Sumário:
I - Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária não pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação;
II – O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Diretiva.
III – Termos em que, a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração.
Os Árbitros Guilherme W. d´Oliveira Martins, Clotilde Celorico Palma e Sofia Ricardo Borges, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A Requerente A...– Sucursal em Portugal, sociedade com sede em ..., R/c, ..., ..., ...-..., Amadora, com o número de identificação de pessoa coletiva e de contribuinte ..., vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral tendo por objeto a decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa deduzida contra os atos de Autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referentes aos períodos de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019, bem como, estes atos de autoliquidação propriamente ditos, com os seguintes fundamentos:
a. Considerando que realiza, simultaneamente, operações que conferem o direito à dedução do IVA incorrido e operações que não conferem esse direito, a Requerente é qualificada como um sujeito passivo misto, o que a obriga a utilizar os métodos de dedução previstos no artigo 23.º do Código do IVA, para determinação do imposto dedutível, ou seja, os métodos do pro rata (previsto na alínea b) do n.º 1 daquele artigo) e da afetação real (previsto no n.º 2 do mesmo preceito legal).
b. A AT, através do Ofício-Circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30 janeiro de 2009, veio “impor condições especiais” para a determinação do direito à dedução do IVA incorrido pelas instituições financeiras em recursos indistintamente utilizados na realização de operações que conferem e que não conferem o direito à dedução (“recursos comuns”), quando estas desenvolvam simultaneamente atividades de Leasing ou de ALD - o que é o caso da Requerente.
c. Considera a AT, no referido Ofício-Circulado, que “No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente atividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução”. (cfr. ponto 5 do Ofício-Circulado).
d. Assim, conclui a AT que “considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a «distorções significativas na tributação», os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades”. (cfr. ponto 8 do Ofício-Circulado).
e. O aludido Ofício-Circulado prevê ainda que “Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.” (cfr. ponto 9 do Ofício-Circulado) (sublinhado nosso).
f. Face ao acima exposto, a Requerente adotou, de boa-fé e cautelarmente, aquando do cálculo das percentagens de dedução definitivas de 2018 e de 2019, o procedimento previsto neste Ofício-Circulado, tendo apurado coeficientes de imputação específicos de 22,2 % e 16,55%, respetivamente, nos termos aí definidos, os quais não tiveram, portanto, em consideração, quer no numerador, quer no denominador da fração, a “componente de amortização de capital” associada às rendas de locação financeira.
g. Ou seja, foi cindida a respetiva contraprestação (renda) em juro e amortização financeira, não obstante ambas concorrerem para o valor tributável de IVA, conforme decorre da alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA.
h. Não obstante o procedimento adotado pela Requerente estar em harmonia com o entendimento vertido naquele Ofício-Circulado, a Requerente não concorda com o mesmo, considerando que existiu um erro na autoliquidação do IVA referente aos períodos de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019, o que a levou a proceder, em 03/05/2021, à apresentação de uma Reclamação Graciosa que teve por objeto essas autoliquidações.
i. De facto, considera a Requerente que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2018 e de 2019, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, a qual, com referência a 2018, ascende a 86%, e não a 22,2% (apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado), e com referência a 2019, ascende a 85%, e não a 16,55% (também apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado).
j. Neste sentido e segundo os seus cálculos, o IVA que a Requerente deveria ter deduzido adicionalmente, caso não tivesse seguido o entendimento plasmado no identificado Ofício-Circulado, ascende a um total de € 2.207.847,69, conforme detalhe infra:
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2018
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2019
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[A] Numerador
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121.278.523,73
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94.379.754,37
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[B] Denominador
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141.049.783,52
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111.185.362,09
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[C]=[A]/[B] Pro rata
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86,00%
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85,00%
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[D] IVA incorrido em recursos comuns
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1.604.587,52
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1.729.602,21
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[E] Coeficiente de imputação específico
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22,20%
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16,55%
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[F]=[D]x[E] IVA já deduzido por coeficiente de imputação específico [Declaração Periódica de Dezembro 2018/2019]
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356.218,43
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286.249,16
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[G]=[D]*[C]-[F] IVA a deduzir adicionalmente por Pro rata
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1.023.726,84
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1.183.912,71
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[H] Regularizações de IVA do ativo imobilizado por variações superiores a cinco pontos percentuais
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105,24
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102,90
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[I]=[G]+[H] Total do IVA a deduzir adicionalmente
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1.023.832,08
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1.184.015,61
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2.207.847,69
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k. A utilização pela Requerente do método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, decorre da sua própria estrutura empresarial, pois as operações de locação financeira em causa implicam a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens.
l. De facto, a referida propriedade implica um consumo significativo de recursos comuns que não se verificaria numa situação em que apenas concedesse financiamento aos seus clientes e estes, por sua vez, adquirissem diretamente os bens em causa.
m. Pela sua importância e tal como a Requerente pretende, uma vez mais, demonstrar através da prova testemunhal, destacam-se os recursos humanos e materiais afetos à coordenação de processos associados à disponibilização e gestão dos bens dados em locação.
n. Não menos importante é o consumo de recursos comuns associados à propriedade dos bens dados em locação quando os mesmos não são adquiridos pelos locatários (ou em caso de incumprimento do contrato pelos locatários), caso em que a Requerente tem um conjunto significativo de recursos comuns afetos a esta operação, quer para a recolha, armazenagem e gestão dos bens, quer para o processo de venda dos mesmos no mercado.
o. E todas as estruturas envolvidas nas atividades de locação/ALD afetam indistintamente os recursos da Requerente, quer relacionadas com essa disponibilização e gestão dos bens locados, quer com a gestão e financiamento dos contratos.
p. A Requerente possui um detalhe das tarefas envolvidas nas atividades de ALD/locação, com a identificação dos “Custos Mistos” e dos “Custos Diretos”, com base no qual foram apurados os rácios do pro rata a aplicar neste caso, o que lhe permite, de forma clara e com toda a segurança, fazer a distinção entre esses custos e determinar a sua imputação real a tais atividades.
q. O mesmo se pode retirar dos extratos de conta de Fornecedores, que materializam tais recursos e das faturas emitidas por alguns desses mesmos Fornecedores. Ou ainda do mapa com a indicação dos custos incorridos com a “recuperação” de veículos, quer no âmbito de contratos de ALD, quer de leasing.
r. Estas operações de locação financeira são realizadas com recurso a vários departamentos centrais (de contabilidade, marketing, risco de crédito, jurídico, recuperação de crédito/bens, remarketing, entre outros), aos quais estão alocados diversos recursos materiais e humanos, diretamente afetos às particularidades dos contratos de locação financeira e à disponibilização dos bens locados.
s. Tendo presente este enquadramento, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa, com vista a corrigir as autoliquidações de IVA de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019 e, em concreto, a taxa do pro rata da dedução relacionada com os contratos de ALD/locação em causa, nos termos da qual se disponibilizou para fornecer todos os esclarecimentos adicionais que a AT considerasse necessários, quer para determinar a factualidade, quer para prestar informação de suporte aos cálculos efetuados e aos argumentos por si invocados.
t. Sobre essa reclamação recaiu o Projeto de Indeferimento notificado à Requerente, em 29/06/2021, nos termos do qual a AT considerou que não existiu qualquer erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA em questão e, em concreto, de um erro no apuramento do referido pro rata de dedução.
u. Perante os argumentos apresentados pela AT, a Requerente exerceu, em 29/07/2021, o competente direito de audição, no qual tentou rebater as alegações feitas pela AT e demonstrar a adequação e legalidade do seu entendimento nesta matéria, procedendo à junção de uma vasta documentação, nomeadamente, alguns exemplos dos contratos de ALD e de Locação.
v. Adicionalmente e nessa sede, a Requerente disponibilizou-se para produzir prova testemunhal sobre os factos em causa, por forma a demonstrar a existência de efetivos recursos comuns e, em concreto, de recursos associados especificamente à gestão e disponibilização dos bens objeto de locação/ALD.
w. Em 17/09/2021, a Requerente foi notificada do despacho da UGC, que admitiu a produção da referida prova testemunhal e determinou que a mesma fosse prestada sob a forma escrita.
x. Em resposta a esse despacho, as 8 testemunhas arroladas pela Requerente prestaram depoimento perante a UGC.
y. Por fim e totalmente indiferente ao que foi referido pelas testemunhas em causa, assim como a toda a argumentação expendida pela Requerente no seu direito de audição, a AT indeferiu em definitivo a Reclamação Graciosa, através da decisão que constitui um dos objetos do presente pedido.
z. Nos termos dessa decisão, e conforme já decorre do acima exposto, a AT considerou não se verificar qualquer erro no preenchimento das declarações referentes aos períodos de dezembro de 2018 e dezembro de 2019, entendendo que o procedimento então adotado pela Requerente, no que concerne à liquidação e dedução do IVA em crise, se afigurava correto.
aa. Entretanto, a Requerente mantém-se convicta da adequação e conformidade legal do seu entendimento, de que, não tendo sido possível a aplicação de um critério de afetação real com base em critérios objetivos (nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA), o único método legalmente admissível é o método do pro rata de dedução (previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA), o qual tem de, legalmente, incluir na respetiva fração os montantes referentes às amortizações financeiras (capital) incluídas nas rendas de locação financeira.
bb. Foi isso que esteve subjacente à revisão dos seus procedimentos nesta matéria, à apresentação da reclamação graciosa acima identificada e é também por esse motivo que a Requerente deduz o pedido arbitral.
2. A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende a legalidade dos atos tributários praticados e alega, em síntese, o seguinte:
a. Para efeitos de IVA, a Requerente configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.
b. Caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto", uma vez que exerce atividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da atividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.
c. Relativamente ao último período do ano de 2018 e 2019, a Requerente apurou uma percentagem de dedução inferior àquela que segundo o seu entendimento seria a correta face às disposições legais em vigor, e que de acordo com os seus cálculos ascendia a 86% (2018) e 85% (2019) (em vez dos 22,2% e 16,55% apurados), o que, em sua perspetiva, deveria ter determinado um montante adicional de IVA a deduzir no montante de €2.207.847,69.
d. Deste modo, a Requerente solicita que o ato tributário de autoliquidação daí decorrente seja anulado na parte referente ao IVA que resulta da divergência de aplicação daquelas percentagens aos bens e serviços com utilização mista,
e. Bem como requer a restituição da importância acima mencionada, bem como os juros indemnizatórios respetivos, que considera serem devidos desde a data da apresentação das declarações periódicas até à restituição do imposto pago em excesso, com base no pressuposto de que a responsabilidade do alegado erro na autoliquidação é imputável à AT, por decorrer da aplicação de instruções administrativas emanadas por esta e que considera ilegais.
f. O que está aqui em questão são tão-somente dois pontos:
- Saber se o artigo 23.º, n.º 2 do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA – art. 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, al. c) da Sexta Diretiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços.»
- Saber se os custos os em que incorre a Requerente com os contratos de locação financeira são sobretudo determinados pelos inputs decorrentes dos atos de financiamento e gestão dos ditos contratos.
g. Ambas as questões, conforme se demonstrará, merecem resposta positiva.
h. Tendo em consideração a natureza das atividades praticadas, financiamento de crédito e celebração de contratos de locação financeira mobiliária, o Banco configura-se como um sujeito passivo misto, isto é, realizando operações que conferem direito à dedução e outras que não conferem esse direito.
i. Existindo bens e serviços adquiridos (inputs) que sejam conjuntamente utilizados em ambas, deve recorrer-se às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado a qualificar como passível de direito a dedução.
j. O denominado método da afetação real consiste na aplicação de critérios objetivos, reais, sobre o grau ou intensidade de utilização dos bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito.
k. É de acordo com esse grau ou intensidade de utilização dos bens, medidos por critérios objetivos, que o sujeito determinará a parte de imposto suportado que poderá ser deduzida.
l. O método da percentagem de dedução ou pro rata trata-se de urna dedução parcial, que se traduz no facto do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços utilizados num e noutro tipo de operações, apenas ser dedutível na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dão lugar a dedução.
m. A percentagem de dedução a aplicar é calculada provisoriamente com base no montante de operações realizadas no ano anterior (pro rata provisório), sendo corrigida na declaração do último período do ano a que respeita, de acordo com os valores definitivos de volume de negócios referentes ao ano a que reportam, determinando a correspondente regularização por aplicação do pro rata definitivo.
n. Com a alteração introduzida ao artigo 23º pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, tais procedimentos foram "estendidos" ao método da afetação real, nomeadamente, aos casos em que o mesmo é imposto pela Administração Tributária, quer para as situações em que o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas, quer para os casos em que se apure que a utilização dos demais métodos poderá originar distorções significativas na tributação, conforme dispõe o n.º 3 do artigo em análise.
o. A aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.
p. É precisamente no âmbito dos poderes conferidos à Administração Tributária pela alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º CIVA, que se enquadra o Ofício-Circulado n.º 30.108 aqui em discussão, prevendo uma solução que permite afastar a possibilidade da ocorrência de distorções significativas, quando estamos perante sujeitos passivos que realizem, entre outras, operações de locação financeira e ALD.
q. No caso concreto, estamos perante operações de locação financeira mobiliária, e pretende aferir-se a legalidade, face às normas de direito comunitário ou de direito interno, da exclusão do cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação que corresponde à amortização financeira, apenas considerando o montante de juros e outros encargos faturados.
r. Note-se que a Requerente realiza operações financeiras que não conferem o direito à dedução de IVA, por se encontrarem isentas ao abrigo do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA e operações com liquidação de IVA, como acontece, por exemplo, com as rendas de leasing e ALD, que conferem direito à dedução do IVA suportado.
s. A Requerente realiza ainda outras operações financeiras ou acessórias que conferem, igualmente, o direito à dedução de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 20.º do CIVA.
t. No conjunto das operações que conferem direito à dedução de IVA, integram-se os contratos de locação, nos quais a Requerente assume a posição de locadora e, nessa qualidade, adquire os bens (ou o financiamento para a sua aquisição) que são objeto desses contratos, acrescidos de IVA, sendo os mesmos entregues aos respetivos locatários para seu uso e fruição.
u. O apuramento da percentagem de dedução originariamente efetuado pela Requerente está em perfeita concordância com as normas de direito comunitário e interno.
v. A locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, e é efetuada pelo sujeito passivo no âmbito duma atividade económica.
w. Um dos objetivos do legislador nesta matéria foi assegurar o cumprimento do princípio da neutralidade fiscal, na vertente de princípio da igualdade que, no caso concreto, se consubstancia no facto de ser assegurado um tratamento fiscal equivalente, no sentido de igual onerosidade, em relação àquele que adquire um bem através de um contrato de locação financeira, face a outra pessoa que o adquire diretamente.
