Sumário:
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O requisito que consta da al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A do CIRS não dispensa a consideração do conceito de residência do art. 16.º do CIRS (e, nomeadamente, do que consta na parte final do n.º 4, bem como na al. a) do n.º 14, desse artigo 16.º).
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., n.º ..., ... –..., ...-... Alcabideche (doravante, “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do art. 99.º do CPPT e nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1, deduzir, a 12/12/2022, pedido de pronúncia arbitral “do acto tributário – Liquidação n.º 2022 ... do IRS/2021, por não considerar o enquadramento fiscal do Programa Regressar (Lei n.º 12/2022 de 27.06), e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o processo n.º ...2022...”.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o presente signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 20/2/2023.
3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alega, em síntese, o seguinte:
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«O requerente, em 16.09.2022, apresentou junto do Serviço de Finanças de Cascais ... – ...– Reclamação Graciosa, por discordar com a liquidação n.º 2022 ... do IRS/2021, dado a requerida não ter considerado o enquadramento fiscal no âmbito do Programa Regressar – Lei n.º 12/2022, de 27.06, que introduziu alterações ao artigo 12.º A do Código do IRS, cfr. Docs. 1 e 2.
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Vejamos então os pressupostos e condições [atendendo ao presente caso], [sendo que para a] fruição deste regime devem estar preenchidos cumulativamente todos os pressupostos do artigo 12.º A do CIRS: - O requerente foi residente fiscal em território nacional antes de 31 de dezembro de 2017, na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Amoreira; - Em 31 de janeiro de 2018, procedeu à alteração da morada para Cabo Verde – ...– Ilha de Santiago, passando a constar como não residente a partir de então – cfr. Doc. 3; - Em 18 de janeiro de 2021, procedeu à alteração da morada para Portugal, para a Rua..., n.º..., ..., ..., Amoreira, ou seja, voltou a ser fiscalmente residente em Portugal no ano de 2021; - O requerente não solicitou a sua inscrição como residente não habitual; - O requerente teve e tem a sua situação tributária regularizada.
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Pelo que, cumulativamente, o requerente preenche todos os pressupostos e condições exigíveis no artigo 12.º A do CIRS.
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Relevante para a boa decisão da causa é o conceito de residência contemplado no artigo 16.º do CIRS [...]. Por conseguinte e contrariamente à decisão da Reclamação Graciosa, o requerente em 30.01.2018, último dia de permanência em território português, deverá ser considerado não residente em 2018, desde logo, por aplicação do artigo 16.º, n.º 1, alínea a), [visto que] o requerente em 2018 apenas permaneceu em território português durante 30 dias, o que é inferior aos mais de 183 dias que constam bem especificados na alínea a) para ser considerado residente, e a própria Lei n.º 12/2022, de 22.06, apenas refere 3 anos anteriores como não residente, não exigindo que sejam preenchidos os 365 dias por ano, fora de Portugal.
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Significa, assim, que o requerente perdeu a qualidade de residente em território português em 30.01.2018, devendo ser considerado não residente em 2018.
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Mais, por força do n.º 4 do artigo 16.º do CIRS, que salvaguarda os n.os 14 e 16, decorre [...] que para se ser considerado residente em território português é necessário cumulativamente o preenchimento das alíneas a) e b) do n.º 14 do artigo 16.º do CIRS – o que não foi o caso do requerente que, em 2018, só permaneceu 30 dias – sendo o dia 30.01.2018 o último dia de permanência em território português.
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Deste modo, o requerente reúne todos os pressupostos para beneficiar do regime aplicável aos ex-residentes, dado que saiu em 2018 e regressa em 2021 sendo não residente nos três anos anteriores – 2018, 2019 e 2020.
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Neste contexto, a liquidação sub judice a que correspondeu o valor de 8.577,52€, deverá ser rectificada para o valor de 25.426,31€, cujo diferencial a devolver ao requerente é no montante de 16.848,79€.»
