Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 52/2023-T
Data da decisão: 2023-07-17  IUC  
Valor do pedido: € 32,52
Tema: IUC – incidência subjetiva – registo de propriedade; abate de veículos.
Versão em PDF

 

Sumário:

  1. Segundo o artigo 1 do CIUC, o IUC obedece ao princípio da equivalência, procurando responsabilizar os contribuintes pelos custos ambientais e viários provocados pelos veículos poluentes.
  2. A delimitação da incidência subjetiva adotada pelo legislador (a partir de 2016) – fundada no registo – não se mostra desrazoável à luz de um critério de equivalência e do princípio da igualdade tributária, uma vez que as pessoas cujo nome figura no registo serão, na generalidade dos casos, as causadoras dos custos ambientais e viários inerentes ao uso de veículos poluentes. Para este juízo, contribui também o facto de ficar reservada ao contribuinte a possibilidade de, através do disposto no artigo 17-A do CIUC, obstar a que o seu nome conste do registo desde a data da transmissão da propriedade do veículo, ou de proceder, simplesmente, ao cancelamento da matrícula.
  3. De acordo com o artigo 4, n.º 3 do CIUC, a obrigação tributária cessa com a destruição (abate) do veículo, conquanto que essa destruição seja feita nos termos da lei. Por imposição do Direito da União Europeia, e na esteira de preocupações ambientais, o cancelamento da matrícula dos veículos em fim de vida requer a obtenção de um certificado de destruição emitido por um operador de desmantelamento. É este documento que atesta o fim de vida do veículo e que releva para efeitos da incidência temporal do IUC.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º .., ...-..., Ponte de Lima (doravante, Requerente), apresentou, em 25 de janeiro de 2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022...;

(ii) a anulação do ato de liquidação de IUC n.º 2022..., com referência ao ano de 2022;

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 27 de janeiro de 2023.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, alínea a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes, no mesmo dia, notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 03 de abril de 2023.

 

7. Em 03 de abril de 2023, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.

 

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 08 de maio de 2023, remetendo o Processo Administrativo, na sequência do qual foram as partes notificadas, por Despacho prolatado no dia 09 de maio de 2023, de que poderiam, no prazo de 10 (dez) dias, apresentar alegações escritas, facultativas e simultâneas, de harmonia com o preceituado no artigo 120, n.º 1 do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, al. c) d RJAT.

 

9. A Requerente apresentou alegações escritas no dia 24 de maio de 2023, reiterando o que constava do pedido de pronúncia arbitral. A Requerida apresentou as suas alegações escritas no dia 16 de maio de 2023, reiterando o teor da resposta.

 

II. Síntese da posição das partes

10. A posição das partes pode ser sintetizada da seguinte forma:

(a) A Requerente pugna pela anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa, que teve por objeto o ato de liquidação de IUC referente ao ano de 2022, por considerar que não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do facto tributário. Com efeito, não só o veículo, com toda a probabilidade, já não existe (elemento objetivo), como a Requerente não é proprietária do veículo (pelo menos) desde 1991, muito embora este tenha permanecido registado em seu nome até 12 de julho de 2022, data do cancelamento da matrícula (elemento subjetivo).

(b) Alega ainda que, assentando a incidência subjetiva do IUC numa presunção, a saber, na presunção de que o proprietário do veículo é a pessoa em cujo nome este se encontra registado, tal presunção é ilidível nos termos gerais, o que a Requerente entende ter sucedido in casu, em face da alienação da propriedade sobre o veículo, em 1991, e do seu mais que provável desaparecimento. Materialidade atestada pela circunstância de a AT não ter logrado, até hoje, apreender o veículo para efeitos de execução da dívida tributária.

(c) A Requerida (AT) entende, por seu turno, que com a alteração legislativa promovida pelo Decreto-lei n.º 41/2016, de 01 de agosto (aprovado ao abrigo da autorização legislativa contida na Lei n.º 7/2016, de 30 de março, que aprovou o orçamento do Estado para 2016), procurou o legislador esclarecer que o sujeito passivo de IUC é a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado, independentemente de este ser ou não o titular do direito real de propriedade. Sendo esta a redação aplicável aos factos sob litígio, que são referentes ao ano de 2022.

