Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 524/2022-T
Data da decisão: 2023-06-20  IRS  
Valor do pedido: € 85.181,21
Tema: IRS. Mais-valia imobiliária. Prazo de reinvestimento em habitação própria e permanente. Documentação de despesas.
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DECISÃO ARBITRAL 

 

I – Relatório

 

1.     Os contribuintes A... e B..., NIFs ... e ... respectivamente, doravante “os Requerentes”, apresentaram, no dia 1 de Setembro de 2022, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

2.     Os Requerentes pediram a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do indeferimento parcial da Reclamação Graciosa apresentada contra a liquidação de IRS n.º 2022..., e mediatamente sobre a ilegalidade dessa mesma liquidação referente ao ano de 2017, no valor de €85.181,21, pedindo ainda o reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, e ainda a condenação da Requerida em pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

4.     O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

5.     As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

6.     O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 15 de Novembro de 2022; foi-o regularmente, e é materialmente competente.

7.     Por Despacho de 15 de Novembro de 2022, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.

8.     A AT apresentou a sua Resposta em 5 de Dezembro de 2022, juntamente com o Processo Administrativo.

9.     Por Despacho de 13 de Dezembro de 2022, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, e solicitado às partes que apresentassem alegações escritas, indicando-se o dia 15 de Maio de 2023 como data-limite para a prolação e comunicação da decisão arbitral.

10.  Os Requerentes apresentaram alegações no dia 27 de Dezembro de 2022.

11.  A Requerida limitou-se, em Requerimento de 28 de Dezembro de 2022, a remeter para o teor da sua Resposta.

12.  Por Despacho de 4 de Maio de 2023, foi prorrogado o prazo para a prolação e comunicação da decisão arbitral, para o dia 15 de Julho de 2023.

13.  Por Requerimento de 11 de Maio de 2023, os Requerentes apresentaram um documento para ser junto aos autos. Instada a exercer o contraditório por Despacho de 16 de Maio de 2023, a Requerida fê-lo por Requerimento de 29 de Maio de 2023.

14.  Por Requerimento de 16 de Junho de 2023, os Requerentes apresentaram novo documento para ser junto aos autos, o que foi admitido por Despacho da mesma data.

15.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.

16.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

17.  O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.     Os Requerentes são casados no regime da comunhão de adquiridos.

2.     Os Requerentes adquiriram um terreno para construção onde vieram a construir o prédio urbano inscrito na matriz urbana da união de freguesias de ..., ... e ..., sob o artigo ... e descrito na conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...  ... .

3.     Até ao final de 2017 foi aquela a habitação própria e permanente dos Requerentes e respectivo agregado familiar.

4.     No dia 21 de Dezembro de 2017, os Requerentes alienaram esse imóvel pelo valor de €1.961.000,00.

5.     Para efeitos de aplicação do regime de exclusão de tributação previsto pelo nº 5 do artigo 10º, 5 do CIRS, relativo aos ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente, foi aceite pela AT como valor de aquisição €690.306,59 (valor já corrigido pelo coeficiente de desvalorização monetária, art. 50º do CIRS), e como valor de realização €1.961.000,00.

6.     Os Requerentes submeteram a declaração de rendimentos referente ao ano de 2017, acompanhada dos Anexos A, F, G e SS, tendo declarado no campo 4001 daquele Anexo G - rendimentos provenientes de incrementos patrimoniais resultantes da alienação de imóveis, em 21.12.2017, pelo valor de €1.961.000,00, inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., declarando o valor de aquisição de € 468.014,33, em Junho de 2005, e as despesas e encargos que ascendem a €142.792,82.

7.     Depois da alienação, os Requerentes amortizaram €179.809,37 do empréstimo que tinham contraído para a aquisição do imóvel alienado, pelo que, em cumprimento do art. 10º, 5, a) do CIRS, para a mais-valia ser totalmente excluída de tributação os Requerentes teriam de reinvestir um valor de, pelo menos, €1.781.190,63 (valor de realização deduzido do valor da amortização de empréstimo).

8.     Para cumprir os requisitos do art. 10º, 5 do CIRS, os Requerentes declararam ainda a intenção de reinvestir o valor de € 1.785.000,00 no prazo de 36 meses, até 21 de Dezembro de 2020, na aquisição de um terreno para construção, e subsequente construção.

