Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 126/2014-T
Data da decisão: 2014-10-30  IUC  
Valor do pedido: € 17.716,95
Tema: IUC – incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º 126/2014 – T

Tema: IUC – Sujeito Passivo

 

 

I - RELATÓRIO

1.      Banco A, S.A., contribuinte n.º …, com sede na Rua … doravante designada por Requerente, apresentou, em 13.02.2014, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” – RJAMT), um pedido de pronúncia arbitral em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

-        A anulação de 297 (duzentos e noventa e sete) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC);

-        Reembolso do montante de € 17.716,95 correspondente ao imposto pago respeitante a essas liquidações;

-        O pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43.º da LGT.

2.      Para fundamentar a sua pretensão, a Requerente alega, no essencial, o seguinte:

-        A Requerente foi notificada, durante o ano de 2013, para proceder ao pagamento de 297 liquidações de IUC referentes a 85 veículos automóveis e respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, cujas cópias se encontram juntas aos autos, no anexo A da petição inicial;

-        O imposto em causa foi totalmente pago pela Requerente previamente à apresentação do presente pedido de pronúncia, ao abrigo do Regime Especial de Regularização de Dívidas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro;

-        A Requerente não se conforma com as liquidações ora impugnadas por considerar não ser sujeito passivo do imposto no período a que as liquidações dizem respeito, uma vez que havia já, anteriormente ao facto tributário, alienado todos os veículos tributados;

-        Embora, à data dos factos tributários, os referidos veículos continuassem registados em nome da Requerente, tal facto não é determinante para a sua qualidade de sujeito passivo, uma vez que o registo não é condição de validade do contrato de compra e venda;

-         E não obstante o disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial (CRPred) aplicável subsidiariamente ao registo automóvel, estipular que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, tal não impede que a invocada alienação seja oponível à Requerida, porque esta não é um “terceiro” para efeitos de registo. Terceiro, para efeitos de registo, nos termos do art.º 4º, n. 4 do CRPred., são “aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”,  o que não é aplicável à Requerida na presente relação tributária;

-        Nesse sentido se pronunciaram já diversas decisões de tribunais arbitrais, como as proferidas nos processos n.º 14/2013-T e n.º 27/2013-T;

-        A título subsidiário, alega ainda a Requerente que, a não se considerarem provadas as invocadas alienações, então haveria que concluir que continuariam em vigor os contratos de locação financeira, o que faria com que fossem os locatários os sujeitos passivos do imposto, ao abrigo do art.º 3º n.º 2 do Código do IUC;

-        Alega ainda a Requerente, em reforço da sua tese, que o “imposto ora sob apreciação é fortemente marcado por uma lógica ambiental, o que justifica que o encargo do imposta caiba, em primeira linha, à pessoa ou entidade que tem o potencial de utilização do automóvel;

-        Desta forma, quando, em vez de se fazer recair o imposto sobre quem efetivamente tem o poder de utilizar o veículo, se faz recair o imposto sobre alguém que não tem o poder de o utilizar – como seria o caso segundo a Requerente – a ratio do imposto resultaria violada;

-        Para evitar este resultado, o próprio legislador previu casos de equiparação à propriedade para as situações em que quem tem o poder de utilizar o veículo não é o seu proprietário, sendo uma dessas situações aquela que constitui a atividade da Requerente: a locação financeira;

-        Esta argumentação serve de base à Requerente para concluir que, existindo um contrato de locação financeira, é o locatário, e não o locador, a pessoa que deve suportar o imposto, o que de resto está de acordo com o já referido artigo 2º, n.º 2 do CIUC;

-        Alega ainda a Requerente que, no caso de locação financeira, não existe responsabilidade de ambas as partes pelo pagamento do tributo, uma vez que tal responsabilidade não se encontra expressamente estabelecida;

3.      Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT-Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

-        O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;

-        O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;

-        Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros;

-        A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;

-        No caso do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, por exemplo, o legislador tributário, não presume que “há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual” a terceiro, o legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT;

-        Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º do CIRC, o legislador, também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal;

-        Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC, têm como ratio subjacente, determinar o que deve ser considerado como rendimento, para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período, pelo que, caso se entendesse que ao usar a expressão “considera-se”, o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas, precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente intuito do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser de outro modo frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas;