(d) Entende a Requerida que, mesmo não sendo o registo, do ponto de vista da lei civil, condição de validade do negócio jurídico de alineação da propriedade sobre veículos, no âmbito tributário o legislador modelou a incidência subjetiva do IUC no sentido de esta ser aferida a partir do registo automóvel, procurando criar um sistema que permitisse a liquidação de IUC dentro do prazo de caducidade. Acresce que, admitindo que o artigo 3, n.º 1 do CIUC assenta numa presunção – a presunção de que o direito registado existe na esfera do sujeito constante do registo – tal presunção é ilidível, devendo tal elisão ser feita em sede própria, no âmbito do registo, tendo em conta o disposto no artigo 17-A do CIUC e o procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal de compra e venda, tendo em vista a regularização da propriedade (regulado pelo Decreto-lei n.º 177/2014, de 15 de dezembro).

(e) Por outro lado, entende a AT que a existência do veículo – o elemento objetivo do facto tributário – deve ser aferido à luz do disposto no n.º 3 do 4 do CIUC, nos termos do qual “o imposto é devido até ao cancelamento da matrícula ou registo em virtude do abate efetuado nos termos da lei”. Esta disposição está em linha com as preocupações ambientais que enformam toda a tributação automóvel, assente no princípio do poluidor-pagador e no princípio da equivalência (artigo 1 do CIUC), procurando o legislador acautelar, em linha com a legislação europeia, o efeito nefasto que os veículos em fim de vida ou abandonados podem causar ao ambiente. Não tem razão a Requerente, portanto, quando invoca o não preenchimento do facto tributário, por falta do elemento material.

 

III – Saneamento

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2, n.º 1, al. a) e 5 do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

12. O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

IV – Matéria de facto

§1. Factos provados

13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - O veículo automóvel, identificado com a matrícula ..., emitida em 1974, está registado, desde 1986, em nome da Requerente.

2. º - A Requerente não é a proprietária do veículo pelo menos desde 1991.

3.º - À data de aniversário da matrícula (01-01-2022), o veículo encontrava-se registado em nome da Requerente.

4.º - No decurso das diligências efetuadas no âmbito do processo de penhora, o veículo não foi localizado nem recuperado.

5.º - Por iniciativa da Requerente, a matrícula do veículo foi cancelada em 12 de julho de 2022.

6.º - O veículo identificado com a matrícula  ... não foi, até hoje, objeto de abate nos termos da lei, nem há registo de que tenha sido emitido certificado de destruição.

§2. Factos não provados

14. Não há factos não provados com relevo para a discussão da causa. 

§3. Fundamentação da matéria de facto

15. O Tribunal arbitral fundou a sua convicção quanto aos factos provados com base na prova documental produzida, constante do processo administrativo junto aos autos, mormente da nota de liquidação do IUC, da documentação emitida pelo Instituto de Mobilidade e dos Transportes, I.P, relativa ao cancelamento da matrícula, e do registo do veículo.

 

16. A Requerente solicitou, no pedido de pronúncia arbitral, que este Tribunal Arbitral: (i) oficiasse o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P, Delegação distrital de Viana do Castelo, para que se juntasse aos autos toda a documentação relativa ao pedido de apreensão e cancelamento da viatura; (ii) oficiasse aquela entidade para vir dizer aos autos qual o último ano em que o veículo com a matrícula ... foi submetido a inspeção periódica; (iii) e que oficiasse a Autoridade de supervisão de seguros e fundos de pensões para vir dizer se a viatura se encontra titulada por algum contrato de seguro automóvel e, em caso negativo, qual a última vez que esta beneficiou de seguro automóvel.