9.     Os Requerentes, no dia 29 de Novembro de 2018, adquiriram o terreno sito na freguesia de ..., concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ..., inscrito na matriz sob o artigo..., União de freguesias de ..., ... e ..., actual Travessa ... nº ..., Porto.

10.  Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.o 2021... e respectiva demonstração de acerto de contas no valor de €343.985,45, referentes ao ano de 2017, e, por não concordarem com a mesma, apresentaram Reclamação Graciosa visando a aplicação do regime de exclusão de tributação previsto pelo art. 10º, 5 do CIRS, e consequente anulação total desse acto tributário.

11.  Os Requerentes procederam ao pagamento voluntário de €120.000,00 e suscitaram a suspensão da execução quanto ao remanescente, através da prestação de garantia

12.  Em 5 de Maio de 2022, os Requerentes foram notificados da decisão final de deferimento parcial da Reclamação Graciosa, informando que certas despesas não foram aceites, seja porque a informação que as acompanhava se referia a outra morada que não aquela em que os Requerentes tinham um prédio em construção (Travessa ... nº ...), seja porque havia despesas efectuadas em 2021, para lá do limite de 36 meses estabelecido no art. 10º, 5, b) do CIRS.

13.  Os Requerentes apresentaram despesas para a construção do imóvel, para os anos de 2018 a 2020, no valor total de €411.908,33; mas a AT só aceitou despesas de construção no valor de €394.960,55, desconsiderando despesas no valor de € 18.423,78.

14.  Relativamente às despesas juntas como documentos n.os 9, 12, 15, 17, 19, 33, 35, 38, 39, 42, 51 na reclamação graciosa, a AT não as aceitou pois "Nestes documentos não tem a indicação da morada a de destino dos materiais ou serviços realizados, visto que a morada deles constante é R. ..., nº ..., que não é a morada do prédio em construção na Trav. ..., nº..., pelo que não estão reunidos os requisitos legalmente exigidos".

15.  A AT ainda indeferiu o documento 16 junto à reclamação graciosa por não ter a descrição do serviço prestado, o documento 18 por não ter a morada nem o serviço em questão, e o documento 30 por não existir ligação entre a factura e o documento comprovativo de pagamento.

16.  Quanto às despesas incorridas no ano de 2021, a AT suscita a questão de deixar de estar verificado o requisito temporal de 36 meses previsto no art. 10º, 5 do CIRS.

17.  Dado o deferimento parcial da Reclamação Graciosa, os Requerentes foram notificados da liquidação corretiva n.o 2022..., informando que o valor em dívida foi corrigido para €171.795,11, ao qual acrescem juros no valor de €4.699,51 e encargos no montante de €1.952,74.

18.  Em 1 de Setembro de 2022, os Requerentes apresentaram no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo, requerendo a anulação parcial, no valor de €85.181,21, da liquidação correctiva, (de valor de €175.025,04).

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo (PA).

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

5.     Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

1.     Os Requerentes sustentam ter reinvestido, da mais-valia gerada pela alienação, em 21 de Dezembro de 2017, da sua habitação própria e permanente, um valor de € 1.328.812,70.

2.     Sendo o valor reinvestido 74,60% do valor que deveria ter sido reinvestido para exclusão total de tributação da mais-valia, os 25,40% restantes da mais-valia obtida (€322.756,13) ficaram sujeitos a tributação, mas em metade do seu valor (€161.378,06), dado tratar-se de uma mais-valia imobiliária.

3.     Contudo, a AT considerou que o valor reinvestido perfez somente o total de € 868.960,55 - ao contrário do valor que os Requerentes dizem ter gasto, pelo que emitiu a liquidação com o valor total de imposto a pagar de €175.025,04.

4.     Os Requerentes aceitam que €161,378,06 de mais-valia obtida pela alienação do imóvel devem ser sujeitos a tributação, por não ter sido reinvestida a totalidade do valor de realização deduzido da amortização do empréstimo para a aquisição do imóvel, mas não podem concordar com o entendimento da AT.

5.     Assim, consideram os Requerentes que apenas pode ser sujeito a tributação o montante não reinvestido de €161.378,06, pelo que a liquidação emitida deverá ser parcialmente anulada.