-        Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

-        Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem;

-        Em face desta redação não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel;

-        O referido entendimento corresponde ao adotado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º 210/13.0BEPNF;

-        Por outro, lado, a presunção da propriedade automóvel, nos casos em juízo, decorre única, direta e exclusivamente do próprio regime registal automóvel, pelo que, se a Requerente pretende ilidir a presunção registal terá de o fazer através dos meios próprios previstos no Regulamento do Registo Automóvel;

-        O legislador quis inequivocamente que o sujeito passivo do imposto fosse a pessoa em cujo nome se encontra registada a propriedade, pois só esta interpretação é consentânea com a segurança e a certeza jurídicas e com o poder-dever da Requerida de liquidar impostos;

-         A interpretação defendida pela Requerente violaria ainda o princípio da eficiência do sistema tributário, ao pretender desconsiderar a realidade registal, na qual assenta o edifício jurídico do IUC.

-        Quanto à questão da prova da alienação dos veículos, a Requerida sustenta que os documentos probatórios oferecidos pela Requerente – as faturas relativas à venda dos veículos – não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda;

-        Finalmente, a Requerida sustenta que, caso as liquidações sejam consideradas inválidas, ainda assim nunca deveria a Requerida ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, uma vez que não existe nas liquidações qualquer erro imputável aos serviços, como requerido pelo art.º 43º, n.º 1 da LGT.

Em alegações finais, a Requerente, alegou, em síntese, o seguinte:

-        O art.º 3º, n.º 1 do CIUC contém uma presunção;

-        A interpretação defendida pela Requerida sobre este preceito, sustentando que o mesmo não contém uma presunção, seria desconforme com a Constituição Portuguesa;

-        Sendo uma presunção, é ilidível;

-        A jurisprudência existente sobre o valor probatório da fatura no âmbito do direito civil não pode ser transposta para o plano do direito tributário, em que a fatura assume um papel preponderante;

-        É com base na faturação do sujeito passivo que é apurado o IVA e o IRC devido pela mesma. Para tais efeitos, a Requerida aceita as faturas, não as considerando insuficientes;

-        Nessa medida, a invocação da alegada, por parte da Requerida, insuficiência das faturas para efeitos de iludir a presunção de propriedade automóvel no âmbito do IUC é reveladora de má-fé e violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica;

-        É intoleravelmente chocante e viola o princípio da Justiça que, tendo a AT chegado à conclusão, por exercício das suas prerrogativas, que as faturas juntas pela Requerente eram suficientemente demonstrativas das operações nela referidas para efeitos de IVA e de IRC, procure afastá-las em sede de IUC;

-         A posição defendida pela AT – e seguida pela decisão arbitral proferida no processo n.º 220/2014-T – é ilegal por violação do art.º 75º da LGT, no qual se estabelece uma presunção de veracidade dos elementos da escrituração dos contribuintes;

-        Esta presunção torna inaplicáveis todas as considerações expendidas em sede cível acerca do valor probatório das faturas;

-        À presunção contida no art.º 3º do CIUC, a Requerente opôs um documento que beneficia, também ele, de uma presunção legal de veracidade – a do art.º 75º - a qual faz prova plena acerca dos factos nele contidos;

-        Por virtude do art.º 75º, as transações a que se reportam as faturas juntas pela Requerente presumem-se verdadeiras, sem necessidade de qualquer prova adicional;

-        Cabia assim à AT o ónus de coligir indícios sérios, objetivos e fundados com base nos quais cessasse a presunção de veracidade de que gozam as faturas juntas pela Requerente, o que a Requerida não foi capaz de fazer;

-        Não tendo a Requerida sido capaz de afastar a presunção de veracidade das faturas juntas, através de indícios sérios, objetivos e fundados da sua falsidade, prevalece a prova pela de que os negócios translativos da propriedade dos veículos em causa ocorreram nos termos nelas declarados;

-        Quanto às alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 25º do Regulamento do Registo Automóvel, não significam que as entidades aí referidas podem promover o registo em nome do adquirente do veículo;