 

17. Como se depreende pelo seu teor, estas são diligências probatórias através quais a Requerente pretende que se dê como provado que não é proprietária do veículo com a matrícula ... e que tal veículo já não existe materialmente. Contudo, visto que nenhuma destas asserções é posta causa pelos factos provados – bem pelo contrário – entende o Tribunal Arbitral que tais diligências probatórias se revelam desnecessárias para o ajuizamento da causa, pelo que se indefere a sua realização, ao abrigo do artigo 114 do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29 do RJAT. Não se contesta que a Requerente não é proprietária do veículo ao ano a que a liquidação se reporta (2022), nem se contesta que o veículo sob a matrícula ... poderá estar inoperacional ou ter-se convertido num resíduo. Entende o Tribunal Arbitral que as questões a decidir nos presentes autos não têm por base uma divergência sobre factos, que haja de acautelar através da produção de prova adicional à que já resulta do processo administrativo, mas que se centram, exclusivamente, sobre questões de direito, como melhor se adiantará.

 

V – Fundamentação de direito

18. A questão a decidir no presente processo arbitral prende-se com a legalidade do ato de liquidação de IUC – e, subsequentemente, com a legalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa – referente a veículo automóvel que, embora registado em nome da Requerente, esta já não era, à data da liquidação, proprietária e que, com grande probabilidade, já não existe. Trata-se, em síntese, de saber se se encontra preenchido o facto tributário que a liquidação de IUC leva pressuposta.

 

19. Ora, o IUC é um tributo de natureza periódica e anual (artigo 4 do CIUC), que assenta no princípio da equivalência (artigo 1 do CIUC), procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária. Quer isto dizer que o legislador entende que o critério material de igualdade tributária (artigo 13 da CRP) é, no caso do IUC, o critério da equivalência, nos termos do qual a medida do tributo deve ter em vista a compensação dos custos ambientais e viários a que os contribuintes deram causa através dos seus veículos. Nestes termos, sujeitos passivos que provocam custos ambientais e administrativos semelhantes devem pagar IUC idêntico; sujeitos passivos que provoquem custos ambientais diferentes devem pagar IUC diferente. Como se lê no acórdão do STA de 03-06-2020, “concebendo a disponibilidade ambiental e viária como um recurso público escasso, o legislador configura o IUC como um instrumento de compensação ou reequilíbrio entre quem polui ou desgasta a rede viária e a comunidade em geral” (cf. acórdão do STA de 03-06-2020, processo n.º 0467/14.0BEMDL 0356/18, Relator: Nuno Bastos).

 

20. Por essa razão, a base tributável de IUC não é o valor do veículo, enquanto elemento revelador de capacidade contributiva, mas antes elementos que traduzam com fidelidade aquele custo ambiental e viário, tais como a cilindrada e o nível de emissão de CO2 (artigo 2 do CIUC). Em coerência, estão isentos de IUC, entre outros, os veículos não motorizados, exclusivamente elétricos ou movidos a energias renováveis não combustíveis (artigo 5, n.º 1, c) e f) do CIUC). Num tributo regido pelo princípio da equivalência, exige-se que o rol de sujeitos passivos chamados a pagar o tributo corresponda ao rol de sujeitos passivos que causou os custos ambientais e viários que o IUC visa compensar, devendo o legislador estruturar a incidência subjetiva do tributo em torno de um critério que permita, com alguma segurança, destacar aquele conjunto de pessoas.

 

21. Entendeu o legislador, previamente à reforma de 2016, que o IUC deveria recair sobre os proprietários dos veículos, considerando-se como tais “as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. Com efeito, a propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório nos termos do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, na redação atual, que, não sendo constitutivo da validade do negócio jurídico de compra e venda do veículo, visa dar publicidade à situação jurídica em que este se encontra, tendo em vista a segurança no comércio jurídico (artigo 1 do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, na redação atual).

