Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 719/2022-T
Data da decisão: 2023-07-31  ISV  
Valor do pedido: € 1.462,37
Tema: ISV – Transformação de viatura
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SUMÁRIO:

 

I – Nos termos do n.º 10 do art.º 7.º do CIVA, «sempre que, em momento posterior à transmissão, aquisição intracomunitária ou importação de veículos automóveis, se mostre devido imposto sobre veículos pela sua transformação, alteração de cilindrada ou de chassis, o imposto é devido e exigível no momento em que ocorra essa transformação ou alteração

II - No caso dos presentes autos estamos perante uma situação de alcance meramente interno, de transformação de um veículo automóvel, registado e matriculado em Portugal. Não se vislumbra qualquer situação discriminatória. Pelo que, improcedem os argumentos aduzidos com enfoque na alegada ilegalidade da tributação em sede de IVA.

III - No caso dos presentes autos, a transformação operada ao veículo de mercadorias para autocaravana implicou a sua reclassificação fiscal e a sua sujeição às normas de incidência do imposto, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. e) do CISV. Este facto é incontornável à luz do ordenamento jurídico-fiscal português, pelo que a liquidação impugnada não padece de qualquer ilegalidade.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 27/11/2022  A..., residente no sítio ..., Apartado ..., ...-..., ..., com o número de identificação fiscal ..., doravante designado por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), com as alterações  subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e do disposto no artigo 99º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), para impugnação da liquidação n.º 2022/..., de 10.11.2022, de Imposto sobre os Veículos (ISV) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no montante global de €1.462,37. A liquidação impugnada foi praticada pelo Diretor da Alfândega de Faro, com referência ao veículo ligeiro de mercadorias, propriedade do Requerente, da marca Mercedes Benz ..., do ano 2005, a gasóleo, com 2685cm3, peso bruto max. 3500kg, com tração às quatro rodas e matrícula ..., decorrente da transformação do veículo em autocaravana.

 

  1. O pedido arbitral, tem por objeto, concretamente, a impugnação da liquidação de ISV e IVA, promovida com base no facto tributário consubstanciado no ato de transformação da viatura descrita. O Requerente, não se conforma com esta liquidação, que alega ser ilegal, pelo que peticiona a sua anulação.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado em 27/11/2022, foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD na mesma data e, automaticamente, notificado à AT em 28/11/2022. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. As partes foram notificadas dessa designação, que aceitaram. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 03/02/ 2023. Nesta mesma data foi proferido despacho arbitral, notificado à Requerida, para apresentar a sua resposta, nos termos do disposto no artigo 17.º do RJAT.

 

  1. No dia 10/03/2023, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o respetivo Processo Administrativo (PA). Na sua resposta, que se dá por integralmente reproduzida, veio a AT pugnar pela legalidade do ato tributário impugnado.

 

  1. Considerando que a questão a decidir se configura como questão exclusivamente de direito, o tribunal arbitral proferiu despacho arbitral, em 14/03/2023, para as partes se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT. No mesmo despacho notifica as partes para alegarem por escrito, querendo, no prazo igual e sucessivo de 10 dias.

 

  1. A 14/04/2023 veio a Requerida AT apresentar as suas alegações, que se dão por reproduzidas, nas quais mantém e reforça os argumentos aduzidos na resposta em defesa da legalidade dos atos tributários impugnados. 

 

  1. Por requerimento de 17-04-2023 veio o Requerente pronunciar-se e reforçar o seu pedido original, mantendo o pedido de anulação dos atos de liquidação que entende ser ilegais. Em 28-07-2023 o Requerente juntou comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

A Posição do Requerente

 

  1. O Requerente invoca a ilegalidade dos atos de liquidação de ISV, que tributa a transformação da viatura numa autocaravana, por entender que o ISV e o IVA liquidados violam o Direito da União Europeia (DUE), como consta do seu pedido, que aqui se dá por integralmente reproduzida. Alega que a transformação do veículo, de ligeiro de mercadorias em autocaravana, não há lugar a uma reclassificação fiscal numa categoria a que corresponde uma taxa de imposto mais elevada, nos termos do artigo 5.º do CISV. Alega que este imposto viola o Direito da União Europeia. Peticiona, por fim, o reembolso da quantia de 1.462,37 € e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

Em síntese, o pedido de pronúncia arbitral visa a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de ISV e IVA, mencionado supra.