6.     Se apenas fossem tributados os €161.378,06 da mais valia obtida, juntamente com os restantes rendimentos do exercício em causa, seria obtido um rendimento global de €270.680,80, pelo que, da liquidação total de €175.025,04, os Requerentes aceitam ser devido o valor de €89.843,83

7.     Por isso, o remanescente do valor de imposto liquidado, €85.181,21, é considerado ilegal pelos Requerentes.

8.     Os Requerentes alegam ter pago IMT no valor de €23.700,00, IS no valor de € 3.792,00, e emolumentos notariais no valor de €353,08, para aquisição, no dia 29 de Novembro de 2018, do terreno sito na freguesia de ..., concelho do Porto, actual Travessa ... nº..., Porto, onde construíram a sua nova habitação.

9.     E computam o custo total dessa habitação (incluindo o custo de aquisição do terreno) em €1.328.812,70.

10.  Todavia, considerando o valor de aquisição do terreno para construção, bem como analisando as facturas subjacentes às obras de construção, a AT aceitou, em sede de reclamação graciosa, a realização de um reinvestimento no valor de apenas €868.960,55.

11.  Alegam os Requerentes que, ainda que a AT tenha aceitado alguns custos de construção, os mesmos não espelham a realidade dos custos efectivamente incorridos pelos Requerentes com a construção da sua habitação própria e permanente, insistindo que os custos totais perfazem o valor de €1.328.812,70.

12.  Não obstante considerarem ter demonstrado e comprovado todas as despesas incorridas com a construção da habitação própria e permanente, que somaram, para os anos de 2018 a 2020, o valor total de €411.908,33, a AT só aceitou, desse total, o montante de €394.960,55, desconsiderando despesas no valor de € 18.423,78.

13.  Relativamente às despesas juntas como documentos n.os 9, 12, 15, 17, 19, 33, 35, 38, 39, 42, 51 na reclamação graciosa, que a AT não aceitou, os Requerentes admitem que as facturas / recibos não indicam a morada da obra, mas documentam despesas que estão claramente associadas às obras de construção do imóvel.

14.  O mesmo fazem os Requerentes quanto aos documentos n.os 16, 18 e 30, procurando responder às objecções formuladas pela AT e demonstrar que tais despesas devem ser aceites para efeitos do art. 46º, 3 do CIRS.

15.  Quanto às despesas incorridas no ano de 2021, relativamente às quais a AT suscitou a questão de deixar de estar verificado o requisito temporal de 36 meses previsto no art. 10º, 5 do CIRS, os Requerentes procuram explicar as razões pelas quais, apesar de ser intenção deles concluir as obras no prazo de 36 meses posteriores à data de realização, tal, de facto, não aconteceu.

16.  Desde logo, por razões não atribuíveis aos Requerentes – como a demora burocrática entre a solicitação do pedido de informação prévia, em 23 de Outubro de 2018, até ao despacho final em 29 de Janeiro de 2020, sendo que, sem licença de construção, não se podia proceder ao reinvestimento.

17.  No caso, estando verificada a identidade funcional entre o imóvel transmitido e o adquirido com o valor da realização, nomeadamente o facto de ambos serem destinados a habitação própria e permanente do agregado familiar, o que se passou, alegam os Requerentes, é que o prazo de 36 meses se tornou impossível de cumprir, e por razões que não são assacáveis aos próprios: concluindo mesmo que o prazo legal deixa de ser, no caso concreto, um prazo razoável.

18.  Adicionalmente, os Requerentes invocam todas as perturbações causadas pela pandemia de COVID-19, a partir de Março de 2020, e pelas concomitantes declarações de estado de emergência.

19.  Daí inferem que o atraso das obras e acabamentos foi involuntário, resultado de condicionalismos de carácter absolutamente excepcional, alheios e não imputáveis aos Requerentes, motivados por questões sanitárias, mas também por limitações impostas pelo próprio Estado português, conduzindo a que só na primeira metade de 2021 fossem realizados quase todos os trabalhos de conclusão, com emissão das respetivas facturas, com encargos para os Requerentes num valor total de €380.237,08 só nesse ano de 2021.

20.  Os Requerentes entendem que o facto de as obras só terem sido concluídas em 2021 representa um pequeno lapso temporal justificável, atendendo, em concreto, aos atrasos com a licença, às faltas de materiais e mão de obra, e às limitações e constrangimentos provocados pela pandemia de COVID-19.

