SUMÁRIO:
1. A Directiva da Poupança, no artigo 6.º, define o conceito de juro para efeitos de comunicação, sem que isso implique que, no Estado de residência, o rendimento comunicado preencha necessariamente a norma de incidência que tributa os juros - em Portugal, as da categoria E, rendimentos de capitais.
2. Por outro lado, a Directiva também prevê que “caso um agente pagador não disponha de qualquer informação relativa à parte dos rendimentos proveniente de pagamentos de juros, o montante total dos rendimentos deve ser considerado como pagamento de juros”, sem que isso constitua presunção de que o rendimento é juro para efeitos de tributação no Estado de residência.
3. Recebida a comunicação no âmbito da Directiva, impõe-se que a AT aja de acordo com os princípios conformadores da sua actividade, designadamente, o de prosseguir a justiça, na vertente da verdade material e o do inquisitório, àquele intrinsecamente ligado, e que precede o ónus da prova, dando cumprimento ao disposto no artigo 56.º da LGT.
4. Um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da tutela da confiança legitima, o que também está ligado à certeza e segurança do Direito.
DECISÃO ARBITRAL
1. RELATÓRIO:
A..., casado, contribuinte fiscal número ..., e B..., casada, contribuinte fiscal número ... (doravante, apenas “os Requerentes”), vieram, a 13 de Dezembro de 2022, ao abrigo da alínea a) do n.º do artigo 10.º do Decreto nº 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante apenas designado por “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
O objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral são as a decisão de (in)deferimento parcial da reclamação graciosa e a decisão de indeferimento do recurso hierárquico por eles apresentados e, o objecto mediato, o acto de liquidação oficiosa 2018..., de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do ano de 2014, e juros compensatórios, no montante de 36.333,40€, cuja anulação os Requerentes peticionam.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 31-01-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal arbitral singular foi constituído em 20-02-2023.
Nessa mesma data, o Tribunal proferiu despacho nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT.
A 27.03.2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo-se por impugnação, sustentando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, e juntou aos autos o processo administrativo,
No dia 10 de Maio de 2023 foi realizada uma reunião em que foi produzida prova testemunhal. A reunião foi gravada e foi lavrada a respectiva acta.
No final da diligência, o Tribunal notificou as partes para, na sequência da prova testemunhal produzida e no prazo de dez dias, procederam à junção aos autos de todos os documentos que considerem pertinentes relativos ao exercício de 2015, bem como, eventuais pedidos de informação a entidades estrangeiras fiscais referentes ao exercício de 2014.
Os Requerentes vieram juntar documentos e o Tribunal, seguidamente, notificou as partes para no prazo simultâneo de quinze dias, virem, querendo, produzir alegações escritas acerca da prova testemunhal produzida na inquirição que teve lugar e a Requerida para, antes disso ou até no mesmo prazo e na mesma peça, pronunciar-se sobre os documentos juntos pelos Requerentes, dando ainda nota de que a decisão seria proferida até ao dia 29 de Junho de 2023 e de que os Requerentes deveriam vir aos autos demonstrar o pagamento da taxa arbitral remanescente.
As partes apresentaram alegações.
Posição dos Requerentes:
Os Requerentes sustentaram, nas peças que apresentaram diante da AT e diante deste Tribunal Arbitral, que as entidades de Jersey comunicaram três rúbricas à congénere portuguesa, totalidade relacionados com a carteira de investimentos financeiros detida pelos Requerentes e cuja gestão competia à entidade C... que, por sua vez, a cada exercício económico (ano civil) emite um relatório “Tax Pack Book” ou “Livro Resumo de Impostos” que tem por objectivo auxiliar os investidores no cumprimento das suas obrigações declarativas fiscais. Foram elas, em 2014:
- 54.572,48€ - conta nº ...
- 2.332,18€ - conta nº ...
- 371,79€ - conta nº ... .
