Sumário: Da letra da lei (artigo 45.º-A do CIRC) resulta a preocupação do legislador de criar uma norma especial que permite a dedução como gasto para efeitos fiscais, do “custo de aquisição, as grandes reparações e beneficiações e as benfeitorias das propriedades de investimento que sejam subsequentemente mensuradas ao justo valor” — o que claramente constitui um regime especial aplicável às propriedades de investimento mensuradas ao justo valor, e não uma remissão para o regime fiscal das depreciações, amortizações e perdas por imparidades em ativos não correntes, ou mesmo para o regime contabilístico.
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DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ..., ..., ..., ...-... ... (doravante, Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, com vista à declaração de ilegalidade do despacho do Diretor de Serviço Central – Unidade dos Grandes Contribuintes (integrante da Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante Requerida ou AT) através do qual indeferiu expressamente a Reclamação Graciosa associada ao Processo n.º ...2022..., interposta contra a liquidação de IRC do ano de 2019, e que tem por objeto mediato o ato de autoliquidação de IRC n.º 2020..., de 2020.07.31 (com Acerto de Contas n.º ..., de 2020.08.31 e nota de reembolso .º 2020 ... de 2020.09.07, de € 1 165 514,65), o qual foi substituído pelo ato de autoliquidação de IRC n.º 2020 ..., de 2020.11.23 (com Acerto de Contas n.º..., de 2022.12.16 e Nota de Reembolso n.º 2020..., de 2020.12.23 de € 502 717,22), sendo objeto dos autos o montante de € 20.919,07, correspondente a derrama municipal e estadual (doravante, Ato Impugnado).
No Pedido de pronuncia Arbitral (doravante, PPA), a Requerente pede que seja “declarado ilegal o indeferimento expresso da Reclamação Graciosa apresentada pela ora Requerente por referência ao período de tributação de 2019, com todas as consequências legais, e, bem assim, a AT condenada, nomeadamente: b) a reembolsar a Requerente no montante global de Euro 20.919,07 (i.e., Euro 14.263,00 relativo à derrama estadual e Euro 6.656,07 referente a derrama municipal, ambas suportadas em excesso pela Requerente); e c) nas custas e demais encargos com o processo, porque ao mesmo deu causa”.
A favor da sua posição, a Requerente apresenta os seguintes argumentos:
1.1) A Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, que veio reforçar o combate às práticas de elisão fiscal por via da transposição da Diretiva (EU) 2016/1164, do Conselho, de 16 de julho, introduziu diversas alterações ao Código do IRC, entre elas, com entrada em vigor no exercício de 2019, alterações às regras de limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento, previstas no artigo 67.º do Código do IRC;
1.2) Por um lado, os GFLs (Gastos de Financiamento Líquidos) relevantes para a determinação do lucro tributável continuam a corresponder ao maior dos limites de Euro 1M ou 30% do EBITDA (fiscal), sendo que, nos casos em que exista um consolidado fiscal (situação da Requerente), o limite em apreço corresponde a Euro 1M (independentemente do número de sociedades pertencentes ao grupo) ou, quando superior, a 30% da soma algébrica dos EBITDAs (fiscais) apurados pelas sociedades que compõem aquele consolidado;
1.3) Recorde-se que, quando aplicado o benefício fiscal relativo à Remuneração Convencional do Capital Social (“RCCS”), conforme se verificou na esfera da B..., o limite de 30% previamente referido é reduzido, passando a fixar-se em 25%, nos termos do n.º 5 do artigo 41.º-A do EBF;
1.4) Por outro, o EBITDA relevante para efeito daquele regime passou a corresponder “ao lucro tributável ou prejuízo fiscal sujeito e não isento, adicionado dos gastos de financiamento líquidos e das depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”, conforme decorre do n.º 13 do artigo 67.º do Código do IRC;
1.5) Ora, conforme previamente referido, a B... detém um conjunto de propriedades de investimento cuja mensuração subsequente é efetuada pelo justo valor, não sendo, como tal, objeto de depreciação contabilística; Não obstante, a B... tem vindo a realizar um ajustamento extracontabilístico (dedução) na respetiva DM22 do IRC decorrente da aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC;
1.6) Com efeito, o referido ajustamento efetuado pela B...(i.e., dedução no Q07 da DM22 do IRC), decorrente da aplicação daquele regime, permite a esta entidade refletir a imputação da depreciação que seria fiscalmente aceite caso as referidas propriedades de investimento permanecessem reconhecidas ao seu custo de aquisição (e não fossem objeto de mensuração subsequente ao justo valor);
1.7) De notar que com o regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor, que consta no n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC, o legislador procurou contrariar uma potencial situação de discriminação, em sede de IRC, em que as empresas seriam colocadas em função da adoção (ou não) de um procedimento contabilístico (ou seja, mensuração subsequente de acordo com o modelo do justo valor vs. de acordo com o modelo do custo);
1.8) Assim, e tendo em conta que as empresas que optassem pela mensuração subsequente daqueles ativos pelo modelo do custo teriam a possibilidade de reconhecer contabilisticamente o respetivo gasto ao longo do tempo, por via das respetivas depreciações contabilísticas, o legislador colocou em situação de paridade, para efeitos fiscais, as empresas que, ao optarem pelo modelo do justo valor, não teriam a possibilidade de o fazer (i.e., dar relevância fiscal àquele custo), permitindo-lhes também o reconhecimento do gasto ao longo do tempo, por via de uma depreciação fiscal;