3.1. O Requerente termina pedindo que «o presente pedido de pronúncia arbitral seja julgado procedente e, em consequência, a) [seja] reconhecido ao requerente o benefício fiscal no âmbito do Programa Regressar – Lei n.º 12/2022, de 27.06, que introduziu alterações ao artigo 12.º A do Código do IRS por preencher cumulativamente todos os pressupostos e condições exigíveis à atribuição do referido benefício; b) [seja] a requerida condenada por ilegalidade nos termos da alínea a) do artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, por erroneamente ter qualificado o requerente como residente em 2018 e quantificado o IRS/2021 sem o benefício do Programa Regressar; c) [seja] em consequência revogada a decisão de indeferimento da reclamação graciosa com o processo n.º ...2022...; d) [seja] rectificada a liquidação sub judice para o valor de 25.426,31€, cujo diferencial a devolver ao requerente é no montante de 16.848,79€, acrescido de juros desde a entrada da p.i. até ao integral pagamento; e) [seja] a R. condenada a pagar as custas do procedimento arbitral.»
4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:
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«A matéria objeto de análise refere-se à (não) aplicação do regime do artigo 12.º-A do CIRS – Regime fiscal aplicável a ex-residentes – que exclui de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes em 2019, 2020, 2021, 2022 ou 2023 nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS, na redação dada pela Lei n.º 12/2022 de 27 de junho, observem os requisitos previstos naquele artigo.
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Sendo que o requerente considera que preenche os requisitos previstos no artigo 12.º-A do CIRS, nomeadamente, a não residência em território nacional nos três anos anteriores (2018, 2019 e 2020) ao ano de 2021, pelo que deveria ser tributado ao abrigo daquele regime e, consequentemente, beneficiar da exclusão de tributação de 50% dos rendimentos auferidos no ano de 2021.
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Para efeitos de clarificação da aplicação daquele regime [constante do art. 12.º-A do CIRS], foi elaborado o Ofício-Circulado n.º 20206 de 2019-02-28, o qual refere, nomeadamente, que: “2. Para usufruição deste regime devem estar preenchidos cumulativamente todos os pressupostos e condições previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 12.º-A do Código do IRS, a saber, têm direito ao regime de benefício fiscal os sujeitos passivos de IRS que, cumulativamente: i) Tenham sido residentes em território português antes de 31.12.2015; ii) Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer um dos três anos anteriores a 2019 ou a 2020; iii) Voltem a ser fiscalmente residentes em território português em 2019 ou em 2020, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do Código do IRS; iv) Não tenham solicitado a sua inscrição como residente não habitual; v) Tenham a sua situação tributária regularizada em cada um dos anos em que seja aplicável o regime de benefício fiscal.”
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Ora, estando em causa o ano de 2021, e tendo em conta a nova redação do artigo, à luz da Lei n.º 12/2022, de 27 de junho, tornando-se o requerente, de novo, residente em Portugal em 2021, não pode ter sido considerado residente em Portugal nos três anos imediatamente anteriores, isto é, 2018, 2019 e 2020, sendo este um critério objetivo.
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[C]onforme consta no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verifica-se que o requerente apenas alterou a sua situação para não residente a 2018-01-30, pelo que, nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do CIRS, o requerente apenas perdeu a qualidade de residente no ano de 2018, significando por isso não cumprir o requisito de não ter sido considerado residente nos três anos anteriores.
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Importa ainda referir que, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Portanto, não se encontrando afastada a presunção decorrente da informação do cadastro, i.e., que o requerente teve residência em Portugal no ano de 2018, não se verifica o requisito da não residência em Portugal nos três anos anteriores ao ano em causa.
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Assim, não se verificando os pressupostos para aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes, nos termos do artigo 12.º - A do CIRS, consequentemente, não se verifica qualquer ilegalidade na liquidação contestada.
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O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, derivado da anulação judicial de um ato de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse facto está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração tributária. [...]. Uma vez que, à data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.»
4.1. A AT conclui a sua resposta pedindo que seja «julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.»
5. Não tendo sido invocadas excepções e não havendo matéria de facto controvertida, por as questões a decidir serem de direito, o Tribunal Arbitral, através de despacho datado de 31/7/2023, prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Foi, ainda, fixado o dia 11/8/2023 para a prolação da decisão arbitral.