-        As disposições citadas têm o seguinte escopo: o vendedor que seja “entidade comercial que tenha por atividade principal a compra de veículos para revenda” pode, através de requerimento proceder “ao pedido de registo da propriedade [por si] adquirida em virtude de [ou por conta da futura] alienação de veículo no exercício dessa atividade;

-         Não é este, porém, o caso da Requerente. Para registar a propriedade a favor dos adquirentes, esta necessitaria de uma declaração assinada pelos clientes;

-        Em todo o caso, ainda que a Requerente tivesse capacidade para promover o registo por si só, tal facto não obstaria à ilegalidade das liquidações impugnadas porque a responsabilidade da Requerente em matéria de IUC não é dependente do seu grau de diligência em promover o registo;

-        A atualização do registo não resolve o problema em questão nos autos, que é o da falta de capacidade contributiva por parte da Requerente quanto às liquidações de IUC impugnadas;

-        Não se considerando procedentes os argumentos supra invocados – no que a Requerente não concede – e se conclua que a Requerente não logrou demonstrar a transmissão da propriedade dos veículos, deve então admitir-se que, no momento da exigibilidade do IUC em causa, estavam ainda em vigor os contratos de locação  financeira no termo dos quais as ditas viaturas foram alienadas;

-        Não existe uma terceira possibilidade: apenas uma destas duas hipóteses se pode ter verificado;

-        O que acarretará a conclusão de que o IUC em causa 
não era, de igual modo, da responsabilidade da Requerente mas sim dos clientes  locatários;

 

Também a Requerida apresentou alegações finais, em que:

-        Reafirmou toda a argumentação expendida na resposta;

-        A presunção de propriedade que impende sobre a Requerente quanto aos veículos objeto de tributação nas liquidações impugnadas resulta do registo automóvel;

-        Sendo assim, a sua ilisão é uma operação situada a montante do art.º 3º do CIUC, não podendo aquele resultado ser alcançado, como agora pretende a Requerente, por via de uma operação a jusante e direcionada contra uma mera consequência fiscal de um registo tabular;

-        As faturas juntas pela Requerente não são aptas a ilidir a presunção de propriedade resultante do registo automóvel, porquanto são documentos unilateralmente emitidos pela Requerente;

-        É destituído de sentido o argumento agora suscitado pela Requerente de que “A AT, que assumiu anteriormente a aceitação das faturas para efeitos fiscais (i.e., a sua suficiência para titular operações que, com base nas faturas, sujeitou a imposto), procura agora rejeitá-las, invocando que se trata de documentos unilaterais e particulares;”

-        Pois tal argumento, a ser aceite, implicaria que, na ausência da abertura de uma ação inspetiva por parte da Requerida no seguimento da apresentação de uma declaração de IVA ou de IRC, se teria por assente e para todo o sempre o ali declarado pela própria Requerente;

-        Quanto ao argumento de que a Requerida “nem sequer organizou os seus argumentos em torno de uma eventual falsidade das faturas”, trata-se de uma confusão da Requerente pois, como se sabe, a inveracidade dos documentos (o mesmo é dizer a falsidade dos documentos) apenas é dirigida contra os documentos autênticos (artigos 363.º, n.º 1 e 2, e artigo 372.º do Código Civil), categoria na qual não se integram faturas juntas aos autos;

-        A Requerente confunde o valor probatório do documento enquanto tal (isto é, a sua genuidade ou autenticidade) com o valor probatório atribuído aos factos nele constantes;

-        A Requerida não colocou em causa o valor probatório das faturas, ou, por outra, não colocou em causa a sua autenticidade, pelo que nenhuma necessidade tinha de recorrer, por exemplo, ao expediente processual previsto no artigo 444.º do CPC;

-        Aquilo que a Requerida colocou em causa foi, sim, o valor probatório atribuído aos factos constantes das faturas, ao afirmar que aqueles documentos não podem, só por si, provar aquilo que a Requerente afirma;

-        Em apoio desta interpretação, propõe-se o confronto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-04-1991 (Boletim do Ministério da Justiça n.º 406.º, pág. 731), no qual se diz: “Um documento particular apenas pode ser invocado com valor probatório pleno pelo declaratário contra o declarante, enquanto que em relação a terceiros só vale como elemento de prova a apreciar livremente;”