1.9) Adicionalmente, importa salientar que a aplicação prática do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor carece da aferição de uma “quota mínima de depreciação”, uma vez que, ao abrigo deste regime, o custo de aquisição (e similares) das propriedades de investimento é aceite, em partes iguais, durante “o período de vida útil que se deduz da quota mínima de depreciação que seria fiscalmente aceite” caso o ativo permanecesse reconhecido ao custo de aquisição;
1.10) Por sua vez, a aferição daquela “quota mínima de depreciação” só será possível mediante a utilização do disposto no Decreto Regulamentar n.º 25/2009, que estabelece o regime das depreciações e amortizações para efeitos do IRC;
1.11) Constata-se, então, que o apuramento do ajustamento decorrente do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor carece, por um lado, da aferição do custo de aquisição de um imóvel, e, por outro, da aferição de uma “quota mínima de depreciação”, determinada com base no Decreto Regulamentar n.º 25/2009. O ajustamento em apreço corresponderá, assim, ao produto daquela quota de depreciação sobre o aludido custo de aquisição do imóvel;
1.12) Neste contexto, poder-se-á apenas concluir que o ajustamento que decorre do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor corresponde a uma depreciação ou amortização de facto, ainda que de natureza fiscal, por oposição a uma depreciação ou amortização clássica, ou seja, de natureza contabilística e fiscal; Recorde-se que também a própria AT, no âmbito do respetivo Projeto de Decisão de Reclamação Graciosa se referiu àquele ajustamento, vezes sem conta, enquanto depreciação fiscal. De facto, apenas no âmbito da respetiva Decisão final, após a Requerente exercer a Audição Prévia, a AT se absteve de atribuir tal denominação àquele ajustamento (substituindo-a por “deperecimento”), uma vez que, apenas nesse momento, se apercebeu que admitir aquela denominação seria ir ao encontro às pretensões da Requerente, o que não deixa de ser algo lamentável; Ademais, a AT procurou sustentar a sua posição, de grosso modo, apenas com base no argumento de que juridicamente a denominação atribuída ao aludido ajustamento era distinta de “depreciação fiscal”, representando sim um gasto fiscal ordinário;
1.13) Ora, um gasto fiscal cujo propósito, forma de apuramento, comportamento e vantagem fiscal, em substância, replica uma depreciação fiscal, como a AT reconhece (quer no Projeto de Decisão de Reclamação Graciosa, quer na respetiva Decisão Final), não poderá, em substância, qualificar de qualquer outra forma que não como uma verdadeira depreciação fiscal, qualquer que seja a forma ou denominação jurídica que se lhe atribua;
1.14) Num cenário meramente académico em que a tal não se atendesse, estar-se-ia, desde logo, a violar princípios basilares do nosso ordenamento jurídico-tributário, como o princípio da substância sobre a forma, uma vez que se aquele ajustamento em tudo replica uma depreciação fiscal, o efeito que se lhe atribui, nomeadamente para determinação do EBITDA fiscal, também não poderá ser distinto;
1.15) Neste contexto, a depreciação fiscal que decorre do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor (n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC), terá, também, de ser considerado ainda para efeito da determinação do EBITDA fiscal previsto no artigo 67.º do Código do IRC;
1.16) De facto, a introdução de um verdadeiro conceito de EBITDA fiscal a partir do exercício de 2019 (em detrimento do anterior EBITDA contabilístico ajustado para efeitos fiscais), que passa a ter por base o resultado fiscal apurado pelas sociedades, veio também considerar implicitamente admissível a relevância de um ajustamento extracontabilístico para efeito do apuramento daquele EBITDA, nomeadamente, o ajustamento decorrente do artigo 45.º-A, n.º 2 do Código do IRC;
1.17) Este entendimento deveria, à partida, ser de corroboração pacífica (nomeadamente, por parte da AT), em particular, considerando o disposto na resposta da AT ao Pedido de Informação Vinculativa n.º 17168 (vide Documento n.º 11), no qual, recorde-se, a AT refere que “para o cálculo do EBITDA fiscal concorrem todos os gastos fiscalmente dedutíveis, com exceção dos relativos a GFL e a depreciações e amortizações”;
1.18) Ora, tratando-se de uma depreciação (fiscal) dedutível em sede de IRC, o ajustamento extracontabilístico (dedução) efetuado pela B... na respetiva DM22 do IRC, decorrente do regime previsto no n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC, irá impactar o EBITDA fiscal, dado que aquele valor terá de ser expurgado do valor que subjaz ao respetivo apuramento (i.e., lucro ou prejuízo fiscal), mediante a respetiva adição (por forma a anular a prévia dedução ao Q07 da DM22 do IRC);
1.19) Assim, o ajustamento (dedução) decorrente do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor, efetuado pela B... na respetiva DM22 do IRC, no montante de Euro 1.901.734,37, deverá incrementar o respetivo EBITDA fiscal, e em igual montante, permitindo a absorção adicional de GFLs no valor de Euro 475.433,59 (i.e., Euro 1.901.734,37 x 25%), nos termos do n.º 5 do artigo 67.º do Código do IRC e n.º 5 do artigo 41.º-A do EBF;
1.20) A redução descrita no lucro tributável apurado pela B... no exercício de 2019 (i.e., Euro 475.433,59) resultará, conforme inicialmente descrito, numa redução na derrama estadual apurada pela sociedade no montante de Euro 14.263,00 (i.e., 3% x Euro 475.433,59), bem como da derrama municipal, neste caso, no montante de Euro 6.656,07 (i.e., 1,40% x Euro 475.433,59); De salientar que o impacto financeiro na esfera do consolidado fiscal dominado pela Requerente consubstanciar-se-á apenas nos impactos (reduções) já descritos ao nível da derrama estadual e derrama municipal apuradas pela B..., nos montantes de Euro 14.263,00 e Euro 6.656,07, respetivamente;