II. Saneamento
6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
8. Pelo exposto, e não havendo nulidades, impõe-se o conhecimento do mérito do pedido.
III. Questões a decidir
9. Na petição arbitral, o Requerente alega que preencheu os requisitos previstos no artigo 12.º-A do CIRS, nomeadamente, a não residência em território nacional nos três anos anteriores (2018, 2019 e 2020) ao ano de 2021, pelo que deveria ser tributado ao abrigo desse regime e, consequentemente, beneficiar da exclusão de tributação de 50% dos rendimentos auferidos no ano de 2021.
10. O Requerente considera, ainda, que, para fins de aferição do preenchimento dos referidos requisitos, se torna necessário considerar “o conceito de residência contemplado no artigo 16.º do CIRS”. Alega a este respeito o Requerente que, tendo permanecido em território português “[até] 30.01.2018, último dia de permanência [nesse território], deverá ser considerado não residente em 2018, desde logo, por aplicação do artigo 16.º, n.º 1, alínea a), [visto que] o requerente em 2018 apenas permaneceu em território português durante 30 dias, o que é inferior aos mais de 183 dias que constam bem especificados na alínea a) para ser considerado residente”.
11. Por seu lado, a Requerida considera, em síntese, que, “conforme consta no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, [...] o requerente apenas alterou a sua situação para não residente a 2018-01-30, pelo que, nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do CIRS, o requerente apenas perdeu a qualidade de residente no ano de 2018, significando por isso não cumprir o requisito de não ter sido considerado residente nos três anos anteriores.” Pelo que conclui a Requerida que, “não se verificando os pressupostos para aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes, nos termos do artigo 12.º - A do CIRS, consequentemente, não se verifica qualquer ilegalidade na liquidação contestada.”
12. Pelo acima exposto, conclui-se que a questão essencial a decidir nos presentes autos diz respeito à avaliação da interpretação que foi feita do referido artigo 12.º-A do CIRS, e da qual resultou a liquidação de IRS aqui em causa. Seguidamente, tratar-se-á, também, da questão relativa ao pagamento dos juros indemnizatórios peticionados.
IV. Mérito
IV.1. Matéria de facto
13. Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
A. Em 27/6/2022, o Requerente apresentou declaração de IRS respeitante ao ano de 2021, na qual mencionou ser residente em território nacional, e declarou no Anexo A os rendimentos de trabalho dependente (Categoria A) auferidos em Portugal, sem qualquer menção no Quadro 4E (Regime Fiscal Aplicável a Ex-Residentes) do referido Anexo.
B. Da declaração supra mencionada resultou a liquidação de IRS aqui em causa (n.º 2022..., de 28/6/2022), com o valor a receber de € 8.577,52, liquidação esta que não considerou o regime previsto no art. 12.º-A do CIRS (v. Doc. 1 apenso aos autos).
C. Em 28/6/2022, foi entregue nova declaração, na qual o requerente adicionou a menção, no Quadro 4E do Anexo A da declaração Modelo 3 de IRS, de que reúne os pressupostos e condições previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS e que se tornou residente em Portugal no ano de 2021.
D. Por não concordar com a liquidação vigente, nomeadamente, por considerar que preenche os requisitos previstos na lei para poder beneficiar do regime aplicável a ex-residentes, o ora Requerente apresentou, em 16/9/2022, procedimento de reclamação graciosa (ao qual foi atribuído o n.º ...2022...), o qual foi analisado pelo Serviço de Finanças de Cascais-..., que elaborou um projeto de decisão com proposta de indeferimento, nomeadamente, por entender-se que o Requerente “não cumpre o requisito relativo à não residência fiscal em território português nos três anos anteriores ao ano do regresso (2021)” (v. Doc. 2 apenso aos autos). Por despacho de 21/11/2022, o contribuinte foi notificado para exercer o direito de audição, nos termos do disposto no artigo 60.º da LGT.
E. O Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral com os mesmos fundamentos invocados no procedimento de reclamação graciosa, i.e., solicitando que seja considerado, na liquidação de IRS de 2021, o regime previsto no artigo 12.º-A do CIRS, por entender que estão reunidos os requisitos necessários para beneficiar do mesmo, nomeadamente, ter sido não residente em Portugal nos três anos anteriores.