 

22. A lei prevê um procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal de compra e venda, a requerimento do vendedor, caso, decorrido o prazo legalmente estabelecido para efetuar o registo obrigatório, o comprador o não tenha feito (cf. DL n.º 177/2014, de 15 de Dezembro). Este procedimento releva para efeitos do IUC, atento o disposto no artigo 17-A do CIUC: “Sem prejuízo do disposto no artigo 3.º, a alteração da titularidade do direito de propriedade efetuada ao abrigo do procedimento especial para registo de propriedade de veículos adquirida por contrato verbal de compra e venda releva para efeitos de imposto único de circulação, desde a data de transmissão, quando aquele pedido for apresentado pelo vendedor no prazo de um ano após o decurso do prazo para cumprimento do registo obrigatório referido no artigo 2.º daquele procedimento especial”. Desta forma, nas hipóteses em que comprador não proceda ao registo do veículo, o vendedor goza de um expediente que lhe permite obstar ao preenchimento do facto tributário do IUC, desde a data em que deixou de ser proprietário do veículo.

 

23. A esta luz, era entendimento unânime do STA que a redação do artigo 3, n.º 1 do CIUC vigente antes da reforma de 2016 estabelecia uma presunção legal de que o titular do registo automóvel era o seu proprietário, ilidível nos termos gerais, por força do disposto no artigo 73 da LGT (cf., sobre a inconstitucionalidade das presunções inilidíveis em matéria tributária, os acórdãos n.ºs 211/2017 e 753/2014, do Tribunal Constitucional). Tratava-se, portanto, de uma disposição que, baseada em regras de experiência e de normalidade, e por razões de praticabilidade e de certeza jurídica, dispensava a administração de indagar quem era o verdadeiro proprietário do veículo, sem prejuízo de ao contribuinte ser dada a possibilidade de demonstrar que, ainda que o seu nome constasse do registo automóvel, já não era proprietário do veículo (cf. acórdão do STA de 08-06-2022, processo n.º 0217/16.6BESNT, Relator: Joaquim Condesso).

 

24. A lei do Orçamento do Estado para 2016 concedeu, no seu artigo 169, autorização legislativa ao Governo para “definir, com caráter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto [IUC] as pessoas, singulares e coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º”. Lia-se no preâmbulo daquele diploma parlamentar que as alterações a promover no artigo 3 do CIUC eram “conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com a redação anterior do Código, no sentido de clarificar quem é o sujeito passivo do imposto”. Ora, ao abrigo de tal autorização legislativa, o executivo alterou o artigo 3, n.º 1 do CIUC (cf. Decreto-lei n.º 41/2016, de 01 de agosto), de onde agora consta o seguinte: “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.

 

25. Ora, não obstante o desígnio interpretativo assumido na lei de autorização legislativa, a jurisprudência do STA, partindo de um entendimento de lei interpretativa enquanto lei que contém a interpretação autêntica de uma disposição normativa com vista à resolução de um conflito hermenêutico surgido relativamente ao seu sentido e alcance, concluiu que a nova redação do artigo 3, n.º 1 do CIUC não tem natureza interpretativa, ostentando, portanto, caráter inovador (cf. Casalta Nabais, “Notas a respeito das leis interpretativas e impostos retroativos”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro, vol. I, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 633-657).

 

26. Com uma tal redação, pretendeu o legislador – no entendimento da Alta jurisdição tributária – obstar ao surgimento de uma presunção legal sobre quem deve ser considerado proprietário do veículo, definindo como sujeito passivo do IUC a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado, independentemente de ser este o seu proprietário do ponto de vista da lei civil. O STA alicerça esta conclusão na circunstância de não existirem divergências interpretativas sobre o sentido normativo do artigo 3, n.º 1 do CIUC (antes de 2016), que sempre foi pacificamente interpretado como contendo uma presunção legal iuris tantum, ou seja, suscetível de demonstração de prova em contrário no processo tributário (cf. acórdão do STA de 03-06-2020, processo n.º 0467/14.0BEMDL 0356/18, Relator: Nuno Bastos, ou acórdão do TCA-N de 21-02-2019, processo n.º 00611/13.4BEVIS, Relator: Ana Patrocínio).