x. Nem todo o valor pago a título de renda no âmbito de um contrato de locação financeira é correspondente à amortização financeira ou de capital.
y. Assim, a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia "emprestada"; e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.
z. O valor de aquisição do bem objeto de contrato de locação corresponde ao capital financiado que constitui a componente de amortização financeira na renda liquidada pelo locador ao locatário.
aa. No momento da aquisição desse mesmo input, o sujeito passivo (locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação direta.
bb. Por assim ser, deve ser excluída do cálculo da percentagem de dedução a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.
cc. À luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo.
dd. É apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.
ee. Se assim não fosse, permitir-se-ia um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços com utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.
ff. A questão que se coloca é a de saber se o procedimento adotado pela Administração Tributária está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23.º CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA. A resposta é afirmativa.
gg. Apenas e somente a Requerente tem o ónus de provar que o método que pretende utilizar não provoca distorção significativa na própria tributação em sede de IVA.
hh. Para mais, quando no presente caso a Requerente procedeu à autoliquidação, aplicando para o efeito o que constava no Ofício-circulado n.º 30.108, para depois reclamar graciosamente aquele método de imputação específica, sem no entanto apresentar quaisquer provas de que, como afirma, os atos de disponibilização de veículos assumem uma preponderância nos gastos que são comuns à atividade sujeita a IVA e à atividade isenta face aos gastos incorridos com atos de gestão e de financiamento do contrato.
ii. A AT veio a reproduzir o aludido critério através do Ofício-Circulado n.º 30.108 apenas a pedido e de acordo com as instruções do legislador, que expressamente determinou que a AT podia vir impor condições especiais, conforme os n.ºs 3 e 2 do art.º 23.º do CIVA.
jj. No limite, a AT podê-lo-ia até fazer casuisticamente, sujeito passivo a sujeito passivo, aplicando o critério que entendesse mais consentâneo à situação em concreto, que respeitasse a neutralidade do imposto.
kk. A bem da estabilidade tributária e do princípio da colaboração/informação, optou por divulgar o critério através de uma instrução administrativa.
ll. Não se está, pois, perante uma exceção nem perante uma violação aos princípios da legalidade, presente no artigo 103.º, n.º 2 da CRP. Menos ainda perante a violação da neutralidade e da reserva de lei.
mm. Trata-se antes de um poder/dever de colaboração que sobre a AT não poderia deixar de recair, através da revelação pública acerca da interpretação que faz das normas tributárias.
nn. O que, perante a complexidade da legislação tributária é, não só razoável, como desejável, contribuindo para a uniformização de procedimentos e aplicação uniforme da lei.
oo. O princípio da legalidade traduz-se no facto de ninguém poder ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição, isto é, de acordo com o artigo 112.º da CRP, que não tenham sido criados através de leis, decretos-lei ou decretos legislativos regionais.
pp. Na base desta exigência encontra-se o designado auto-consentimento dos impostos, segundo o qual os impostos devem ser consentidos pelos próprios contribuintes, através do sufrágio universal e direto.
qq. Consentimento que assenta no princípio da reserva de lei parlamentar, implicando que haja uma intervenção parlamentar concreta, a fim de fixar a disciplina dos impostos ou, nos termos dos artigos 165.º, n.º 1, al. i) e artigo 238.º da CRP, sob autorização do Parlamento ao Governo e/ou às assembleias legislativas regionais, para que possam traçar a aludida disciplina dos impostos, ainda que condicionada ao teor da prévia lei de autorização.
rr. A reserva de lei parlamentar traduz-se no facto de a Assembleia da República ser, no que respeita à criação de impostos e aos elementos constantes do n.º 2 do artigo 103.º da CRP, o único legislador ou o legislador originário definidor dos seus aspetos estruturantes.
ss. No que toca à incidência do imposto, trata-se do universo resultante da definição legal do conjunto de factos sujeitos a tributação e, bem assim, da identificação das pessoas a ele sujeitas.
tt. Integrar o mecanismo do direito à dedução em sede de IVA no capítulo da incidência trata-se de um vício de raciocínio em matéria nuclear de IVA, dado que o mecanismo de dedução não define o “quem é tributado”, o “que atividades são tributadas”, nem o valor tributável sobre que recaem as taxas de IVA.
uu. Impõe o princípio da reserva de lei parlamentar e o da tipicidade que o diploma legislativo que procede à criação de impostos seja o mais completo possível.
vv. Essa concretização, tão perfeita quanto for possível ao legislador, implica que a lei defina a incidência no seu sentido estrito, em termos determináveis e determinados, e isso mesmo se tratando da diminuição de uma taxa ou da exclusão de incidência de um determinado facto que, à partida, seria suscetível de tributação.
ww. A tipicidade reporta-se à previsão e à estatuição da norma e impõe às leis fiscais que tenham um certo grau de especificação, determinação e precisão, de modo que cada figura jurídica esteja suficientemente caracterizada e nítida nos seus contornos.
xx. A tipicidade exige que os factos geradores de imposto sejam exclusivamente os determinados pelas suas normas de incidência, formando, desta forma, um universo fechado.
yy. Todos os elementos necessários à tributação devem apresentar-se de tal modo precisos e determinados que o órgão de aplicação do direito não possa introduzir critérios subjetivos de apreciação na sua aplicação concreta.
zz. Assim, deverá haver uma reserva absoluta no sentido de que a lei deve subtrair à administração e ao próprio juiz qualquer margem para integração ou desenvolvimento da disciplina jurídica relativa aos elementos definidores da dívida e dos seus obrigados.
aaa. É através da tipificação exaustiva dos factos tributários sujeitos a tributação que o legislador assegura não apenas o respeito pelo princípio da legalidade, no segmento de que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição, como também o princípio da segurança jurídica e da confiança, presentes nos artigos 103.º, n.º 3 da CRP, que são garantia autêntica da estabilidade, previsibilidade e calculabilidade do sistema tributário.
bbb. Tanto a tipicidade, como a reserva de lei parlamentar, penhoram as possibilidades de tributar indiscriminadamente factos não se encontram recortados na lei, ou que, então, através daquele instrumento são excluídos de tributação.
ccc. Mas não cerceiam a possibilidade de, nos termos e para os efeitos do artigo 23.º, n.º 2 do CIVA, «a Direcção-Geral dos Impostos vir a impor ao sujeito passivo condições especiais ou a fazer cessar a aplicação do método de afectação real no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.»
ddd. Atenta a redação daquele 23.º, n.º 2 do CIVA, infere-se que o legislador quis conferir, e conferiu, poderes à AT para impor condições especiais num método de apuramento de pro rata geral.
eee. Não só a letra da lei – artigo 23.º CIVA - é clara como bem se compreende o sentido da norma: se a AT pode impor ao sujeito passivo condições especiais quando este tenha optado pela dedução com base em critérios “objetivos”, e esses critérios podem ter que ser alterados por imposição de condições especiais por parte da AT - com o objetivo de evitar distorções significativas da tributação –, por maioria de razão faz sentido que a AT também o possa fazer no âmbito do método do pro rata geral ou aquando da utilização de critérios de imputação específica.
fff. Significa que, até pela formulação legal, à AT seria dado o poder de, porque o legislador assim o quis, vir caso a caso impor condições especiais, quando verificada alguma das situações de distorção significativa.
ggg. Todavia, a AT veio a estipular o critério de imputação específica por Ofício-Circulado, em homenagem à “uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.” (v. art.º 68.º-A, n.º 1 e n.º 3, da LGT).
hhh. Trata-se de um poder/dever de colaboração que sobre a AT não poderia deixar de recair, revelando publicamente a interpretação que faz das normas tributárias, o que, perante a complexidade da legislação tributária é, não só razoável, como desejável, contribuindo para a uniformização de procedimentos e aplicação uniforme da lei.
iii. Inclusivamente, o Ofício-Circulado n° 30108/2009 encontra-se publicado na base de dados da AT e é desde 2009 conhecido pelo universo de sujeitos passivos que lida diariamente com a realidade de atividades de carácter misto.
jjj. Deste modo, a publicação atempada e disseminação do Ofício-Circulado assegura o respeito pelo princípio da segurança jurídica e da confiança, os quais se encontram salvaguardados.
kkk. Na esteira do que se vem defendendo, também se encontra justificação na produção de jurisprudência, lavrada pelo Supremo Tribunal Administrativo.
lll. Face aos Tratados, o Tribunal de Justiça da União Europeia é o garante da interpretação e aplicação uniforme do direito da União no território de todos os Estados Membros, o que se concretiza através das decisões proferidas no âmbito dos processos de reenvio, ao abrigo do artigo 267º do TFUE, como é o caso do Acórdão acima citado.
mmm. Assim, também esta jurisdição arbitral está vinculada à interpretação efetuada pelo Tribunal relativamente ao artigo 17º, nº5 da Sexta Diretiva IVA (atual artigo 173º, nº2 da Diretiva nº 2006/112 CE), em causa nos presentes autos, já que o artigo 23º do Código do IVA procedeu à sua transposição para o nosso direito interno.
nnn. Importa realçar que a decisão do TJUE tem valor de caso julgado, sendo vinculativa, não apenas para o tribunal que solicitou a sua pronúncia a título prejudicial, como para os restantes tribunais e instâncias equiparadas que julgam a causa em sede de recurso vinculando ainda, por uma questão de uniformidade, todas as jurisdições nacionais dos Estados-Membros.
ooo. Nos termos do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
ppp. Logo, o cálculo do critério de imputação específico inicialmente calculado pela Requerente não merece qualquer censura.
qqq. Apesar da Requerente não abordar a diferença que existe entre custos de disponibilização de veículos e de financiamento e gestão de contratos, certo é que esse é um dos pontos essenciais para a resolução da questão em causa.
rrr. O leasing financeiro é uma figura jurídica que comporta uma relação triangular.
sss. Para a locadora – a Requerente - celebrar contrato de locação financeira com o locatário é necessário, a montante, contratar com o fornecedor do veículo automóvel a compra do mesmo.
ttt. A Requerente compra à empresa fornecedora do veículo esse veículo, para depois, ao abrigo de um contrato de locação financeira, o locar ao locatário, adquirindo, para esse fim, um bem, o veículo automóvel em causa.
uuu. Para assim proceder incorre em custos (inputs) a montante para os fins de uma sua atividade que dá direito à dedução de IVA, a locação financeira, e que, mais tarde, aquando do recebimento de rendas e comissões, lhe trará rendimentos.
vvv. Mas a atividade que, naquele momento, exerce - o da disponibilização do veículo – e que obriga a Requerente a incorrer em custos a montante é a aquisição do veículo, para o destinar à atividade de locação financeira.
www. É-lhe liquidado IVA nessa compra – transmissão de bens (cfr. art.º 1.º, n.º 1, al. a)), IVA que suporta e relativamente ao qual lhe assiste o direito de o deduzir, na íntegra.
xxx. Ou seja, na sua totalidade, por imputação, pois, direta ao IVA que no mesmo período tenha liquidado no âmbito das suas operações tributáveis.
yyy. O que fará em momento próximo, e não em meses e anos distanciados no futuro ao longo dos períodos em que irá receber rendas ao abrigo do contrato de locação financeira.
zzz. Assim, e com vista à disponibilização dos veículos, a aquisição do veículo, que será um substancial input incorrido pela Requerente na atividade de locação financeira, é neutralizado pelo exercício do direito à dedução que aí assiste.
aaaa. Pelo que, quando se discute o artigo 23.º do CIVA e o método a aplicar para o apuramento da dedução em sede de IVA, já não é aquele IVA que está em causa, esse já foi deduzido, como vimos atrás, por imputação direta.
bbbb. A atividade principal da locadora não consiste na compra e venda de bens – que é meramente instrumental para a finalidade do negócio, a locação - mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na aquisição, reservando para si o direito de propriedade.
cccc. As restantes despesas, que ganham peso durante a vigência do contrato, situam-se ao nível do financiamento e da gestão, decorrentes das vicissitudes do contrato, como seja despesas com advogados, fornecedores externos, solicitadores, tratamento de multas, de coimas, infrações, tratamento do imposto único de circulação, ou decorrentes da gestão corrente da atividade – água, luz, condomínio, software, sistema de alarmes, etc.
dddd. Acresce a isto o facto de que num contrato de locação financeira, por mais que a Requerente alegue que corre por sua conta todos os custos inerentes ao mesmo, o locador fica liberto daquilo que são as obrigações regra do proprietário no regime geral da locação.
eeee. Não corre por conta dele o risco do perecimento do bem, sendo a obrigação de segurar o bem do locatário.
ffff. Não corre por conta dele, locador, mas sim por conta do locatário, a obrigação de realizar reparações, mesmo que necessárias ou urgentes.
gggg. É ao locatário que compete defender a integridade do bem e o respetivo gozo.
hhhh. O locador não responde pelos vícios do bem, nem pela sua inadequação aos fins do contrato.
iiii. Por sua vez, as despesas de transporte, seguro, montagem, instalação e reparação do bem, assim como as necessárias à sua eventual devolução ao locador ficam a cargo do locatário, salvo estipulação em contrário, como assim também o risco de perda e deterioração do bem.
jjjj. Tudo conforme os artigos 10.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º do DL n.º 149/95.
kkkk. Existe outra questão que ganha relevo, que se prende com a aferição sobre se os gastos mistos despendidos tanto com a gestão e financiamento dos contratos como com a disponibilização dos respetivos veículos se encontram totalmente refletidos na taxa de juro estipulada entre locador e locatário, assim como refletidos acessoriamente nas comissões debitadas ao cliente durante o período útil de vida do contrato de locação financeira.
llll. Para além de parte desses custos mistos estarem refletidos nas próprias comissões, que consubstanciam o preço a pagar pelos utentes do crédito de leasing para pagamento de prestação de serviços pela Requerente, esses custos estão igualmente estimados nos custos gerais que e encargos que compõem o valor da renda, a que acresce o capital, o risco e os juros pelo empréstimo.
mmmm. Convém ter presente que todos os custos associados à gestão de financiamento de contrato, aquando da análise do risco, se refletem na taxa de financiamento aplicada aos clientes, em particular aos que se apresentem em situação financeira mais frágil ou que constem numa “lista negra de compliance”, através do agravamento dos valores aplicados.
nnnn. Todos os custos inerentes à gestão de contrato, aqueles incorridos ao longo do contrato, tenham ou não a sua origem na ocorrência de vicissitudes dos contratos, como a contratação de mais colaboradores, a aquisição de software para uma gestão mais eficaz de toda a carteira de clientes do Banco, como a contratação de entidades externas para a recuperação do crédito mal parado e dos veículos, são refletidos aos clientes através de um ajustamento das taxas de juro para o futuro.