21.  Mais ainda, alegam que deveria atender-se ao facto de as despesas incorridas em 2021 resultarem da execução de contratos celebrados bem antes, com relações comerciais e planeamento da obra estabelecidos desde 2018, e que estariam todos concluídos antes do final de 2020 se não fossem os contratempos objectivos já referidos, que devem ser considerados como causas de força maior, como transpareceria da circunstância de se terem criado legalmente vários regimes de excepção.

22.  Os Requerentes sublinham a excepcionalidade da situação: entendem ter ficado demonstrado que as despesas documentadas evidenciam uma relação directa com o que o art. 10º, 5 do CIRS pretende acautelar: que um sujeito passivo não seja tributado pela mais-valia obtida pela alienação da sua habitação própria e permanente quando invista na aquisição ou construção de outra habitação com o mesmo intuito.

23.  Em suma, para os Requerentes, deveriam ser considerados os €380.237,08 de despesas incorridas em 2021.

24.  Ou ao menos, e dado que o estado de emergência totalizou 88 dias, deviam ser aceites as facturas emitidas até 30 de Março de 2021, e que perfazem o valor de €95.881,05.

25.  Em síntese, os Requerentes entendem que, para além do valor já aceite, deveria sê-lo, como reinvestimento em habitação própria e permanente, no ano de 2020 o valor de €18.423,78, e, no ano de 2021, o valor de €380.237,08.

26.  Desconsiderar as despesas incorridas fora do prazo constituiria, segundo eles, uma violação dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, que são princípios fundamentais no Direito Fiscal.

27.  Os Requerentes acrescentam que fizeram prova detalhada de todas as despesas em que incorreram, tornando insustentável a inferência de que o novo imóvel que constitui a sua actual habitação própria e permanente tenha correspondido exclusivamente ao valor total das despesas que a AT aceitou, e que perfaz somente €868.960,55.

28.  Dado considerarem que as liquidações em crise foram ilegais, os Requerentes reclamam o pagamento de juros indemnizatórios por erro de liquidação imputável aos serviços da AT, e pretendem que eles sejam pagos desde a data do pagamento.

29.  Terminam pedindo a anulação da decisão respeitante ao indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada e, consequentemente, a anulação parcial do valor de €85.181,21 da liquidação correctiva n.o 2022..., relativa à liquidação n.o 2021..., e o reembolso do valor pago, acrescido de juros indemnizatórios, e ainda a condenação da AT em pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

30.  Em alegações, os Requerentes voltam a reconhecer que apenas reinvestiram €1.328.812,70 dos €1.781.190,63 que deveriam ter reinvestido, mas que isso é mais do que os €868.960,55 que a AT calcula, e que estão na base da liquidação de imposto de €175.025,04. Os Requerentes admitem € 161.378,06 de mais-valia, mas não o remanescente, impugnando, por isso, € 85.181,21 dessa liquidação de imposto.

31.  Insistem, por isso, que a AT reconsidere as despesas que desconsiderou, relativas aos anos de 2018 a 2020, no valor de €18.423,78, e aceite as despesas incorridas em 2021, no valor de € 380.237,08.

32.  Em Requerimentos de 11 de Maio de 2023 e 16 de Junho de 2023, os Requerentes juntaram documentação relativa a esforços para modificar o quadro legislativo, no sentido de se atender ao impacto da pandemia de COVID-19 – uma recomendação da Provedoria de Justiça, e um projecto legislativo que propõe a suspensão, por dois anos, do prazo do art. 10º, 5, b) do CIRS.

 

III. B. Posição da Requerida

 

1.     Na sua resposta, a Requerida esclarece que a liquidação correctiva da declaração de IRS de 2017 se deveu ao facto de, em violação do disposto no art. 10º, 5, b) do CIRS, os Requerentes em ano algum, dos anos fiscais de 2017 a 2020, terem declarado, no anexo G da declaração de rendimentos, o imóvel objecto de reinvestimento, e valores reinvestidos – tornando aplicáveis os arts. 57º, 4, 89º, 2 e 92º do CIRS.

2.     Quanto às despesas efectuadas entre 2018 e 2020, a Requerida lembra que foi devidamente explanado, em sede de reclamação graciosa, o porquê da não-aceitação, pelos serviços, do montante correspondente a €18.423,78.

