anulação daquele ato administrativo em matéria tributária, anule os atos tributários de liquidação de IRS para os anos em causa.
Nas palavras de Sérgio Vasques, in O âmbito material da arbitragem tributária, CJT, Abril/Junho 201: «Nos termos do art. 2.°, nº1, alínea a) são susceptíveis de apreciação pelos tribunais arbitrais os actos de liquidação administrativa, seja ela simples, oficiosa ou adicional, os actos de autoliquidação, os actos de retenção na fonte, trate-se ela de retenção na fonte a título tendencialmente definitivo ou por conta do imposto devido a final, aos actos de pagamento por conta, de pagamento especial por conta ou de pagamento adicional por conta».
Com efeito, de acordo com Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, pág. 105: «(…) mesmo relativamente à impugnação de atos praticados no âmbito de procedimentos tributários, a competência destes tribunais arbitrais restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando de fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.»
Descendo ao caso concreto, O ato de indeferimento do pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual apresentado pelo Requerente é um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
Na verdade, nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data do pedido, o direito a ser tributado como residente não habitual adquiria-se com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da AT; O que pressupõe a prática do ato administrativo correspondente e que é, necessariamente, estranho e independente do ato tributário de liquidação, tendo o Requerente sido notificado da possibilidade de reação desta decisão, através de ação administrativa nos termos do artigo 50º e artigo 58.º/1, al.b) do CPTA.
Sendo, assim, o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de aplicação do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais aos rendimentos auferidos pelo Requerente que qualificam para o regime dos residentes não habituais. Porquanto, como se disse e aqui se repete, se trata de questão tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação invocado.
A incompetência absoluta em razão da matéria configura uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.»
Destaca-se, igualmente, uma outra das exceções que a Requerida considera verificada também no caso: a exceção da caducidade do direito de ação arbitral.
De acordo com esta, «(…) tendo o ppa sido apresentado em 26/12/2022 e, supostamente notificado em 20/04/2022, já se encontra ultrapassado o prazo de três meses, contado a partir dos factos previstos nos números 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. A intempestividade do pedido configura uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º e 278.º, n.º 1, alínea e) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.»
***
Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular, foi constituído em 31-03-2023.
Em 05-04-2023, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 10-05-2023, após solicitação de prorrogação de prazo para o efeito, juntando Processo Administrativo (doravante PA), em 31-05-2023.
Em 12-06-2023, foram notificadas as partes do despacho, de 10-06-2023, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, bem como a apresentação de alegações.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Foram suscitadas pela Requerida as exceções supra descritas que este Tribunal Arbitral passará desde já a conhecer, sempre por referência à matéria de facto dada como provada mais abaixo.
Sem prejuízo da Requerida vir defender-se por exceção, invocando a incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação ao Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais, refira-se que a competência material dos tribunais é de ordem pública, devendo, por conseguinte ser aferida independentemente de vir a ser suscitada.
O seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a sua apreciação previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Em abono da exceção aduzida, a Requerida considera que o Tribunal Arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pela Requerente, porquanto a matéria controvertida nos presentes autos é relativa à não aplicação do regime previsto para os residentes não habituais e, consequentemente, a tributação dos rendimentos do contribuinte à taxa prevista no artigo 72.º do CIRS, não sendo imputado qualquer outro vício às liquidações contestadas.
Com vista à referida apreciação prévia, antecipam-se alguns dos factos considerados provados infra:
Através de pedido efetuado no Portal das Finanças, em 2021-06-22, o contribuinte solicitou a sua inscrição como RNH, com efeitos reportados ao ano de 2006;
Em 20-05-2022, a coberto do registo CTT (RH...PT), o Requerente interpôs recurso hierárquico que visou pôr em crise os fundamentos do indeferimento do seu pedido de inscrição como residente não habitual;
Este foi indeferido por despacho, de 08-09-2022, e notificado à Mandatária do Requerente, em 27-09-2022.
É neste âmbito, apenas, que é invocado por parte do Requerente o vício de falta de fundamentação, não se imputando às liquidações de IRS, propriamente ditas, qualquer vício.
Nota-se desde já que o Requerente não deduziu reclamação graciosa nem recurso hierárquico tendo por objeto as liquidações de IRS supra referidas.
Vejamos:
Seguimos na nossa análise a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional, e dos tribunais superiores, designadamente, do Supremo Tribunal Administrativo que entendem que o ato que indefira o reconhecimento como RNH é atacável contenciosamente através de Ação Administrativa, não sendo uma faculdade, mas um ónus do contribuinte fazê-lo, não podendo efetuá-lo no âmbito da liquidação do tributo.
Concretizando, o reconhecimento da aplicabilidade ao Requerente do regime dos RNH teria de ser efetuada por via de Ação Administrativa Especial e não pela presente via impugnatória arbitral, sustentando-se para o efeito nos acórdãos do STA n.º 034/14 de 2016-05-11, n.º 014/19.7BALSB (uniformizador de jurisprudência) e acórdão do Tribunal Constitucional (doravante TC), com o n.º 718/2017 – naquilo que aqui for aplicável já que o quadro factual que lhe está subjacente não é exatamente idêntico ao dos autos.