 

 A Posição da Requerida AT

 

  1. A AT alega na sua Resposta, que os respetivos critérios legais para a determinação do valor coletável e respetivo valor de imposto a pagar não são ilegais e defende que a liquidação obedeceu às normas legais em vigor, concretamente o disposto no artigo 5º do CISV.

Em suma, a Requerida AT vem pugnar pela legalidade dos atos de liquidação e pela sua manutenção na ordem jurídica portuguesa.

 

 

II – Saneamento do Processo

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do artigo 5.º e da alínea a), do n.º 2 do artigo 6.º, todos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e no artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo é o próprio e as partes são legítimas, têm personalidade e capacidade jurídica e judiciária.

Nos presentes autos o pedido arbitral foi apresentado pelo Requerente, que o subscreveu, sem constituição de Advogado. O patrocínio judiciário, nos casos em que a constituição de advogado seja obrigatória, é um pressuposto processual positivo para que o juiz deva conhecer do pedido.[1]  No caso dos presentes autos, considerando o valor da ação, a qual não excede a alçada da 1ª instância, tal é possível, à luz do disposto nos artigos 6º do CPPT, 105º DA LGT e 44º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), todos aplicáveis por remissão do artigo 29º do RJAT.

Não se verificam exceções que obstem o conhecimento do Tribunal.

O processo não enferma de nulidades.

Nesta conformidade o Tribunal está em condições de conhecer do pedido.

 

Posto isto, cumpre decidir sobre a matéria de facto e, em conformidade, sobre a matéria de direito cuja apreciação foi suscitada neste pedido arbitral.

 

 

III - Decisão sobre a matéria de facto

 

  1. Factos Provados:

 

  1. Como matéria de facto relevante, o Tribunal arbitral dá por provados os seguintes factos:

 

  1. Em 27-11-2022 a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral;
  2. O Requerente é proprietário do veículo automóvel veículo, ligeiro de mercadorias, da marca Mercedes ..., do ano 2005, a gasóleo, com 2685cm3, peso bruto máximo de 3500kg, com tração às quatro rodas e matrícula ...;
  3. Em 2-11-2022 este veículo foi objeto de transformação (inicialmente veículo ligeiro de mercadorias) numa autocaravana;
  4. O veículo em causa teve, em 2005, data da sua admissão, a classificação fiscal de OM3, não tendo sido liquidado imposto, por não ser devido, tendo a viatura sido legalizado como um veículo ligeiro de mercadorias.
  5. Em 2.11.2022 o Requerente e proprietário do veículo efetuou, junto da Alfândega de Faro, um pedido de alteração da categoria fiscal do veículo automóvel da marca Mercedes Benz, com matrícula ..., decorrente da transformação de um ligeiro de mercadorias para uma autocaravana, (cfr. Formulário 1460.1, junto ao PA);
  6. O Requerente apresentou em 14.11.2022, por transmissão eletrónica de dados, a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) da Alfândega de Faro para regularização da situação fiscal do veículo, de sua propriedade, agora transformado em autocaravana;
  7. A DAV, que obteve o n.º 2005..., foi apresentada pelo particular/operador sem estatuto, tendo o declarante inscrito no Quadro inicial (05) quanto Regime de ISV o código 01 – Introdução no consumo – Regime Geral, sendo que, quanto às características do veículo (Quadro E), foi indicado que se trata de um ligeiro /autocaravana (campos 31, 32 e 33);
  8. No quadro F foi declarado que o veículo é novo, tendo como país de procedência Alemanha (campos 55 e 56), indicando-se no quadro I, 2.11.2022, como data da transformação, e no campo 91 do quadro M (relativo ao IMT) constando da mesma a data de 28.07.2005 de atribuição da matrícula;
  9. O cálculo completo/integral do imposto relativo à transformação e identificação do ato de liquidação, constam da DAV nº 2005/..., de 14.11.2022, da Alfândega de Faro, com data de aceitação de 22.07.2005;
  10. Da liquidação de ISV n.º 2022/..., de 10.11.2022, no valor de 1.462,37 €, foi extraído o Documento Único de Cobrança (DUC) para pagamento do ISV naquele montante, constando da DAV informação de que aquele foi cobrado em 12.11.2022.
  11. Em 27.11.2022, o Requerente, apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a declaração de ilegalidade do identificado ato de liquidação de ISV, praticado pela Alfândega de Faro.

