SUMÁRIO
I - O exercício do direito do contraditório mediante a audiência do interessado no decurso do procedimento destina-se a permitir a efetiva participação do contribuinte na formação da decisão.
II - A não identificação, no relatório de inspeção tributária, de entidades terceiras que contrataram com um fornecedor do contribuinte, cujas atividades e operações foram determinantes para as correções de IVA e IRC efetuadas na esfera jurídica do contribuinte, inviabilizam a sua efetiva participação e influência na formação da decisão da AT, quer no plano argumentativo, quer através da apresentação de novos elementos de facto. Tal omissão / não identificação representa uma violação do princípio da participação no procedimento tributário.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (presidente), Dr. Gonçalo Estanque (relator) e Professor Doutor Júlio Tormenta, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23-05-2023, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., LDA, NIPC ..., com sede na Rua ..., ...-... Felgueiras (“Requerente”), veio, em 10-03-2023, na sequência do indeferimento expresso das reclamações graciosas com os n.os ...2022... e ...2022..., apresentadas, respetivamente, contra os atos tributários de liquidação de IRC e de IVA, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) com vista a:
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ser decretada a anulação dos atos de liquidação de IRC e IVA e juros compensatórios sequentes às correções determinadas no RIT, por vício de forma insanável;
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Subsidiariamente, decretar-se a anulação dos atos de liquidação de IRC e IVA e juros compensatórios sequentes às correções determinadas no RIT, por erro nos pressupostos de facto e de direito da tributação.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 13-03-2023 e automaticamente notificado à Requerida.
Em 05-05-2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, os quais comunicaram a respetiva aceitação no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 23-05-2023.
A AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 03-07-2023 foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações. Adicionalmente, decidiu o Tribunal Arbitral não proceder, de imediato, à inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente e, isso sim, proferir uma decisão parcial sobre os vícios de forma, conforme permite o art. 22.º, n.º 1, do RJAT. A inquirição das testemunhas arroladas apenas teria lugar se tais vícios fossem julgados improcedentes.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
II. MATÉRIA DE FACTO
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FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
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Por determinação das ordens de serviço n.os OI2021... e OI2021... a AT procedeu a ação inspetiva ao IRC e IVA dos anos de 2017 e 2018 (cfr. Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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A referida ação inspetiva foi solicitada pela AT com objetivo de “cruzar a faturação emitida B... para o sujeito passivo [ora Requerente] subjacente à subcontratação efetuada junto de A, B e C, uma vez que estes negócios foram considerados simulados e, consequentemente, toda a cadeia de faturação a jusante também corresponde a negócios simulados” (pág. 37 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente).
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A AT concluiu, em sede de ação inspetiva, que: “o SP contabilizou faturas emitidas pela B... nos montantes de €134.217,00 e €159.517,47, respetivamente, em 2017 e 2018; com exceção da fatura n.º 1/1066 emitida pela B..., todas as faturas emitidas pela mesma estão correlacionadas com as faturas emitidas por A, B e C, que, por sua vez, estão correlacionadas com a subcontratação que estas efetuaram junto de A1, A3, A4 e A (no caso da Sociedade B)” (pág. 44 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente).
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Prossegue a AT que “no SP, enquanto utilizador das faturas emitidas pela B..., verifica-se a falta de requisitos na comprovação das operações de subcontratação bem como de diversas incoerências, nomeadamente:
● ausência de correspondência trocada entre o SP e o seu fornecedor B..., como e-mails e contratos, uma vez que não se mostra viável que, encomenda de um serviço prestado com aplicação de materiais fornecidos pelo SP, não tenha sido exibido um qualquer suporte documental de detalhe e de especificidade do trabalho a realizar;
● a faturação e entrega do produto final, pelo SP, aos seus clientes é anterior à data de faturação e entrega, da subcontratada B..., conforme consta no ponto III.1.2.2.2;
● Falta de correspondência entre as referências dos artigos mencionados na fatura emitida pela B... e a emitida pelo SP ao seu cliente, conforme consta no ponto III.1.2.2.2;
● Divergência entre o serviço faturado “Montagem” pela B... e as matérias primas remetidas pelo SP necessárias à execução do mesmo. Deste modo foram apurados fortes indícios que as faturas emitidas pela B..., com exceção da fatura n.º 1/680, e contabilizadas pelo SP correspondem a negócios simulados” (pág. 44 e 45 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente).
