Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 114/2014-T
Data da decisão: 2014-09-30  IUC  
Valor do pedido: € 1.719,19
Tema: IUC – sujeito passivo; competência do tribunal arbitral;
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Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 114/2014 – T

Tema: IUC – sujeito passivo; competência do tribunal arbitral;

 

 

 

I - RELATÓRIO

A., S.A. (adiante referida como Requerente), pessoa coletiva n.º …, com sede …, apresentou, em 12-02-2014, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2º e dos artigos 10º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com a al. a) do art.º 99.º e a al. d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, com vista a:

-          Declaração da ilegalidade das liquidações de Imposto Único de Circulação impugnadas (identificadas nos documentos nºs 2 a 25 juntos à petição inicial) relativas aos períodos de tributação de 2009 a 2012, no montante de € 1.719,19., com a sua consequente anulação;

-          A condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso à Requerente do montante de imposto indevidamente pago e dos correspondentes juros indemnizatórios.

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

-          A Requerente é uma instituição financeira que tem por objeto social a prática das operações permitidas aos bancos, com exceção da receção de depósitos, dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis;

-          No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra com os seus clientes contratos de Aluguer de Longa Duração e Contratos de Locação Financeira, de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respetivos locatários ou a terceiros;

-          Entre 14 de Novembro de 2013 e 20 de Dezembro de 2013, foi a Requerente notificada de Liquidações Oficiosas de IUC relativas às viaturas identificadas no presente pedido de pronúncia arbitral (documento 1 junto à petição inicial) e aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012;

-          Conforme referido anteriormente, a Requerente procedeu ao pagamento voluntário do IUC liquidado (Documentos n.º 2 a n.º 44);

-          A Requerente considera os atos de liquidação ilegais, na medida em que os veículos relativamente aos quais impendia o pagamento do IUC não eram sua propriedade à data identificada pela AT – Administração Tributária e Aduaneira como data da ocorrência do facto gerador do imposto;

-          De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados;”

-          Embora o atual texto não tenha usado o termo “presumem-se”, ao contrário do que constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos (o artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho dispunha: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados”, o art.º 3º, n.º 1 do CIUC continua a conter uma presunção legal em matéria de incidência;

-          No ordenamento jurídico português encontram-se diversos exemplos de normas que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, sendo disso exemplos, no Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2 e 1629.º; No Código da Propriedade Industrial, o artigo 98.º; No ordenamento jurídico tributário, são exemplos o artigo 21.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ou o artigo 89-A.º, n.º 4 da Lei Geral Tributária;

-          Por outro lado, o art.º 3º do CIUC deve ainda ser interpretado à luz do princípio da equivalência, estabelecido no artigo 1.º do mesmo Código. Desde princípio se deve retirar que o imposto visa tributar os utilizadores efetivos dos veículos;

-          Entendendo-se que o art.º 3º do CIUC estabelece uma presunção, esta é necessariamente ilidível, por força do art. 73º da LGT;

-          Dos documentos apresentados pela Requerente, extrai-se que todos os veículos sobre os quais recaem as liquidações ora impugnadas foram vendidos em data anterior àquela a que imposto respeita;

-          O registo automóvel não tem valor constitutivo mas apenas declarativo, pelo que a ausência de registo não poderá afetar a qualidade de proprietário;

-          A ausência de registo também não impede a eficácia plena dos contratos de compra e venda dos veículos, nos termos conjugados do art.º 5º, n.º 1 e n.º 4 do Código do Registo Predial (CRPred.);

Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira deduz defesa por exceção e por impugnação, alegando, em síntese, o seguinte:

 

A - Por exceção

-          Com exceção do Documento n.º …, todos os demais documentos juntos pela Requerente não constituem liquidações oficiosas, mas sim meras notas de cobrança, geradas pela própria Requerente através da Internet no Portal das Finanças;

-          A Requerida não enviou à Requerente quaisquer outras liquidações oficiosas para além da já referida com o n.º …;

-          Assim sendo, não constituindo a nota de cobrança um ato tributário, verifica-se no caso vertente uma situação de falta de objeto do processo arbitral, a qual constitui uma exceção perentória que deverá conduzir à absolvição da Requerida da instância, nos termos do art.º 576, n.º 3 do Código do Processo Civil;

-          Além disso, atendendo à inexistência de atos de liquidação (com exceção do já mencionado ato de liquidação documentado através da nota de liquidação n.º …), é também o Tribunal Arbitral incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa;

-          A entender-se que se está perante autoliquidações geradas pela Requerente no Portal das Finanças através da Internet, para que tais autoliquidações pudessem ser objeto de impugnação judicial era necessário que a impugnação fosse precedida de reclamação administrativa das mesmas autoliquidações, o que não se verifica, sendo a consequência disto a não impugnabilidade de tais atos.