oooo. O negócio dos Bancos situa-se nas taxas de juro aplicadas aos clientes, bem como nas comissões que lhes são cobradas durante a vida útil dos contratos, sendo que existem para dar lucro e portanto obviamente qualquer custo comum será refletido nas taxas de juro.
pppp. Não haja dúvidas de que todos os custos sem exceção se encontram sob o manto das taxas e das comissões cobradas aos clientes.
qqqq. Todas estas comissões, escrupulosamente debitadas aos clientes, somadas à fixação inicial das taxas de financiamento e ao subsequente ajustamento dessas mesmas taxas sempre que existem custos acrescidos que resultem do ato de gestão dos contratos de locação financeira, permitem concluir que a Requerente acomoda todas e quaisquer as despesas em que incorre.
rrrr. E, assumindo que muitos destas despesas consomem recursos inerentes ao funcionamento interno da instituição bancária em análise, como seja água, luz, tonners, conservação de edifício, telefones, tudo custos comuns, é legítimo concluir que estes custos indiferenciados ou mistos são suportados pelos clientes através de débito destas rubricas.
ssss. Bem como são contabilizados e se encontram principalmente presentes, ainda que indiretamente, aquando da fixação inicial da taxa de juro ou, mais tarde, aquando da necessidade de ajustamento da taxa de juro, se a ela houver lugar.
tttt. No limite, e recorrendo a uma lógica um pouco simplista, mas que ilustra bem, pensamos, o negócio em questão e a situação em apreço, é a partir do produto das taxas de juro e das comissões que a Requerente paga as suas despesas correntes (as tais mistas, promíscuas) aos fornecedores – água, luz, condomínio, telefones, internet, etc.
uuuu. Pois que a componente da renda correspondente a juros e outros encargos constitui contraprestação pelo serviço prestado, constitui um proveito da Requerente, integra o respetivo volume de negócios, contribuindo para influenciar o resultado do exercício.
vvvv. Sendo nesta componente da renda – encargos, comissões e juros - que se contém a remuneração do locador, o pagamento de um preço.
wwww. De acordo com o Ofício-Circulado 30.108, de 30-01-2009, ponto 9, tanto as taxas de juro aplicadas, como as comissões e encargos, excluídas de imposto sobre o valor acrescentado, são todos eles valores que se perfilam no numerador do critério de imputação específico, para o apuramento da proporção, em percentagem, do montante do IVA a que à Requerente é permitido deduzir, por conta dos custos mistos incorridos no ato de gestão e financiamento do contrato.
xxxx. Todos esses custos já se encontram refletidos nos montantes que, seja isso a título de comissões, seja isso a título de taxas de financiamento, são cobrados aos clientes durante a duração do contrato.
yyyy. Montantes que são tomados em linha de conta no numerador aquando da aplicação do critério de imputação específico previsto no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009 e que, por isso, já concorrem para o apuramento da percentagem de dedução em sede de IVA.
zzzz. Dispensando que o valor da renda correspondente ao capital seja tido em conta no numerador, uma vez que os custos comuns se encontram refletidos nos juros e comissões e não no valor do capital.
aaaaa. É o contribuinte que tem o ónus de provar que o seu critério é o mais objetivo e aquele que respeita o princípio da neutralidade, não só porque vem de reclamar a sua própria autoliquidação, onde usou o método do Ofício-Circulado, mas também porque é quem está em melhores condições - porque na posse de dados relevantes para concluir pelas percentagens de dedução que aqui reclama – de apresentar essa prova.
bbbbb. Caso contrário, decidindo-se pela imputação cega desse ónus na esfera da AT, estar-se-ia a dispensar o contribuinte de provar os factos que preenchem o direito de que se pretende arrogar.
ccccc. A norma que permite à Requerente aplicar o Ofício Circulado é a do 23.º, n.º 2, parte final, do CIVA, a que a mais variada jurisprudência não se opõe.
ddddd. Para poder provar que nos anos de 2018 e 2019 a Requerente tem direito a deduzir, respetivamente, 86% e 85%, tem de efetivamente produzir prova concreta, que não testemunhal, por forma a demonstrar aquelas percentagens dos custos comuns são consumidos nos atos de disponibilização.
eeeee. A Requerente não logrou distinguir entre custos incorridos na disponibilização dos veículos e em custos com a gestão e financiamento do mesmo, tratando-os globalmente como “custos comuns”.
fffff. Só não será de aplicar o critério específico do Ofício-Circulado 31.308 caso a Requerente prove que os custos são sobretudo incorridos na fase de disponibilização dos veículos.
ggggg. Os custos de disponibilização do contrato de locação financeira são, no essencial, referentes à pré-venda, à conceção e à entrega do veículo ao cliente.
hhhhh. Assim, a fase inicial, de disponibilização e de financiamento, a fase em que o veículo é adquirido junto de um stand e, posteriormente, entregue ao cliente, é relativamente curta, não menos que 15 dias, mas será sempre uma fase muito inferior ao período de vida útil do contrato que dura em média 4 anos.
iiiii. Daqui se infere que se trata de custos incorridos num curto período de duração e que, por assim ser, se podem considerar residuais face aos custos de gestão incorridos, durante o período de vida útil do contrato.
jjjjj. Nesses 4 anos de vida útil, os custos incorridos, seja na gestão corrente do contrato, seja por vicissitudes no cumprimento do contrato, os custos mistos incorridos nominam-se de custos de financiamento e de gestão do contrato.
kkkkk. O serviço prestado pela Requerente é o da cedência do gozo temporário de um veículo, mediante retribuição, o qual envolve:
- numa primeira fase, breve e inicial, a encomenda e disponibilização ao cliente do veículo e, depois;
- numa segunda fase, tão longa quanto o for o período de vida útil do contrato de locação financeira, o financiamento e sobretudo a gestão do contrato de locação pela entidade bancária, implicando uma panóplia de serviços e despesas, da qual o banco se remunera através de comissões e através da aplicação e agravamento de taxas de financiamento.
lllll. A entrega/disponibilização do veículo é instrumental face à concessão do crédito, porque o que o cliente remunera, através do pagamento juro, é o preço do dinheiro que o Banco disponibilizou em sua substituição junto de um stand de automóveis, a título de empréstimo e que, ao longo dos anos, será restituído através do cumprimento do pagamento das rendas.
mmmmm. A Requerente pretende transmitir a ideia de que o seu papel no leasing e ALD vai para lá do mero financiamento, mas se trata de uma alternativa de crédito ao crédito automóvel, sendo que todos os custos comuns em que incorre se encontram acomodados quer na taxa de financiamento, quer nas comissões, que nas despesas que contratualmente incidem sobre os locatários.
nnnnn. A Requerente elenca todos os passos para a dita disponibilização de veículos – e, já agora, gestão dos contratos ao longo da sua vida útil e do financiamento dos seus clientes, o que implica análise de risco – em ordem a evidenciar uma atividade supostamente permanente durante todo o contrato de leasing que os Bancos não têm, nem exercem sobre os seus clientes.
ooooo. Da leitura da cláusula 3.1 dos contratos, o que ressuma é que a responsabilidade da receção – auto de receção – corre por conta do locatário e que pela celebração do contrato de leasing e ALD, o mesmo locatário suporta uma “comissão de abertura de contrato”.
ppppp. De resto, a Requerente não descreve que custos são esses que suporta sem os fazer refletir ao cliente na fase de pré-venda e de pré-celebração do leasing.
qqqqq. Quanto à responsabilidade referente ao estado do veículo no fim de vida do contrato, que a Requerente refere correr por sua conta, a Requerente cobra aos seus clientes uma comissão de peritagem de final de contrato.
rrrrr. A Requerente também não descreve quais os custos em que incorre para receber os veículos em caso de denúncia de contratos e de não aquisição pelos seus clientes.
sssss. Ademais, as prestações de serviços que a Requerente refere prestar aos clientes, relativas a multas, coimas, contraordenações, correspondência, IUC, são suportadas pelos seus clientes através de comissões previstas.
ttttt. Isto é, não apenas as multas, impostos e demais obrigações são imputadas aos locatários, que suportam financeiramente esses custos, como a própria prestação do serviço desenvolvido pelo Banco, na gestão dessa correspondência que depois é remetida para os clientes, é paga por estes através de comissões e, evidentemente, por via indireta, através da própria taxa de financiamento aplicada aos clientes consoante o risco que representam.
uuuuu. Recorda-se a Requerente que é ela quem especifica quantitativamente que para os anos de 2018 e 2019 tem direito a deduzir em sede de IVA 86% e 85%. É a Requerente quem não prova que aquelas são as percentagens consumidas na atividade de leasing automóvel e, dentro desta atividade, consumidas predominantemente nos atos de disponibilização.
vvvvv. Quanto aos gastos incorridos pela Requerente na recuperação de viaturas, convirá saber quantos contratos celebrados tinha em 2018 e 2019, bem como perceber quais os motivos dessas recuperações de automóveis e, resultando esses custos do incumprimento de rendas, porque razão se devem esses custos categorizar como de disponibilização em vez de os categorizar como sendo decorrentes do incumprimento do financiamento que o Banco prestou aos seus clientes.
wwwww. Quanto aos juros indemnizatórios, sabe-se que se destinam a compensar o contribuinte pelos prejuízos causados pelo pagamento indevido de uma prestação tributária - quer esta seja efetuada no âmbito da cobrança coerciva, quer seja efetuada de forma voluntária - ou pelo atraso na restituição oficiosa de tributos por parte da AT.
xxxxx. No entanto para que haja lugar ao seu reconhecimento, o legislador estabeleceu determinados pressupostos.
yyyyy. Nesse sentido, e no que se refere ao presente caso, os pressupostos são os que se encontram elencados no artigo 43° da LGT.
zzzzz. Decorre deste normativo que o direito a juros indemnizatórios depende da determinação em sede de Reclamação Graciosa da existência de "erro imputável aos serviços", o que não se verifica no caso em análise, e em consequência, os valores pagos pela Requerente não se podem qualificar como indevidos.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 14-02-2022, com indicação de árbitro, e foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 15-02-2022. Em 31-03-2022, foi designado o árbitro pela Requerida.
Em 06-06-2022, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou o árbitro presidente do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 06-06-2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 28-06-2022, tendo sido proferido despacho arbitral na mesma data em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.
A AT apresentou a sua Resposta, em tempo, em 19-09-2022.
Em 30-09-2022 foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:
«1. Designa-se o dia 26 de outubro de 2022, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD, para realização da audiência para produção de prova testemunhal.
2. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.»
Em 25-10-2022 foi proferido o seguinte Despacho Arbitral, na sequência de pedido do Requerida:
«Tendo em conta o requerimento da Requerida para adiamento e a disponibilidade de agenda deste coletivo, designo o dia 4/11/2022, às 10h para audiência de produção de prova prevista no artigo 18.º do RJAT.»
Em 31-10-2022 foi proferido novo Despacho Arbitral, na sequência de pedido do Requerente, com acordo da Requerida:
«Tendo em conta o requerimento da Requerente para novo adiamento e a disponibilidade de agenda deste coletivo, designo o dia 22/11/2022, às 14h para audiência de produção de prova prevista no artigo 18.º do RJAT.»
A inquirição foi realizada nos dias 22-11-2022 e 06-12-2022 conforme atas junta ao processo, que prorrogou a data limite da prolação da decisão, em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º 2 do RJAT, até 28-02-2023.
Na sequência da inquirição, foram apresentadas as alegações por parte do Requerente.
POSTO ISTO:
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre decidir.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
a. A Requerente configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.
b. A Requerente desenvolve atividade económica que é tributada, nomeadamente, de locação financeira em causa nos presentes autos, bem como atividade económica isenta, designadamente, concessão de crédito.
c. Caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto" de IVA, exercendo atividades que conferem direito à dedução e realizando operações no âmbito da atividade financeira, isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.
d. As operações de locação financeira que realiza no exercício da respetiva atividade implicam a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, determinados pelo facto de a Requerente ser a proprietária dos referidos bens.
e. As atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, são de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos.
f. A utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e «não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes».
g. A Requerente adotou, aquando do cálculo das percentagens de dedução definitivas de 2018 e de 2019, o procedimento previsto no da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30 janeiro de 2009, tendo apurado coeficientes de imputação específicos de 22,2 % e 16,55%, respetivamente, nos termos aí definidos, os quais não tiveram, portanto, em consideração, quer no numerador, quer no denominador da fração, a “componente de amortização de capital” associada às rendas de locação financeira.
h. A Requerente entende que o cálculo correto das percentagens de dedução definitivas de 2018 e de 2019, seria, face às disposições legais em vigor, 86% (2018) e 85% (2019) (em vez dos 22,2% e 16,55% apurados), o que, em sua perspetiva, deveria ter determinado um montante adicional de IVA a deduzir no montante de €2.207.847,69.
i. Considerando que existiu um erro na autoliquidação do IVA referente aos períodos de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019, a Requerente, em 03/05/2021, apresentou uma Reclamação Graciosa com vista a corrigir tais autoliquidações de IVA e, em concreto, a taxa do pro rata da dedução relacionada com os contratos de ALD/locação em causa, tendo-se disponibilizado para fornecer todos os esclarecimentos adicionais que a AT considerasse necessários, quer para determinar a factualidade, quer para prestar informação de suporte aos cálculos efetuados e aos argumentos por si invocados.
j. Sobre a aludida Reclamação recaiu o Projeto de Indeferimento notificado à Requerente, em 29/06/2021, nos termos do qual a AT considerou que não existiu qualquer erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA em questão e, em concreto, de um erro no apuramento do referido pro rata de dedução.
k. A Requerente exerceu, em 29/07/2021, o direito de audição, procedendo à junção de uma vasta documentação, nomeadamente, alguns exemplos dos contratos de ALD e de Locação.
l. Tendo solicitado a produção de prova testemunhal, em 17/09/2021, a Requerente foi notificada do despacho da UGC, que admitiu a respetiva produção e determinou que a mesma fosse prestada sob a forma escrita..
m. A AT indeferiu em definitivo a Reclamação Graciosa, através da decisão que constitui um dos objetos do presente pedido.
A.2. Factos dados como não provados
Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos e na prova testemunhal produzida.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
B. DO DIREITO
B.1.1. APRECIAÇÃO DA QUESTÃO
A Requerente desenvolve atividade económica, tal como definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, que é tributada (nomeadamente, de locação financeira, enquadrável no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA), bem como atividade económica isenta (designadamente, concessão de crédito, nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA).
Em regra, o IVA que for suportado pelo sujeito passivo na aquisição dos meios utilizados exclusivamente na sua atividade económica tributada é totalmente dedutível e o IVA suportado na aquisição de meios utilizados apenas na atividade isenta ou não prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, não pode ser deduzido [artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA e artigo 168.º da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006].