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Concluiu, assim, a AT que “o IVA foi deduzido indevidamente pelo SP nos montantes de €25.097,50 e €28.295,29, respetivamente, para 2017 e 2018”
(pág. 45 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente).
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Para efeitos de IRC, concluiu a AT que “pelo facto das operações serem consideradas simuladas, o gasto contabilizado no montante de €109.119,50 e €123.023,00, respetivamente, em 2017 e 2018, não é aceite fiscalmente, nos termos do art.º 23.º do CIRC” (pág. 45 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente).
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A Requerente não aceitou as conclusões do Projeto Relatório de Inspeção Tributária e exerceu Direito de Audição Prévia onde invocou o seguinte:
(cfr. pág. 50 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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A AT concluiu que “no DA o SP nada de novo trouxe quanto aos elementos probatórios” (cfr. pág. 51 do Relatório Final de Inspeção junto ao PPA pela Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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Na sequência da conclusão da ação inspetiva a AT emitiu os seguintes atos tributários de liquidação de IRC e juros compensatórios e de mora, nos seguintes valores:
● €29.571,64 (IRC 2017 - Demonstração de Acertos de Contas n.º 2022...)
● €32.327,23 (IRC 2018 - Demonstração de Acertos de Contas n.º 2022...)
(Demonstrações de acertos de contas relativos ao IRC de 2017 e 2018, juntos aos PPA pela Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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A AT emitiu, igualmente, atos de tributários de liquidação de IVA com os seguintes valores a pagar:
(fls. 2 e 3 do Pedido de Pronúncia Arbitral apresentado pela Requerente não contestados pela Requerida).
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Em 28/09/2022 a Requerente apresentou Reclamação Graciosa contra as referidas liquidações de IVA (cfr. Reclamação Graciosa apresentada cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
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Em 06/10/2022, a Requerente apresentou, também, Reclamação Graciosa contra as referidas liquidações de IRC relativas aos exercícios de 2017 e 2018.
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Em ambas as reclamações graciosas, entre outros, a Requerente invoca que a “a AT apoia-se nas conclusões vertidas noutros Relatórios, de outras ações inspetivas, cujos destinatário, ou destinatários a reclamante desconhece, pois com eles não teve qualquer relação comercial ou outra, pelo que de igual forma desconhece o seu conteúdo, pois não lhe foi dado a conhecer na sua plenitude” (cfr. Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente e Projeto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
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A AT, em 11/11/2022 e 28/11/2022, notificou a Requerente dos projetos de decisão de indeferimento das Reclamações Graciosas apresentadas contra as liquidações de IVA e de IRC e para que esta, querendo, exercesse direito de audição prévia. (cfr. Projetos de decisão de indeferimento das Reclamações Graciosas juntos ao processo administrativo e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos).
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A Requerente exerceu os respectivos direitos de audição prévia (cfr. Direitos de audição prévia exercidos pela Requerente juntos ao processo administrativo e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos).
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Em 02/12/2022 foi proferido despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações de IRC (cfr. Decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e junto ao processo administrativo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
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Através de despacho datado de 07/12/2022 foi proferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações de IVA (cfr. Decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e junto ao processo administrativo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, relativamente à prova produzida, o princípio da livre apreciação.
Os factos elencados supra foram dados como provados e não provados com base nas posições assumidas pelas partes e nos documentos juntos ao PPA.
Quanto aos valores das liquidações de IRC, embora os valores a pagar indicados nas demonstrações de acerto de contas sejam de € 27.769,98 quanto a 2017, e € 30.697,44, quanto a 2018, verifica-se por aquelas demonstrações que os valores a pagar foram calculados com dedução de estornos de liquidações anteriores, nos montantes de € 1.801,66 e € 1.629,79, respectivamente, pelos que os valores de IRC e juros liquidados serão os de € 29.571,64 e € 32.327,23, indicados pela Requerente sem contestação da AT.
III. MATÉRIA DE DIREITO
No presente processo arbitral estão em causa correções ao IVA e ao IRC, referentes aos anos de 2017 e 2018, com fundamento na existência de operações simuladas na cadeia de faturação de serviços estabelecida a montante da relação comercial estabelecida entre a Requerente e um dos seus fornecedores de serviços (a B...).