B - Por Impugnação

-          O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;

-          O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;

-          A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;

-          Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

-          O referido entendimento corresponde ao adotado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º….0BEPNF;

-          O referido entendimento é o único que, atendendo ao elemento sistemático da interpretação, é compatível com a unidade do regime do IUC;

-          A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.

-          A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.

No dia 9 de junho de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.

Nesta reunião, as partes prescindiram de produzir alegações orais ou escritas.

 

Este Tribunal Arbitral singular foi constituído em 15-04-2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.

 

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

II – QUESTÕES A DECIDIR

São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

-          A existência de atos de liquidação ou de autoliquidação cuja impugnação é objeto do pedido;

-          A competência do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido;

-          A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;

-          A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos;

 

III – FUNDAMENTAÇÃO

A.    FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES

Com base nos documentos juntos pela Requerente e que integram o processo administrativo, consideram-se provados os seguintes factos:

1º: A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento de 42 liquidações de IUC respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, e referentes a 29 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;

2º: A Requerente emitiu faturas relativas à venda dos 29 veículos a que dizem respeito as liquidações de IUC impugnadas em data anterior à dos factos geradores do imposto;

3º: A Requerente procedeu ao pagamento do imposto constante de todas as liquidações impugnadas.

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

B.     FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1.      Questão da existência de atos de liquidação ou de autoliquidação cuja impugnação é objeto do pedido

Na sua defesa por exceção, a Requerida suscita as seguintes questões:

-          Com exceção do Documento n.º …, os documentos juntos pela Requerente como comprovativos das liquidações de IUC constituem notas de cobrança e não liquidações. Sendo notas de cobrança, não são atos tributários, e como tal não podem ser objeto de impugnação, pelo que falta objeto ao presente processo arbitral.

-          Não existem no caso atos de liquidação, pelo que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido;

-          A entender-se que se está perante autoliquidações geradas pela Requerente no Portal das Finanças através da Internet, para que tais autoliquidações pudessem ser objeto de impugnação judicial era necessário que a impugnação fosse precedida de reclamação administrativa das mesmas autoliquidações, o que não se verifica, sendo a consequência disto a não impugnabilidade de tais atos.

Alega a Requerida que os documentos juntos pela Requerida (com exceção do documento n.º …) são meras notas de cobrança, as quais não constituem atos tributários.

Não cremos que assista razão à Requerida quanto a este ponto.

As notas de cobrança juntas pela Requerente não corporizam atos de liquidação, mas comprovam que existiram atos de liquidação do imposto, ou essas notas de cobrança não poderiam ter sido emitidas (no mesmo sentido, a decisão arbitral proferida no processo n.º 183/2014-T, ainda não publicada e junta pela Requerida aos autos).

O que a Requerente impugna são os atos de liquidação que estiveram na origem dos documentos de cobrança juntos ao processo como meio de prova das liquidações.

Não se verifica, portanto, a exceção de falta de objeto do processo.

 

2.      A competência do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido

A Requerida alega ainda que, estando-se, em todos os casos exceto no da liquidação n.º …, perante autoliquidações, a sua impugnação está dependente de reclamação graciosa prévia, que, nos casos vertentes, não existiu.

É um facto, reconhecido pela Requerente, que não foram deduzidas reclamações graciosas das liquidações impugnadas.

E ao contrário do que afirma a Requerente, esta realizou, efetivamente, uma autoliquidação, por via eletrónica, através da plataforma de comunicação eletrónica da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira.

Ora, nos termos do art.º 2º, al. a) da “Portaria de Vinculação”,[1] estão excluídas do âmbito de vinculação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira à arbitragem tributária as autoliquidações que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa, nos termos do artigo 31º do CPPT.

Por seu turno, o art.º 131º do CPPT determina que “em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária”.

E assim, há que concluir que as autoliquidações referidas não são impugnáveis junto dos tribunais arbitrais, pelo que este tribunal é incompetente para apreciar a legalidade de tais liquidações.

O tribunal é, contudo, competente, nos termos do mesmo art.º 2º, al. a) da “Portaria de Vinculação” e do art.º 2º, n.º 1, al. a) do RJAT, para apreciar a legalidade da liquidação oficiosa com o n.º … .