Que relativamente a:
- 371,79€ - conta nº ... - página 17 e 18 - Sob o título “Statement of Cash Movements for Account: £ Capital No:...” em Libras
Verificadas as páginas 17 e 18, e excluindo do extracto da conta, os movimentos de fundos, troca de moeda, liquidação de compras, que não concorrem para a formação de rendimento tributável, restam os juros/dividendos recebidos, que depois de convertidos de libras a euros nas datas das transacções, totalizam o valor indicado.
Que relativamente a:
- 2.332,18€ - conta nº ... - página 21 e 22 - Sob o título “Statement of Cash Movements for Account: EUR Income No: ...” em Euros
Verificadas as páginas 21 e 22, e excluindo do extracto da conta, transferências de capital entre contas que não concorrem para a formação do lucro tributável, restam juros/dividendos recebidos, totalizam o 3.150,55 € (acima do conhecido pela AT).
Mas que: relativamente a:
- 54.572,48€ - conta nº ... - página 19 e 20 - Sob o título “Statement of Cash Movements for Account: EUR Capital No: ...” em Euros
Verificadas as páginas 19 e 20, e excluindo do extracto da conta, transferências de capital ou fundos, troca de moeda, entre contas que não concorrem para a formação do lucro tributável, se constata que se trata de uma conta de Compra e Venda de acções.
Na verdade, os Requerentes sustentam que foram promovidos três momentos de vendas de acções, a saber:
03.10.2014 – Venda 170.0000 - ... pelo montante de 20.284,93 €;
07.10.2014 – Venda 1150.0000 – ... pelo montante 24.674,98 € e
20.10.2014 – Venda 34100.0000 – ... pelo montante 34.287,55 €.
Verificáveis, nas páginas 19 e 20 já referidas e nos “Contract Notes”
Que duas dessas vendas juntas perfazem o valor comunicado de 54.572,48 € na AT e aqui em discussão:
03.10.2014 – Venda 170.0000 - ... pelo montante de 20.284,93 €;
20.10.2014 – Venda 34100.0000 – ... pelo montante 34.287,55 €.
20.284,93 €+ 34.287,55 € = 54.572,48 €
Que, para efeitos de tributação é necessário saber o valor de compras desses mesmos títulos e que neste caso, por consulta às mesmas páginas 19 e 20, são,
29.08.2014 – Compra 170.0000 - ... pelo montante de 20.756,92 €;
20.06.2014 – Compra 1150.0000 – ... pelo montante 23.778,66 € e
16.06.2014 – Compra 34100.0000 – ... pelo montante 35.815,23 €.
Verificáveis, nas páginas 19 e 20 já referidas e nos “Contract Notes”
pelo que da diferença entre as compras e a vendas resulta uma menos valia.
Consideram os Requerentes assim demonstrado que os valores já declarados na Modelo 3 de IRS e liquidados, no Campo 422 do Quadro 4 do Anexo J, no montante de 3.461,17 € incluem os montantes conhecidos e relativos às contas ... e ..., não havendo por isso qualquer liquidação adicional a ser efectuada e que a conta ..., diz respeito a compra e venda de acções, enquadrável na categoria G, e que dos valores do calculo resulta uma menos valia não havendo por isso qualquer tributação adicional a ser efectuada.
Os Requerentes, vêem ainda por este meio, relembrar que relativamente ao ano exercício de 2015, período no qual eram residentes em Portugal e em simultâneo, detinham idêntica carteira de investimentos em Jersey, idêntica situação de dúvida e de liquidação adicional foi instaurada contra os mesmos para o ano de 2015. E que intentados vários esforços, foi possível demonstrar exactamente aquilo que aqui trazem relativo ao ano de 2014 e que as liquidações adicionais de 2015 foram corrigidas a seu favor.
Posição da Requerida:
A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, na fundamentação que serviu de base à liquidação que é o objecto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral, que o ficheiro informático que recebeu da sua congénere de Jersey, “no âmbito da Directiva 2003/48/CE do Conselho, de 3 de Junho (Directiva da Poupança)”, com a seguinte informação relativa aos Requerentes:
significa que estes valores são relativos a juros e que, portanto, estão sujeitos a tributação.