A Requerente, em primeiro lugar, invoca vício de violação do princípio do contraditório, pelo que, proceder-se-á ao conhecimento desse vício, só tomando conhecimento dos restantes vícios em caso de improcedência daquele vício (art. 124.º, n.º 2, alínea b) do CPPT). Vejamos:
Em sede de ação inspetiva da AT à Requerente, bem como em todo o procedimento tributário (i.e. projeto de indeferimento das reclamações graciosas e decisões finais de indeferimento), a AT nunca refere quem são as entidades envolvidas na realização de operações simuladas com a B... . A AT limita-se, isso sim, a mencionar tais entidades através de letras e números (e.g. “A1”, “A2”, “B”, etc.).
De facto, a Requerente sempre invocou em sede de ação inspectiva e procedimento tributário que desconhecia a identidade de tais entidades. Razão pela qual invoca a Requerente que “tal obsta ao exercício cabal do direito de defesa da Requerente, inviabiliza o contraditório pleno, e viola o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo justo, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º da CRP. O direito ao contraditório é um princípio natural de direito administrativo na vertente da participação do interessado nas decisões que lhe dizem respeito, previsto no artigo 60.º da LGT, e emanação do n.º 5 do artigo 267.º da CRP” (artigos 20.º e 21.º do PPA).
Vejamos, pois, se assiste razão à Requerente.
Adiante-se, desde já, que tal questão foi analisada no processo arbitral n.º 162/2022-T e que este Tribunal Arbitral adere integralmente à fundamentação carreada no Acórdão arbitral proferido no âmbito do referido processo. De facto, conforme bem se refere no invocado processo arbitral n.º 162/2022-T:
“O princípio da audiência dos interessados decorre do imperativo constitucional ínsito no artigo 267.º, n.º 5, da Lei Fundamental, que consagra o princípio da participação dos cidadãos na preparação da decisão final e se encontra vertido com carácter geral no artigo 121.º do CPA.
Nos termos do artigo 121.º do CPA, fora dos casos em que haja dispensa de audiência dos interessados que estão elencados no artigo 124.º, “os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”.
O mesmo princípio encontra-se concretizado, no âmbito do procedimento tributário, no artigo 60.º da LGT, que prevê a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, e, designadamente, o direito de audição antes da liquidação, antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, e antes da conclusão do relatório da inspeção tributária (alíneas a), b) e e)). E está igualmente estabelecido no artigo 45.º do CPPT.
Qualquer dessas regras está em sintonia com a garantia constante do artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, que, mediante a exigência de participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas que lhes disserem respeito, pressupõe a sua intervenção no processo de formação das mesmas, ou seja, antes de serem tomadas, nomeadamente através da audição sobre o projeto de decisão (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II vol., 4.ª edição, Coimbra, pág. 814).
(...)
A impossibilidade de a Requerente exercer o direito do contraditório, no âmbito do procedimento inspetivo, quanto às operações tidas como simuladas a montante da relação comercial mantida com a B..., por virtude de se não encontrarem identificadas as entidades envolvidas, representa objetivamente uma violação do princípio da participação no procedimento.
(...)
No caso vertente, as correções tributárias que resultam do Relatório de Inspeção e para que se remete a respetiva fundamentação, baseiam-se em factos diretamente imputáveis ao sujeito passivo e que proveem da averiguação efetuada no âmbito do procedimento inspetivo, e em factos coligidos nesse procedimento a partir dos resultados probatórios alcançados nas ações inspetivas dirigidas à sociedade B... e outras entidades designadas como C…, B…, A… e A1…, que teriam intervindo como entidades subcontratadas num esquema de fraude fiscal mediante a prática de operações simuladas.
(...)
Ora, a não identificação de entidades terceiras cuja atividade terá sido determinante para a própria correção tributária na esfera jurídica da Requerente, inviabilizou que o contribuinte, pudesse participar e influenciar a formação da vontade da Administração, quer no plano meramente argumentativo, quer através da carreação de novos elementos de facto, e, desse modo, impediu que o interessado pudesse pôr em causa a veracidade dos factos que, sendo imputáveis a terceiros, afetam a sua posição jurídica.
O exercício do direito de participação no procedimento inspetivo, caso a Requerente tivesse conhecimento da identidade das entidades coenvolvidas no suposto esquema de faturação falsa, poderia conduzir a uma ampliação da matéria de facto e a uma apreciação mais alargada dos pressupostos substanciais em que se fundamentam os atos tributários.