 

 

3.      Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

Sobre esta questão e nos exatos termos em que é aqui colocada, se pronunciou o Tribunal arbitral, que integrámos como vogal, constituído no processo n.º 63/2014-T[2]. Por considerarmos aplicar-se no caso vertente tudo o que se diz na referida pronúncia a respeito desta questão, reproduzimos aqui o seu teor, aderindo à doutrina aí expendida:

“Dispõe o artigo 3º do CIUC:

 

Artigo 3.º

Incidência subjetiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)

Mas o Regulamento do Registo Automóvel[3] contém um regime especial para entidades que se dediquem à atividade comercial de venda de veículos automóveis, em vigor desde 2008. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).

O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).

O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.

Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.

A AT-Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respetivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.

Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.

Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data das liquidações, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.

Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adotou o único procedimento que podia adotar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.

Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efetiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.

A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?

 Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?

A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.

A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.

Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.

Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. 

A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).

Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.

A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.

Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas

O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, (…), pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exatamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atrativa, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjetiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjetiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjetiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjetiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do mesmo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte direto (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto”.

Não tem, portanto, razão a Requerida no que diz respeito à interpretação do art.º 3º do CIUC, no sentido de que aí não se consagra uma presunção sobre quem é proprietário do veículo.

Nesse preceito apenas pode conter-se uma presunção legal, por força do princípio da capacidade contributiva, o qual impõe que os impostos – que, nos termos do art.º 4º da LGT, incidem sobre a capacidade contributiva revelada através do rendimento, da despesa e do património – recaiam sobre as pessoas que efetivamente são titulares do rendimento ou do património ou realizam a despesa.

Como todas as presunções em matéria de incidência tributária, tal presunção é ilidível, por força do art.º 73º da LGT.

 

4.      Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

A fim de ilidir a presunção do art.º 3º do IUC, a Requerente tem de provar “o contrário”, i.e, que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários.

Vejamos então:

A Requerente propõe-se provar, segundo resulta da petição inicial, que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta faturas relativas à venda dos veículos.

Sendo a fatura um documento unilateral, com o qual se pretende negar a veracidade de factos provados através de uma prova legal - a presunção decorrente do registo - levanta-se aqui uma questão de direito probatório material, que cumpre analisar.

Esta questão foi igualmente resolvida na decisão arbitral acima citada, cuja doutrina subscrevemos inteiramente e que passamos a transcrever:

“O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.

São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.

A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.

As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.

Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.

O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”

Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.

Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.

Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto”.

O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros.

Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:

 - Faturas relativas à venda dos veículos em causa;

(…)

Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente, contra a presunção resultante do registo.

Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.

O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.

Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.

Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.

Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).

Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.

Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.

O que a Requerente apresenta como prova, porém – faturas não assinadas pelo comprador[4] e cópias de extratos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a fatura corresponda a qualquer negócio efetivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da fatura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).

A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado.

Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a faturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).

Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apresenta faturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas faturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas faturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das faturas juntas (…)”)

Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?

Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respetivo subscritor”.

 E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exatamente ao valor da fatura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por fatura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade faturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).

Tudo o que foi dito para a fatura vale, por sua vez, para os extratos contabilísticos. Um extrato contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.

Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos particulares e unilaterais, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.

Em face do exposto, é forçoso concluir que Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas”.

Prossegue a decisão citada:

“Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal.

Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.

Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o atual proprietário.

Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente atualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).

Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das faturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.

A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo contrariar a prova legal plena constituída pelo registo mediante a apresentação de documentos particulares unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.

E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objetivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).

Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção”.

Atenta a argumentação expendida, e que aqui se acolhe inteiramente, impõe-se concluir que a Requerente não logra ilidir a presunção que sobre ela impende sobre a titularidade da propriedade dos veículos objeto das liquidações, resultante do facto de a propriedade se encontrar registada em seu nome.

Não procede, portanto, a alegada ilegalidade das liquidações impugnadas por erro nos pressupostos de direito.

 

V. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide:

- Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação identificada com o número … , por não se ter ilidido a presunção de propriedade do respeito veículo que impende sobre a Requerente e, consequentemente, não se poder considerar existir erro nos pressupostos de direito da liquidação;

 - Julgar procedente a exceção de incompetência material do Tribunal quanto aos restantes pedidos, e em consequência absolver a Requerida da instância quanto a tais pedidos, por estarem em causa autoliquidações cuja impugnação judicial depende de prévio recurso à via administrativa.

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 1719,19 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 30 de Setembro de 2014

 

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)



[1] Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

[2] Decisão ainda não publicada.

[3] Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro.

[4] A assinatura da fatura não é requerida pelo Direito Comercial e não constitui prática entre os comerciantes. Mas o que está a ser discutido não é a validade da fatura e sim o seu valor probatório quanto a um negócio jurídico., no âmbito de uma relação jurídica tributaria.