No caso em apreço, está em causa a dedução de IVA relativamente a meios utilizados indiferentemente tanto na atividade tributada (como é a locação financeira), como na atividade económica isenta da Requerente (como sucede com a concessão de crédito).
Relativamente aos meios de utilização mista, utilizados indiferentemente «para efetuar tanto operações com direito à dedução (...) como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações» (artigo 173.º n.º 1, da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006).
Tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º «o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução», nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA.
Esta percentagem de imposto dedutível, ou «pro rata de dedução», resulta, em regra, de uma fração que inclui no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução e no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução (artigos 174.º da Diretiva n.º 2006/112/CE e 23.º, n.º 4, do CIVA).
O pro rata de dedução é determinado anualmente, sendo fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior, e é aplicável provisoriamente, a determinado ano, calculado com base nas operações do ano anterior ou estimado provisoriamente, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões, sob controlo da administração (artigo 175.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva n.º 2006/112/CE e n.ºs 6, 7 e 8, do artigo 23.º do CIVA).
Mas, o sujeito passivo pode optar por «efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação» (n.º 2 do artigo 23.º do CIVA).[2]
A utilização deste método de afetação real, em princípio opcional, passará a ser obrigatória se a Administração Fiscal o determinar, o que poderá fazer, nomeadamente, «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação» [alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º]. A Administração Fiscal poderá também impor «condições especiais».
Através do referido Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, a Administração Fiscal, entendeu que relativamente às «instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD», «o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”», pelo que fez utilização da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, determinando que estes sujeitos passivos utilizem a «afetação real» (ponto 8).
Segundo os pontos 8 e 9, a «afetação real» deverá fazer-se de suas formas:
– se for possível, faz-se «a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades» (ponto 8 daquele Ofício Circulado);
– se não for «possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALDs» (ponto 9 daquele Ofício Circulado); neste caso, fica afastada a aplicação da percentagem que resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º.
No caso em apreço há controvérsia sobre dois pontos essenciais:
- Saber se o artigo 23.º, n.º 2 do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA – art. 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, al. c) da Sexta Diretiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços.»
- Saber se os custos os em que incorre a Requerente com os contratos de locação financeira são sobretudo determinados pelos inputs decorrentes dos atos de financiamento e gestão dos ditos contratos.
B.1.2. A jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo
O TJUE pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que, tal como no caso concreto, desenvolve atividades de locação financeira que conferem direito à dedução e outras atividades financeiras que não conferem tal direito.
As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º)[3].
Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que «os Estados-membros podem» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».
No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE entendeu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 «não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».
Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que «os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros».
Posteriormente, no acórdão de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17 (Volkswagen Financial Services (UK) Ltd), o TJUE, corrigindo a interpretação que entendeu que se podia fazer do decidido no acórdão Banco Mais, esclareceu que «não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C-183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega».
Como se refere neste acórdão, pode impor-se
– «um método ou um critério de repartição diferente do método do volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método do volume de negócios» (n.º 51);
– «qualquer Estado-Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução» (n.º 52);
– «os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios».
O método de cálculo do pro rata indicado pela Administração Tributária no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 não tem em conta o valor do veículo, pelo que contraria manifestamente o decidido pelo TJUE, neste acórdão do processo C-153/17, sendo consequentemente ilegal, por violação do Direito da União.
Por outro lado, como se refere no mesmo acórdão, este entendimento é aplicável «mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis (...) não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação» (n.º 59), como sucede no caso em apreço.
Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.
Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).
De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».
Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da Reclamação Graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.
No entanto, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que só se pode concluir pela ilegalidade com um apuramento casuístico da utilização real dos bens e serviços de uso misto, isto é, quando «sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos»[4].
É, essencialmente, esta jurisprudência que o Supremo Tribunal Administrativo terá tendencialmente estabilizado com o acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021, proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado Diário da República, I Série, de 18-11-2021.
Formulando um juízo de facto, no caso em apreço, resulta claramente da prova produzida que há uma afetação real e significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, considerando como afetas à disponibilização dos veículos a generalidade das tarefas que apenas ocorrem na prestação de serviços de locação financeira, designadamente:
– como controle da legalização dos veículos e sanação de eventuais irregularidades;
– pagamento ao fornecedor e disponibilização do veículo ao cliente;
– proceder a registos e suas alterações; controle periódico da existência de seguros de veículos;
– proceder a contactos com concessionárias das autoestradas, relativos a clientes que não pagam as portagens;
– proceder a contactos com as entidades policiais; obter assessoria jurídica e fazer contactos com escritórios de advogados por causa de infrações estradais praticadas pelos clientes;
– assegurar o pagamento do Imposto Único de Circulação, que é feito pela Requerente e debitado ao cliente;
– contactos com seguradoras, quando ocorrem acidentes; obter serviços de tradução, quando necessários, relativos a acidentes no estrangeiro;
– nos casos de incumprimento, procurar recuperar o veículo, por vezes requerendo providências cautelares;
– proceder à venda do veículo quando o cliente não opta pela compra;
Todas estas atividades ocorrem apenas nos contratos de locação financeira de veículos, porque o veículo é propriedade da Requerente e é disponibilizado ao cliente durante o período de duração do contrato, pelo que são atividades geradas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento ou gestão dos contratos.
Trata-se de atividades que não ocorrem quando não há disponibilização dos veículos, mas apenas financiamento, como sucede nos contratos de mera concessão de crédito para a aquisição de veículos, em que os clientes adquirem os veículos para si próprios.
Assim, atividades relacionadas com a gestão dos contratos de locação financeira serão (como sucede com os contratos de concessão de crédito) apenas as que se reportam aos próprios contratos, como são a maior parte daquelas para que estão previstas comissões comuns para os contratos de leasing e crédito automóvel, designadamente o reembolso antecipado parcial ou total, o processamento mensal das rendas ou prestações, a recuperação de valores em dívida e alterações contratuais, além de algumas exclusivas dos contratos de locação financeira, como são a transmissão da posição jurídica do locatário e alteração de registos.
Como resultou da prova produzida, as comissões apenas incluem os custos diretamente quantificáveis, mas não as despesas gerais conexionadas com as atividades para que estas estão previstas (como são as despesas de eletricidade, água, limpeza, despesas com informática, gastos de conservação dos edifícios, mobiliário e maquinaria neles existentes, etc.).
Não se apurou a dimensão exata de recursos de utilização mista não considerados no valor das comissões que são utilizados em cada uma das atividades referidas, nem há qualquer fundamento para concluir que sejam proporcionais ao número de pessoas que intervêm em cada uma das fases, designadamente porque, além dos colaboradores afetos em permanência à atividade de leasing, há intervenções nessa atividade dos seus colaboradores em cada um dos seus 306 balcões em que é feito o atendimento direto dos clientes.
De qualquer modo, apurou-se que, além da atividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização aos clientes, é significativa a atividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela sua disponibilização, atividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes.
Assim, na linha do ponto 57 do acórdão do TJUE proferido no processo C-153/17, é de concluir que o método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que não tem em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não se pode considerar que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.
Por conseguinte, este método não é suscetível, neste caso concreto em apreço, de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.
Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exata, que as atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos. Como disse a testemunha C…, referindo-se às atividades próprias dos contratos de locação financeira que não existem nos contratos de concessão de crédito, «o que vem a seguir à utilização do dinheiro é que dá trabalho».
Isto é, utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão do TJUE C-183/13 Banco Mais, é convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e «não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes».
De qualquer forma, pelo que se disse, fica-se, pelo menos perante uma situação de «fundada dúvida», que deve ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, que é uma regra especial para situações em que esse tipo de dúvida subsiste, em processos jurisdicionais.
Por isso, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa, que têm como pressuposto de facto que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, ser sobretudo determinada pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes e não pelas atividades conexas com a disponibilização dos veículos, enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto.
Essas autoliquidação e decisão da Reclamação Graciosa enfermam ainda por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como foi, de forma genérica, sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.
B.1.3. Inconstitucionalidade da previsão de um método de dedução não previsto em diploma de natureza legislativa
Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.
Na verdade, entre os métodos para efetuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Diretiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular.
Esta questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (atinentes ao princípio da legalidade tributária), é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efetuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é uma questão distinta da de saber se o Estado Português, por via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva n.º 2006/112/CE.
Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circular referido, não é apenas uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim, desde logo, uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correção ou incorreção da sua aplicação.
As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objetiva. Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, as que «definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação».
Neste sentido, tanto são normas de incidência as que determinam o sujeito ativo e passivos da obrigação tributária, como as que indicam qual a matéria coletável, a taxa e os benefícios fiscais.
Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.
Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
Assim, é nosso entendimento que uma interpretação segundo a qual os n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA permitem à AT através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstrato, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração a parte da renda correspondente à amortização), é material e formalmente inconstitucional por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (artigo 103.º, n.º 2, da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP).
Não tendo tal solução sido prevista legislativamente, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicá-la, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que uma interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA lhe confere, à AT, tal possibilidade, também é violadora do princípio da legalidade da atuação da AT (artigos 266.º, n.º 2, da CRP).
Termos em que se conclui que o IVA a liquidar deve incidir sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fração que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respetivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.
B.1.4. Ilegalidade da imposição através de norma administrativa de um método de execução do direito à dedução não previsto legislativamente
Como é sabido, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da AT de natureza geral e abstrata, publicitadas circunscreve-se à esfera administrativa, resultando apenas e da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da AT, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, não vinculando os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os tribunais.
Neste contexto importa relembrar que, como nos ensina Saldanha Sanches: “Estas orientações administrativas, sob a forma de circulares ou sob outras formas, são uma interpretação da lei fiscal e um instrumento unificador das decisões (…) da administração.
(…).
Com a estrutura formal duma norma jurídica – uma vez que não são a aplicação do Direito a um caso concreto, mas têm antes um carácter geral e abstrato -, as circulares valem o que valer a interpretação que fazem da lei. Como se afirmou sem ambiguidades num acórdão do STA que analisa uma determinada orientação administrativa, “o valor da doutrina dessa circular será apenas o da sua valia intrínseca. Contém uma doutrina que será boa ou má, válida ou inválida, como qualquer outra doutrina”. Estar contida numa decisão administrativa não amplia nem reduz a sua força convincente, nem cria uma presunção de legalidade ou ilegalidade.” [5]
Assim, como bem notam os Professores Doutores Guilherme Xavier de Basto e António Martins analisando o designado Caso Banco Mais julgado pelo TJUE[6], “O Acórdão parece fundamentar a sua decisão final – no sentido de que o direito comunitário não se opõe a que um Estado membro obrigue um banco que exerce, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, que corresponde aos juros (com exclusão, portanto, daquela outra parte que corresponde a “amortização financeira”) – no que é hoje o artigo 173º, nº 2 alínea c) da diretiva (citando o artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c) da 6ª diretiva, aplicável aos factos tributários controvertidos no processo).
Ora, nessa disposição, atrás transcrita, do que se trata é de autorizar os Estados a, afastando-se da regra mais geral da percentagem de dedução, efetuar a dedução “com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. O método dito da afetação real é uma alternativa ao método da percentagem de dedução ou do pro rata, mas não consiste em alteração do algoritmo de cálculo dessa percentagem, o qual está estabelecido no artigo 174º da diretiva e envolve a construção de uma fração em que no numerador se inclui “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução” (alínea a) do nº 1) e no denominador “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução” (alínea b) do mesmo nº).
Deve porém analisar-se se essa faculdade, que o TJUE admite que os Estados membros exerçam, foi efetivamente tomada pelo legislador português. A resposta, a nosso ver, é negativa e a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no nº 4 do artigo 23º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é obviamente um ofício-circulado, que não é mais que um regulamento interno que apenas obriga os serviços, mas não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”
Neste contexto, salientam que, “As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, na nossa lei, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afetação real (nº 3, alínea b) do artigo 23º, ou, quando elas resultam de o sujeito passivo ter optado por esse método, da imposição de o abandonar (parte final do nº 2 do mesmo artigo). Também é certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afetação real, a administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas que não consistem em alteração do pro rata de dedução.”
Igualmente neste sentido, José Maria Montenegro[7] conclui, adequadamente em nosso entendimento, que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da fração do pro rata de dedução, pelo que o que é permitido pelo artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, não estando em causa uma alteração ao modo como o sujeito passivo apurou o seu pro rata, tratando-se sim, nos termos legais, de uma alteração do método de dedução. Assim, como nota o autor, no Caso Banco Mais o direito nacional não terá sido analisado com o rigor e a profundidade desejável, sendo que a pertinência da resposta do Tribunal dependia de ser verdadeiro o pressuposto de que a lei portuguesa concede poderes à AT, através de uma decisão administrativa, de alterar a composição do pro rata de dedução. Ora, não dando a nossa lei esses poderes, as respostas do Tribunal não contribuem para legitimar a interpretação que a AT tem vindo a querer impor.
Note-se que, tal como alega a Requerente, no Caso VW Financial Services[8], veio o TJUE acrescentar, que “não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega” (cfr. n. 56).
Aditando que ainda que, “sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 57).
Neste contexto conclui o TJUE que, “(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 59).
No mesmo sentido, como já antes referimos, vão a maioria das decisões do Tribunal Arbitral.
Assim, na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 309/2017, de 20 de Novembro de 2017, conclui-se que, “(…) embora a Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. (…).
Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.
(,,,)
Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade (…).”
Também na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 339/2018, de 25 de Março de 2019, se conclui que, “A Requerente sustenta, todavia, que o artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA não transpõe para o direito interno a disposição do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Diretiva baseando-se essencialmente no seguinte argumento: enquanto a Diretiva permitia que os Estados-membros autorizassem ou obrigassem o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens ou serviços, o legislador nacional não conferiu à Administração essa prerrogativa, limitando-se a permitir o controlo dos critérios objetivos que o sujeito passivo tenha utilizado quando opte pelo mecanismo da afetação real.”
Veja-se igualmente a Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 498/2018, de 28 de Maio de 2019, nos termos da qual se decide que, “Assim, ter-se-á de concluir que a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a faculdade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista diretamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo. Embora à luz da referida Jurisprudência, se possa admitir que a Diretiva IVA permitia ao legislador interno «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», a verdade é que este não usou tal prerrogativa, pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal”.