1.21) Em face do exposto, e em face dos demais elementos e evidência prestados pela Requerente, não deverá subsistir qualquer impedimento a que se assegure a correta e adequada correção do lucro tributável apurado pela B... no exercício de 2019, por força da cristalização da depreciação fiscal decorrente do regime previsto no n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC na determinação do EBITDA fiscal da sociedade e, consequentemente, no cálculo dos GFLs dedutíveis para efeito da determinação do respetivo lucro tributável, o que pressupõe a reposição, em favor da Requerente, dos montantes de derrama municipal e derrama estadual apurados e pagos em excesso;
2. O PPA foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 12 de dezembro de 2022 e foi automaticamente notificado à Requerida;
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 31 de janeiro de 2023, ao abrigo do disposto no artigo 6.º n.º 2 alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável;
4. Ainda em 31 de janeiro de 2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD;
5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 20 de fevereiro de 2023;
6. Ainda em 20 de fevereiro de 2023, o Tribunal proferiu despacho nos termos do disposto no artigo 17.º n.ºs 1 e 2 do RJAT a ordenar a notificação do dirigente máximo da Administração Tributária para apresentar Resposta (no prazo de 30 dias) e, caso queira, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando que deve ser remetido ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo dentro do mesmo prazo;
7. Em 27 de março de 2023, a Requerida veio apresentar Resposta e juntar aos autos o processo administrativo. Na sua Resposta, a Requerida alega:
7.1) “Analisada a petição da Requerente retira-se estar em causa saber se na definição de “resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos”, estatuída no n.º 13 do artigo 67º do CIRC (artigo que dispõe sobre a limitação à dedutibilidade fiscal dos gastos de financiamento), a qual segundo a norma “corresponde ao lucro tributável ou prejuízo fiscal sujeito e não isento, adicionado dos gastos de financiamento líquidos e das depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”, estão compreendidos ou não, por assimilação na noção de “depreciações e amortizações”, os “gastos para efeitos fiscais [referentes a propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor] (…) que se deduz da quota mínima de depreciação que seria fiscalmente aceite caso esse ativo”;
7.2) “Com efeito, o disposto no n.º 2 do artigo 45º - A do CIRC decorre da proposta da comissão para a reforma do IRC-2013, no âmbito de uma melhor articulação entre regras contabilísticas e regras fiscais e no desiderato de potenciar um maior investimento por parte dos agentes económicos;” “A Referência a gastos fiscais relacionados com propriedades de investimento subsequentemente mensurados pelo modelo do justo surge no relatório da Comissão no contexto da proposta de revisão do artigo 22º do CIRC, efetuada no desiderato de clarificação do tratamento fiscal a conferir aos subsídios para aquisição de ativos intangíveis sem vida útil definida, propriedades de investimento e ativos biológicos não consumíveis”;
7.3) “Sendo o anterior, afigura-se poder retirar-se que houve intenção por parte da Comissão, acolhida pelo legislador, de efetuar a integração fiscal do custo dos bens “Ativos intangíveis, propriedades de investimento e ativos biológicos não consumíveis”, ao longo de vários períodos e não apenas no período da sua eventual alienação (por via do apuramento de mais ou menos valias fiscais), independentemente de os mesmos estarem ou não sujeitos a depreciação contabilística e fiscal, numa lógica de balanceamento com os eventuais rendimentos originados pelos mesmos e de estimulo ao contínuo investimento”;
7.4) “Parece-nos que não se trata propriamente de reconhecer fiscalmente uma amortização ou uma reintegração destes bens, desde logo porquanto não encontram respaldo nas normas contabilísticas (recorde-se que o cálculo do lucro tributável assenta maioritariamente no lucro contabilístico),”; Exemplo disto é o acolhimento fiscal de um custo relativamente aos ativos intangíveis sem vida definida para os quais o normativo contabilístico não prevê qualquer amortização (vide § 107 da NCRF 6) e também o caso das propriedades de investimento com mensuração subsequente pelo modelo do justo valor, para os quais, igualmente o normativo contabilístico não prevê depreciações, sendo os ajustamentos resultantes das alterações do justo valor reconhecidos em resultados. Trata-se antes, como se disse, de uma opção de política fiscal de permitir que a entidade possa reconhecer mais cedo um gasto, seja para balanceamento com eventuais rendimentos gerados pelo bem em causa, seja para efeitos de estímulo a continuo investimento, numa base aproximada a uma lógica de especialização de exercícios”;
7.5) “Mas, posto o anterior, importa notar que o artigo 67º do CIRC é, em primeira análise, a transposição da diretiva ATAD e esta no seu texto - e nomeadamente no texto conferido ao n.º 2 do seu artigo 4º, o qual motivou a redação do n.º 13 do artigo 67º do CIRC aqui em referência – reporta-se apenas a depreciações e amortizações; não prevê qualquer assunção de gastos fiscais que não são verdadeiras/substantivamente amortizações ou depreciações do bem ativo mas antes para efeitos de acomodação de realidades fiscais de carater mais doméstico como aparenta ser este caso cuja figura do gasto fiscal surge para um certo estimulo ao investimento e afastamento de potenciais práticas manipulação fiscal (práticas que o modelo de revalorização pelo justo valor pode potenciar. Recorde-se que cfr. § 38º da NCRF 11 «O justo valor da propriedade de investimento é o preço pelo qual a propriedade poderia ser trocada entre partes conhecedoras e dispostas a isso numa transação em que não exista relacionamento entre as mesmas (…). O justo valor exclui especificamente um preço estimado inflacionado ou deflacionado por condições ou circunstâncias especiais tais como financiamento atípico, acordos de venda e relocação, considerações especiais ou concessões dadas por alguém associado à venda», sendo que cfr. §. 51º da NCRF 11, «o justo valor reflete o conhecimento e as estimativas de compradores e vendedores conhecedores e dispostos a isso»)”; “Afigura-se, assim, que em rigor o gasto fiscal previsto, não obstante socorrendo-se para a mecânica do seu cálculo de alguns parâmetros presentes no cálculo das depreciações (como seja a noção de vida útil do bem), não integra a noção de depreciação fiscal, desde logo, porquanto não tem aderência a uma depreciação ou amortização contabilística”;