F. Por meio de consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verifica-se que o Requerente, nos anos relevantes para a análise do presente caso (2018, 2019 e 2020), e como já referido em sede de procedimento de reclamação graciosa (v. Doc. 2 apenso aos autos) e confirmado, nos presentes autos, pelo Requerente e pela Requerida: - Em 31/12/2017, o ora Requerente consta como residente em Portugal (Rua..., n.º ..., ..., ...– Amoreira); - Em 30/1/2018, o Requerente alterou a sua morada para não residente em Portugal (Av. ..., ...– ...– Ilha de Santiago - Cabo Verde) (v. Doc. 3 apenso); - Em 18/1/2021, o Requerente alterou a sua morada para Portugal (Rua ..., n.º ..., ..., ... . – Amoreira). Em face dos elementos constantes dos autos, verifica-se, também, que, para efeitos do disposto no Ofício-Circulado n.º 20206, de 28/2/2019, o Requerente não solicitou a sua inscrição como residente não habitual e que teve e tem a sua situação tributária regularizada.
G. O Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral a 12/12/2022, tendo peticionado a rectificação da liquidação de IRS supra referida para o valor a receber de €25.426,31 e solicitado, consequentemente, o diferencial a devolver ao Requerente de €16.848,79 (acrescido de juros até ao seu integral pagamento).
IV.2. Factos não provados
14. Com relevo para a apreciação do mérito da causa (dada a hipotética aplicação da al. b) do n.º 1 do art. 16.º do CIRS ao presente caso), verifica-se que não ficou demonstrado que o ora Requerente dispunha, em Portugal, de habitação em condições que fizessem supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual” (e também nada resulta destes autos que, mesmo que indiciariamente, aponte nesse sentido).
IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
15. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
16. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
17. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados.
IV.4. Matéria de direito
18. A questão essencial aqui em causa prende-se, como acima se referiu, com a interpretação a dar ao requisito – constante da al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A do CIRS – da não residência em território português nos três anos anteriores. Com efeito, o que está em causa nos presentes autos é a aplicação (ou não) do regime do art. 12.º-A do CIRS – Regime fiscal aplicável a ex-residentes –, que exclui de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes em 2019, 2020, 2021, 2022 ou 2023, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS, na redacção dada pela Lei n.º 12/2022, de 27/06, observem os requisitos previstos naquele artigo.
19. Segundo o Requerente, para a correcta interpretação desse requisito terá de se atender ao que dispõe o referido art. 16.º do CIRS sobre o conceito (jurídico) de residência em território português. Segundo a al. a) do n.º 1 desse art. 16.º, “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: a) hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa”. E salienta, ainda, que na al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A do CIRS se utiliza a expressão “não tenham sido considerados residentes em território português” – o que remete para um conceito jurídico de residência, “não [se] exigindo que sejam preenchidos os 365 dias por ano fora de Portugal.” Nesses termos, e atendendo ao disposto no n.º 4, bem como na al. a) do n.º 14, do referido art. 16.º do CIRS, conclui o Requerente que “perdeu a qualidade de residente em território português em 30.01.2018, devendo ser considerado não residente em 2018.”
20. Por seu lado, a Requerida invoca que, ao verificar-se, “conforme consta no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, [...] que o requerente apenas alterou a sua situação para não residente a 2018-01-30, [...] nos termos do n.º 4 do artigo 16.º do CIRS, o requerente apenas perdeu a qualidade de residente no ano de 2018, significando por isso não cumprir o requisito de não ter sido considerado residente nos três anos anteriores.” E acrescenta, ainda, que, “não se encontrando afastada a presunção decorrente da informação do cadastro, i.e., que o requerente teve residência em Portugal no ano de 2018, não se verifica o requisito da não residência em Portugal nos três anos anteriores ao ano em causa.”
21. Vejamos, então.
22. No presente caso, o que importa analisar é se os acima referidos 30 dias de comprovada permanência do ora Requerente em Portugal em 2018 (de 1/1/2018 a 30/1/2018) inviabilizam a aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes no artigo 12.º-A do CIRS – i.e., se o requisito que consta da al. a) do n.º 1 desse artigo 12.º-A do CIRS (relativo à não residência em território português nos três anos anteriores) pode dispensar a consideração do conceito de residência constante do artigo 16.º do CIRS e, nomeadamente, do que consta na parte final do n.º 4, bem como na alínea a) do n.º 14, desse artigo (alínea segundo a qual um sujeito passivo só poderá considerar-se residente em território nacional durante a totalidade do ano no qual perca a qualidade de residente quando se verifique que esse sujeito passivo “a) Permane[ceu] em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, nesse ano”).