3.     Genericamente, a Requerida insiste que a documentação não removia dúvidas quanto à utilização de bens e materiais na construção em causa; ou, no caso dos documentos 16, 18 e 30, por falta de descrição do serviço prestado, por falta de descrição do serviço prestado e morada, e por inexistir ligação entre a factura e o documento comprovativo de pagamento, respectivamente; e, quanto às despesas efectuadas em 2021, no montante de €380.237,08, por as mesmas terem sido efectuadas após findarem os 36 meses previstos no art. 10º, 5, b) do CIRS – um prazo peremptório.

4.     Quanto aos efeitos da pandemia de COVID-19 na ordem jurídica, nomeadamente os da suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todo o tipo de processos e procedimentos, a Requerida esclarece que essa suspensão não se aplicou a prazos de natureza substantiva ou material, como os consignados nos n.os 5 e 7 do art. 10º do CIRS.

5.     A Requerida observa que, para a frustração do objectivo dos 36 meses, contribuiu decerto um factor que os Requerentes omitem: a circunstância de ter mediado quase um ano entre a alienação do imóvel (21 de Dezembro de 2017) e a aquisição do terreno para construção (29 de Novembro de 2018).

6.     E sublinha que é facto insofismável que parte do valor de realização obtido em 2017, €380.237,08, só foi aplicado na construção do novo imóvel em 2021, esgotado o prazo legal, peremptório, para fazê-lo.

7.     A Requerida conclui que não são devidos juros indemnizatórios, não estando reunidos os pressupostos para tanto, nem indemnização por prestação de garantia indevida, pela mesma razão e por não estarem provados os custos alegadamente incorridos.

8.     Em alegações, a Requerida limita-se a remeter para a sua Resposta.

9.     Em Requerimento de 29 de Maio de 2023, a AT pronunciou-se sobre a recomendação da Provedoria de Justiça, argumentando que ela prova que no actual quadro normativo não é possível prorrogar o prazo do art. 10º, 5, b) do CIRS.

 

III. C. Fundamentação da decisão

 

1.     Suscitam-se neste processo essencialmente duas questões:

a)     A das despesas juntas como documentos n.os 9, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 30, 33, 35, 38, 39, 42 e 51 na reclamação graciosa, e não aceites pela AT por existirem insuficiências várias;

b)    A das despesas incorridas no ano de 2021, relativamente às quais a AT suscita a questão de estar ultrapassado o prazo de 36 meses previsto no art. 10º, 5 do CIRS.

2.     Conclui-se, da documentação junta ao PPA e ao PA, que eram muitas outras as divergências entre as partes, mormente no momento da reclamação graciosa e respectivo indeferimento. Mas, entretanto, ocorreu uma extensa convergência entre as partes, e são aquele dois os únicos pontos de litígio que subsistem entre elas.

 

III. C. 1. Despesas de 2018 a 2020

 

3.     Lembremos que, relativamente às despesas juntas como documentos n.os 9, 12, 15, 17, 19, 33, 35, 38, 39, 42, 51 na reclamação graciosa, a AT não as aceitou pois "Nestes documentos não tem a indicação da morada a de destino dos materiais ou serviços realizados, visto que a morada deles constante é R. ..., nº ..., que não é a morada do prédio em construção na Trav ..., nº..., pelo que não estão reunidos os requisitos legalmente exigidos".

4.     Lembremos ainda que a AT indeferiu o documento 16 junto à reclamação graciosa por não ter a descrição do serviço prestado, o documento 18 por não ter a morada nem o serviço em questão, e o documento 30 por não existir ligação entre a factura e o documento comprovativo de pagamento.

5.     Genericamente, teríamos aqui um caso de afastamento da presunção contida no nº 1 do art. 75º da LGT pela regra enunciada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo.

6.     Contudo, a aplicação do art. 75º, 2, a) da LGT depende da verificação de um requisito que é essencial: que as irregularidades formais detectadas distorçam ou ocultem a realidade económica do sujeito passivo que deva ser objecto de tributação.