-        E também o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3-11-1992 (Boletim do Ministério da Justiça n.º 421.º, pág. 512), no qual se diz: “I- O documento particular só pode ter valor probatório pleno se for invocado pelo declaratário contra o declarante, seu autor. II – Em relação a terceiros, o documento particular é um elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal;”

-        A inequívoca declaração de vontade dos pretensos adquirentes poderia ser indiciada mediante a junção de cópias dos requerimentos para registo automóvel, pois trata-se de documentos assinados pelas partes intervenientes. Contudo a Requerente nunca juntou tais documentos quando podia e devia tê-lo feito;

-        Sendo certo que não é por via de apresentação de uma fatura que um qualquer conservador do registo automóvel promove uma alteração do registo de propriedade;

-        E não promovendo o conservador do registo automóvel tal alteração, então por maioria de razão não se pode pretender que a Requerida e este Tribunal incorram em tal erro;

-        A considerar-se – no que não se concede – que a Requerente ilidira a presunção de propriedade que sobre si impende, seria sempre de atender a que o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registo e Notariado, e não de acordo com informação gerada pela própria Requerida;

-        Circunstância que não poderá deixar de ser levada em linha de conta na determinação da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais decorrentes deste processo;

-        Relativamente ao pretenso conhecimento dos contratos de locação por parte da Requerida, a Requerente em momento algum deu cumprimento à obrigação de comunicação desses contratos prevista no artigo 19.º do CIUC.

 

 

 

II – QUESTÕES A DECIDIR

 

Quanto às questões a decidir nesta pronúncia arbitral, identificam-se na petição inicial várias questões, das quais consideramos que teriam, em abstrato, relevância para a causa as seguintes:

-        Falta de fundamentação dos atos de liquidação;

-        A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;

-        A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos;

-        A qualidade de sujeito passivo de IUC dos locatários em contratos de locação financeira de viaturas.

Quanto à questão da falta de fundamentação, embora ela seja suscitada pela Requerente, não são oferecidos quaisquer argumentos para a fundamentar, o que faz com que o Tribunal não tenha como se pronunciar sobre ela.

IV – FUNDAMENTAÇÃO

A.    FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES PARA A DECISÃO

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:

1º: A Requerente foi notificada, durante o ano de 2013, para proceder ao pagamento das liquidações de 297 liquidações de IUC referentes a 85 veículos automóveis e respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, cujas cópias se encontram juntas aos autos, no anexo A da petição inicial;

2º Os 85 veículos encontravam-se, todos eles, à data dos factos tributários, registados em nome da Requerente;

3º: A Requerente procedeu ao pagamento do total do valor do respetivo imposto anteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral;

4º: A Requerente emitiu faturas relativas à venda dos 85 veículos a que dizem respeito as liquidações de IUC impugnadas.

Consideraram-se provados os factos indicados com base na prova documental oferecida.

Não há factos considerados não provados com relevância para a decisão.

B.     QUANTO AO MÉRITO DA CAUSA

 

1.      Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

 Sobre esta questão, nos exatos termos em que aqui se apresenta, pronunciou-se anteriormente o laudo arbitral proferido no processo n.º 63/2014-T, ao qual inteiramente se adere e que, por esse motivo, se passa a citar:

 

“Dispõe o artigo 3º do CIUC:

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)

Mas o Regulamento do Registo Automóvel  contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).

O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).

O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.

Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.

A AT- Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.

Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.

Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data dos factos tributários, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.

Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adotou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.

Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.

A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?

 Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?

A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.

A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.

Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.

Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. 

A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).

Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.

A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.

Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas

O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal,  em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

Conclui-se assim, acompanhando a decisão citada, que o art.º 3º do CIUC contém uma presunção em matéria de incidência tributária, relativa à qualidade de proprietário de um veículo.

2.      Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

2.1.            Sobre a ilisão da presunção de propriedade decorrente do registo automóvel através de faturas de venda de veículos

Concluído que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, daí decorre que tal presunção é ilidível, nos termos do artigo 73º da LGT.