 

  1. FACTOS NÃO PROVADOS

 

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

       C) FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

  1. Os factos descritos nas alíneas a) a j) foram dados como provados com base na prova documental, junta pelo Requerente em anexo ao pedido arbitral, bem assim como da prova documental constante do Processo Administrativo junto pela AT. Acresce que, no caso, não existe qualquer divergência entre as partes quanto aos factos, mas apenas quanto à questão de direito. Pelo que, os factos provados resultam também do reconhecimento da sua veracidade, considerando a posição assumida pelas partes nos respetivos articulados. O facto constante na alínea i) resulta provado pela informação registada no sistema de gestão processual do CAAD.

 

 

IV – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Assente a matéria de facto, importa delimitar a(s) questão(ões) de direito a decidir. No caso dos presentes autos a questão essencial é a de saber se a transformação da viatura em caravana está ou não sujeita a incidência de ISV e IVA, à luz das regras vigentes no ordenamento jurídico português, já que se trata de uma operação interna.

 

Vejamos, pois, o regime jurídico aplicável ao caso em apreciação.

 

  1. O regime do imposto sobre veículos (ISV) encontra-se previsto no Código do Imposto sobre Veículos (CISV), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 22-A/2007, de 27 de junho, com as sucessivas alterações. Para o enquadramento legal da questão em apreço releva o disposto no artigo 5º do CISV, nos termos do qual:

 «1 - Constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Constitui ainda facto gerador do imposto:

 a) A atribuição de matrícula definitiva após o cancelamento voluntário da matrícula nacional feito com reembolso de imposto ou qualquer outra vantagem fiscal;

b) A transformação de veículo que implique a sua reclassificação fiscal numa categoria a que corresponda uma taxa de imposto mais elevada ou a sua inclusão na incidência do imposto, a mudança de chassis ou a alteração do motor de que resulte um aumento de cilindrada ou das emissões de dióxido de carbono ou partículas; (…). Sublinhado nosso.

3 - Para efeitos do presente código entende-se por: a) «Admissão», a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado membro da União Europeia em território nacional; b) «Importação», a entrada de um veículo originário de país terceiro em território nacional.

4 – (…).

 

  1. Dispõe o artigo 2º do CISV, quanto à Incidência objetiva, que:

 1 - Estão sujeitos ao imposto os seguintes veículos:

a) Automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas;

b) Automóveis ligeiros de utilização mista, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte, alternado ou simultâneo, de pessoas e carga; c) Automóveis ligeiros de mercadorias, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, que se destinem ao transporte de carga, de caixa aberta, fechada ou sem caixa;

d) Automóveis de passageiros com mais de 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor;

e) Autocaravanas, considerando-se como tais os automóveis construídos de modo a incluir um espaço residencial que contenha, pelo menos, bancos e mesa, espaço para dormir, que possa ser convertido a partir dos bancos, equipamento de cozinha e instalações para acondicionamento de víveres;

f) Motociclos, triciclos e quadriciclos, tal como estes veículos são definidos pelo Código da Estrada.

2 - Estão excluídos da incidência do imposto os seguintes veículos: a) Veículos não motorizados, bem como os veículos exclusivamente elétricos ou movidos a energias renováveis não combustíveis;

b) Ambulâncias, considerando-se como tais os automóveis destinados ao transporte de pessoas doentes ou feridas, dotados de equipamentos especiais para tal fim, bem como os veículos dedicados ao transporte de doentes, nos termos regulamentados.

c) (Revogada.)

d) (Revogada.)

 

 Dispondo o artigo 3.º relativamente à Incidência subjetiva o seguinte: “1-São sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares, tal como definidos pelo presente código, que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos.

2- (…).»

 

  1. Dispõe ainda o mesmo código, no seu artigo 6º, que «o imposto torna-se exigível no momento da introdução no consumo, considerando-se esta verificada:

 a) No momento da apresentação do pedido de introdução no consumo pelos operadores registados e reconhecidos;

b) No momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos pelos particulares.

2 - Nos casos mencionados no n.º 2 do artigo anterior considera-se verificada a introdução no consumo no momento da ocorrência do facto gerador do imposto ou, sendo este indeterminável, no momento da respetiva constatação.

 3 - A taxa de imposto a aplicar é a que estiver em vigor no momento em que este se torna exigível.»