7.     Não se afigura ser o caso nos documentos sobre os quais subsiste o litígio:

a.     O Doc. 9 refere-se à emissão de um pré-certificado pela ADENE – Agência para a Energia

b.     O Doc. 12 refere-se a um pagamento a Águas do Porto

c.     Os Docs. 15 e 17 referem-se a pagamentos a C..., Lda, por entrega de azulejos

d.     O Doc. 16 refere-se ao pagamento a D..., Lda.

e.     Os Docs. 18 e 19 referem-se a pagamentos a E..., Lda., por um levantamento arqueológico (aliás constante da documentação)

f.      O Doc. 30 refere-se a um pagamento à J..., IP, de uma taxa por captação de águas particulares para fins privados

g.     O Doc. 33 refere-se a um pagamento a F..., Lda

h.     O Doc. 35 refere-se a um pagamento a G..., Instalações Inteligentes, por instalação de uma electrobomba

i.      Os Docs. 38, 39 e 42 referem-se a pagamentos a H..., por fornecimento de diversos tipos de tintas

j.      O Doc. 51 refere-se a um pagamento a I..., Lda, um vendedor de mobiliário e artigos de iluminação

8.     Trata-se de despesas claramente conexas com a edificação de um imóvel, e não parece curial presumir-se que os Requerentes estivessem envolvidos na edificação de outro imóvel além daquele que a própria AT não questiona que seja a nova habitação própria e permanente deles.

9.     Tem aqui aplicação o princípio da livre apreciação dos factos, que já invocámos na fixação da matéria de facto.

10.  Lembremos que, segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

11.  Isso não significa que a prova das referidas despesas seja formalmente imaculada, que não é; significa, antes, que, não se tratando de formalidades ad substantiam para efeitos de exercício do direito dos Requerentes, os documentos apresentados pelos Requerentes, e recusados pela Requerida, não distorcem nem ocultam a realidade económica do sujeito passivo que deva ser tributada, antes a revelam, tornando mais nítida a dimensão real das despesas incorridas pelos Requerentes para o reinvestimento da mais-valia imobiliária na sua nova habitação própria e permanente.

12.  É certo que o ónus da prova de tais despesas recai sobre os Requerentes, nos termos gerais do art. 74º, 1 da LGT, ou mais amplamente do art. 342º, 1 do Código Civil, e que em termos processuais “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, de acordo com o disposto no art. 414º do CPC.

13.  Mas o que se afigura, a este tribunal, e ao abrigo do princípio da livre apreciação dos factos, é que as despesas estão suficientemente documentadas, na sua materialidade, nos documentos objecto do litígio subsistente, e que é suficientemente clara, de acordo com as regras da experiência, a sua conexão com a edificação do único imóvel cujas obras, naquela data, se sabe que os Requerentes estavam a suportar financeiramente.

14.  Por outras palavras, os documentos são credíveis a atestar a veracidade das operações, em termos que, impedindo a fraude e a perda ilícita da receita tributária, revelam a materialidade económica de que depende a própria justiça, e demais fins, da tributação.

15.  Trata-se de mais um afloramento da prevalência da substância sobre a forma, que leva que, até em domínios em princípio mais exigentes em matéria de formalidades de facturação, como no IVA, se admita que alguns lapsos nessas formalidades não sejam prejudiciais dos direitos dos sujeitos passivos, quando as autoridades tributárias nacionais disponham de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desses direitos se encontram satisfeitos[1].

16.  Dir-se-á que o exercício, pelo Tribunal, do princípio da livre apreciação dos factos não pode, nem deve, substituir-se aos requisitos de prova legalmente estabelecidos, dispensando-os.

17.  Certamente não pode fazê-lo a formalidades ad substantiam, que não são as que estão aqui em causa.

18.  Mas pode fazê-lo a formalidades ad probationem, ao menos para efeitos de gerar fundadas dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário – no caso, sobre a recusa, pela Requerida, de documentos que pretendiam provar despesas relevantes para a liquidação do imposto.

19.  E bastará essa dúvida para o acto impugnado dever ser anulado, nos termos do art. 100º, 1 do CPPT.

20.  Por outro lado, dir-se-á que o afastamento da presunção contida no nº 1 do art. 75º da LGT, pela regra enunciada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, reclama a demonstração, pela AT, de que, ou as facturas são falsas, ou há indícios fundados – objectivos, sólidos e consistentes – que traduzam uma probabilidade elevada de que os documentos não titulem operações reais, a ponto de dever cessar a presunção de veracidade a favor do contribuinte.