No entanto, a propriedade automóvel, no ordenamento jurídico português, está sujeita a registo obrigatório, do qual resulta igualmente uma presunção de que o titular do direito de propriedade é a entidade a favor de quem o mesmo direito se encontra registado. Esta presunção encontra-se expressamente estabelecida no artigo 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel.[1]

Se é certo que a presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC é estabelecida tendo em vista os fins da tributação, já a presunção estabelecida pela lei registal tem em vista a segurança jurídica em geral. Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.

No que toca à ilisão da presunção do registo automóvel, existe jurisprudência firmada no sentido de que é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).

Para provar que o direito de propriedade sobre os veículos pertence a outrem, a Impugnante apresenta faturas relativas à venda dos veículos em causa. E pretende, com tais documentos, provar que alienou os veículos.

No entanto, no entender deste Tribunal arbitral, e em consonância com a decisão arbitral anteriormente citada, nem as faturas provam a alienação, nem provar a alienação equivale a provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, pelas razões que a seguir se expõem.

Sendo a compra e venda um negócio bilateral, provar que o contrato de compra e venda foi concluído pressupõe provar que foram emitidas declarações de vontade eficazes por ambas as partes do contrato. A fatura, porém, é um documento unilateral, que apenas pode fazer prova da declaração do seu emitente.

Neste sentido existe sólida jurisprudência dos tribunais cíveis relevante para o caso que aqui nos ocupa, citada na decisão arbitral referenciada antes.

Num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-2-2010, (Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8) afirma-se, referindo-se às faturas apresentadas como meio de prova de uma contrato de compra e venda: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas faturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante)”.

Noutro acórdão do mesmo Tribunal de 26-11-2009 (Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respetivo subscritor”).

E ainda num terceiro acórdão do mesmo Tribunal de 5-6-2008 (Proc. 1586/2008-8), o Tribunal sentencia que “a exigência de um pagamento por fatura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade faturada.”

Em face do exposto, é forçoso concluir, como na decisão arbitral citada, que a Requerente não logrou provar a alienação dos veículos.

Porém, como foi dito anteriormente, não bastaria à Requerente, para ilidir a presunção de propriedade que decorre do registo, provar que alienou os veículos. Como é dito nos arestos anteriormente citados, para ilidir a presunção de veracidade dos factos constantes do registo, neste caso a presunção de propriedade automóvel, há que provar que é outro o titular do direito registado.

Ora, provar – o que não se provou – que se celebrou um contrato de compra e venda em determinado momento não implica deixar provado que, vários anos depois, é outro o titular do direito, pelas mais elementares regras da lógica.

É irrelevante, para esta questão, qualquer consideração acerca das circunstâncias concretas e particulares do negócio que esteja em causa, pois a questão que se analisa não é uma questão de facto, mas uma questão de direito probatório material. A questão de direito probatório em causa é a de saber se um documento particular e unilateral tem força probatória para, por si só, destruir a prova plena que o registo constitui.

Tratando-se de uma questão de direito, o que importa saber é se uma declaração particular e unilateral deve, em abstrato, ser considerada suficiente para destruir a presunção registal.

Sobre a ilisão da presunção de veracidade do registo, diz Mouta Guerreiro (Mouteira Guerreiro, J. A., Noções de Direito Registral, 2ª ed. Coimbra ed.1994, p. 70): “A proteção conferida pelo registo taduz-se no nosso sistema, numa presunção elidível. Mas, não o podemos esquecer, trata-se de uma presunção legal. (…) O que o registo revela não pode ser impugnado, mesmo em juízo, sem que simultaneamente se peça o cancelamento.

O mesmo autor (Ibidem, p. 71) acrescenta: “Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exatidão a regra prevista no art.º 8º do Crp. Se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito “nos precisos termos em que o registo o define”, não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo. Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a ação não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de chegar a uma efetiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos.

O entendimento exposto é sancionado pela jurisprudência dos tribunais superiores. Vejam-se os acórdãos anteriormente citados, nos quais se afirma que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do registo automóvel, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respetivo cancelamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).