 

Importa ainda atender ao disposto o nº 2, do artigo 7º, do mesmo Código de Imposto, relativo à tabela aplicável.

 

  1. Retornando ao caso em apreciação nos presentes autos constata-se que o Requerente alega ser proprietário de um veículo um ligeiro de mercadorias da marca Mercedes..., do ano 2005, a gasóleo, com 2685cm3, peso bruto máximo de 3500kg, com tração às quatro rodas e matrícula..., o qual foi transformado em autocaravana, sem ter havido mudança de chassis ou a alteração do motor. Por ser assim, entende o Requerente que esta transformação não deveria ter sido objeto de liquidação de ISV e IVA enfermando, consequentemente, essa liquidação, de ilegalidade. Acresce que, tendo a AT cobrado o Imposto Sobre Veículos (ISV), no montante de € 1.188.92 mais € 273,45 de IVA, em aplicação do artigo 6.º e 7.º do Código do ISV (CISV), esta liquidação é ilegal. Discorda, ainda, que no caso da transformação do seu veículo, a AT tenha procedido a uma reclassificação fiscal numa categoria a que corresponde uma taxa de imposto mais elevada nos termos do artigo 5.º do CISV. Além disso, discorda, também, dos termos da aplicação do disposto no artigo 11º do CISV (tabela D), pois o mesmo viola a equivalência e igualdade de tributação, como aliás tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência do TJUE. Na ótica do Requerente o ISV é um «imposto especial de consumo» ou uma taxa de efeito equivalente a um direito aduaneiro e viola os artigos: 28º, 30º, 34º, 36º e 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e também viola o artigo 1.º da Diretiva 2020/262 e o artigo 6.º do Regulamento 2018/858.»

 

  1. O Requerente, para fundamentar a sua tese invoca inúmeras outras considerações e decisões judiciais que não se aplicam ao caso concreto. Importa, por isso, delimitar a questão controvertida a qual se restringe, exclusivamente, à tributação devida (ou não) sobre o ato de transformação de um veículo ligeiro de mercadorias em autocaravana. Pelo caminho invoca uma quantidade significativa de informações, nem sempre coerentes ou oportunas, face à questão a decidir. Como bem reconhece o Requerente, que sem mandatário constituído decidiu ele próprio formular o pedido arbitral, não domina a língua portuguesa, pelo que recorreu a um conjunto de informações recolhidas na internet e indicou diversos links, para demonstrar que o imposto que lhe foi cobrado é ilegal e, por isso, indevido. Razão pela qual, o Tribunal tem de recortar dessa alegação extensa apenas o que releva no âmbito preciso da questão de direito a decidir.

 

Certo é que, apesar da forma do pedido arbitral, no essencial o pedido é inteligível como bem se extrai do pedido formulado e da resposta da AT, da qual se conclui que, no essencial os fundamentos e o pedido formulados pelo Requerente foram corretamente assimilados e rebatidos.

 

  1. Da análise de todos os elementos constantes dos autos, constata-se, pois, que o presente pedido de constituição de Tribunal Arbitral tem por objeto a apreciação da legalidade do ato de liquidação de ISV e IVA, praticado pela Alfândega de Faro, no valor global de €1.462,37, na sequência da transformação do referido veículo numa autocaravana.

 

  1. Desde logo, e no que concerne ao IVA, cumpre referir que nos termos do n.º 10 do art.º 7.º do CIVA, «sempre que, em momento posterior à transmissão, aquisição intracomunitária ou importação de veículos automóveis, se mostre devido imposto sobre veículos pela sua transformação, alteração de cilindrada ou de chassis, o imposto é devido e exigível no momento em que ocorra essa transformação ou alteração

Ora, no que respeita ao IVA liquidado pelo ato de transformação a norma legal é suficientemente clara e objetiva. O IVA é um imposto harmonizado no seio da União Europeia, mas isso não significa a obrigatoriedade de identidade entre os códigos de imposto sobre o valor acrescentado em toda a União. O Requerente discorda da existência de diferenças de regime nos diferentes Estados membros, mas o certo é que essa não foi a vontade dos Estados membros, ciosos da sua soberania fiscal e autonomia na regulamentação do imposto. Dito de outro modo, cada Estado membro tem o poder de regulamentar o imposto, sem adulterar a sua natureza e, sobretudo, sem introduzir normas discriminatórias quanto ao tratamento das transações que envolvam agentes económicos de diferentes Estados membros.