21.  Na falta disso, e porque essa demonstração não foi feita, entende o Tribunal que as despesas não-atendidas pela Requerida, por alegadas insuficiências formais na respectiva documentação, foram despesas reais e conexas com o reinvestimento, pelos Requerentes, em habitação própria e permanente.

 

III. C. 2. Despesas de 2021

 

22.  Quanto às despesas incorridas no ano de 2021, a Requerida suscita a questão de deixar de estar verificado o requisito temporal de 36 meses previsto no art. 10º, 5 do CIRS.

23.  Neste ponto, a Requerida tem razão: trata-se de um prazo de natureza substantiva ou material, que não foi objecto de qualquer solução legislativa no sentido da sua suspensão, como o foram prazos processuais, a propósito dos efeitos dos estados de emergência determinados pela pandemia de Covid-19.

24.  E trata-se de um prazo peremptório, que não cede perante qualquer tipo de considerações de justiça material, já que é ditado por razões de segurança jurídica.

25.  A documentação remetida pelos Requerentes, nos seus requerimentos de 11 de Maio de 2023 e 16 de Junho de 2023, prova que no quadro normativo em vigor não é possível prorrogar o prazo peremptório do art. 10º, 5, b) do CIRS – e daí, precisamente, as propostas de modificação do quadro normativo vigente.

26.  Poderá vir a sê-lo no futuro, mas esse juízo de prognose não pode interferir na aplicação da Lei em vigor.

27.  Admitir-se-á até que a solução para que aponta a referida documentação, e que os Requerentes gostariam de ver antecipada, é, tudo visto e ponderado, a que melhor se adequaria à justiça do caso concreto.

28.  Sucede, contudo, que aos Tribunais Arbitrais em matéria tributária é expressamente vedado o recurso à equidade, pelo nº 2 do art. 2º do RJAT.

 

III. C. 3. Juros indemnizatórios, indemnização por prestação de garantia indevida, e questões prejudicadas

 

29.  Nos termos dos artigos 61º do CPPT e 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando, anulados os actos por vício de violação de lei, se apure que a culpa do erro subjacente à anulação do acto é imputável aos serviços da Administração Tributária, ou, em bom rigor, não é imputável ao contribuinte.

30.  Uma vez verificado o erro, e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente retidos, a Requerente tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores (ilegalmente retidos) até integral restituição. 

31.  Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, para efeitos da aplicação art. 43º da LGT. Atendendo ao estabelecido no art. 61º do CPPT, o Requerente tem, na parte procedente do seu pedido, direito a juros indemnizatórios à taxa legal, contados da data do pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

32.  Quanto ao pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, e atendendo à parte improcedente do pedido principal do presente litígio, entende este Tribunal que improcede, consequentemente, tal pedido de indemnização.

33.  Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

IV. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando parcialmente a liquidação correctiva nº 2022..., anulando parcialmente o indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação correctiva, na parte respeitante à desconsideração de €18.423,78 de despesas incorridas entre 2018 e 2020, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do valor pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios contados da data desse pagamento; 

b)    Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo parcialmente na ordem jurídica a liquidação correctiva nº 2022..., e o indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação correctiva, na parte respeitante à desconsideração de €380.237,08 de despesas incorridas em 2021, e absolvendo, dessa parte do pedido formulado, a Autoridade Tributária e Aduaneira;

c)     Condenar tanto os Requerentes como a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo, na proporção correspondente. 

 

V. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €85.181,21 (oitenta e cinco mil, cento e oitenta e um euros e vinte e um cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT). 

 

VI. Custas

 

Custas no montante de €2.754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros),

a)     €2.626,77 (dois mil seiscentos e vinte e seis euros e setenta e sete cêntimos) a cargo dos Requerentes (95,38%);

b)    €127,23 (cento e vinte e sete euros e vinte e três cêntimos) a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira (4,62%)

(cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 20 de Junho de 2023

 

Os Árbitros

 

 

Fernando Araújo

 

 

Cristina Aragão Seia

 

 

António Cipriano da Silva

 



[1] Acórdão Barlis, - Acórdão do TJ, de 15/09/2016, n.º 43, sobre a interpretação do art. 178º, a) da Directiva IVA face ao incumprimento dos requisitos enunciados no art. 226º, 6 da mesma Directiva.