E importa fazer notar, a este propósito, que as informações prestadas pela inspeção tributária apenas fazem fé quando fundamentadas e baseadas em critérios objetivos, como decorre do disposto nos artigos 76.º, n.º 1, da LGT e 115.º, n.º 2, do CPPT, significando que terão de encontrar-se comprovadas através de elementos indiciários bastantes. E, para além disso, o valor probatório do relatório de inspeção está condicionado pela aplicação do princípio do contraditório, sob pena de direta violação do artigo 20.º, n.º 4, da CRP, que postula um processo judicial tributário equitativo e subordinado a critérios de legalidade e requer plena igualdade de armas entre ambas as partes, como é reconhecido pelo artigo 98.º da LGT (nestes precisos termos, o acórdão do TCA Sul de 26 de junho de 2914, Processo n.º 07841/14).
Na situação do caso, a Requerente não pôde exercer de modo eficiente o direito do contraditório, nem impugnar as asserções que dele constam relativamente a entidades que tenham intervindo a montante na cadeia de faturação, em virtude de a sua identidade não ter sido revelada no relatório de inspeção, o que consubstancia sem margem para dúvidas a violação do princípio vertido nos artigos 60.º da LGT e 45.º do CPPT.” (sublinhado e negrito nossos).
De facto, não se compreende como é que, por um lado, pode a AT invocar que “as sociedades tidas como prestadoras de serviços da cadeia de faturação, a montante da reclamante, não possuem as exigências - fatores produtivos – para se poder admitir que estejam inseridas num qualquer processo produtivo na área da fabricação de calçado, e que por isso as suas operações corresponderam a negócios simulados” (vide, decisões de indeferimento das reclamações graciosas) mas, por outro lado, a AT não identifica tais entidades não permitindo, pois, que a Requerente possa de modo efetivo contradizer tais factos, violando-se o efetivo exercício do seu direito ao contraditório.
É certo que alguns autores, como Rui Duarte Morais, referem a existência de “um breve paralelismo com o que acontece em processo penal [que] mostra bem a conveniência de à fase da investigação propriamente dita (inquérito), dominada pelo princípio da investigação e determinado grau de secretismo, se seguir uma outra fase, submetida ao princípio do contraditório (instrução) na qual o investigado, tendo já acesso pleno aos autos, procurará demonstrar as razões da sua discordância relativamente às conclusões logradas na fase anterior (à acusação), podendo alegar outros factos, requerer a produção de mais prova e/ou invocar razões de direito pelas quais, a seu ver, a acusação não deverá ser mantida ou deverá ser alterada” [1].
Tal fase de instrução, é certo - conforme refere o citado autor -, não existe autonomizada em sede de inspeção tributária. Porém, a verdade é que, por um lado, não se compreende in casu a necessidade de tal “secretismo” (note-se que estamos perante uma ação inspetiva iniciada em 2021 e relativa a factos ocorridos em 2017 e 2018). Por outro lado, mesmo perante essa necessidade de “secretismo”, a verdade é que a Requerente deveria sempre ter tido a possibilidade de, por exemplo, em sede de audição prévia, conhecer a identidade de tais entidades de modo a poder aduzir factos novos que, eventualmente, poderiam conduzir ao apuramento de novos factos ou mesmo à realização de outras diligências por parte da AT.
Termos em que se decide julgar procedente o pedido arbitral e declarar a ilegalidade das liquidações adicionais de IRC e de IVA que vêm impugnadas e as correspondentes liquidações de juros compensatório, referentes aos anos de 2017 e 2018, por violação dos artigos 60.º da LGT e 45.º do CPPT.
Consequentemente fica, também, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Requerente, a título subsidiário.
IV. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
(1) Declarar ilegais e anular os atos tributários de liquidações de IRC e de juros compensatórios e de mora, relativos os anos de 2017 e 2018, nos montantes de € 29.571,64 e de € 32.327,23 e as liquidações de IVA e de juros compensatórios, de 2017 e 2018, nos montantes de € 29.671,21 e de € 30.884,57€.
V. VALOR DA CAUSA
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 120.652,99 indicado no PPA pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
VI. CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT, 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 3.060,00, ficando as mesmas totalmente a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de agosto de 2023
O Presidente do Tribunal Arbitral,
Jorge Lopes de Sousa
O Árbitro Adjunto, relator,
Gonçalo Marquês de Menezes Estanque
O Árbitro Adjunto,
Prof. Doutor Júlio Tormenta
[1] Morais, Rui D. Manual de Procedimento e Processo Tributário. Grupo Almedina (Portugal), 2020, pág. 225.