No caso dos presentes autos estamos perante uma situação de alcance meramente interno, de transformação de um veículo automóvel, registado e matriculado em Portugal. Não se vislumbra qualquer situação discriminatória. Pelo que, improcedem os argumentos aduzidos com enfoque na alegada ilegalidade da tributação em sede de IVA.

 

  1. Quanto ao ISV liquidado pelo ato de transformação do veículo de matrícula ... em autocaravana, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CISV, que o Requerente igualmente alega ser ilegal, há que ter em devida conta que também aqui faz sentido o que se deixou exposto no item anterior quanto à liquidação de IVA. Dito de outro modo, cada Estado membro tem o direito de definir a regulamentação dos seus impostos, respeitando as Diretivas referentes aos impostos indiretos. A União Europeia, mal ou bem, não conseguiu até hoje avançar com uma fiscalidade única e, por isso, deixa aos Estados membros uma ampla liberdade na regulamentação dos impostos a nível interno. E, embora seja evidente a elevada fiscalidade incidente sobre veículos automóveis no regime jurídico português, a verdade é que esta realidade é incontornável, face à opção de intervenção da União Europeia pela via de Diretivas que, como se sabe, diferem do Regulamento por não conduzirem a regimes jurídicos iguais ou uniformes. Tal realidade, ao fim de décadas de construção do Mercado Único e da União Europeia é algo frustrante, como se conclui da exposição do Requerente no pedido formulado. Porém, essa foi e continua a ser a opção da União Europeia em matéria fiscal, o que cria mais problemas do que soluções, mas não deixa alternativa aos Tribunais nacionais senão aplicar a lei com respeito pelos princípios consagrados nos Tratados instituidores e do Direito derivado.

 

  1. Face ao que vem exposto, a questão a decidir é a de saber se, no caso concreto a tributação em sede de ISV foi discriminatória e, nessa medida, violadora a do Direito da União Europeia, como alega o Requerente?

Pois bem, como já se referiu a propósito da incidência de IVA, também no que se refere à incidência de ISV, constata-se que o ato que deu origem à tributação foi a transformação de uma viatura automóvel matriculada e registada em Portugal desde 2005. Trata-se, pois, de aplicar as regras nacionais de fiscalidade em vigor a um ato de transformação de uma viatura nacional numa autocaravana. Não se vislumbra, nem o Requerente provou, a existência de qualquer discriminação incompatível com o DUE. Qualquer viatura que seja transformada em Portugal, como sucedeu com o veículo do Requerente, está sujeita a eventual liquidação nas condições previstas no ordenamento jurídico-fiscal português acima explanadas.

 

  1. Não subsiste dúvida sobre o enquadramento legal do ato de liquidação impugnado, já que o mesmo foi praticado de acordo com o regime jurídico atinente às transformações de veículos, estabelecido no CISV (Lei nº 22-A/2007, de 29 de junho). A AT está vinculada ao princípio da legalidade pelo que não pode deixar de aplicar as normas legais em vigor. Não se vislumbra qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou proveniência do veículo que possa enquadrar-se na jurisprudência invocada pelo Requerente.
  2. Retornando aos factos considerados provados, que deram origem à liquidação em crise, ficou provado que, em 2.11.2022 o Requerente apresentou na Alfândega de Faro o requerimento para transformação do seu veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes-Benz, com a matrícula ..., para autocaravana, com a consequente alteração da categoria fiscal do seu veículo automóvel (alteração constante da DAV junta aos autos). A partir desse momento, com o impulso do próprio Requerente e com base na alteração da classificação fiscal, foi efetuada a liquidação de ISV nos termos da lei em vigor. Este tratamento fiscal nada tem de discriminatório, corresponde, outrossim, à lei em vigor em Portugal.

 

  1. Na sua resposta argumenta a AT o seguinte: «Sucede que o veiculo automóvel em causa possuía, em 2005, data da sua admissão, a classificação fiscal de 0M3, não tendo pago imposto. Em 2005, e com relevância para a matéria controvertida, estava em vigor o DL 40/93, de 18 de fevereiro que instituiu o imposto automóvel. Sendo que, à data da sua admissão, o veículo ligeiro de mercadorias objeto dos presentes autos não estava abrangido pelas normas de incidência objetiva plasmadas naquele diploma legal e, por essa razão, em 2005, não foi liquidado imposto automóvel.