Na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 581/2018, de 17 de Junho de 2019, conclui-se no mesmo sentido que, “Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-Circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga aos serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”
Acresce que importa atender que, como se faz notar na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 769/2019, de 2 de Abril de 2020, “Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é diretamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a atos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal…”
Atente-se no voto de vencida no âmbito do Processo n.º 887/2019, de 12 de outubro de 2020, que, no tocante ao Caso Banco Mais, conclui que, “neste caso o TJUE considerou que a Sexta Diretiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daquele outro método. Ora, analisado o Acórdão (…), conclui-se que parte de uma premissa que não está correta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.”
Por seu turno, como se conclui na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 335/2018, de 14 de Dezembro de 2020, “(…) tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução. (…) Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».” “Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.” “Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.”
Veja-se ainda a Decisão proferida no Processo n.º 58/2020-T, de 21 de Janeiro de 2021, em conformidade com a qual se deve recusar a aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA “na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.”
Igualmente no Processo n.º 58/2020-T, se salienta que, “em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente, que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros).”
Note-se que, no contexto deste Processo, o Tribunal Arbitral, a propósito do Acórdão do TJUE no âmbito do Caso VW Financial Services, vem concluir que, “na linha desta jurisprudência, tendo em conta que a obrigatoriedade da jurisprudência do TJUE implicará o acatamento da mais recente quando ela se modifica, tem de entender-se que o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, tem de considerar-se não suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE” (cfr. página 75 da referida decisão do Tribunal Arbitral).
De entre esta extensa panóplia de Decisões cumpre ainda salientar a proferida no Processo n.º 576/2021-T, de 14 de Fevereiro de 2022.
Nesta Decisão, inicia o Tribunal Arbitral por analisar a decisão proferida no referido Caso VW Financial Services, nos seguintes termos: “Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.
Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).
De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar»”.
Termos em que se conclui que, “Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.”
De salientar em particular que veio ainda nessa Decisão reiterar-se o entendimento de que é necessário fazer um “apuramento casuístico” da utilização real dos bens e serviços de uso misto, em concreto, se é ou não sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.
Termos de acordo com os quais o Tribunal Arbitral considerou expressamente que a autoliquidação então sindicada enfermava de erro sobre os pressupostos de direito, ao ter subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efetuada pela AT, de forma genérica, “sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.”
O Tribunal chega mesmo a considerar que o método previsto no referido n.º 9 do Ofício-Circulado, por não ter “em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos”, não tem potencialidade para “garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd.”
Mas importa salientar que o Tribunal entende que, entre nós, a imposição daquele método apenas poderia ser feita por via de diploma legislativo e não de circular administrativa, pelo que a sua imposição “viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT]”. Acrescendo que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à AT “impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.”
Assim como, conclui, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da CRP, “se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108”.
No tocante à invocada decisão do STA, importa salientar que, distintamente do invocado pela AT, admite claramente antever a possibilidade de realização da prova sobre a utilização dos recursos mistos, designadamente por parte do sujeito passivo, de forma a apurar a adequação do critério e da taxa do pro rata por si utilizada – ou, neste caso, da taxa de dedução que pretende ver aplicada, por oposição ao previsto no Ofício-Circulado n.º 30108.
Idêntica orientação foi seguida no Processo n.º 259/2022, de 6.1.2023.
Face ao exposto, concluímos que a Requerente tem razão ao invocar que, atenta a jurisprudência comunitária e nacional neste âmbito, há que retirar as seguintes conclusões:
· A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;
· Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,
· Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;
· Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.
B.1.5. Falta de prova de «distorções significativas da tributação»
De qualquer forma, mesmo que por mero exercício académico se aceitasse a possibilidade de a Administração Tributária impor o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado 30108, este só seria aplicável, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação».
A Administração Tributária defende que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.
A Requerente defende que não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-Circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.
Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as «distorções significativas na tributação» que resultam da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram. A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que «aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas» é também conclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca.
De qualquer forma, o procedimento que a Administração Tributária impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS[9] relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:
«Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adotar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objetivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afetação real – o objetivo de efetuar a dedução de “com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito.
Em financiamentos cujo reembolso é efetuado em prestações periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».
Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.
Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada com quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.
A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de atividade cujas operações conferem direito à dedução.
A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afetação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objetivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação».
Assim, não se poderia sequer considerar demonstrado que, na situação em apreço, a determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar «distorções significativas da tributação», havendo, antes, a certeza de que essas distorções resultam do método imposto pela Administração Tributária.
Pelo exposto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto.
B.1.6. Princípio da igualdade
As distorções da tributação que resultam da aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 são amplificadas em termos incompatíveis com o princípio constitucional da igualdade, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, adotada pelo Pleno no acórdão de 30-09-2020, processo n.º 26/20.8BALSB, em que entendeu que a jurisprudência do Acórdão Banco Mais, apenas é aplicável quando o sujeito passivo é um banco, e já não quando é uma sociedade financeira de crédito que utilize para as suas operações tributadas recursos de utilização mista não quantificáveis.
Na verdade, nas situações em que não seja possível a afetação real, não se aplicando o «coeficiente de imputação específico» quando o sujeito passivo é uma sociedade financeira, será aplicável ao cálculo do pro rata o regime do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, incluindo-se no numerador da fração o valor total das rendas [que é na totalidade tributado, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do CIVA], enquanto se o sujeito passivo for um banco apenas será incluída no numerador a parte das rendas que corresponde aos juros.
Além das distorções de tributação que resultam da não inclusão do valor total das rendas na fração quando o sujeito passivo é um banco, a aplicação do método referido apenas aos bancos é incompaginável com o princípio da igualdade, pois duas situações idênticas de sujeitos passivos mistos que realizem concomitantemente operações de locação financeira e operações isentas teriam uma tributação em IVA (derivada da restrição do direito à dedução) consideravelmente distinta.
A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 deteta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afetos à locação financeira quando é efetuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique à atividade de locação financeira.
Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa atividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Em última análise, à luz da referida jurisprudência, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante.
Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro que, além dessa atividade tributada, desenvolve também atividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de negócios daquela atividade.
Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.
B.1.7. Conclusões
A Administração Tributária questiona a quantificação das percentagens de pro rata indicadas pela Requerente.
Na verdade, considera a Requerente que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2018 e de 2019, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, a qual, com referência a 2018, ascende a 86%, e não a 22,2% (apurada de acordo com o Ofício-Circulado supramencionado), e com referência a 2019, ascende a 85%, e não a 16,55% (também apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado).
Neste sentido e segundo os seus cálculos, o IVA que a Requerente deveria ter deduzido adicionalmente, caso não tivesse seguido o entendimento plasmado no identificado Ofício-Circulado, ascende a um total de € 2.207.847,69, conforme detalhe infra:
|
2018
|
2019
|
[A] Numerador
|
121.278.523,73
|
94.379.754,37
|
[B] Denominador
|
141.049.783,52
|
111.185.362,09
|
[C]=[A]/[B] Pro rata
|
86,00%
|
85,00%
|
[D] IVA incorrido em recursos comuns
|
1.604.587,52
|
1.729.602,21
|
[E] Coeficiente de imputação específico
|
22,20%
|
16,55%
|
[F]=[D]x[E] IVA já deduzido por coeficiente de imputação específico [Declaração Periódica de Dezembro 2018/2019]
|
356.218,43
|
286.249,16
|
[G]=[D]*[C]-[F] IVA a deduzir adicionalmente por Pro rata
|
1.023.726,84
|
1.183.912,71
|
[H] Regularizações de IVA do ativo imobilizado por variações superiores a cinco pontos percentuais
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105,24
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102,90
|
[I]=[G]+[H] Total do IVA a deduzir adicionalmente
|
1.023.832,08
|
1.184.015,61
|
2.207.847,69
|
A utilização pela Requerente do método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, decorre da suaprópria estrutura empresarial, pois as operações de locação financeira em causa implicam a utilização de recursos comuns,quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens.
Assim, podemos concluir o seguinte:
· Sendo a atividade de leasing integralmente tributada e não isenta de IVA [artigo 16.º, n.º 2, alínea h], do CIVA], a Requerente pode, em princípio, deduzir todo o IVA suportado com aquisição de bens e serviços utilizados nessa atividade;
· Em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente, que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros);
· Não se tendo apurado que, nos anos de 2018 e 2019, a utilização dos bens e serviços de utilização mista tivesse sido sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de leasing, não se verifica uma situação em que possa ser imposto o referido método de dedução;
· É convicção do Tribunal Arbitral que as atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, serão de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos;
· É convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e «não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes»;
· Em qualquer caso, o método previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não tem potencialidade para garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd;
· O artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP;
· A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;
· Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,
· Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;
· Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios;
· Não se demonstrou que o método do pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA provoque «distorções significativas da tributação», pelo que não se verifica o pressuposto em que o Ofício-Circulado n.º 30108 assenta a imposição da aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no seu n.º 9, e, consequentemente, a imposição na situação dos atos enferma de erro sobre os pressupostos de facto;
· São materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;
· Não tendo sido a hipotética não correspondência à realidade das percentagens indicadas pela Requerente um fundamento do indeferimento da reclamação graciosa que manteve a autoliquidação, não pode ser invocado como fundamento de improcedência da pretensão da Requerente.
Pelo exposto, a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do CIVA, e da alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.
Consequentemente, a autoliquidação relativa aos períodos de 2018 e 2019, em que foi dada execução a essa imposição, enferma de vício de violação de lei, na parte correspondente à errada aplicação do método de cálculo do pro rata de dedução, o que justifica a sua anulação bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
B.2. Restituição de quantia paga em excesso e juros indemnizatórios
Como se refere na decisão da matéria de facto, considerou-se provado que a Requerente pagou a quantia autoliquidada (o que não é controvertido), embora não se tenha apurado quando fez o pagamento.
A Requerente considera que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2018 e de 2019, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, a qual, com referência a 2018, ascende a 86%, e não a 22,2% (apurada de acordo com o Ofício-Circulado supramencionado), e com referência a 2019, ascende a 85%, e não a 16,55% (também apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado).
Neste sentido e segundo os seus cálculos, o IVA que a Requerente deveria ter deduzido adicionalmente, caso não tivesse seguido o entendimento plasmado no identificado Ofício-Circulado, ascende a um total de € 2.207.847,69.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.
Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.
No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”
Conforme já referido, a Requerente considera que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2018 e de 2019, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, a qual, com referência a 2018, ascende a 86%, e não a 22,2% (apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado), e com referência a 2019, ascende a 85%, e não a 16,55% (também apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado).
Neste sentido o IVA, este Tribunal entende que a Requerente deveria ter deduzido adicionalmente um montante que ascende a um total de € 2.207.847,69.
No caso em apreço, conclui-se que há erro na autoliquidação que se considera imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira por força do disposto no n.º 2 deste artigo 43.º da LGT, na medida em que a Requerente atuou em sintonia com a orientação genérica que do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108.
Os juros indemnizatórios devem ser contados desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da quantia autoliquidada, que deverá ser apurada em execução do presente acórdão, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
C. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de anulação dos atos de Autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referentes aos períodos de dezembro de 2018 e de dezembro de 2019;
E em consequência:
b) Ordenar a devolução à requerente dos referidos montantes, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 2.207.847,69, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, não havendo custas a repartir.
Lisboa, 22 de fevereiro de 2023
O Árbitro Presidente,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
O Árbitro Vogal
(Clotilde Celorico Palma)
O Árbitro Vogal
(Sofia Ricardo Borges)
Vencida conforme declaração anexa
Voto de vencida
Salvo sempre o devido respeito, votei vencida a Decisão por entender que a mesma opera um manifesto erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto, e uma errada interpretação e aplicação do Direito ao caso. Como segue.
Quanto à decisão da matéria de facto
1. Ónus da prova
O ónus da prova da matéria constante dos pontos/alíneas e. e f. do probatório (e sem prejuízo do que mais adiante a respeito se desenvolverá) recai sobre a Requerente, por ser constitutivo do direito alegado. A Requerente vem invocar um direito à dedução dos montantes por que pugna (via aplicação do método de dedução relativa a bens de utilização mista que ora defende ser o método devido aplicar no seu caso, a saber o pro rata puro – cfr. n.º 4 do art.º 23.º[10]). Direito que poderia ser-lhe reconhecido - desde logo em conformidade com a Jurisprudência do TJUE - se resultasse provado os inputs mistos que suportou (e cuja medida da dedução está aqui em questão) terem sido por si utilizados, na sua actividade tributada, sujeita e não isenta, sobretudo para os fins da disponibilização dos veículos de locação financeira (lf ou leasing) e ALD.
O respectivo ónus da prova recai, pois, sobre a Requerente (v. art.ºs 74.º/1 da LGT e 342.º/1 do CC).
Facto essencial constitutivo do direito. Aplicam-se as regras do ónus da prova.
2. Não se provou
Compulsados os autos, e ouvida novamente a prova testemunhal gravada, o que se verifica é que não há um qualquer meio de prova, seja documental ou outro, que sustente a convicção do Julgador quanto aos referidos pontos e. e f. do probatório. Que, como tal, teriam logo por aqui, forçosamente, que ser julgados não provados.
3. Princípio da livre apreciação da prova
Não opera o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que o mesmo pressupõe ter havido prova dos factos. Princípio que não é capcioso nem arbitrário, e que tem que ser concretamente fundamentado em razões sustentadas com concretos meios de prova constantes da instrução da causa. V. o art.º 16.º, al. e) do RJAT, e, entre o mais, os art.º s 607.º, n.º 5 e 154.º do CPC.
Como se lê em Sumário de douto Acórdão do STJ de 11.07.2007, proc. 1611/07, “O princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal. (...)”.
4. Falta de fundamentação da decisão da matéria de facto
Também não há uma análise crítica da prova. E v., entre o mais, art.º 607.º, n.º 4 do CPC.
Há, no mínimo, uma deficiente fundamentação da matéria de facto. Sendo que, a nosso ver, ocorre uma verdadeira ausência de fundamentação, pois que apenas se faz uma remissão tabular, não se dando a conhecer o iter cognitivo da decisão. O que, na prática, equivalerá a falta de fundamentação. E do que, enquanto Julgador, não podemos não divergir, não havendo qualquer correspondência nos meios de prova carreados nos autos.
Por imperativo Constitucional, o grau de exigência de fundamentação é maior que uma simples afirmação tabular. Cfr., entre o mais, art.ºs 205.º, n.º 1 da CRP e 154.º do CPC, e numa devida interpretação conforme à Constituição.
5. Valoração jurídica dos factos
A nosso ver, foi utilizada - nas al.s e. e f. do probatório[11] - terminologia que não é factual (com a descrição em linguagem clara e quotidiana sobre acontecimentos ou situações da vida real), mas sim linguagem genérica e conceptual que contém em si uma valoração jurídica. Dando assim como provados determinados pontos que não são factuais e são passíveis de influenciar a decisão da causa. Dando-se por provada a ocorrência de determinadas actividades, sem contudo se integrar o significado desses conceitos com factos concretos.