7.6) “E como já assinalou a UGC na decisão da Reclamação Graciosa aqui subjacente, o legislador refere-se a estas componentes que passam a concorrer para o cálculo da matéria coletável como “gasto para efeitos fiscais”, não fazendo qualquer alusão a depreciações ou amortizações, A que acresce que as disposições contidas no artigo 45º-A do CIRC foram integradas pelo Legislador na “Subsecção V – Regime de Outros Encargos” e não na “Subsecção III -Depreciações, amortizações e perdas por imparidades em ativos não correntes”, o que evidência não se tratarem de gastos com a mesma natureza”;
7.7) “Aqui chegados, será de relembrar o disposto no artigo 9.º do Código Civil referente à interpretarão da lei (aplicável por via do disposto no artigo 2º da LGT) que estabelece que a interpretação das normas «não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, Acrescendo que não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso e que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”; “Ora, nesta senda, não tendo o legislador efetuado, em momento algum, qualquer alusão a estes gastos fiscais como amortizações ou depreciações e atento o contexto e o objetivo com que o artigo 45º-A foi introduzido no CIRC, assim como o artigo 67º do mesmo código, não parece poder extrair-se do mesmo a interpretação que a Requerente pretende, i.e. que os gastos fiscais previstos no artigo 45º-A, n.º 2 do CIRC correspondem a reintegrações (depreciações) fiscais e que estão contidos na definição de “resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos “ expressa no n.º 13 do artigo 67º do CIRC”;
7.8) “Relativamente à menção da Requerente no sentido de o facto do cálculo das mais ou menos valias resultantes da alienação das propriedades de investimento, integrar, como previsto no n.º 2 do artigo 46º do CIRC, os valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45º-A do CIRC, querer significar que o legislador deu a tais gastos a mesma relevância que às depreciações fiscais; Será de referir afigurar-se que tal não decorre de o legislador ter este gasto fiscal como uma depreciação fiscal, mas antes do facto de a assim não ser estas parcelas do custo de aquisição do bem alienado acabarem por relevar fiscalmente duas vezes (a deduzir ao resultado tributável), o que não seria admissível: relevariam uma primeira vez nos sucessivos períodos tributários em que o custo de aquisição vem sendo aceite, parcelarmente, como gasto fiscal, nos termos do mencionado n.º 2 do artigo 45º-A do CIRC e relevariam uma segunda vez aquando da dedução do valor de aquisição do bem ao seu valor de realização”;
7.9) “Sem conceder no anterior, importa referir que se outro entendimento sobrevier e que julgue que os gastos fiscais previstos no n.º 2 do artigo 45º-A do CIRC, relativo a propriedades de investimento, devem concorrer para a determinação do “resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos” definido no n.º 13º do artigo 67º do CIRC, antes de decidir qualquer eventual correção à autoliquidação da Requerente sempre será de sindicar a correção dos valores indicados que vêm peticionados pela Requerente, quer em função da liquidação individual da sociedade de que derivam tais gastos, quer em função da liquidação do grupo fiscal de que é sociedade dominante”.
7.10) “Afigurando-se ser de manter a autoliquidação de IRC aqui em questão, conclui-se pela inexistência de qualquer direito a juros indemnizatórios”. “Registe-se que, no que toca ao valor autoliquidado, ainda que por dever de raciocínio se colocasse a hipótese de anulação do alegado valor em excesso, sobre o pagamento deste valor apenas seria de reconhecer direito a juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada aqui subjacente (momento em que os Serviços presumidamente incorreriam em erro ao dar-se o indeferimento do pedido do contribuinte). Até essa data, tratando-se de um valor autoliquidado, não se perfila a existência de erro imputável aos Serviços”;
8. Em 27 de março de 2023, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:
“Compulsados os autos, o Tribunal constatou que a procuração forense junta aos autos pelo Mandatário subscritor do PPA foi assinada em 27 de outubro de 2015, pelos alegados Administradores Executivos da Sociedade C..., S.A.. Uma vez que: 1) A Requerente é a Sociedade A... S.A.; 2) Do website https://publicacoes.mj.pt/ resulta que em 2020 a Sociedade C... S.A. terá registado a alteração da respetiva Firma para A..., S.A.; e 3) O PPA deu entrada em 2022; Notifique-se a Requerente para juntar aos autos a procuração forense atualizada com ratificação de todo o processado. Regularizada esta situação, será proferido despacho nos termos do artigo 18.º do RJAT”;
9. Em 31 de março de 2023, foi junta aos autos a procuração forense atualizada requerida;
10. Imediatamente em 31 de março de 2023, foi proferido despacho arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, com o seguinte teor:
“O processo não se mostra ser especialmente complexo no plano da tramitação processual, não foram suscitadas exceções (pela Requerida) de que caiba ao Tribunal conhecer preliminarmente, nem há irregularidades a suprir. A matéria de facto relevante para a decisão da causa poderá ser fixada com base na prova documental, tornando-se desnecessária a realização de outras diligências instrutórias.