 

27. Pode, naturalmente, indagar-se do relevo jus constitucional deste desvio do decreto-lei autorizado relativamente à lei de autorização legislativa. Cumpre lembrar que a matéria dos impostos, no que respeita à determinação e densificação dos seus elementos essenciais, é matéria de reserva relativa de competência legislativa da AR (artigos 165, n.º 1, al. i) e 103, n.º 2 da CRP), havendo a atuação legislativa do Governo de fazer-se no quadro do objeto, sentido, extensão e duração definidos naquele diploma habilitante (artigos 112, n.º 2, in fine e 165, n.º 2 da CRP). Entende este Tribunal Arbitral, porém, que a nova redação do artigo 3, n.º 1 do CIUC, tal como introduzida pelo decreto-lei autorizado, se mantém fiel ao programa normativo da lei de autorização legislativa, respeitando o seu objeto, sentido e extensão. Isto porque, na verdade, atento aquele que era o entendimento pacífico sobre o artigo 3, n.º 1 do CIUC (a ausência de conflito hermenêutico sobre o seu sentido e alcance), aquilo que a lei de autorização legislativa pretendia verdadeiramente era, por razões de praticabilidade e no sentido de garantir que a liquidação de IUC se efetue dentro do prazo de caducidade, obstar a que o contencioso sobre a propriedade do veículo se fizesse no quadro do procedimento ou processo tributários. E tal sentido normativo mostra-se salvaguardado pela atual redação do artigo 3, n.º 1 do CIUC.

28. O facto gerador do IUC é a propriedade do veículo, tal como definido no artigo 6 do CIUC. No entanto, lendo conjugadamente o artigo 6 do CIUC com o supramencionado artigo 1 do mesmo Código, onde se estabelece que o IUC obedece ao princípio da equivalência, é de considerar que o legislador toma a propriedade como um elemento indiciador dos custos ambientais e viários associados ao uso de veículos poluentes. Por razões de praticabilidade e de simplicidade e no interesse (legítimo) de promover o registo dos veículos, entendeu o legislador que os sujeitos passivos do tributo não deveriam ser as pessoas que têm a propriedade dos veículos, mas as pessoas em nome das quais se encontra registada a respetiva propriedade, que podem, ou não, coincidir com as primeiras. Com esta delimitação da incidência subjetiva, pretendeu o legislador, como se adiantou supra, expurgar o contencioso sobre a propriedade do veículo do processo tributário, tornando a questão da propriedade civilística do veículo irrelevante para efeitos da incidência subjetiva do IUC.

 

29. Pode, igualmente, indagar-se da constitucionalidade desta opção legislativa, à luz do princípio da capacidade contributiva, enquanto projeção da igualdade tributária no domínio dos impostos, na parte em que dele resulta que o imposto deve recair sobre bens tributários, isto é, sobre manifestações de força económica do contribuinte sob a forma de rendimento, património ou consumo (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 296). Contudo, nessa análise, haverá que ter em conta que o princípio da igualdade tributária não se projeta, no caso do IUC, apenas num critério de capacidade contributiva, mas também ou fundamentalmente num critério de equivalência. De onde resulta que relevante, para efeitos do respeito pelo princípio da igualdade tributária, é saber se os termos em que o legislador moldou a incidência subjetiva do imposto são suscetíveis de credenciação racional à luz de um critério de equivalência, ou seja, se as pessoas em nome da qual a propriedade do veículo se encontra registada serão presumivelmente as causadoras dos custos ambientais e viários associados ao uso de veículos poluentes.