6. A nossa análise crítica da prova
Em resultado da instrução formulamos a convicção de que o constante das al.s e. e f. do probatório resulta não provado.
Mais do que isso, o que existe é prova em contrário, prova do oposto ao dado por provado. Resulta provado que na actividade de leasing/ALD a maior intensidade de procedimentos da Requerente se prende, não com a entrega dos carros aos Clientes, mas sim com negociação e contratação, suporte diário em matérias contratuais, recuperação de crédito e cessação dos contratos. É a nossa convicção, resultante da prova carreada nos autos.
Senão vejamos. As testemunhas, no total de oito, prestaram os seus depoimentos de forma consentânea e credível com o sentido, entre o mais, de que é na fase pós-activação dos contratos (financiamento e gestão dos contratos) que se concentra a parte relevante do esforço da Requerente dedicado à actividade de leasing e ALD.
A primeira testemunha, B..., Head of Sales and Management na E..., que presta serviços à A... (Requerente) explicou, entre o mais, quanto à entrega da viatura, que são os Clientes que compram as viaturas no Stand, é o Cliente que combina a entrega da viatura com o concessionário, as próprias características da viatura é ao Cliente que compete tratar de tudo isso, independentemente de a Requerente poder dar uma autorização de entrega; explicou que cada contrato é negociado com o Cliente caso a caso, negociando-se a taxa de juro, condições e prazos contratuais diferentes, havendo muitos contratos com alterações à medida do Cliente, o que se relaciona também com o poder negocial do Cliente, que “chega a um ponto em que tudo se resume a uma taxa de juro”, e que o Departamento de Comercial (o seu) pode também intervir depois em renegociações mas ainda na vigência do contrato (gravação da audiência, Parte 1 (1) ); a segunda testemunha, D..., à data dos factos Director Comercial para o financiamento de determinadas viaturas, explicou, quanto a como chega o carro às mãos do Cliente, explicou que o carro está no concessionário ou na Marca e quando a Requerente tem a documentação completa dá a ordem de entrega, o Cliente vai buscá-lo ao concessionário, as questões técnicas do carro – levantamento, verificação – são com a Marca/concessionário (Parte 2 (1) ); a terceira testemunha, H..., Remarketing Manager – área de venda de viaturas usadas, explicou que no processo de venda das viaturas já usadas a empresa que presta serviços de peritagem à Requerente, se for por hipótese num dia de chuva, pede, para fazer a peritagem, que o carro seja “disponibilizado” (foi a palavra utilizada, min. 22:20-22:39) num local coberto (Parte 3 (1)); a quarta testemunha, I..., responsável pelo Departamento Jurídico, discorreu sobre as funções que a sua equipa leva a cabo com referência às várias actividades da Requerente, e referiu que em lf e ALD há especificidades que são determinadas pela própria propriedade da viatura “quer em termos de registo inicial da viatura, da gestão ao longo da vida do contrato e na fase de terminação” (Parte 3(1) final e Parte 4 (1)); a quinta testemunha, G..., que trabalha no Departamento Jurídico, descreveu as suas funções onde, explicou, nesta matéria (lf e ALD) relevam as suas competências de recuperação de crédito e de apoio sobretudo em tarefas contratuais; a sua equipa assegura, referiu, tudo o que seja suporte jurídico em contratos da Requerente, suporte às diferentes áreas em diversas matérias principalmente contratuais – suporte diário e elaboração de contratos (gravação da continuação da audiência - de 05.12.2022, Parte 1 (1)); a sexta testemunha, J..., solicitador - prestador de serviços externos, descreveu os serviços que presta à Requerente de promoção de registos das viaturas nas Conservatórias, serviços que são cobrados com discriminação dos carros (que estarão ou não em leasing e ALD) objecto de cada serviço (05.12.2022, Parte 1 (1)); a sétima testemunha, F..., (05.12.2022, Parte 2 (1)), Gestor de operações desde 2011 na E..., responsável ao tempo dos factos por toda a operação de gestão contratual da Requerente, análise de crédito e gestão dos contratos pós-activação, explicou que tem intervenção na fase de activação dos contratos e pós-activação (“sim, gestão contratual” – min. 09:50), explicou o que se inclui nesta fase pós-activação (min. 10:10 e ss), explicou que o esforço da sua equipa neste tipo de contratos “é sobretudo na parte de gestão contratual” (min. 12:05-12:06) e respondeu que sim a gestão dos contratos de lf durante o período de vida útil dos contratos é o que acarreta mais custos ou mais intervenções dos departamentos da Requerente, e que há dois planos, o da disponibilização, em que não identifica tanto trabalho, e o da gestão dos contratos de lf e ALD, e também questionado sobre se contactava com o Cliente ou com as concessionárias respondeu que não, que esse trabalho não é feito pelas suas equipas, o trabalho de angariação de Clientes é feito pelas Concessões, que quando o Cliente quer comprar um carro e vai a uma Concessão que trabalhe com a Requerente, “é a própria Concessão que apresenta os nossos produtos para que os Clientes façam o financiamento das viaturas através do nosso Grupo financeiro” (min. 05: 25 – 06:00), e questionado quanto ao tipo de análise que fazem nessa mesma fase, respondeu tratar-se de uma análise de crédito normal, “o processo normal de análise de crédito de qualquer outra instituição financeira”, “sem nada de especial” (min. 06:05 – 06:31); a oitava testemunha, C..., responsável pela contabilidade (05.12.2022, Parte 2 (1) e Parte 3 (1)) questionada sobre se o esforço maior no lf e ALD também se localiza no início quando o processo de financiamento começa, por ex. antes de o Cliente receber o carro e antes de o contrato estar activado, respondeu que começa logo no início da activação e que depois se prolonga ao longo da duração do contrato e até final (min. 40:38-40:53, Parte 2 (1)), e reportando-se a custos “ no decurso do contrato” também identificou essa fase como de “gestão contratual” (min: 17:13 – 17:38, 05.12.2022 Parte 3 (1)).
Resultou pois provado que na sua actividade de leasing e ALD a Requerente, seja contratando serviços externos seja directamente, desenvolve sobretudo tarefas e procedimentos na negociação e contratação (condições contratuais incluindo financiamento/taxa de juro), no suporte e acompanhamento diário contratual, e na terminação/cessação dos contratos.
O que, sempre se refira, quanto a nós também já tendencialmente decorreria do simples facto de estarmos perante esta tipologia de contratos, tendo em consideração a forma como o nosso legislador regulou o respectivo regime jurídico (DL n.º 149/95, de 24.06)[12].
Mais, teríamos ainda considerado factos provados os seguintes:
- Em 2018 e 2019 a actividade de leasing e ALD representava cerca de 30% do negócio da Requerente; (cfr. depoimentos das testemunhas B... e C...)
- O departamento de vendas da Requerente no caso da leasing/ALD apenas autoriza a entrega, e são os Clientes que no Stand “compram” e combinam a entrega com o concessionário, verificam as características e levantam a viatura; (cfr. depoimentos das testemunhas B... e D...)
- No que respeita ao IVA na aquisição as viaturas para a sua actividade de leasing/ALD a Requerente procede à dedução por imputação directa; (cfr. PA e depoimento da testemunha C...)
*
Quanto ao Direito
Comecemos por referir.
A Requerente vem peticionar a anulação e correcção de autoliquidações de IVA nas quais apurara a medida da dedução dos seus inputs mistos ser de 22,2% e 16,55% (em 2018 e 2019, respectivamente). Pugna pela correcção desta medida da dedução para 86 % (2018) e para 85 % (2019).
Conforme expõe no seu PPA[13], à correcção dos procedimentos por que pugna subjaz a conclusão, sua, de que, não tendo sido possível aplicar um método de afectação real baseado em critérios objectivos (refere o art.º 23.º/2 CIVA), o único método legalmente admissível é o do pro rata (refere o art.º 23.º/4), que tem que, defende, “legalmente, incluir na respectiva fracção os montantes referentes às amortizações financeiras (capital) incluídas nas rendas de locação financeira.”[14] Parcela esta (capital) que não incluíra na dita fracção por ter seguido o procedimento previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 de 30.01.2009[15]. E parcela que, a ser incluída, permite apurar as pretendidas (novas) percentagens de dedução (e, assim, incrementar os montantes de IVA dedutível em € 1.023.832,08, ref. 2018, e em € 1.184.015,61, ref. 2019[16]).
Reconhece, em qualquer caso, que a maioria das operações que realiza estão isentas de IVA, nos termos do art.º 27.º/9 do CIVA - cfr. art.º 10.º do PPA.
Para defender o entendimento por que pugna baseia-se primeiramente em argumentos de Direito. Em suma: a AT não pode impor aos SPs a doutrina vertida no Ofício Circulado, pois este é ilegal, não tem fundamento no CIVA, e viola a Constituição na vertente Princípio da legalidade e, ainda, do Princípio da separação de poderes. Por fim procura provar - com vista à aplicação da Jurisprudência do TJUE que versa sobre a matéria e, por essa via, à procedência do peticionado - procura (sem sucesso, quanto a nós, como vimos) provar que faz uso de inputs mistos na sua actividade de leasing/ALD também para efeitos da disponibilização das viaturas, e que esta (disponibilização) representa uma parte muito significativa da actividade de leasing/ALD (a sua actividade sujeita e não isenta).
Numa súmula:
Aplicou o Ofício. Assim apurou as percentagens de 22,2% e 16,5% (2018/2019). Se não tivesse aplicado o Ofício teria apurado, ao invés, as percentagens de 86% e 85%. O Ofício padece de vários vícios e pela imposição que opera (de um método...) resulta violado, máxime, o Princípio da legalidade – assim, a Constituição da República Portuguesa. Pelo que não é de aplicar o Ofício. E sim o método do art.º 23.º/4, com a parcela amortização de capital das rendas de leasingincluída na respectiva fracção.
A decisão deste Colectivo, por sua vez, que não acompanhamos, seguiu também no essencial este iter. Iniciando pelas questões da legalidade do Ofício e, de forma determinantemente para o desfecho da causa, pela da invocada Inconstitucionalidade que estaria implicada pela aplicação do mesmo Ofício – e que, segundo a posição que fez vencimento, ocorre.
Pois bem.
A decisão baseou-se antes de mais e essencialmente na questão da invocada Inconstitucionalidade. Que, como é bom de ver, não se verifica. Em nosso entender.
Antes de aí chegarmos dê-se um muito breve enquadramento. Não sem antes se remeter para o que já desenvolvidamente se escreveu sobre a matéria ora em apreço – declarações de voto nos processos arbitrais 383/2019-T e 408/2019-T disponíveis em www.org.caad.pt (v. por mais recente e completa P408/2019-T – doravante “Voto P408”).
Acresce – em tentada súmula clarificadora nestes autos. E uma vez que na posição que fez vencimento parece, em certa medida, olvidar-se o essencial que aqui está em questão.
O art.º 23.º do CIVA (e os demais dispositivos conexos aí, bem como os da DIVA e das anteriores Directivas – v. Voto P408) versa sobre o apuramento da medida em que os inputs mistos - aqueles em que o SP incorre para os fins seja da sua actividade tributada sujeita e não isenta, seja para os fins da sua ou suas actividades não sujeitas, ou sujeitas mas isentas sem direito a dedução - conferem direito à dedução. Melhor, a medida em que o IVA contido, suportado pelo SP, nesses recursos mistos (que adquiriu a montante) pode por si ser deduzido (a jusante). Bens e serviços que pode ter adquirido, portanto, seja para usar na sua actividade que confere direito à dedução, seja na sua actividade que não confere direito à dedução, insista-se.
Como a tarefa de segregação, bem se vê, tendencialmente será delicada, teve o legislador que configurar um método específico para o efeito. Que lhe permitisse fazer alcançar o montante dedutível o mais aproximado possível da realidade. I.e., do real uso desses recursos para os fins de uma actividade que confere direito à dedução versus para os fins de uma actividade que o não confere.
E conseguindo assim que, uma vez apurado esse montante, se tornasse possível deduzir tão só o IVA contido naqueles recursos mistos que, de entre a totalidade dos recursos mistos incorridos, o SP afecta/utiliza numa actividade que lhe confere – precisamente – esse direito à dedução. Não mais.
Ora. Como se sabe, a actividade de concessão de crédito geral beneficia em IVA de uma isenção. Isenção incompleta. Art.º 9.º/27. Logo, nem todos os inputs mistos incorridos por uma entidade, seja uma Instituição Financeira, - nem todo o IVA aí incorrido -, é dedutível. Desde logo ele só poderá ser dedutível se (e desejavelmente, lá está, na medida em que aí utilizados os recursos) essa entidade também desenvolver outra ou outras actividades que não essa, e que confiram direito à dedução. Art.º 20.º - v. n.º 1 – “Só pode deduzir-se o imposto que (...)”.
Pois bem. Quando se chega ao art.º 23.º está-se precisamente a procurar fazer essa necessária segregação.
Também com o objectivo, assim, de evitar que recursos em que se incorreu (de utilização mista, em ambos os tipos de actividades, portanto) mas que não foram utilizados para os fins de uma actividade que confira direito à dedução (ou, melhor, na medida em que o não foram) - sejam deduzidos.
Pois bem. Para o efeito o legislador (primeiro o Comunitário e depois os Nacionais) delineou aquilo que vem reflectido, entre nós, no art.º 23.º Um método que se refere a recursos de utilização mista e que pretende apurar a grandeza da dedução, nestes casos (SPs que desenvolvem esses dois tipos de actividades, actividades que dão e actividades que não dão direito a dedução; vejamos por esta perspectiva agora) pro rata. Dedução pro rata. Dedução na proporção. Apurá-la (para aplicá-la) na proporção.
Método aproximativo, pois, como não poderia deixar de ser. Ainda que seja viável, e conciliável, a utilização de critérios de afectação real – precisamente para deles se fazer uso quando essa maior proximidade seja possível. Tudo cfr. art.º 23.º - e v. Voto P408.
Entendeu o legislador assumir-se para o efeito uma proporção.
Assumir-se (presumir-se) que a medida do uso de recursos mistos (no seio da totalidade de recursos mistos em que incorre) pela entidade, na parte da sua actividade que confere direito à dedução, será directamente proporcional à medida/peso que tem, no total do seu volume de negócios, a actividade (ou actividades) que confere direito à dedução.
