Sumário:
O caso jugado constitui uma exceção dilatória, que a verificar-se obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição da instância, nos termos do disposto no artigo 577.º i) e 278.º, n.º 1, e) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 e) do RJAT.
Decisão arbitral
Os árbitros Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares (relator) e Dr. Alberto Amorim Pereira, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral coletivo, constituído em 15/11/2022, acordam no seguinte:
1. Relatório
Banco A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na..., ...-... Porto (doravante, “Requerente” ou “A...”), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IVA relativa ao ano de 2013 e de juros compensatórios subsequentes com os números 2016 ... (a “Liquidação de IVA”) e 2016 ... (a “Liquidação de Juros Compensatórios”), e indemnização do Requerente pela prestação e manutenção de garantia indevida,o que perfaz o valor total de 3.784.300,81€.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.
O tribunal arbitral foi constituído em 15/11/2022. A AT efetuou resposta, por exceção e impugnação.
Foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por economia processual e proibição de atos inúteis; deferiu-se o aproveitamento da prova testemunhal efetuada no proc. arbitral junto do CAAD com o n.º 400/2019-T.
As partes efetuaram alegações escritas, reproduzindo, no essencial as posições apresentadas nas suas peças anteriores. A Requerente respondeu também às exceções aduzidas pela Requerida: caso julgado e intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, que exerce, a título principal, atividade no âmbito das "OUTRA INTERMEDIAÇÃO MONETÁRIA (CAE 64190), e a título secundário, nas "ATIVIDADES DE FACTORING" (CAE 64991);
2. A Requerente desenvolve ainda outras atividades, tais como locação financeira, factoring, ALD e concessão de crédito;
3. Para efeitos de IVA, a Requerente realiza operações isentas sem direito a dedução, operações tributadas e operações isentas com direito a dedução;
4. No ano de 2013, a Requerente utilizou o método de afetação real no que concerne ao IVA dos “inputs” diretamente relacionados com a atividade que confere direito à dedução, recuperando integralmente o imposto suportado a montante nas operações atinentes à atividade de locação financeira mobiliária e imobiliária (em que optou pela renúncia à isenção) e ALD, e recuperou parcialmente o IVA dedutível referente a aquisições de bens e serviços associados a terminais de pagamento automático, débitos diretos e pagamento de serviços;
5. No que concerne ao IVA suportado na aquisição dos bens e serviços utilizados em operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito, em que não é possível alocar a cada uma das atividades de per se, a Requerente utilizou o método de dedução pro rata, sendo que no exercício de 2013, aplicou uma percentagem de 13%, resultante da proporção entre a soma das operações tributadas com as isentas com direito a dedução, e a totalidade das operações realizadas, sendo que no valor das operações tributadas incluiu o valor total da faturação da locação financeira e ALD;
6. A AT efetuou uma inspeção à requerente, concluindo: tendo deduzido pelo método do pró rata € 6.520.682,27 e tendo a Inspeção Tributária, com base nos elementos facultados, apurado, aplicando o coeficiente de imputação específico de 6%, um montante passível de dedução de € 3.009.555,65 [50.159.260,88 x 6%], resulta assim, em cumprimento do disposto no art.º 23.º do CIVA, uma correção (IVA em falta) no montante de € 3.511.126,62 [6.520.682,27 - 3.009 555,65].
7. Em sequência, a AT emitiu as liquidações agora impugnadas: liquidação de IVA relativa ao ano de 2013 e de juros compensatórios subsequentes: números 2016 ... (a “Liquidação de IVA”) e 2016 ... (a “Liquidação de Juros Compensatórios”), no valor total de 3.784.300,81€;
8. Inconformada, 2016, a requerente apresentou tempestiva impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto contra essas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios.
9. Em 2019, a requerente decidiu migrar esse processo para a órbita do CAAD, aproveitando a permissão legal ínsita no art. 11.º do Dec. Lei n.º 81/2018, de 15/10 – que teve no CAAD o n.º 400/2019-T, o qual teve as seguintes vicissitudes.
10. Em 31/10/2019, o acórdão arbitral (proc. 400/1019-T) anulou a liquidação de IVA de 2013 e conexa liquidação de juros compensatórios, com base, em síntese, no seguinte: a correção da AT, para além de enfermar de erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do CIVA e ofensa do princípio da legalidade, enferma também de erro sobre os pressupostos de facto, ao considerar, sem que tal se tenha provado, que a utilização de bens ou serviços mistos foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos bens”.