Na decisão de (in)deferimento parcial da reclamação graciosa, a Requerida, face aos argumentos e aos documentos juntos pelo sujeito passivo, disse, fundamentalmente, que os documentos juntos não provam que aquelas transacções digam respeito ao valor comunicado pelos autoridades de Jersey, porque, entende, os valores não coincidem e não se consegue estabelecer o nexo causal entre as transacções.
Na decisão de indeferimento do recurso hierárquico, a Requerida manteve a sua posição, sem nova argumentação.
2. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.
O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.
3. MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:
1. Os Requerentes submeteram no dia 15-10-2018, a Declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano 2014, com a identificação ...-...-..., na qual declararam rendimentos no valor de 3.461,18, com imposto pago no estrangeiro;
2. Na sequência dessa declaração para liquidação, a AT emitiu a nota de liquidação da qual resultou imposto a pagar pelos Requerentes no valor de 1.512,62€;
3. Em 5 de Dezembro de 2018, os contribuintes foram notificados de uma nova liquidação de IRS e juros compensatórios, no valor global de 36.333,40€, que teve por base a seguinte fundamentação:
«No âmbito da Directiva 2003/48/CE do Conselho, de 3 de Junho (Directiva da Poupança), transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei n.º 62/2005, de 11 de Março, foi recebida nesta Direção de Serviços informação dos diversos Estados membros, países terceiros e territórios dependentes e associados, sobre os rendimentos da poupança sob a forma de juros neles obtidos por sujeitos passivos residentes em território nacional no ano 2014. No que se refere ao sujeito passivo, A... (NIF...), e de acordo com a informação transmitida pelas Autoridades Fiscais de Jersey, o mesmo auferiu, no exercício de 2014, os seguintes rendimentos sob a forma de juros:
Mais se informa que a comunicação desta informação pelas diversas autoridades fiscais à Direção de Serviços de Relações Internacionais resulta do mecanismo de troca automática previsto na própria Directiva da Poupança, processando-se do seguinte modo: Os ficheiros informáticos são recebidos de forma massificada pelo Núcleo Antifraude e Datawarehouse (NADW) através da caixa de correio electrónico “CCN-mail2” no formato XML, sendo posteriormente sujeitos a um conjunto de procedimentos informáticos compreendendo diversas fases que envolvem quer o Núcleo de Identificação e Gestão de Contribuintes (NIGC) quer a Direção de Serviços de Relações Internacionais, com vista ao tratamento da informação. Deste processo resultam ficheiros em formato Excel com a informação dos sujeitos passivos potenciais incumpridores pela omissão destes rendimentos, que são remetidos à Direção de Finanças do domicílio fiscal dos sujeitos passivos. Desta forma, não existe qualquer outro documento físico de suporte referente às comunicações efectuadas pelas demais autoridades fiscais à Direção de Serviços de Relações Internacionais no âmbito da Directiva da Poupança para 2014. A informação apresentada foi obtida ao abrigo das convenções e acordos internacionais em vigor, estando sujeita às disposições de sigilo aí previstas, não podendo ser utilizada para fins diferentes dos declarados na legislação aplicável.»
4. Os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra tal acto de liquidação aos a 15 de Fevereiro de 2019, argumentando que os montantes assinalados não respeitam a juros, mas a mais-valias, de acordo com o seguinte quadro constantes de relatório que juntaram:
5. Tal reclamação graciosa foi objecto de indeferimento parcial por despacho de 8 de Abril de 2022, notificado aos Requerentes a 14 de Abril de 2022, com a seguinte fundamentação:
6. A 12 de Maio de 2022, os Requerentes recorreram hierarquicamente da decisão de (in)deferimento parcial da reclamação graciosa, no qual reiteram que o valor de 54.572,48€ do Tax Pack Book (pp. 19 e 20) relativo à conta ... não se referem a juro e que o valor comunicado pelas autoridades de Jersey como interest foi mal interpretado e subsumido pelo Estado Português;
7. Em 8 de Setembro de 2022 foi proferido despacho de indeferimento do recurso hierárquico apresentado pelos Requerentes, que lhes foi notificado 12 de Setembro de 2022, com a seguinte fundamentação:
8. O valor de 54.572,48€, correspondente à conta nº ..., comunicado pelas autoridades de Jersey à congénere portuguesa com a designação interest respeita a movimento relativos a aquisições e alienações de acções/títulos de participação em fundos.