Assim, e por aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária — RJAT), não havendo outros elementos sobre que as partes devam pronunciar-se, dispensa-se
(i) a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, e
(ii) apresentação de alegações.
Ao abrigo do princípio da colaboração solicita-se às partes a remessa das peças processuais em formato word. Indica-se o dia 2023-08-21 (2ª feira), apesar das férias judiciais, como data previsível para prolação da decisão arbitral, devendo até 10 dias antes dessa data a Requerente pagar a taxa de arbitral subsequente.”;
11. Em 17 de abril de 2023, a Requerente veio juntar aos autos o documento comprovativo de pagamento da taxa subsequente;
12. Em 18 de agosto de 2023, foi proferido despacho arbitral a prorrogar o prazo para que seja proferida decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º n.º 2 do RJAT;
II. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no artigo 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.
A Requerente e a Requerida gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
III. Matéria de Facto
III.1 Factos Provados
O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos pelas partes e não impugnados, considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
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A 31 de dezembro de 2019, a ora Requerente era (e ainda é) a sociedade dominante de um perímetro de entidades tributadas ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”);
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Na qualidade de sociedade dominante, a ora Requerente submeteu, por referência ao período de tributação de 2019, a declaração de rendimentos Modelo 22 (“DM22”) do IRC respeitante ao aludido consolidado fiscal, uma vez que, nos termos do artigo 115.º do Código do IRC, recai sobre a sociedade dominante a responsabilidade pelo pagamento do IRC (e, naturalmente, a prévia entrega da DM22 do IRC do Grupo), sendo as demais entidades do consolidado fiscal solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto;
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Neste contexto, a Requerente procedeu à submissão da DM22 do IRC do consolidado fiscal que domina, por referência ao período de tributação de 2019, no dia 31 de julho de 2020;
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Não obstante, a Requerente viria a proceder, no dia 23 de novembro de 2020, à submissão da DM22 do IRC de substituição, com a identificação n.º ..., respeitante ao perímetro fiscal do Grupo D...;
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O resultado fiscal do aludido consolidado, no montante de Euro 40.979.200,98, foi determinado através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas DM22 do IRC individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao consolidado fiscal à data e, bem assim, mediante o impacto do ajustamento decorrente do regime de consolidação dos encargos financeiros, pelo qual a Requerente, enquanto sociedade dominante do consolidado fiscal em apreço, havia já optado;
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Entre as sociedades que no período de tributação de 2019 integravam o consolidado fiscal dominado pela Requerente, constava, nomeadamente, a E..., S.A. (à data, denominada B..., S.A.), com sede no município de Oeiras (doravante abreviadamente designada por “B...”);
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A B... procedeu à submissão atempada da respetiva DM22 do IRC referente ao exercício de 2019, a qual viria, no entanto, a ser objeto de substituição, nomeadamente, no dia 18 de novembro de 2020 (última versão submetida), sendo-lhe atribuída a identificação n.º ...-...-...;
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No âmbito daquela declaração, a B... reportou a aplicação do benefício fiscal relativo à Remuneração Convencional do Capital Social (“RCCS”), previsto no artigo 41.º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”);
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Ainda no âmbito da DM22 do IRC referente ao exercício de 2019, a B... reportou um lucro tributável no montante de Euro 5.929.659,11, para o qual contribuíram, ainda, os seguintes ajustamentos:
- Acréscimo no campo 748, referente a encargos financeiros não dedutíveis nos termos do artigo 67.º do Código do IRC, no montante de Euro 5.234.179,98; e
- Dedução de Euro 1.942.402,37 no campo 775 (outras deduções), que inclui, essencialmente, um ajustamento no montante de Euro 1.901.743,37 decorrente da aplicação do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor, nos termos do n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC;
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De salientar que no exercício de 2019, a contabilidade da B... não espelhava quaisquer gastos com depreciações ou amortizações, pelo que, naturalmente, a formação do lucro tributável da B... não foi afetada por aquela rubrica contabilística;
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Adicionalmente, cumpre referir que, no exercício de 2019, a B... apurou derrama municipal no montante de Euro 83.015,23 (em função da respetiva taxa de 1,40% à data aplicável ao município de ...) e derrama estadual no montante de Euro 132.889,77, montantes que foram imputados na DM22 do IRC do consolidado fiscal em apreço, entregue pela Requerente, também responsável por proceder à liquidação e pagamento daqueles montantes;
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Não obstante, no âmbito de uma revisão interna de procedimentos, concluiu a ora Requerente que haviam sido cometidos lapsos no apuramento do lucro tributável da B..., mais precisamente no que concerne ao cálculo dos gastos de financiamento líquidos (“GFLs”) dedutíveis para efeito da determinação do respetivo lucro tributável;
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Conforme referido, no exercício de 2019, a B... realizou um ajustamento (dedução) na respetiva DM22 do IRC no montante de Euro 1.901.734,37, referente a depreciações (dedutíveis) decorrentes da aplicação do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor (n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC). Contudo, aquelas depreciações não foram tidas em consideração (i.e., não foram expurgadas) para efeito da determinação do EBITDA (fiscal) da B... relevante para efeito do artigo 67.º do Código do IRC;