11. Inconformada, a AT efetuou recurso por oposição de julgados para o Supremo Tribunal Administrativo, que, em Pleno, emitiu Acórdão em 30/9/2020, decidindo: “tomar conhecimento do mérito do recurso e, concedendo-lhe provimento, anular a decisão arbitral recorrida, que deve ser substituída por outra que decida, após ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito nos termos acima apontados” (proc. …/19.3BALSB).
12. Retornando o processo à arbitragem fiscal, por indicação expressa do STA, em 27/5/2021, o Tribunal Arbitral emitiu nova acórdão arbitral em que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral.
13. Mais uma vez inconformada, a AT efetuou novo recurso por oposição de julgados (art. 25.º, n.º 2, do RJAT).
14. Em 26/1/2022, o pleno do STA emite acórdão (proc. …/21.9BELSB) com a seguinte decisão: “conhece do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência e dá-lhe provimento; anula a decisão recorrida, nos termos supra delimitados”.
15. E mais afirma:
16. Este Acórdão transitou em julgado em 10/2/2022.
17. O A... não solicitou ao STA qualquer esclarecimento, retificação ou aclaração do Acórdão do STA proferido em 26/1/2022 e transitado em julgado em 10/2/2022.
18. Em 7/6/2022 (117 dias após o caso julgado), o A... efetua um requerimento no processo arbitral 400/2019-T, onde solicita que “seja ordenada a reabertura do processo arbitral, para prolação de nova decisão que, conhecendo do mérito do pedido do Requerente, analise e conclua, em conformidade com a jurisprudência do STA, se, em concreto, a utilização de bens e serviços de utilização mista foi, ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”.
19. Em 3/8/2022, o Tribunal arbitral (no proc. 400/2019-T) emite Despacho em que decide: “indeferir o pedido formulado pelo Requerente Banco A..., SA, conforme requerimento apresentado em 7.6.2022, para que seja ordenada a reabertura do processo arbitral para prolação de nova decisão”.
20. Perante isso, em setembro de 2022, o A... intenta uma nova (presente) ação arbitral – sobre as mesmas liquidações e com os mesmos pedidos (anulação da liquidação de IVA de 2013 e inerentes juros compensatórios, bem como indemnização por prestação de garantias bancárias indevidas.).
2.2. Factos não provados
Não há factos não provados com relevância para a decisão
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e com relevância para a decisão (art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.
Os factos provados estão assentes pelas partes e constam de documentos (não impugnados pelas partes): Despachos, Sentenças e Acórdãos, análise de peças processuais e liquidações de imposto e juros.
3. Apreciação de exceções que podem obstar (ou não) ao conhecimento do mérito do presente pedido arbitral
3.1 Introdução e sequência
Na resposta, a requerida invoca duas exceções, que, a proceder, obstam ao conhecimento do pedido: a) a exceção de caso julgado (no proc. 400/2019-T); e b) intempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral.
A Sentença tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. art. 608.º do CPC.
3.2. As posições das partes
3.2.1 Quanto ao tema do caso julgado
A requerida invoca a exceção de caso julgado, com base em síntese, no seguinte:
a) O Ac. STA – processo n.º …/21.9BALSB (ínsito no proc. Arbitral 400/209-T) – conhece o mérito do recurso, dá-lhe provimento, concluindo pela anulação do acórdão arbitral: “Pelo exposto, em conferência, no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos: conhecer do mérito deste recurso para uniformização de jurisprudência e dar-lhe provimento; anular a decisão arbitral recorrida, nos termos supra delimitados”.
b) Perante isso, forma-se um caso julgado: a Sentença (Acórdão) conhece a relação jurídica substancial e manda anular a liquidação (de IVA e juros), que é agora contestada nesta nova ação arbitral, intentada após o caso julgado da anterior.
c) Tanto mais, porque a decisão do STA – é tomada pelo Pleno, no sentido de fixação de jurisprudência para a resolução desse caso concreto – que tem o propósito de estabilização da boa aplicação e interpretação do direito.
d) O Acórdão do STA, em pleno, não tem natureza meramente cassatória – mas decide total e globalmente a pretensão.
e) Com o trânsito em julgado, a matéria de direito encontra-se totalmente decidida e estabilizada na ordem jurídica. Qualquer novo tribunal está impedido de reapreciar o mérito da questão – inclusive se são agora introduzidos novos dados que não foram carreados no processo anterior.