Factos não provados
Não se provaram outros factos relevantes para a decisão da causa.
Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos do processo administrativo e nos juntos pelos Requerentes Requerente, bem como as testemunhas inquiridas.
Quanto aos documentos juntos, a convicção do Tribunal quanto ao ponto 8 da matéria dada como provada baseou-se no Tax Pack Book e nos contratos de compra e venda dos títulos, pela entidade C... Limited, pelos documentos relativos ao procedimento de liquidação de IRS relativo ao exercício de 2015 e à reclamação graciosa apresentada, do qual se extrai que surgiu problema idêntico, mas que a AT, ao contrário do que sucedeu no caso em apreço, valorou a prova apresentada pelos Requerentes, que consistiu em documento similar, emitido pela mesma entidade, com a única diferença de se tratar de diferente exercício.
Para a prova do ponto 8 foi também relevante o depoimento das testemunhas arroladas pelos Requerentes – com destaque particular para a testemunha E...– que depuseram com clareza e ofereceram esclarecimentos importantes sobre matérias semelhantes à que se encontra em discussão nos autos. O facto de não terem, nenhuma delas conhecimento directo sobre os factos em análise – o que, aliás, não encobriram –e foi levado em consideração pelo Tribunal, como foi também levado em consideração o facto de a AT, no exercício de 2015 – conforme consta do documento junto pelos Requerentes- ter valorado positivamente a certificação que a testemunha, E..., fez do documento apresentado pelos Requerentes na reclamação graciosa, demonstrando que a considera isenta e fidedigna.
Não vislumbra o Tribunal razões - e a AT recusou fornecer explicações - para que a prova que foi aceite pela AT num exercício seja desconsiderada no outro.
4. MATÉRIA DE DIREITO
Aqui chegados, cumpre, antes de mais, recordar que o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa declarar a ilegalidade de actos dos tipos indicados no artigo 2.º do RJAT e eliminar os efeitos jurídicos por eles produzidos, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
Por isso, sendo o acto de liquidação praticado pela Administração Tributária o objecto do processo, tem de se apreciar a sua legalidade à face dos seus precisos termos, tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado.
São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida .
Dito isto, a matéria em discussão nestes autos prende-se com a Directiva 2003/48/CE, do Conselho, de 3 de Junho de 2003 relativa à tributação dos rendimentos da poupança sob a forma de juros (Directiva da Poupança), alterada em 2014 e revogada mais tarde, embora tenha mantido a vigência da redacção original durante algum tempo.
A Directiva centra a sua aplicação nos pagamentos de juros efectuados ou atribuídos por operadores económicos estabelecidos nos Estados-Membros a ou em nome de beneficiários efectivos que sejam pessoas singulares residentes noutro Estado-Membro. O objectivo final da Directiva consiste em permitir uma tributação efectiva dos juros no Estado-Membro de residência fiscal do beneficiário efectivo pode ser alcançado através da troca de informações entre Estados-Membros relativas a esses pagamentos de juros.
A Directiva, no artigo 6.º, define o conceito de juro. Esse conceito está definido para efeitos de comunicação, mas não implica que no Estado de residência o rendimento comunicado, que integra o conceito para efeitos da Directiva, preencha necessariamente a norma de incidência que tributa os juros - em Portugal, as da categoria E, rendimentos de capitais.
Por outro lado, a Directiva também prevê que “caso um agente pagador não disponha de qualquer informação relativa à parte dos rendimentos proveniente de pagamentos de juros, o montante total dos rendimentos deve ser considerado como pagamento de juros”. Esta expressão, “deve ser considerado” não constitui qualquer presunção de que o rendimento é juro para efeitos de tributação, cabendo à entidade que recebe a informação dar-lhe o devido enquadramento para efeitos de tributação, pedindo aos sujeitos passivos esclarecimentos, se necessário.