 Conforme decorre da alteração efetuada pelo artigo 40º da Lei 109º-B/2001, de 27 de dezembro (Lei do OE 2002), ao artigo 1º do DL40/93, de 18 de fevereiro, o artigo 1º do diploma, aplicável à data da admissão do veículo, o mesmo dispunha que: «Artigo 1.º “(…) 2 - Estão excluídos no âmbito de incidência do IA os seguintes veículos: a) Autocaravanas; b) Veículos ligeiros de mercadorias, de caixa aberta, fechada ou sem caixa, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, desde que não sejam considerados derivados de automóveis ligeiros de passageiros; (…). 3 - ...(…) a)(…) ... b) Os veículos que, após terem sido introduzidos no consumo, sejam objecto de alteração da cilindrada ou do chassis ou de transformação que implique a sua reclassificação numa categoria fiscal a que corresponda uma taxa de imposto mais elevada, ou a sua inclusão no âmbito de incidência do imposto. 4 –( ...)

Deste modo se verificando que, à data da admissão do veículo, nos termos do artigo supracitado, os veículos ligeiros de mercadorias, de caixa aberta, fechada ou sem caixa, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, desde que não sejam considerados derivados de automóveis ligeiros de passageiros, não estavam abrangidos pela incidência do imposto. (…)

«Importa, porém, realçar que no âmbito do DL n.º 40/93, de 18/02, como supra referenciado na alínea b) do nº 3 do artigo 1º do DL 40/93, de 18.02, as transformações de veículos já estavam sujeitas ao pagamento do IA, de acordo com o estipulado na al. b) do nº 3 do art.º 1º, nos termos do qual ficavam sujeitos ao então IA; “Os veículos que, após terem sido introduzidos no consumo, sejam objecto de alteração da cilindrada ou do chassis ou de transformação que implique a sua reclassificação numa categoria fiscal a que corresponda uma taxa de imposto mais elevada, ou a sua inclusão no âmbito de incidência do imposto.” (…) Com a entrada em vigor da Lei n° 22-A/2007, de 29 de junho, foi aprovado o Código do Imposto Sobre os Veículos (CISV), determinando o artigo 5. °, n.º 2, al. b), o seguinte:

 “Artigo 5.º Facto gerador

1- Constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal.

2- Constitui ainda facto gerador do imposto: a) A atribuição de matrícula definitiva após o cancelamento voluntário da matrícula nacional feito com reembolso de imposto ou qualquer outra vantagem fiscal; b) A transformação de veículo que implique a sua reclassificação fiscal numa categoria a que corresponda uma taxa de imposto mais elevada (…)»

Ora, face ao regime em vigor na ordem interna portuguesa a liquidação dos impostos em causa afigura-se legal e irrepreensível. Não cabe a este Tribunal ajuizar das razões que determinam a política fiscal e a lei em vigor. 

 

  1. Em conformidade com o que vem exposto constata-se que, no caso dos presentes autos, a transformação operada ao veículo de mercadorias para autocaravana implicou a sua reclassificação fiscal e a sua sujeição às normas de incidência do imposto, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. e) do CISV. Este facto é incontornável à luz do ordenamento jurídico-fiscal português. O facto gerador de imposto à luz das disposições em vigor decorrentes do CISV (transformação da viatura) imposto que em si mesmo é expressão da soberania fiscal do Estado Português.

 

  1. A única questão relevante poderia ser a de saber se a tributação incidente sobre o ato de transformação ocorrido implicou algum tipo de discriminação incompatível com o Direito da União Europeia. Como já vimos, no caso em apreciação a determinação do imposto ocorreu por aplicação do regime jurídico aplicável a este tipo de ato tributário sem qualquer distinção em função da proveniência do veículo, como parece aludir o Requerente ao invocar a jurisprudência do TJUE em sede de aplicação do artigo 11º do CISV. Ora, a jurisprudência em causa está relacionada com outra realidade, bem distinta da que aqui nos ocupa, e que tem a ver com o tratamento discriminatório entre veículos usados importados de países da União Europeia, face ao regime aplicável à tributação dos veículos transacionados dentro do mercado português em estado de uso.