A Requerente respondeu a esta exceção nas suas alegações finais, com base, em súmula, nos seguintes argumentos:
a) O STA não chegou a emitir (nem no Primeiro Acórdão, nem no Segundo Acórdão) qualquer pronúncia de mérito sobre aquela que é a principal questão material controvertida, consubstanciada na questão de saber se a AT poderia, ou não, ter limitado a aplicação do pro rata de dedução do Requerente, na parte que respeita às operações de leasing praticadas pelo mesmo.
b) A decisão judicial só pode constituir caso julgado “nos precisos limites e termos em que julga” (cf. art. 621.º do CPC).
c) Se os pressupostos da decisão não são os mesmos, e se os seus fundamentos também o não são, inexistindo aliás uma decisão de mérito sobre a questão essencial controvertida, não pode simplesmente afirmar-se que existe uma violação de lei por força do caso julgado.
d) A presente ação arbitral (no seu conteúdo e objeto) não foi precedida de uma decisão que nega frontalmente a pretensão e acolhe o entendimento presente no acórdão fundamento do STA.
e) In casu, não estamos perante “uma causa já antes, sob o ponto de vista substantivo e fáctico, apreciada, a qual acolheu o entendimento da AT e negou assim provimento à pretensão da Requerente.”
f) Donde, o presente coletivo não se encontra colocado “na alternativa de contradizer (…) uma decisão anterior”, senão no que se refere à não anulação dos efeitos da Primeira Decisão Arbitral, na parte que respeita ao efeito de caso julgado que o coletivo arbitral constituído no âmbito do processo n.º 400/2019-T considerou verificado, especificamente, quanto à falta de fundamentação da liquidação adicional de IVA e da correspondente liquidação de juros compensatórios.
g) A jurisprudência do STA que transitou em julgado e que se consolidou na ordem jurídica é a que conclui que nenhuma parte da Primeira Decisão Arbitral se manteve, tendo a mesma sido totalmente anulada, incluindo na parte que respeita à falta de fundamentação da liquidação adicional de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, que o Tribunal Arbitral havia considerado transitada em julgado, mas sem que tenha ainda sido substituída por outra (que não foi decidida).
h) A proceder o caso julgado, estar-se-ia em situação de denegação de Justiça (art. 20.º 2 art. 268.º, n.º 4, da CRP), em que nenhuma pronúncia judicial ou arbitral subsiste, afinal, sobre a questão material controvertida nos presentes autos.
3.2.2 Quanto ao tema da intempestividade do presente pedido de pronuncia arbitral
A requerida invoca a intempestividade da presente ação arbitral, com base em síntese, no seguinte:
a) Se o Tribunal arbitral não conhecer do “mérito da pretensão”, o requerente pode intentar nova ação arbitral, no prazo de 90 dias a contar da “notificação da decisão arbitral” (art. 24.º, n.º 3, do RJAT);
b) Este preceito tem de ser aplicado com as devidas adaptações ao caso presente: o prazo de 90 dias deve contar-se a partir do trânsito em julgado do processo (10/2/2022); e a ação arbitral foi intentada em 9/2022 – mais de 90 dias após o início da contagem.
c) O Despacho arbitral de 3/8/2022 é irrelevante para início da contagem: i) não é uma sentença arbitral; ii) é uma não decisão; não afeta o caso julgado do processo que ocorreu em 10/2/2022, como expressamente indicou.
A Requerente respondeu a esta exceção nas suas alegações finais, com base, em súmula, nos seguintes argumentos:
a) O prazo de 90 dias conta-se da decisão arbitral de 3/8/2022 – e a ação é tempestiva pois foi intentada em 9/2022.
b) O art. 23.º, n.º 4, do RJAT indica que o início do prazo ocorre com a notificação da decisão arbitral – ela ocorreu em 8/2022.
c) Foi o próprio Tribunal Arbitral que indicou, no Despacho, que a recorrente deveria intentar nova ação arbitral, nos termos do art. 46.º, n.º 9, da Lei de Arbitragem Voluntária.
d) Se o art. 23.º, n.º 4 do RJAT se aplica nos casos em que existe decisão sem conhecer o mérito da pretensão – também tem de se aplicar quando o Tribunal Arbitral não conhece qualquer questão que lhe é colocada pela requerente.