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A Requerente apresentou junto da AT (data da abertura do procedimento: 2022-06-27) uma Reclamação Graciosa, por erro na autoliquidação do IRC com o intuito de promover a correção da DM22 do IRC individual da B...referente ao exercício de 2019, nos moldes descritos supra;
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Foi proferido projeto de decisão de indeferimento em 2022.07.26 pelo Chefe de Divisão da Justiça Tributária da UGC, com os fundamentos constantes na informação n.º ...AIR3/2022 daquela UGC para a qual se remete, o qual sinteticamente se baseia nos seguintes argumentos:
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Em 31 de agosto de 2022, a Requerente exerceu junto da Direção de Finanças de Lisboa (..., N.º ..., ...-... Lisboa), o direito de audição prévia;
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Por despacho de 2022.09.05 do Chefe de Divisão da UGC, foi proferida Decisão Final de Indeferimento da referida Reclamação Graciosa, tendo a AT remetido na sua Decisão para as conclusões de facto e de Direito constantes do Projeto de Decisão:
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Em 7 de dezembro de 2022, a Requerente submeteu o presente PPA junto do CAAD.
III.2 Factos não Provados
Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.
III.3 Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.
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DA APRECIAÇÃO JURÍDICA
Conforme a AT refere na sua Resposta, coloca-se nos presentes autos a questão de “saber se na definição de “resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos”, estatuída no n.º 13 do artigo 67º do CIRC (artigo que dispõe sobre a limitação à dedutibilidade fiscal dos gastos de financiamento), a qual segundo a norma “corresponde ao lucro tributável ou prejuízo fiscal sujeito e não isento, adicionado dos gastos de financiamento líquidos e das depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”, estão compreendidos ou não, por assimilação na noção de “depreciações e amortizações”, os “gastos para efeitos fiscais [referentes a propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor] (…) que se deduz da quota mínima de depreciação que seria fiscalmente aceite caso esse ativo”.
A Lei n.º 32/2019, de 03 de Maio (doravante, Lei 32/2019) citada quer pela Requerente quer pela AT, introduziu a seguinte nova redação aos números 12 e 13 do artigo 67.º do CIRC:
“12 - Para efeitos do presente artigo, consideram-se:
a) Gastos de financiamento, os juros de descobertos bancários e de empréstimos obtidos a curto e longo prazos ou quaisquer importâncias devidas ou imputadas à remuneração de capitais alheios, abrangendo, designadamente, pagamentos no âmbito de empréstimos participativos e montantes pagos ao abrigo de mecanismos de financiamento alternativos, incluindo instrumentos financeiros islâmicos, juros de obrigações, abrangendo obrigações convertíveis, obrigações subordinadas e obrigações de cupão zero, e outros títulos assimilados, amortizações de descontos ou de prémios relacionados com empréstimos obtidos, amortizações de custos acessórios incorridos em ligação com a obtenção de empréstimos, encargos financeiros relativos a locações financeiras, depreciações ou amortizações de custos de empréstimos obtidos capitalizados no custo de aquisição de elementos do ativo, montantes calculados por referência ao retorno de um financiamento no âmbito das regras em matéria de preços de transferência, montantes de juros nocionais no âmbito de instrumentos derivados ou de mecanismos de cobertura do risco relacionados com empréstimos obtidos, ganhos e perdas cambiais relativos a empréstimos obtidos e instrumentos associados à obtenção de financiamento, bem como comissões de garantia para acordos de financiamento, taxas de negociação e gastos similares relacionados com a obtenção de empréstimos;
b) Gastos de financiamento líquidos, os gastos de financiamento que concorram para a formação do lucro tributável após a dedução, até à respetiva concorrência, do montante dos juros e outros rendimentos de idêntica natureza, sujeitos e não isentos.
13 - Para efeitos do presente artigo, o resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos corresponde ao lucro tributável ou prejuízo fiscal sujeito e não isento, adicionado dos gastos de financiamento líquidos e das depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”.
O sumário da Lei n.º 32/2019 diz-nos que a mesma “Reforça o combate às práticas de elisão fiscal, transpondo a Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 16 de julho”, a qual “estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno”. É latente nos considerandos da Diretiva referida, a preocupação do legislador: “As atuais prioridades políticas em matéria de fiscalidade internacional salientam a necessidade de garantir que o imposto é pago no país onde os lucros e o valor são gerados. É, pois, imperativo restabelecer a confiança na equidade dos sistemas fiscais e permitir que os governos possam exercer eficazmente a sua soberania fiscal” (Considerando 1);
É também latente a preocupação de “estabelecer regras para reforçar o nível médio de proteção contra o planeamento fiscal agressivo no mercado interno” (Considerando 3), “É necessário estabelecer regras contra a erosão das bases tributáveis no mercado interno e a transferência de lucros para fora do mercado interno. A fim de contribuir para a realização desse objetivo, são necessárias regras nos seguintes domínios: limitações à dedutibilidade dos juros, tributação à saída, regra geral antiabuso, regras relativas às sociedades estrangeiras controladas e regras para combater as assimetrias híbridas. Sempre que a aplicação dessas regras dê origem a casos de dupla tributação, os contribuintes deverão beneficiar de um desagravamento através de uma dedução do imposto pago noutro Estado-Membro ou país terceiro, consoante o caso. Assim, as regras não deverão ter por único objetivo combater as práticas de elisão fiscal, mas também evitar a criação de outros obstáculos ao mercado, como a dupla tributação” (Considerando 5).