Ou seja, dada a função de garantia da segurança das relações jurídicas relativas a bens sujeitos a registo, para que não seja arrasada a função probatória do registo, aquele que pretenda afastar a presunção terá de estar em condições de pedir o cancelamento do registo. É este o sentido, segundo o interpretamos, de anteriores decisões arbitrais, em que se afirma que o sujeito passivo, para afastar a presunção de propriedade automóvel que sobre si impende por força do registo, teria de estar em condições de provar quem é proprietário do registo.

Há, pois, que concluir, que os documentos apresentados pela Requerente não provam que é outro o titular do direito registado, como era exigido a fim de se considerar ilidida a presunção registal.

Alega a Requerente que, ao decidir neste sentido, se está a impor ao sujeito passivo uma prova impossível.

No entanto, é a própria Requerente a reconhecer que podia ter pedido o cancelamento da matrícula dos veículos e que não o fez, não por lhe faltarem os meios jurídicos, mas apenas por razões que se prendem com a conveniência da sua atividade comercial. É a própria Requerente, pois, que reconhece, que a prova que se lhe exige está ao seu alcance.

 

2.2.            Quanto à questão da aplicabilidade ao caso vertente da presunção do artigo 75º da LGT

A Requerente argumenta que à presunção do art.º 3º n.º 1 do CIUC, contrapõe outra presunção, a do art.º 75º da LGT.

No entender da Requerente, ao não ter a Administração Tributária posto em causa a validade da contabilidade da Requerente em sede de IRC e de IVA, também teria de aceitar a veracidade das declarações contidas nas faturas apesentadas.

A Requerente incorre, também aqui, num erro de lógica.

No âmbito do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, vigora o princípio que, em Portugal, a doutrina maioritária designa como dependência parcial entre a determinação do lucro tributável e a contabilidade comercial (Cantista Tavares, T., IRC e Contabilidade - Da Realização ao Justo Valor, Almedina, Coimbra, 2011) e que também pode ser enunciado através da expressão “efeito preclusivo da contabilidade comercial para a determinação do lucro tributável” ou “conexão formal”.

Dissecando este princípio, dele se deduzem os seguintes corolários:

1º: A contabilidade comercial – a contabilidade elaborada para efeitos de direito comercial e validada pelos órgãos de controlo do direito privado - quando esteja em conformidade com o direito contabilístico, tem valor probatório quanto aos factos que reflete;

2º As decisões contabilísticas discricionárias efetuadas pelo sujeito passivo na contabilidade comercial são preclusivas para efeitos fiscais.

Centremo-nos no primeiro corolário: a contabilidade comercial tem valor comercial quanto aos factos que reflete.

Que factos refletem as faturas, quando nos estamos a referir à determinação quer do lucro contabilístico, quer do lucro tributável? Exatamente os mesmos que os tribunais cíveis admitem ser os que se provam através das faturas, ou seja, as declarações negociais dos respetivos emitentes e nada mais.

As faturas comerciais refletem duas espécies de factos financeiros: réditos (ou proveitos) e gastos (ou custos), pois são esse os únicos factos que interessam para efeitos de determinação do lucro – quer fiscal quer contabilístico -, tal resultando da própria noção de resultado líquido, o qual forma a base do lucro tributável.

Suponha-se que o sujeito passivo A contratou, na qualidade de vendedor, com B, comprador, a venda de um bem X. Emitiu uma fatura. Registou esta fatura na sua contabilidade. Sobrevém o final do ano, não se encontrando a fatura ainda paga. No início do ano seguinte o comprador informa que pretende fazer devolução do bem. Este facto é irrelevante para efeitos da contabilização do rédito no ano em que a fatura foi emitida.

Suponhamos um outro caso: o sujeito passivo C contratou, na qualidade de vendedor, com D, comprador, a venda de um bem Y. Emite uma fatura e contabiliza o rédito. O comprador paga o preço mas nunca faz o levantamento do bem, pelo que o bem nunca sai da posse do vendedor. A fatura e o registo contabilístico referente à venda não refletem este facto, sem que isso afete minimamente a validade quer de um quer de outro. 

Suponhamos ainda um terceiro caso: o sujeito passivo E está convencido que contratou, na qualidade de vendedor, com F, na qualidade de comprador, a venda de um bem Z. Emite uma fatura e contabiliza o rédito. Mas F não se considera obrigado para com E. A fatura e o correspondente rédito serão, não obstante, relevados contabilisticamente e refletidos no lucro tributável. Também aqui, a validade da fatura e do lançamento contabilístico não são afetados.