3.3. O Caso julgado (decisão)
A questão do caso julgado tem precedência sobre o tema da intempestividade da ação – quer porque existe prioridade lógica e ontológica, quer porque a requerida coloca este último tema numa relação de subsidiariedade face ao tema do caso julgado.
Antes de entrar na decisão do caso, importa tecer as necessárias considerações gerais sobre a noção e conteúdo do caso julgado – onde seguiremos de perto, com a devida vénia, as considerações expostas, com as quais se concorda, no proc. Arbitral junto do CAAD com o n.º 703/2021-T.
A exceção dilatória de caso julgado obsta ao conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da Requerida da presente instância, nos termos do disposto no artigo 577.º, i) e 278.º, n.º 1, e) do CPC – aplicável, ex vi, pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
As exceções da litispendência e do caso julgado nos termos do n.º 1 do artigo 581.º do CPC, pressupõem a repetição de uma causa: se uma causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado. A razão é elementar: evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (art. 580.º, n.º 2, do CPC).
A doutrina é unanime em considerar que se forma caso julgado quando uma decisão judicial adquire força obrigatória, por ela não se poder já reclamar nem recorrer por via ordinária. (Ac. STA de 13-01-2022, proferido no Proc. 043/13.4BEPRT, que transcreve o entendimento de Manuel de Andrade, Antunes Varela, Alberto dos Reis, Rodrigues Bastos sobre a exceção do caso julgado).
A exceção do caso julgado pressupõe a repetição da causa, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581.º do CPC).
In casu, os sujeitos são os mesmos – as partes são as mesmas: o A... (requerente); e a AT (requerida);
Há identidade de pedido, quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico (art. 581.º, n.º 3, do CPC): é isso o que se verifica no presente caso: na primeira ação arbitral, a requerente pede o provimento da ação, com a anulação da liquidação de IVA de 2013 e juros – e indemnização por prejuízo por garantia indevida; na segunda ação arbitral, a requerente solicita o mesmo: o deferimento da ação arbitral, com a anulação das mesmas liquidações de IVA e de juros, bem como a indemnização por prejuízos resultantes de garantia indevida.
Do mesmo modo, há identidade de causa de pedir. A causa de pedir é idêntica quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – que, nas ações de anulação, é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido (art. 581.º, n.º 4, do CPC).
No caso dos autos, existe clara identidade da causa de pedir (das causas de pedir): os argumentos materiais agora expostos (e que se solicita a decisão do presente tribunal) são exatamente iguais aos invocados na decisão arbitral do processo anterior: a requerente entendia que o tribunal arbitral anterior (proc. 400/2019-T) se teria de pronunciar sobre as questões materiais aí incluídas – e como não o teria feito, na sua ótica, solicita agora que o presente tribunal as decida (esgrimindo os mesmos e exatos argumentos que expos no proc. 400/2019-T): a requerente efetua nova ação, com os mesmos argumentos materiais (que entende que não foram decididos no processo anterior); e a AT, na resposta, contesta esses argumentos, quase ipsis verbis, face à resposta anterior; e aproveitou-se a prova testemunhal do anterior processo, perante a total identidade factual das questões e causas de pedir de ambos os processos.
Dito o mesmo, mas por outro ângulo: o (segundo) Acórdão do STA indica claramente duas coisas:
Primeira: “conhece do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência e dá-lhe provimento; anula a decisão recorrida, nos termos supra delimitados”. E fundamenta o seu discurso, ao indicar que a anula totalmente, sem excluir qualquer segmento e não deixa qualquer pontas soltas ou segmentos não decididos.
Segunda: ao contrário do primeiro acórdão, não manda baixar o processo ao CAAD para decidir em conformidade.
O tema está, pois, claro: o STA – no primeiro processo – anulou a liquidação, sem deixar pontas soltas ou segmentos não decididos. Mais: a requerente não pediu quaisquer esclarecimentos ou aclarações desse acórdão, sinal de que o compreendeu totalmente. Nem sequer impugnou a decisão arbitral proferida em Agosto de 2022, se entendesse, como advoga, que houve omissão de pronúncia, no sentido que aquele tribunal arbitral teria de decidir a questão material, que não decidiu (como indica, aliás, o respetivo voto de vencido).