 

30. Seria impraticável fazer recair o IUC sobre os efetivos utilizadores dos veículos poluentes, porventura a solução preferível atento o princípio da equivalência. A solução anteriormente vertida no artigo 3, n.º 1 do CIUC – segundo a qual o sujeito passivo de IUC é o proprietário do veículo tal como constante do registo – punha em causa o interesse fiscal de liquidar tempestivamente a obrigação tributária, trazendo o contencioso sobre a propriedade do veículo para a esfera do processo tributário. Destarte, a delimitação da incidência subjetiva proposta pelo legislador (a partir de 2016) – fundada no registo – não se mostra desrazoável à luz de um critério de equivalência e do princípio da igualdade tributária, uma vez que as pessoas cujo nome figura no registo serão, na generalidade dos casos, as causadoras dos custos ambientais e viários inerentes ao uso de veículos poluentes. Para este juízo, contribui também o facto de ficar reservada ao contribuinte a possibilidade de, através do disposto no artigo 17-A do CIUC, obstar a que o seu nome conste do registo desde a data da transmissão da propriedade, ou de proceder, simplesmente, ao cancelamento da matrícula.

 

31. Neste sentido, e regressando ao caso concreto, é irrelevante que a Requerente (já) não seja proprietária do veículo que deu causa à liquidação de IUC, facto que este Tribunal Arbitral não põe em crise. O sujeito passivo do imposto é, desde 2016, a pessoa em cujo nome o veículo se encontra registado e essa pessoa é, com referência ao ano de 2022, a Requerente. O ato de liquidação não está ferido, por esta via, de ilegalidade.

 

32. Invoca a Requerente, adicionalmente, que o veículo, segundo as regras da experiência, já não existe, pelo que a liquidação é ilegal por falta do elemento objetivo do facto tributário. Dispõe o artigo 4, n.º 3 do CIUC, relativo à incidência temporal do imposto, que “o imposto é devido até ao cancelamento da matrícula ou registo em virtude de abate efetuado nos termos da lei”. Daqui resulta, com pertinência para o caso sub judice, que a obrigação tributária cessa com a destruição (abate) do veículo, conquanto que essa destruição seja feita nos termos da lei. Esta disposição tem de ser enquadrada num contexto mais vasto de medidas de tratamento de veículos em fim de vida. De facto, por injunção do Direito da União, mormente da Diretiva 2000/53/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Setembro de 2000, relativa aos veículos em fim de vida, os Estados-membros devem criar um sistema segundo o qual a apresentação de um certificado de destruição constitua um requisito indispensável para o cancelamento do registo de um veículo em fim de vida (artigo 5, n.º 3 da Diretiva 2000/53/CE). Em linha com o disposto na Diretiva, o artigo 85 do Decreto-lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro determina que “[O] cancelamento da matrícula de um VFV encontra-se condicionado à exibição, perante o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P. (IMT, I. P.), de um certificado de destruição emitido por um operador de desmantelamento que exerça a respetiva atividade de acordo com o disposto no artigo 87.º A finalidade subjacente a estas medidas é, como referido na Diretiva, a de “minimizar o impacto ambiental negativo daqueles veículos, contribuindo assim para a proteção, preservação e melhoria da qualidade do ambiente e para a poupança de energia” (considerando 1).

 

33. A norma constante do artigo 4, n.º 3 do CIUC confere certeza jurídica ao momento de cessação da obrigação tributária, fazendo-o coincidir com o cancelamento da matrícula ou registo em virtude de destruição do veículo efetuada nos termos da lei. Essa destruição ocorre em ambiente controlado, com atenção às regras do Decreto-lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro e às obrigações impostas pelo Direito da União e, portanto, ao interesse público de proteção do ambiente. Termos em que, não havendo registo de que o veículo tenha sido destruído nos termos da lei, não se deteta qualquer ilegalidade no ato de liquidação de IUC sob escrutínio nos presentes autos.

 

34. Atenta a conclusão de que o ato de liquidação se deve manter na ordem jurídica, mostra-se desnecessária a apreciação dos demais pedidos formulados pela Requerente no PPA.

 

VII – Decisão

Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente improcedentes os pedidos de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa e de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IUC n.º 2022...;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.

 

VIII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em €32,52, sem contestação da Autoridade Tributária.

 

IX – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em €306,00, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

Porto, 17 de julho de 2023.

 

 

 

 

Marta Vicente

(Árbitro singular)