Ora, constituindo tal indeferimento um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação, sendo dele independente, deveria o Requerente ter dele reagido através de Ação Administrativa Especial, nos termos do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT.
Ao não fazê-lo, deixou consolidar na ordem jurídico-tributária tal decisão. Com efeito, o Requerente viu expressamente indeferido o pedido de inscrição formulado, podendo retirar-se da ausência de dedução de Ação Administrativa Especial, tal consequência.
Decisões do CAAD aparentemente sobre a mesma matéria (v.g. 782/2021-T e 319/2022-T ), têm como base uma factualidade distinta em que não houve decisão expressa da AT sobre se era ou não de reconhecer o estatuto de RNH, pelo que o Contribuinte não tinha ato tributário de indeferimento do benefício fiscal do qual pudesse recorrer. Naquelas, ao contrário do que foi objeto de pronúncia pelo TC no Acórdão antes mencionado (e onde tinha havido um ato de indeferimento do estatuto de RNH), não se verificou um indeferimento expresso da concessão do estatuto de RNH, sendo que o único ato efetivo da AT foi a liquidação do IRS não considerando o benefício fiscal relativo ao estatuto de RNH.
A competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial. Como se decidiu na decisão arbitral proferida no processo n.º 262/2018-T 1, «é à face do pedido ou conjunto de pedidos que formulou o autor que se afere a adequação das formas de processo especiais, designadamente o processo arbitral.»
O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), que concretizou a autorização legislativa e instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no artigo 2.º do RJAT, expressamente consignou como competência dos tribunais arbitrais a pretensão relativa à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.»
A competência dos tribunais arbitrais prevista no RJAT é taxativa, razão pela qual o mesmo é competente para decidir questões relacionadas apenas com a ilegalidade dos atos acima enunciados.
Mas conforme ensina o Juiz-Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, entendimento que acompanhamos, «Embora na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT apenas se faça a referência explícita a competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações».
Não é contudo o caso dos autos, porquanto o Requerente não deduziu reclamação graciosa nem recurso hierárquico tendo por objeto as liquidações de IRS, como se assinalou supra.
Na verdade, não se identifica a imputação de vícios próprios às liquidações de IRS em análise, como foi igualmente explicado.
Em face da matéria de facto subjacente e dada como provada e do respetivo direito aplicável, e retirando consequências de tudo o que ficou dito, considera-se pois que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o peticionado no PPA.
A incompetência absoluta em razão da matéria consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conduzindo à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.
Concluindo-se pela procedência da exceção de incompetência material suscitada pela AT, fica por consequência prejudicado, por inútil, o conhecimento das restantes exceções invocadas pela Requerida.
III. MATÉRIA DE FACTO
1. Factos provados:
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
Através de pedido efetuado no Portal das Finanças em 2021-06-22, o contribuinte solicitou a sua inscrição como RNH, com efeitos reportados ao ano de 2006.
Através do ID:IRN... foi o contribuinte notificado do projeto de decisão de indeferimento do pedido e para exercer, querendo, o direito de audição, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT), no essencial com o seguinte fundamento:
- O contribuinte estava registado no cadastro da AT (SGRC) como residente em território português nos anos de 2019 e 2020.
O contribuinte exerceu o direito de audição no prazo estabelecido.
Em 20-05-2022, a coberto de registo CTT (RH...PT), o Requerente enviou aos Serviços de Registo de Contribuintes um recurso hierárquico, que visou pôr em crise os fundamentos do indeferimento do seu pedido de inscrição como residente não habitual.
Ao recurso hierárquico foi atribuído o n.º ...2022... .
Este foi indeferido por despacho, de 08-09-2022, e notificado à Mandatária do Requerente, em 27-09-2022, com fundamento em falta de prova de residência em território Suíço, referente os anos de 2019 e 2020.
Consta do PA cópia de documento de autorização de residência na Suíça, cópia da Modelo B apresentada no Serviço de Finanças de Vila Real, em 06-07-2021, e tradução certificada de declaração de baixa de residência, emitido pelo Serviço de Residentes de ..., Suíça, em 02-04-2019, em que essa entidade atesta que o contribuinte, em 01-05-2006, «mudou de Portugal para a Suíça, e em 2019-04-30, mudou-se para Vila Real, Portugal», estando documentalmente provado que o mesmo residia na Suíça até esta data.
Foram emitidas notas de liquidação de IRS com respeito ao ano de 2019, no valor de € 6.276,29, ao ano de 2020, no valor de € 7.346,30, e ao ano de 2021, no valor de € 7.865,49.
O Requerente procedeu ao pagamento do IRS na sequência de tais liquidações, no valor total de € 21.478,08.
2. Factos não provados:
Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que não tenham ficado provados.
3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).
Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
V. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Singular:
a) Julgar procedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela AT;
b) Declarar a absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT;
c) De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € € 21.478,08 (vinte e um mil, quatrocentos e setenta e oito mil e oito cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada;
c) Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, imputáveis à Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de setembro de 2023
A Árbitra
/Alexandra Iglésias/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.