O certo é que o presente tribunal arbitral não pode apreciar esta ação, por força do caso julgado. O teor dispositivo da decisão no processo anterior é claro: dá provimento ao recurso e anula a decisão recorrida – e transitou em julgado; note-se, por outra via, que a presente ação arbitral não pode implicar, nem ao de leve, com os termos da execução do primeiro caso judicial – pois esse objeto está vedado à arbitragem (art. 2.º do RJAT).
Duas notas adicionais:
Primeira: improcede o argumento da eventual denegação de justiça suscitado pela requerente, no sentido de que, no fim de contas, uma parte da argumentação material não foi tida em causa – nem na primeira ação arbitral, nem nos presentes autos. Refuta-se este argumento: não é certo que assim tenha acontecido, na realidade, atento o teor dos acórdãos do STA (mas isso corresponde a execução de sentença, sobre o qual não nos podemos pronunciar); mas, o mais relevante é que, ainda que assim fosse, a requerente conformou-se com isso no primeiro processo: não pediu aclaração do Acórdão; não impugnou a decisão arbitral, por omissão de pronúncia. E, conformando-se com a decisão, não pode colocar uma nova ação, como erroneamente pretende com o presente processo.
Segunda: o art. 621.º do CPC não tem o conteúdo pretendido pela requerente. Esse preceito está pensado para a verificação superveniente de certas situações, após o caso julgado: verificação de condição, prazo ou prática de certo facto. Entre a primeira e segunda ação arbitral não há qualquer modificação de factos, prazos ou condições. É tudo exatamente igual. Logo, os termos e limites do caso julgado da primeira ação arbitral aplicam-se a este processo.
A doutrina e a jurisprudência alinham por este diapasão: na doutrina, LEBRE DE FREITAS, in CPC Anotado, II, 2.ª ed., p. 354, é concludente, ao mencionar: “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado um obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-12-2017, proferido no Processo 3435/16.3T8VIS-A.C, refere: “a expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve. O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.
Por fim: o art. 24.º, n.º 2, do RJAT responde a esta questão, em termos homólogos aos do CPC, ao indicar: “2 - Sem prejuízo dos demais efeitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação preclude o direito de, com os mesmos fundamentos, reclamar, impugnar, requerer a revisão ou a promoção da revisão oficiosa, ou suscitar pronúncia arbitral sobre os actos objecto desses pedidos ou sobre os consequentes actos de liquidação”. Quer dizer: preclude-se nova ação arbitral (com os mesmos fundamentos da anterior) se, na anterior, houver decisão material sobre o mérito da pretensão. A lei não diz, que tenha decidido com base em todos os argumentos esgrimidos no anterior processo; mas apenas que seja sobre o mérito da pretensão – e isso ocorreu manifestamente. O STA, ao uniformizar a jurisprudência, toma uma decisão que toca a parte material dos pedidos do processo.
A procedência da exceção do caso julgado é suficiente para a decisão deste processo, tornando inúteis a decisão sobre as demais questões suscitadas nos autos. Mas o tribunal esclarece que sempre julgaria procedente a exceção da intempestividade do pedido desta ação arbitral, pois o requerente intentou esta ação após 90 dias contados do caso julgado da primeira ação arbitral; e o Despacho de 8/2022, não é uma Sentença e reconduz-se a uma não decisão; e, inclusive, porque a requerente efetuou o pedido de esclarecimento no processo arbitral (a solicitar nova sentença arbitral) após 90 dias, contados do caso julgado do processo.
4. Decisão
Termos em que face ao exposto decide-se julgar procedente a exceção dilatória do caso julgado, suscitada pela requerida e, em consequência, absolver a Requerida da Instância, abstendo-se nos termos legais de conhecer do mérito da ação
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 3.784.300,81€.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €48.042,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique-se
Porto, 14 de abril de 2023
Os Árbitros
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(Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro - Presidente),
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(Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares- Árbitro Adjunto e relator)
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(Dr. Alberto Amorim Pereira – Árbitro Adjunto)
(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.