E essa medida é alcançada - caso se aplique o método na sua fórmula pura, cfr. art.º 23.º/4 - pela aplicação de uma fracção nos termos ali determinados (v. Voto P408). Pela qual se alcançará o que acabámos de ver – a tal proporção e, assim, por essa via, a medida da dedução. A percentagem/porção que, dentro do total dos inputs mistos incorridos, conferirá direito à dedução, comportará em si esse direito. Porque se toma por boa - por aproximada da realidade o suficiente - a referida medida. Que assim se considera ser aquela que (a medida que) daqueles recursos mistos totais a entidade destinou à actividade que confere direito à dedução e não à(s) outra(s).
Assim, se a actividade que confere direito à dedução representa 20%, por hipótese, do total do volume de negócios, e a que não confere direito à dedução representa 80%, então presume-se, pelo referido método, que a utilização desses inputsé feita na medida de 20% na actividade que dá direito a dedução e de 80% na actividade que não confere direito à dedução.
Se estivermos perante 100.000 euros de IVA, 20.000, então, serão dedutíveis.
Isto, se se aplicar o método na sua versão pura, que é a constante do n.º 4 do art.º 23.º (e v. n.º 1, b)). E que a Requerente se arroga no direito de aplicar, porque - como expõe - o Ofício que adaptou ao caso (a expressão é nossa) uma situação como a sua (a sua) é ilegal. E conduz, defende, a um resultado (um direito à dedução) muito inferior ao que entende ter direito, e por que ora pugna.
Pois bem.
A Requerente admite que a sua actividade sujeita mas isenta – aquela que, portanto, não lhe confere direito a dedução – representa mais de metade do total da sua actividade / das suas operações. Do seu volume de negócios.
Da prova carreada nos autos resultou que aquela representa cerca de 70%, enquanto que as actividades sujeitas e não isentas, leasing/ALD, representam cerca de 30%. (cfr. supra)
A aplicação da fracção do pro rata nos termos determinados pelo Ofício (que não o pro rata puro, e em que se retira da fracção a parcela da renda correspondente à amortização de capital) - v. Voto P408 – conduziu a uma dedução na proporção de 22,2%. E de, noutro ano, 16,55%.
A Requerente pretende - defende - que lhe seja reconhecido o direito a uma dedução na proporção de 86%, num ano. E, no outro ano, de 85%.
Porque, defende, o método a ser-lhe aplicado deverá ser não o do Ofício mas sim o do – acabado de aproximar – n.º 4 do art.º 23.º.
Pergunte-se.
Seria de considerar mais aproximado da realidade, neste caso, este método?
Que conduz - numa situação em que a actividade que dá direito à dedução representa cerca de 30% do total do volume de negócios - à dedução numa medida de 85% e 86%.
Ou, antes, o resultante do Ofício?
Que conduz – numa tal situação – à dedução de aprox. 20%?
Parece-nos evidente a distância entre 20 e 30 ser mais querida pelo legislador (considerada a medida de dedução apurada mais aproximada à realidade) do que a distância entre 30 e 85.
Lembrando, sempre, que estamos em sede de um método tão só aproximativo.
Ou seja, e também, parece-nos evidente o método pro rata puro conduzir, no caso, efectivamente, a uma distorção significativa da tributação. Àquilo, pois, que através do Ofício se pretendeu colmatar/evitar. Conforme, sempre se adiante, querido pelo legislador ao assim o autorizar vir a ser feito. Cfr. n.ºs 2 e 3 do art.º 23.º – e v. Voto P 408.
Com efeito, pelo dito método, o que resulta (segundo a aplicação da Requerente, e pelo que vem pugnar) é - num caso em que a actividade que não confere direito à dedução representa c. 70% do volume de negócios -, que o que se deduz dos inputs mistos utilizados, seja naquela actividade, seja na outra (a única que confere direito à dedução e que representa c. 30%) supera não só a medida da porção (IVA dedutível) querida pelo legislador como boa, 30%, como – pasme-se, ou não – supera a própria medida da porção que o legislador considerou (presumiu) corresponder à dos recursos (do IVA aí) não dedutíveis. 70% (i.e., que teriam que ser numa medida de aprox. 70%, portanto). Porque (presumidamente) afectos (afetos nessa medida, nessa porção) à actividade que não confere direito à dedução.
Supera, em muito, e em suma, a porção que o legislador quis apurar (e se apura) pelo pro rata puro.
Não se podendo, assim, considerar que seja senão, entre os dois, o método do Ofício o que conduz a um resultado mais aproximado da realidade da utilização dos recursos no caso.
Eis a prova provada de que o método conduz a distorções significativas da tributação – cfr. art.º 23.º, n.º 3. E conforme se plasma também no teor do próprio Ofício. Mesmo porque o facto (ora concretizado) resulta da própria natureza das coisas.
Senão vejamos. Pensemos agora na grandeza Volume de Negócios. Que o legislador convoca na fracção do pro rata puro, como vimos.
A parte da renda “capital” traduz um reembolso puro e simples de um montante de capital. Não vai integrar – como bem se compreende – o volume de negócios da entidade. Não traduz - essa parte da renda/prestação – uma “rentabilização”, um rendimento, do SP. Mas sim – a “devolução” (parcial) de um montante em dívida, que havia sido adiantado. Adiantado, pelo SP, aquando da aquisição, em nome próprio, com IVA, do veículo. Aquisição, pois, reflectida numa FC com IVA que lhe foi liquidado pelo vendedor do veículo. IVA, portanto, em que o SP incorreu ao adquirir, em nome próprio, o veículo.
IVA, portanto (relacionado com a parte da renda correspondente à “devolução” do capital) em que o SP incorreu “à cabeça” (de uma posterior celebração de um contrato de leasing). E que, por assim ser, e por a actividade de leasing ser tributável (e com direito a dedução), aquela entidade (SP) na mesma medida - do que lhe foi liquidado nas FCs de compra dos veículos - já pôde deduzir; i.e., o montante total de IVA em que incorreu, pois, na compra dos veículos, com dinheiro seu (ou obtendo financiamento para o efeito) deduziu depois (antecipadamente).
Ou seja, já deduziu o IVA em que incorreu nos inputs em questão - os veículos que adquiriu - quando num segundo (ou imediato) momento contrata com o seu Cliente um leasing sobre esse mesmo veículo automóvel.
E é esse input - o veículo que adquiriu, pagando, com IVA - que virá depois, mais adiante no tempo, já estando em execução o contrato de leasing – a ter reflexo na renda – amortizando-se o capital, ao longo do tempo.
Ao receber depois também essa parte da renda com IVA (receber do seu Cliente, no decurso do contrato de leasing) o que o Sistema do IVA está a permitir é, precisamente, a repercussão do imposto no consumidor final (como devido, em IVA). Como? A entidade (SP) vai receber esse IVA nesse momento (ao receber cada renda do leasing) e na verdade não vai ter, em rigor, que o entregar ao Estado. Porquê? Porque nesse mesmo montante de IVA já ela Requerente (SP) tinha incorrido (ainda que num bolo total e num momento prévio – compra do veículo), para os fins desta sua actividade tributada sujeita e não isenta, a actividade de leasing automóvel. E, por isso, já o havia (antecipadamente) deduzido. Art.º 20.º
Ora, é sobretudo aqui - nesta parte da renda paga pelo Cliente - a correspondente ao reembolso desse capital adiantado pelo SP ao adquirir o veículo - que nos situamos. Quando cuidamos do método de apuramento da medida de inputs mistos utilizada pelo SP, pela Requerente, sujeito passivo misto.
Inputs mistos utilizados, pois, para disponibilizar ao Cliente o veículo automóvel.
Qual a sua medida. A medida/quantidade/extensão da utilização deles (inputs pois outros que não aquele input veículo) para os fins da disponibilização dos veículos. Sabendo-se (dado assente, pois que são inputs mistos) que também os mesmos inputs foram utilizados pela Requerente, SP, para os fins da sua actividade não tributada.
O input à cabeça utilizado para os fins da disponibilização do veículo, vimo-lo, é o próprio veículo. Adquirido pela Requerente (cfr. supra).
Um input que não é misto e que, por isso, é deduzido (o IVA aí incorrido pelo SP) por imputação directa.
E que é, como bem se compreende, o input de relevo para os fins em causa – a disponibilização do veículo ao Cliente, a sua entrega ao Cliente, o colocar do veículo na disponibilidade do Cliente. O possibilitar passar assim a ser o Cliente quem dele dispõe.
Input esse, portanto, já devidamente tratado pelo SP para efeitos de direito à dedução (i.e., já deduzido o IVA nele incorrido) - quando se cuida, depois, do apuramento do pro rata de dedução de eventuais outros inputs em que o SP tenha incorrido e utilizado para poder disponibilizar o veículo ao Cliente.
Ora, para este fim - disponibilização ao Cliente do veículo automóvel – que outros inputs de relevo (e utilizados em maior proporção comparativamente à utilização que dos mesmos inputs a Requerente faz para os fins do financiamento e da gestão dos contratos de leasing – cfr. Jurisprudência do TJUE) poderão estar em questão?
É afinal disso que se cuida nos autos. Tudo como visto. E como, seja o TJUE, seja o nosso STA, desde logo, já estabilizadamente decidiram. O que tinha que se considerar, ao interpretar e aplicar o Direito no caso (v. Voto P408.).
Posto isto.
A conjugação do que vem de se referir, com o que vinha de se dizer mais acima (...a aplicação do pro rata puro conduz, no caso, a uma dedução de mais de 70%, de maior monta, pois, até, que aquela que o legislador reputou ser a correspondente, para o caso, à porção não dedutível, cfr. supra) traduz, afinal, também o seguinte. Como é bom de ver. Pela aplicação deste método puro estão a deduzir-se valores de IVA que superam, e em bastante, o IVA contido em inputsdestinados à actividade que confere direito à dedução.
Com o que não deixa de se relacionar: (i) estar a considerar-se na fracção enquanto Volume de Negócios uma realidade que não integra o Volume de Negócios da Requerente; e (ii) já ter sido, a seu tempo, feito uso pela Requerente do direito à dedução do IVA contido (incorrido) nas FCs correspondentes a esse correspectivo input - o veículo adquirido (ambos pontos que não parecem ter sido notados na posição que fez vencimento).
Sempre se diga. Colocando-se na fracção o montante correspondente à amortização de capital o que se está afinal a permitir é abranger (considerá-los para dedução) inputs incorridos não para os efeitos da actividade de leasing/ALD mas sim incorridos para o efeito da actividade isenta (financiamento automóvel geral), que é a maioritariamente desenvolvida pela Requerente.[17] Ora, o art.º 23.º e o apuramento do pro rata não foram pensados, como bem se compreende, para “compensar” o SP das consequências para si decorrentes, em matéria de IVA, do facto de desenvolver uma actividade que é isenta (isenção incompleta). E, assim, de ser beneficiário de uma isenção incompleta, com as consequências que daí advêm.
No caso, seria de perguntar. Na actividade de financiamento geral, que representa c. 70% do total do volume de negócios da Requerente, são utilizados apenas 14% (2018) e 15% (2019) dos inputs mistos? Não cremos.
Mais uma vez, só isso, por nós, prova que o método pro rata puro sim conduz, em casos como o presente, a distorções significativas na tributação. Resulta, pois, também assim provada, nos autos, a própria distorção, afinal. A qual decorrerá, dissemo-lo já, da própria natureza das coisas/da situação.
Lembrando - parece-nos pertinente - as consequências em IVA de ser superior o imposto suportado (ou aparentemente suportado na actividade que confere direito à dedução, contexto em que nos movemos) que o imposto liquidado.
Da questão da Inconstitucionalidade
E é, assim, neste contexto, que surge o Ofício.
O qual, como com maior desenvolvimento apreciámos já[18], foi emanado e produz os seus efeitos com conformidade à lei e à Constituição.
Ora – decide-se no Acórdão (após se percorrer Jurisprudência do TJUE, e proceder, a nosso ver, a uma interpretação da mesma que não é a correcta, entre o mais quanto ao teor do Acórdão Volkswagen, o qual não veio corrigir o vertido no Acórdão Banco Mais, e que nem era aqui convocável – v. Voto P408) que a AT não pode aplicar o Ofício por este conter solução que teria que ter sido prevista legislativamente, por imperativo Constitucional.
Decide-se o art.º 23.º, n.º 2 (e n.º 3) ser violador da Constituição na interpretação do mesmo que permite à AT impor “um método de determinação da matéria tributável” por via Circular. Convocam-se os art.ºs 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, al. i), e ainda os art.ºs 2.º e 111.º, todos da CRP. O Ofício consagra uma solução que define e restringe o direito à dedução com carácter geral e abstrato ao modelar diferentemente o método pro rata do art.º 23.º/4; e a interpretação do art.º 23.º, n.ºs 2 e 3, no sentido de que permite à AT assim proceder será, entende-se no Acórdão, material e formalmente inconstitucional. Refere-se, ainda, na CRP, o art.º 266.º, n.º 2 – estaria violado o princípio da legalidade da actuação da AT. Tudo a levar a concluir, segundo se decide, a fracção do pro rata dever conter a parcela “capital”. E a concluir, também, que “o IVA a liquidar deve incindir sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital” pois o valor tributável é o valor da renda. (p. 58)
O Princípio da igualdade vem também mais adiante no Acórdão referido. (p 75)
Vejamos de forma muito breve.
Estaremos em face, antes de mais, de uma invocada violação do Princípio da legalidade, na sua vertente de reserva material de lei. Entende-se, no Acórdão, estar-se perante regras de incidência objectiva, que o serão também, cfr. p. 56, as que indicam qual a matéria colectável.
Em questão estaria uma violação do art.º 103.º, n.º 2 da CRP.
A este respeito diga-se, pretendendo ser-se sintético, que assim o não vemos. Em questão não está matéria de incidência (dos elementos essenciais da relação jurídico-tributária, ali contidos, aquele a que se estaria a fazer apelo). Por efeito do método para determinação da dedução aplicável em recursos de utilização mista não sofre alteração a incidência do imposto. O IVA não deixa de incidir sobre os factos tributários em questão nos termos determinados por lei. E nem tão pouco a matéria colectável está a sofrer alteração. Aquilo em que se estará a influir (com os objectivos queridos pelo legislador... de maior rigor/proximidade à realidade, neste contexto, na aplicação do direito à dedução) será, isso sim, na dívida de imposto, o montante de IVA a entregar ao Estado. Por consequência de se proceder a uma maior ou menor medida de dedução. Dedução no processamento do método subtractivo indirecto, próprio do Sistema Comum do IVA.[19]
A medida em que é permitido ao SP desonerar-se do imposto suportado, se se quiser.
Ainda se aflore o Princípio da igualdade, neste contexto, em que estaria a ser violado o art.º 13.º da CRP. Apenas para notar que é próprio do Sistema Comum do IVA, também, haver elementos perturbadores do Princípio luz nesta sede, da Neutralidade. Desde logo – as isenções incompletas. Como é o caso, na questão do apuramento da medida da dedução de que cuidamos nestes autos.