23. Considerando ser matéria de facto incontroversa que o ora Requerente não permaneceu em território português mais de 30 dias no ano de 2018 (vd. ponto F da factualidade provada), resulta evidente que não se pode considerar que o mesmo teve residência em Portugal nesse ano, dado o disposto nos já referidos n.º 4 (parte final), e alínea a) do n.º 14, do artigo 16.º do CIRS. Este artigo 16.º deve ser tido em consideração para efeitos de interpretação do artigo 12.º-A do CIRS visto que é a própria al. a) do n.º 1 desse art. 12.º-A que utiliza a expressão “não tenham sido considerados residentes” – não se exigindo, assim, para efeitos de aplicação deste regime fiscal, a ausência do território português em todos os 365 dias de cada um dos três anos anteriores (no presente caso, anos de 2018, 2019 e 2020).
24. Acresce, ainda, referir que, como se assinala na factualidade não provada (vd. supra, 14.), dada a hipotética aplicação do art. 16.º, n.º 1, al. b), do CIRS ao presente caso (residência não obstante a permanência por menos de 183 dias), verifica-se, também, que não (foi invocado nem) ficou demonstrado, nestes autos, que o Requerente dispunha, em Portugal, de habitação em condições que fizessem “supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual” (e também nada resulta dos autos que, mesmo que indiciariamente, aponte nesse sentido).
25. No mesmo sentido do entendimento aqui expresso, e em termos com os quais se concorda, veja-se, por ex., o seguinte excerto da Decisão arbitral de 6/1/2022, proferida no processo n.º 457/2021-T, em caso semelhante ao dos presentes autos: “Iniciamos pela análise do regime fiscal aplicável a ex-residentes, previsto no artigo 12.º-A do CIRS, e do regime de residência em território português previsto no artigo 16.º do CIRS, aplicável à data dos factos. Assim, estipula o artigo 12.º-A, n.º 1, do CIRS, o seguinte: “[...]”. [...]. Quanto ao preenchimento do requisito da alínea a) [do n.º 1 do art. 12.º-A do CIRS], cerne da questão controvertida, cumpre apreciar a sua análise em melhor detalhe. Assim, a residência é o critério utilizado para determinar o âmbito da sujeição do imposto, previsto no art. 15.º do CIRS, “Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.”, submetendo a sua determinação ao princípio da tributação universal dos rendimentos, mediante uma ligação forte e estável a um território específico. A legislação em vigor, no ano em questão sub judice, 2018, elencava mais do que um critério de residência fiscal, nos termos do disposto no artigo 16.º na redação dada pela Lei n.º 20/2012, de 14/05: “1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa; b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual; c) (…); d) (…)”. É, assim, este o normativo aplicável, à luz do qual a questão há de ser apreciada, verificar se o Requerente, preencheu os pressupostos e condições previstos no artigo 16.º do Código do IRS, suscetível de determinar a sua residência fiscal em território português. Sobre o cumprimento do pressuposto do n.º 1 alínea a) do artigo 16.º, do Código do IRS, é pacifico que se cinge à presença física (corpus) num território (in casu o território nacional), para imputar o país de residência fiscal, deste modo, para cumprimento do pressuposto, o Requerente haveria de ter permanecido mais de 183 dias em território português, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa, o que no presente caso, não se verificou. Sobre os critérios de residência fiscal, realçamos as decisões do CAAD, designadamente o Acórdão Arbitral Processo n.º 332/2016-T, e o Acórdão Arbitral Processo n.º 214/2017-T. Verifica-se, assim, que o critério previsto na alínea a) se cinge à presença física (corpus), em Portugal, considerando residentes, de forma automática, os indivíduos que permaneçam 183 dias no território nacional. A al. b), por outro lado, exige uma ligação física menos qualificada, impõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território. Esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados. [...]. Efetivamente, o Requerente, ao não ter permanecido mais de 183 dias em território português, não é considerado residente fiscal em Portugal no ano de 2018, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS. Analisando, de seguida, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º, subscrevemos o Acórdão Arbitral Processo n.º 214/2017-T, do qual resulta o seguinte: «(…) caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, exige-se uma ligação física menos qualificada, o que implica uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território, neste caso Português. [...].» [...] a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente: i) a permanência em Portugal; ii) a disposição de uma habitação; e iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual. Verifica-se, no entanto, que o Requerente não preenche o primeiro requisito, ou seja, tendo a sua residência e um contrato de trabalho no [estrangeiro], desde logo, não teve uma permanência em Portugal no ano 2018. Desse modo, atento o não preenchimento de um dos requisitos e sendo eles cumulativos, afasta a necessidade de verificação do cumprimento dos restantes.” (sublinhados nossos).