Resumindo, no IRC, as faturas provam proveitos e gastos e são estes os factos que a Administração aceita como verdadeiros quando aceita a contabilidade como válida. Não provam, nem a celebração de contratos nem a transferência de propriedade.

Quanto ao IVA, a situação é idêntica. A fatura comprova que o sujeito passivo considera que concluiu a venda ou a prestação de serviços. Também aqui, a fatura não comprova – e é irrelevante para efeitos de liquidação de IVA, nos termos do artigo 7º, n.º 1, al. a) – se o bem saiu ou não da posse e da propriedade do sujeito passivo, e não revela nada acerca do que possa ter ocorrido num momento posterior na relação entre o sujeito passivo e o seu cliente. Na lei deste imposto existe, inclusivamente, um extenso preceito – o art.º 78º – respeitante a regularizações que se tornam necessárias em virtude da ocorrência de factos que modificam as condições da transação, nomeadamente em caso de “invalidade, resolução, rescisão, ou redução do contrato”.

Porque os documentos contabilísticos provam apenas as declarações negociais de quem os emite, à Administração Tributária, no que respeita aos ingressos do sujeito passivo (facto contra o sujeito passivo), bastam as faturas emitidas por este. Mas já em relação aos custos (facto a favor do sujeito passivo) exige-se a declaração de outra entidade (têm plena aplicação aqui as regras do direito comercial sobre o valor probatório da contabilidade, segundo as quais os registos contabilísticos fazem prova contra o comerciante mas não a seu favor[2]), não bastando já uma declaração unilateral do sujeito passivo.

Não pondo em causa a validade da contabilidade do sujeito passivo para efeitos de IRC e de IVA, a Administração Fiscal aceita como verdadeiras as declarações negociais unilaterais que ai se contêm, quer nos registos contabilísticos, quer nas faturas, limitando-se a sua aceitação ao valor que tais declarações unilaterais têm. Uma vez que na contabilidade da Requerente não se encontram declarações negociais dos alegados adquirentes dos veículos, dela não se retira que os veículos tenham sido alienados.

Não existe, consequentemente, violação do princípio da Justiça.

 

 

2.3.            Conclusão quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

De todo o exposto resulta que a Requerente não ilide a presunção que sobre si recai quanto à titularidade da propriedade dos veículos sobre os quais incidem as liquidações de IUC impugnadas, e que, por conseguinte, as liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade.

Improcede portanto, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas com base em erro nos pressupostos de Direito, por falta dos pressupostos da incidência subjetiva do Imposto quanto à Requerente.

 

3.      Quanto ao afastamento da qualidade de sujeito passivo da Requerente por essa qualidade caber aos locatários dos veículos

A título subsidiário, alega ainda a Requerente que, a não se considerarem provadas as invocadas alienações, então haveria que concluir que continuariam em vigor os contratos de locação financeira, o que faria com que fossem os locatários os sujeitos passivos do imposto, ao abrigo do art.º 3º n.º 2 do Código do IUC.

Esta argumentação assenta, também ela, num elementar erro de lógica. Existindo um contrato de locação financeira, e chegando o contrato de locação financeira ao seu termo, sem que o locatário adquira a propriedade do bem, este último facto não implica, de maneira nenhuma, que o contrato de locação financeira continua vigente.

Se os contratos de locação financeira a que a Requerente se refere estão em vigor, o que a Requerente tinha de ter feito era oferecer elementos que provassem que os contratos de locação financeira estão em vigor.

Ora, a Requerente não tentou provar que os contratos de locação financeira estão em vigor, o que, se estão em vigor, poderia ter feito.

 

VI. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 17 716,95 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 1224.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 30 de outubro de 2014.

 

 

O Tribunal arbitral

 

 

(Nina Aguiar)

 



[1] DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

[2] GALEOTTI-FLORI, M. A., “Aspetti fiscali della politica di bilancio”, Rivista dei Dottori Commercialisti, 6 (1974), p. 963.