E em contexto de Constituição fiscal ainda se chamem à colação palavras de Casalta Nabais como estas: “Todavia, como não pode deixar de ser, esta “determinabilidade” da lei fiscal tem limites decorrentes de outros preceitos ou princípios constitucionais que, ao interferirem com o princípio da reserva parlamentar fiscal, de algum modo limitam o seu alcance. Ou seja, esta reserva de lei tem de ser posta em concordância prática com os outros princípios constitucionais com que, ao menos prima facie, está em conflito ou colisão.”[20]; “(...) hipóteses de concessão de uma dada margem de livre decisão à administração fiscal, na medida em que sejam expressão de adequadas exigências da praticabilidade das soluções legais ou de outros princípios constitucionais, não são, em nossa opinião, de rejeitar, aceitando assim a atenuação da tipicidade ou determinabilidade implicada no princípio da legalidade fiscal.” [21]
Recorrendo no mais ao que já em voto no Proc. 408/2019-T escrevemos, e para concluir ainda em matéria de Princípio da legalidade:
Quanto, por fim, ao Ofício-Circulado, que a Requerente invoca estar ferido de ilegalidade e com base no qual procedeu ao cálculo do montante da dedução na sua autoliquidação em crise.
O legislador comunitário estabeleceu (DIVA) no n.º 2 da al. c) do Artigo 173.º - “Pro rata de dedução” - que “Os Estados-Membros podem (…) c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e serviços;”. E o legislador nacional determinou (cfr. art.º 23.º, n.º 3 do CIVA) que quando a aplicação do processo referido no n.º 1 - ou seja, quando a aplicação do pro rata geral apurado com base na fórmula contida no n.º 4 (tudo como supra) – conduza a distorções significativas da tributação, a AT pode obrigar o SP a proceder de acordo com o n.º 2. Vimos, logo no início, o que se estabelece nestes n.ºs 2 e 3. Não vemos como não entender conferidos pelo legislador à AT, nos termos das respectivas disposições conjugadas, poderes para casuisticamente impor ao SP uma adaptação do método de apuramento do montante dedutível de IVA dos inputs mistos – desde que preenchida alguma das duas alíneas do n.º 3. Sendo que consideramos preenchida a al. b) do n.º 3. Como segue.
Vejamos, primeiro que tudo, se a imposição feita ao SP (de retirar da fracção do n.º 4 a parte da renda correspondente à amortização de capital) o poderia ter sido pela AT por via do Ofício-Circulado.
Que o legislador quis conferir, e conferiu, poderes à AT para impor condições especiais num método de apuramento de pro rata geral parece-nos líquido. Não só a letra da lei é clara (cfr. n.º 3 ao remeter para o n.º 2) como bem se compreende o sentido da norma. Se (cfr. n.º 2) a AT pode impor ao SP condições especiais quando este tenha optado pela dedução com base em critérios “objectivos”, e esses critérios podem ter que ser alterados por imposição de condições especiais por parte da AT - sempre com o objectivo, não o percamos de vista, de aproximar o mais possível da realidade o montante de IVA a deduzir, evitando distorções significativas da tributação - então por maioria de razão faz sentido que a AT também o possa fazer no âmbito do método do pro rata geral. Que será em princípio de apuramento menos “fino” do que aquele no qual se incluam, ademais, elementos de afectação real. Por isso mesmo, e em coerência, o legislador assim o veio permitir também no n.º 3. Desenvolveremos ainda adiante.
Que por Doutrina Administrativa assim podia ter sido feito no respeito do princípio da legalidade, vejamos. O legislador disse que a AT pode obrigar o SP a efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos inputs mistos e que pode impor condições especiais (cfr. n.ºs 3 e 2).
A AT veio fazê-lo por Ofício-Circulado. O Ofício-Circulado é Doutrina Administrativa e esta vincula a própria AT e visa “a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.” (v. art.º 68.º-A, n.º 1 e n.º 3, da LGT). Trata-se de um poder/dever de colaboração que sobre a AT não poderia deixar de recair.[22] A AT revela assim publicamente a interpretação que faz das normas tributárias. O que, perante a complexidade da legislação tributária é, não só razoável, como desejável, contribuindo para a uniformização de procedimentos e aplicação uniforme da lei. O que a AT deverá fazer obedecendo aos princípios da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e segundo as regras aplicáveis de interpretação da lei.
No nosso caso acrescendo que foi o legislador quem expressamente determinou que a AT pode vir impor condições especiais (cfr. n.sº 3 e 2 do art.º 23.º).
Ora, parece-nos até, o legislador nem sequer estaria a exigir que a AT o viesse fazer desde logo mediante Doutrina Administrativa. Parece-nos, pela formulação legal, à AT seria dado, porque o legislador assim o quis (permitiu), vir caso a caso impor condições especiais (quando verificada alguma das situações constantes das alíneas a) ou b), no caso do n.º 3). Como sucederia por hipótese em sede procedimento de Inspecção Tributária. O que, será transversalmente unânime, não traria as mesmas previsibilidade e segurança jurídica que a emissão de um Ofício-Circulado. Que traduz um tratamento já segundo um caso típico, que não segundo o caso individual.
É a complexidade das situações da vida real que assim impõe ao legislador proceder. Não será nunca possível ao legislador, na complexidade infindável das situações específicas de casos como os que se poderão conter em tudo o que seja apuramento de montantes de dedutibilidade de IVA em inputs mistos, prever normativamente a regulação e o tratamento de todas as questões potencialmente implicadas. Pense-se na complexidade que o próprio método já implica e, depois, na infinita possibilidade de sectores de actividade com todas as suas especificidades.
Pensando em situações como também esta, como sabemos, há que reconhecer que “A concretização administrativa tipificante é, pois, o resultado da busca da melhor solução para a aplicação da lei. Ela é o resultado da interpretação que, segundo os seus critérios, melhor satisfaz o fim da norma, de acordo com o interesse público específico, com critérios de racionalidade jurídica (princípio da igualdade, proporcionalidade e praticabilidade, por exemplo) e ponderando interesses concorrentes (…).”[23]
Não estamos pois, por aqui, perante uma excepção nem uma violação ao princípio da legalidade.
Referia-se Saldanha Sanches[24] ao tema, assim: “(…) é na norma jurídica em sentido material que podemos encontrar o fundamento para outros tipos de aplicação da lei pela Administração fiscal nas múltiplas relações que estabelece com o contribuinte. Isso não impede, assim, que a fonte directa para a produção de actos tributários por parte da Administração fiscal, o fundamento invocado para a sua decisão, seja, em inúmeros casos, não a lei em sentido formal, mas uma orientação administrativa (circular ou ofício), em que esta define, em termos gerais e com eficácia interna, o comportamento a adoptar perante casos concretos (…).” E, mais adiante, “As virtualidades das orientações administrativas são incontestáveis: (…). No entanto, estas orientações terão de ser sempre sujeitas a um juízo de legalidade. Esse juízo de legalidade, a realizar em relação a qualquer orientação, vai ter como objecto a sua maior ou menor capacidade para traduzir correctamente um princípio que tem como fonte constitutiva a norma jurídica, que concretizam num fenómeno de cascata. (…) cumpre aos tribunais a resolução do litígio e o juízo definitivo sobre a legalidade ou ilegalidade da orientação administrativa.”
E quanto à bondade do critério/método ali imposto. Vejamos se em substância a imposição feita pela AT passa ou não num juízo de legalidade.
No caso dos autos, o SP, IF, pratica, a par da sua actividade principal, isenta e que não confere direito a dedução, a actividade de leasing financeiro, que confere direito a dedução. Sendo que uma parte da renda dos contratos de lf, sujeita a IVA, não constitui um preço, nem integra o volume de negócios, não constituindo receita do SP. É aos nossos olhos claro que a aplicação do método pro rata geral ou puro conduz a distorções significativas da tributação. (...).
*
Concluindo, não nos é dado acompanhar a decisão também no que à invocada, e decidida, violação da Constituição se reporta. Que foi determinante do sentido da decisão - cfr. assim ao se concluir por vício de violação de lei do Ofício consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade (p. 81).
*
Por fim retomando, aqui, a aproximação (supra, 5.) ao recurso, na decisão, a conceitos com valoração jurídica, conclua-se – agora em sede de Direito.
Por facilidade, transcrevam-se as já referidas al.s e. e f. constantes do probatório:
“e. As atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, são de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos.
f. A utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e “não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes”.”
Pois bem.
Como da sua leitura decorre, do constante da al. e. se retira/conclui, depois, o que se coloca na f.
Dêem-se as seguintes duas notas.
A) O constante da al. f. é matéria conclusiva. Como também se apreende do mais adiante contido na fundamentação da Decisão, a pp. 55 do Acórdão: “Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exata, que as atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores (...) consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos. (...).”. / Isto é[25], utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão (...) Banco Mais, é convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e “não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes”.”
Matéria conclusiva, pois, assim devendo considerar-se não escrita, implicado que está um juízo ou conclusão contendo em si a potencialidade de determinação do desfecho da causa.
B) Na al. e. do probatório confundem-se conceitos. Da leitura conjugada, e também assim contextualizada, das referidas alíneas se apreende facilmente o seguinte. Aquilo que aqui - e. - se apelida de (consideráveis) “atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes” é, afinal, a mesma realidade que na Jurisprudência do TJUE (desde logo Ac.s Banco Mais e Volkswagen), e do STA, se identificou como “gestão dos contratos de locação financeira” (assim se lê em e. - “atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira”).
Por seu turno, “atividades anteriores à entrega dos veículos” traduzirá, bem vistas as coisas, a mesma realidade que naquela Jurisprudência se identificou como “financiamento” nos contratos de locação financeira. (Relativamente à qual há depois uma remuneração ao longo da vida dos contratos, e também assim se conexionando com a gestão dos mesmos).
Se se pretendia referir algo mais, que não vemos o quê, tal não é, parece-nos, perceptível.
Já a “disponibilização” dos veículos a que se reporta a referida Jurisprudência é – afinal – aquilo que aqui, em e., se designa, e bem, dir-se-ia, de “entrega”.
Senão vejamos. É assim que aqui, em e., se lê: “As atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores [posteriores à entrega, portanto[26]] derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes”. Ora, apelando a um esforço interpretativo deste concatenado de vocábulos na decisão, concluiremos que entre a “disponibilização” do TJUE e do STA[27], e a “entrega” da posição que formou maioria, não haverá distinção. Estaremos sempre a referir-nos ao acto de entrega, de colocar na disponibilidade, na posse do locatário, o bem. Mediante uma autorização/ordem de entrega, se se quiser (e cfr. depoimentos testemunhais, v. supra) permitir ao Cliente levantar, e assim passar a dispor, da viatura.
Sucede que, ao se extraírem conclusões da al. e. para a f. faz-se afinal equivaler às “actividades anteriores” e “actividades posteriores à entrega” algo que se denominou por “actividade de disponibilização”. É o que concluímos.
A decisão da matéria de facto padece também assim de erro, a nosso ver, pois que utilizou conceitos extraídos da terminologia contida na Decisão do TJUE (Ac. Banco Mais) sem concretização da realidade fáctica subjacente. Com uma errada interpretação e aplicação dos conceitos de “gestão dos contratos” de leasing/ALD, e de “disponibilização” de veículos, neste contexto. O que não deixa também de se notar quando na fundamentação do Acórdão se referem tarefas consideradas como integrando (como afectas à) a disponibilização dos veículos (v. pp 51-54).
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Nota final, e tendo em conta tudo o que ficou percorrido. Toda a Jurisprudência já produzida seja pelo TJUE, seja pelo STA, com sucessivos Acórdãos mais recentes, incluindo de Uniformização, conduziam necessariamente, quanto a nós, ao indeferimento do Pedido.
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Por tudo o percorrido, teríamos decidido pelo indeferimento total do PPA.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023
(Sofia Ricardo Borges)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.
[2] A utilização deste método é obrigatória de se tratar de bem não utilizados na atividade económica definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.
[3] Neste sentido, entre muitos, podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 25-10-2000, processo n.º 25128, Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, página 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2593.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, em que se entendeu que, na sequência decisão do TUJE proferida no processo C-183/13, tinha sido necessário ampliar a matéria de facto «no sentido de apurar se, no caso concreto, no âmbito de operações de locação financeira para o sector automóvel, a utilização de bens e serviços de utilização mista (afetos a atividades que conferem direito a dedução de IVA e a atividades isentas) foi, ou não, principalmente determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira que a recorrente celebrou com os seus clientes ou pela disponibilização dos veículos».
[5] Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª Ed., 2007, pp.125-126.
[6] “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, a.10n.1(Primavera2017), pp. 27-56.
[7] Veja-se José Maria Montenegro, “Comentário ao acórdão «Fazenda Pública contra Banco Mais, SA» de 10 de Julho de 2014, Proc. C- 183/13”, em Anuário de Direito Internacional, 2014/2015, pp. 313-323.
[8] Decisão proferida no âmbito do Proc. C-153/17, de 18 de Outubro de 2018.
[9] Em “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, publicado em Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 10, n.º 1, página 27 e seguintes, 46-47.
[10] Sempre que referirmos artigos sem menção de Diploma Legal estaremos a referir-nos ao CIVA.
[11] Também transcritas infra (no final do Direito).
[12] Cfr. nossa referência mais desenvolvida em votos de vencido de Fev. e Março de 2020 (v. Proc. 408/2019-T, CAAD).
[14] PPA – 45.º, 46.º e 48.º
[15] Doravante “o Ofício” ou “o Ofício Circulado”.
[17] Lembrando que pela fracção do pro rata se está a cuidar de todos os inputs mistos incorridos pelo SP (e não “levados” para critério de afectação real), como nem poderia deixar de ser; que não de supostos inputs mistos apenas incorridos na actividade sujeita e não isenta – leasing/ALD, como parece em alguns passos poder ter sido o entendimento da Requerente.
[18] v. Voto P408/2019-T, CAAD
[19] E nunca por aplicação de uma taxa sobre uma matéria colectável como a certo passo no Acórdão parece poder interpretar-se (p. 70).
[20] in “O Dever Fundamental de pagar impostos”, Teses, Almedina, 2015
[22] V. art.º 59.º da LGT.
[23] Ana Paula Dourado, “O Princípio da Legalidade Fiscal - Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação”, Almedina, [reimpr. 2007], 2019, p. 721
[24] J. L. Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª edição, 2007, p. 124 e ss.
[25] Quaisquer sublinhados e/ou negritos no presente são nossos, salvo se indicado em contrário.
[26] Nota nossa (itálico).
[27] E demais Jurisprudência e Doutrina, na matéria.