 

Ora, o caso dos autos é manifestamente distinto, como bem resulta de tudo o que vem exposto.

 

  1. Consequentemente, e atenta a norma acima transcrita, é indubitável que com a requerida transformação do veículo, ocorreu facto gerador do imposto, nos termos da al. b) do n.º 2, do art.º 5.º do CISV, sendo aplicável uma taxa reduzida correspondente a 30% do imposto resultante da aplicação da tabela B a que se refere o n.º 2, do art.º 7.º, nos termos do art.º 9.º, n.º 3 do CISV. Em sede de exigibilidade do ISV, estabelece o n.º 2 do art.º 6.º que, nos casos mencionados no n.º 2 do artigo anterior, se considera verificada a introdução no consumo no momento da ocorrência do facto gerador do imposto ou, sendo este indeterminável, no momento da respetiva constatação, com a consequente tributação emergente do n.º 6 do art.º 7.º do CISV, o qual é aplicável às situações previstas na al. b) do n.º 2 do art.º 5.º do CISV.

 

  1. No caso da transformação de veículo que implique a sua reclassificação fiscal numa categoria a que corresponde uma taxa mais elevada ou que implique a sua inclusão no âmbito da incidência do imposto, como se afigura ser o caso dos autos, a exigibilidade do ISV ocorre na data da operação efetuada, ou seja, da transformação operada.

 

Tem assim razão a AT quando alega que «ao solicitar a transformação do seu veículo para autocaravana, o Requerente praticou um “facto tributário”, gerador de ISV, sendo, por isso, sujeito passivo do imposto em causa. É que, de acordo com o já citado artigo 5.º do CISV, atinente ao facto gerador do imposto, e, especificamente, com a alínea b) do n.º 2, a transformação de um veículo que implique a reclassificação fiscal numa categoria a que corresponda taxa de imposto mais elevada ou a sua inclusão na incidência de imposto, que foi o que ocorreu no caso vertente, constitui facto gerador do imposto.

 

Ora, constitui facto assente (vd. matéria de facto provada) que o veículo em questão foi matriculado pela primeira vez em Portugal, em 2005, como ligeiro de mercadorias, não tendo sido, à data, tributado em sede de Imposto Automóvel, por não se achar incluído na incidência do imposto. Já em 2022 (2-11-2022) o veículo foi objeto de transformação, e que esta, para além de ter determinado a inclusão do veículo na incidência do imposto, nos termos do artigo 2º nº 1 e) do CISV, operou uma sua reclassificação fiscal, com repercussão ao nível da tributação aplicável na introdução no consumo do mesmo.

Por último, o valor do imposto liquidado a título de ISV e IVA, no montante de €1.462,37 €, obedeceu, escrupulosamente, às normas em vigor, sem evidência de qualquer discriminação que pudesse consubstanciar uma prática violadora do Direito da União Europeia.  Acresce que, estando em causa, no caso concreto, um veículo nacional, já introduzido em Portugal, com matrícula nacional, que foi sujeito a uma operação de transformação, o que implicou a sua reclassificação fiscal numa categoria que corresponde a uma taxa de imposto mais elevada, esta transformação está sujeita a ISV, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 7.º do CISV. Por último, importa acrescentar que o valor total de imposto liquidado inclui ainda a tributação em sede de IVA, que, nos termos do artigo 7.º, n.º 10, do Código do IVA, que é devido e exigível quando ocorra a transformação ou alteração do veículo, conforme já se explanou anteriormente.

 

Conclui-se, pois, que o ato de liquidação em causa não é ilegal, improcedendo o pedido arbitral.

Com a improcedência do pedido arbitral cai o pedido de juros e fica prejudicado o conhecimento da mesma.

 

V – DECISÃO

 

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação da liquidação de ISV e IVA identificada nos autos, e consequência, o pedido de condenação em juros, formulado Requerente;
  2. Condenar o requerente no pagamento das custas processuais.

 

 

IV.  VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor da causa em 1.462,37 (mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e trinta e sete cêntimos), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

V.  CUSTAS

Ao abrigo do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €306,00 (trezentos e seis euros), a cargo da parte vencida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 31/07/ 2023

 

O Tribunal Arbitral singular,

 

(Maria do Rosário Anjos)

 



[1] Neste sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora. Manual de Processo Civil, 2ª edição (revista e atualizada), Coimbra Editora, 1985, pág. 106.