Pelo que as informações comunicadas no âmbito da Directiva da Poupança não constituem qualquer presunção de que o rendimento comunicado constitui, em Portugal, rendimento da Categoria E, que o sujeito passivo deva ilidir. Aliás, em bom rigor, como se deixou dito, não constituem sequer presunção e que o rendimento é juro para efeitos da Directiva.
Consequentemente, tendo recebido a comunicação, impõe-se que a AT aja de acordo com os princípios conformadores da sua actividade, designadamente, o de prosseguir a justiça, na vertente da verdade material e o do inquisitório, àquele intrinsecamente ligado, e que precede o ónus da prova.
O que significa, no caso concreto, que, na dúvida sobre o significado dos elementos comunicados, deve a administração tributária usar de todos os meios ao seu alcance para chegar à verdade material, só assim agindo dentro da legalidade administrativa a que está vinculada e respeitando a capacidade contributiva, não podendo refugiar-se num suposto ónus da prova a cargo do contribuinte. Assim reza aliás o artigo 58.º da LGT: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”.
Os Requerentes também invocam a seu favor a decisão tomada pela Requerida relativamente ao sucedido mo exercício de 2015, em que estava em causa situação idêntica. Afigura-se ao Tribunal que com razão. A actuação da administração também está sujeita à boa-fé, consagrado no art.º 266.°, n.º 2, da CRP. O princípio da boa-fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico. Tal princípio apresenta-se como um dos limites da actividade discricionária da Administração. Um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da protecção da confiança legitima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança.
A exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao princípio do Estado de Direito. O comportamento da Requerida, no caso concreto, ao valorar as explicações fornecidas pelos Requerentes relativas ao ano de 2015, mas já não, sem razões que o expliquem, relativamente ao ano de 2014, também violou o princípio da boa-fé, na vertente da tutela da confiança.
Tudo isto que aqui se deixou dito faz com que as decisões e a liquidação que são objecto do pedido de pronúncia arbitral padeçam de ilegalidade, por violação dos princípios da legalidade administrativa, do inquisitório e da boa-fé.
Porém, a verdade é que, face ao que se deu como provado no ponto 8 da decisão quanto à matéria de facto, os valores relativos ao ano 2014 que estão em crise, comunicados pelas autoridades de Jersey, não preenchem, em Portugal, as normas de incidência da categoria F, mas as da categoria G.
Os Requerentes alegaram que resulta da diferença entre os valores de aquisição e os de realização, globalmente, uma menos valia, não estão sujeitos a tributação.
Todavia, não cabe ao Tribunal corrigir liquidações de imposto, mas apenas declarar a conformidade ou desconformidade com a lei daquelas que lhe são submetidas a apreciação. Pelo que aquela que agora está sub judice, por considerar os valores em causa como rendimentos da categoria E é ilegal, por violação do disposto nos artigos 5.º e 6.ª do Código do IRS, nas redacções em vigor à data da formação dos factos tributários.
Procede, assim, o pedido de pronúncia arbitral, com os fundamentos supra expostos.
O valor relativo a juros compensatórios tem como pressuposto o valor apurado em IRS, pelo que enferma dos mesmos vícios.
A decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, que manteve as liquidações impugnadas, e a do indeferimento do recurso hierárquico, que confirmou a de indeferimento da reclamação graciosa, também enferma dos vícios das liquidações que confirmou, pelo que também se justifica a sua anulação.
5. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
- Anular a liquidações de IRS n.ºs 2018...;
. Anular a decisão da reclamação graciosa, na parte em que a indefere, e do recurso hierárquico.
6. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 36.333,40 (trinta e seis mil, trezentos e trinta e três mil euros e quarenta cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.
7. CUSTAS
Fixa-se o montante das custas em 1.836,00€ (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT.
Porto e CAAD, aos 29 de Junho de 2023,
O Árbitro,
(Eva Dias Costa)