Para uma correta interpretação do artigo 67.º n.º 13 do CIRC (“13 - Para efeitos do presente artigo, o resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos corresponde ao lucro tributável ou prejuízo fiscal sujeito e não isento, adicionado dos gastos de financiamento líquidos e das depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”), temos de recorrer (i) ao conceito de “gastos de financiamento líquidos” que resulta do próprio artigo 67.º n.º 12 do CIRC, introduzido pela citada Lei n.º 32/2019, e (ii) ao conceito de “depreciações e amortizações que sejam fiscalmente dedutíveis”, o que nos remete para o exposto no artigo 29.º do CIRC, que efetivamente está enquadrado na Subsecção III do CIRC “Depreciações, amortizações e perdas por imparidades em ativos não correntes”.
O artigo 29.º n.º 1 do CIRC prevê que: “1 — São aceites como gastos as depreciações e amortizações de elementos do ativo sujeitos a deperecimento, considerando-se como tais: a) Os ativos fixos tangíveis e os ativos intangíveis; b) Os ativos biológicos não consumíveis e as propriedades de investimento contabilizados ao custo de aquisição”. De acordo com o parágrafo 30 da Norma contabilística e de relato financeiro 11: “Com as excepções indicadas nos parágrafos 32 a 36, uma entidade deve escolher como sua política contabilística ou o modelo do justo valor referido nos parágrafos 35 a 37 ou o modelo do custo mencionado no parágrafo 58 e deve aplicar essa política a todas as suas propriedades de investimento”. Uma vez escolhido o modelo do justo valor na mensuração da propriedade de investimento, o contribuinte não pode fazer relevar fiscalmente eventuais depreciações e amortizações sobre o mesmo bem, e por conseguinte, não poderá também pretender beneficiar da aplicação do no artigo 67.º n.º 13 (parte final) do CIRC.
No caso concreto, está provado que a Requerente detém um conjunto de propriedades de investimento cuja mensuração subsequente é efetuada pelo justo valor, não sendo, como tal, objeto de depreciação (quer contabilística, quer fiscal). Contudo, a Requerente alega que fez um “ajustamento extracontabilístico (dedução) na respetiva DM22 do IRC decorrente da aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 45.º-A do Código do IRC” sobre essas mesmas propriedades de investimento, e pretende que esse designado “ajustamento extracontabilístico” seja enquadrado para efeitos do disposto no artigo 67.º n.º 13 do CIRC como “uma depreciação ou amortização de facto, ainda que de natureza fiscal, por oposição a uma depreciação ou amortização clássica, ou seja, de natureza contabilística e fiscal”.
Ora, o citado artigo 45.º-A do CIRC foi introduzido pela Lei 2/2014, de 16 de Janeiro que procedeu à “reforma da tributação das sociedades, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, o Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, e o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro. República em anexo o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, com a redação atual e demais correções materiais”. Este diploma, que procede à republicação do CIRC, introduz o artigo 45.º-A com a epígrafe “Ativos intangíveis, propriedades de investimento e ativos biológicos não consumíveis”, e enquadra esta norma na Subsecção V do CIRC que tem por epígrafe: “Regime de outros encargos”.
A letra do artigo 45.º-A à data dos factos (alterada pela Lei n.º 71/2018 - 31/12) é a seguinte:
“1 — É aceite como gasto fiscal, em partes iguais, durante os primeiros 20 períodos de tributação após o reconhecimento inicial, o custo de aquisição dos seguintes ativos intangíveis quando reconhecidos autonomamente, nos termos da normalização contabilística, nas contas individuais do sujeito passivo:
a) Elementos da propriedade industrial tais como marcas, alvarás, processos de produção, modelos ou outros direitos assimilados, adquiridos a título oneroso e que não tenham vigência temporal limitada;
b) O goodwill adquirido numa concentração de atividades empresariais.
2 — O custo de aquisição, as grandes reparações e beneficiações e as benfeitorias das propriedades de investimento que sejam subsequentemente mensuradas ao justo valor é aceite como gasto para efeitos fiscais, em partes iguais, durante o período de vida útil que se deduz da quota mínima de depreciação que seria fiscalmente aceite caso esse ativo permanecesse reconhecido ao custo de aquisição.
3 — O custo de aquisição dos ativos biológicos não consumíveis, que sejam subsequentemente mensurados ao justo valor, é aceite como gasto para efeitos fiscais, em partes iguais, durante o período de vida útil que se deduz da quota mínima de depreciação que seria fiscalmente aceite caso esse ativo permanecesse reconhecido ao custo de aquisição.
4 — O disposto no n.º 1 não é aplicável:
a) Aos ativos intangíveis adquiridos no âmbito de operações de fusão, cisão ou entrada de ativos, quando seja aplicado o regime especial previsto no artigo 74.º;
b) Ao goodwill respeitante a participações sociais;
c) Aos ativos intangíveis adquiridos a entidades residentes em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças;
d) Aos ativos intangíveis adquiridos a entidades com as quais existam relações especiais nos termos do n.º 4 do artigo 63.º”.