26. Também no mesmo sentido, veja-se o seguinte excerto da declaração de voto do Árbitro Martins Alfaro, que foi junta à Decisão arbitral de 30/1/2023, proferida no proc. n.º 202/2022-T: “Concordo com o fundamento da decisão arbitral de que, no que respeita ao acesso ao regime fiscal dos ex-residentes, a redacção do artigo 12.º-A, alínea a), do Código do IRS, é clara quando refere a exclusão parcial de tributação dos sujeitos passivos que «não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores» e não nos 36 meses anteriores. Contudo, parece-me que, para chegar à conclusão a que chegou, a decisão arbitral deveria ter abordado e determinado a residência fiscal do Requerente de acordo com um critério estritamente normativo. Com efeito e no que se refere à determinação da residência fiscal, penso que a expressão «considerados residentes», constante da redacção do artigo 12.º-A, alínea a), do Código do IRS, remete decisivamente para um conceito jurídico de residência fiscal e não para um conceito físico de residência. Deste modo, a residência fiscal do Requerente, em 2017, haveria de ter sido determinada por um critério normativo – e isto independentemente de este ter residido fisicamente durante parte do ano de 2017 em território português.” (sublinhados nossos).
Devolução de montante e juros indemnizatórios
27. Quanto ao pedido de devolução do montante de €16.848,79 (= €25.426,31 – €8.577,52), ao abrigo do regime constante do art. 12.º-A do CIRS, não restam dúvidas de que assiste ao Requerente o direito a tal restituição – sendo que a apreciação de tal pedido se contém no âmbito dos poderes reconhecidos aos tribunais arbitrais em matéria tributária.
28. Com efeito, e como refere, por ex., na Decisão arbitral (colectiva) de 9/11/2020 (proferida no processo n.º 772/2019-T), «dúvidas não subsistem de que os poderes dos tribunais arbitrais se circunscrevem a poderes de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto impugnado. Porém, não obstante este contencioso ser essencialmente de mera anulação, à semelhança do que sucede com o contencioso tributário impugnatório no âmbito dos tribunais tributários estaduais, existem alguns poderes condenatórios, estritamente ligados ao poder anulatório, relacionados com o direito a juros indemnizatórios, com o direito a indemnização por prestação indevida de garantia ou com o direito à restituição do imposto indevidamente pago.» (Sublinhado nosso.)
29. No mesmo sentido, e quanto aos também peticionados juros indemnizatórios (cujo direito aqui se reconhece, dada a errada aplicação que foi feita das normas legais aplicáveis, como se demonstrou acima), veja-se, por ex., a Decisão arbitral (colectiva) de 15/6/2020, proferida no processo n.º 702/2019-T: “Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária». O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT [...] e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial) [...]. Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.” (sublinhados nossos).
30. Em face do exposto, conclui-se, no caso aqui em apreciação, que tem o Requerente direito a juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos supracitados, contados desde a data da entrada da p.i. até ao integral pagamento do montante a devolver.
V. DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação n.º 2022 ... do IRS/2021, bem como o pedido de rectificação da liquidação para o valor a receber de €25.426,31, com diferencial a devolver ao requerente de €16.848,79.
- Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, desde a data da entrada da p.i. até ao integral pagamento (restituição).
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 16.848,79 (dezasseis mil oitocentos e quarenta e oito euros e setenta e nove cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 1224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Agosto de 2023.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
A redacção da presente decisão rege-se pela
ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.