Da letra da lei resulta a preocupação do legislador de criar uma norma especial que permite a dedução como gasto para efeitos fiscais, do “custo de aquisição, as grandes reparações e beneficiações e as benfeitorias das propriedades de investimento que sejam subsequentemente mensuradas ao justo valor” — o que claramente constitui um regime especial aplicável às propriedades de investimento mensuradas ao justo valor, e não uma remissão para o regime fiscal das depreciações, amortizações e perdas por imparidades em ativos não correntes, ou mesmo para o regime contabilístico.
Nos termos do disposto no artigo 9.º n.º 3 do Código Civil (CC) “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
“O elemento literal constitui o ponto de partida na interpretação de qualquer norma tributária. A lei fiscal faz-se de expressões comuns e terminologia técnica, muitas vezes sem sentido unívoco ou que o possuem apenas no seu núcleo mas são equívocas numa larga periferia, que só expomos ao ensaiar a subsunção. (...)
As normas tributárias raramente têm só uma leitura, portanto, e é comum que a letra da lei fiscal nos ofereça várias interpretações possíveis, entre as quais há que decidir lançando mão dos demais elementos de interpretação. Qualquer que seja a escolha, é certo que a letra da lei não constitui ponto de partida, mas um limite à interpretação, pois não podemos atribuir à lei um sentido que não tenha na sua letra “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, como dispõe o artigo 9.º do Código Civil. Mais do que isso, o artigo 9.º do Código Civil obriga-nos, ao fixar também o sentido e o alcance da lei fiscal, a partir do princípio geral de “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.”
O elemento histórico deve ser mobilizado também na interpretação da lei fiscal. O sentido das normas tributárias só pode compreender-se muitas vezes olhando ao contexto e processo que esteve na sua origem — contemplando os concretos problemas que levaram o legislador a adotar certa solução, as circunstâncias económicas e sociais que rodearam à sua criação.” (in vide Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 1.ª Edição, Setembro de 2011, Edições Almedina, S.A., pp. 363 a 264).
A mesma doutrina resulta de inúmeros outros manuais e jurisprudência que assumem exatamente o mesmo entendimento, vide:
“A respeito da interpretação das normas jurídicas fiscais, é de afirmar a rejeição das teorias específicas que neste domínio têm sido propostas, como as da interpretação literal, a da interpretação económica ou da interpretação funcional. Por isso, é de seguir a orientação no sentido de que as normas jurídicas fiscais se interpretam como quaisquer outras normas jurídicas. Uma orientação que não obsta a que a substância económica dos factos tributários seja tida em conta, naturalmente apenas na exata medida em que a teoria da interpretação a convoque.” In José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 1.ª Edição, Abril de 2000, Edições Almedina S.A., pp. 209 e 210.
“Nos termos do artigo 11.º n.º 1 da LGT, tanto na determinação do sentido das normais fiscais como na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação das leis. Significa isto, desde logo, que se seguem aqui os cânones clássicos de interpretação, como sejam os elementos textual-gramatical, histórico-genético, lógico-sistemático e teleológico-racional. (...) Alguma doutrina tem enfatizado a importância de uma interpretação dinâmica da lei, ou seja, uma interpretação contextual, que atenda à evolução social e legal ocorrida entre a data da criação da lei e o momento da sua interpretação.” (In Jónatas Machado e Paulo Nogueira da Costa, Manual de Direito Fiscal, Perspetiva Multinível, Agosto de 2018, Edições Almedina S.A., pp. 481).
Se, conforme exposto por Sérgio Vasques citado supra, “a letra da lei não constitui ponto de partida, mas um limite à interpretação, pois não podemos atribuir à lei um sentido que não tenha na sua letra “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, como dispõe o artigo 9.º do Código Civil”, temos de concluir que a letra do artigo 45.º-A do CIRC não permite concluir que o ajustamento que decorre do regime relativo às propriedades de investimento subsequentemente mensuradas ao justo valor corresponde a uma depreciação ou amortização.
E também a letra do artigo 46.º n.º 2 do CIRC não nos permite fazer tal interpretação, já que a norma prevê “As mais-valias e as menos-valias são dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 3 do artigo 31.º-A”. Ou seja, a lei distingue de forma muito clara: (i) “depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-B” e (ii) “dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A”.
No mesmo sentido, a Informação Vinculativa proferida no processo 895/20, PIV n.º 17168, com despacho da Subdiretora-geral dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, de 22-04-2020 não tem por objeto a questão que está em causa nos presentes autos. E mesmo que tivesse, não poderia a AT determinar um entendimento que fosse contra a lei, dado que a AT não tem funções legislativas.
Deverá assim o ato impugnado manter-se no ordenamento jurídico, por respeitar a lei, não havendo assim lugar à restituição o imposto ou a juros indemnizatórios.
.....
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DECISÃO
Termos em que, decide este Tribunal jugar improcedente o PPA, mantendo-se o ato impugnado no ordenamento jurídico.
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VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 20 919,07.
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CUSTAS
O montante das custas (a cargo da Requerente) é fixado em EUR 1 224,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).
Notifique-se.
Lisboa, 21 de agosto de 2023.
Elisabete Flora Louro Martins Cardoso
(Árbitro Singular)