Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 18/2022-T
Data da decisão: 2023-03-22  IRS  
Valor do pedido: € 11.200,49
Tema: IRS - Liquidação oficiosa de rendimentos tributáveis em IRS obtidos no estrangeiro.
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Sumário:

I – A liquidação oficiosa de rendimentos obtidos no estrangeiro e comunicados à AT no âmbito da cooperação internacional em sede de IRS, exige a abertura de procedimento de liquidação que obedece aos requisitos de participação do contribuinte e fundamentação das decisões, aplicáveis aos procedimentos tributários em geral.

II – A prova da obtenção de rendimentos no estrangeiro deve obedecer aos requisitos gerais do procedimento tributário, que tem forma escrita e onde a prova é regida pelas regras gerais de direito probatório tributário.

III – As informações prestadas pelas autoridades tributárias de países estrangeiros não podem ser subtraídas ao conhecimento direto do contribuinte, sob pena de violação do seu direito de acesso aos seus processos individuais ou, àqueles que nos termos da lei, tenham interesse direto, pessoal e legítimo, como se prevê na norma do artigo 59.º, n.º 3, alínea g) da LGT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Nuno Maldonado Sousa, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 22-03-2022, decide no processo identificado, nos seguintes termos:

  1. Relatório

A..., titular do número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., ..., ...-... Almada, doravante designado como “Requerente”, requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”). O seu pedido tem como objetivo a pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação de IRS relativa ao período de 2017, com o no . 2021..., com termo para pagamento em 29-12-2021, bem como da demonstração de liquidação de juros compensatórios que lhe está associada, determinando a realização de pagamento no montante total de € 11.200,49. Peticiona também a restituição do montante que diz ter satisfeito, acrescido de juros compensatórios. Pede ainda a substituição do ato que pretende ver anulado, por ato de liquidação que reflita os rendimentos que declarou em 17-12-2021.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada apenas por “AT” ou por “Requerida”.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 14-01-2022 e foi notificado à Requerida em17-01-2022. O árbitro identificado e signatário manifestou a aceitação das suas funções em 31-01-2022 e em 02-03-2022, as partes foram notificadas da designação do árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 22-03-2022. Em 21-11-2022, em 07-07-2022 e em 20-01-2023 foram proferidos por este Tribunal despachos de prorrogação do prazo para a decisão, por sucessivos períodos de dois meses.

A Requerida apresentou Resposta (“R-AT”) em 18-05-2022, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente. Na mesma data foi junto pela Requerida e foi devidamente incorporado nos autos, o processo administrativo digitalizado (“PA”), composto por um ficheiro em formato pdf com 32 páginas[1].

Em 19-09-2022 foi dispensada pelo Tribunal a realização da reunião com as partes a que alude o artigo 18.º do RJAT, com fundamento na sua desnecessidade e foi fixada a tramitação processual subsequente, tendo-se dado oportunidade às partes para apresentarem alegações, o que fizeram sucessivamente, por escrito.

 

  1. Saneamento
    1. Saneamento em geral

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT e é competente, relativamente ao pedido principal, o que justifica o seu julgamento. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do já referido regime.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.

  1. Pretensa revogação parcial da liquidação na pendência do processo

Em 27- 06-2022 quando já estava concluída a fase dos articulados foi comunicada nos autos em 06-06-2022, pela Senhora Sub-diretora Geral da AT, correção parcial do ato impugnado, por adesão à informação dos serviços. Esta informação foi no sentido de “correção dos rendimentos mencionados no Quadro 8A do Anexo J, i.e., deve ser considerado como dividendos o valor de €384,52 e outros rendimentos de capitais o montante de € 17.074,17.

Não obstante, de acordo com a proposta que deu lugar à dita decisão, feita por mera adesão, propôs-se que fosse corrigida a liquidação de IRS n.º 2021..., de 2021-11-17, referente ao IRS do ano fiscal de 2017 “após apreciação do pedido de pronúncia arbitral” pelo que nenhum efeito terá afinal nesta decisão.

 

  1. Fundamentação – matéria de facto
    1. Factos provados

Com relevância para esta decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

Em 29-11-2021 o Requerente foi notificado da liquidação de acerto de IRS relativa ao ano de 2017, com o número 2021..., e da demonstração de liquidação de juros compensatórios correspondentes ao retardamento daquela liquidação de 02-06-2018 a 12-11-2021, no valor de € 1.358,94, resultando a liquidação, incluindo os juros, no total de € 11,200,49. (PPA, 1º e 16.º: doc. 1)

O impugnante trabalhou no Congo belga, hoje República Democrática do Congo e recebe pensão da Segurança Social Belga, que no ano de 2017  se cifrou em € 2.534,20 (PPA, 15.º: doc. 2)

Em data que se desconhece o Requerente indagou junto da AT sobre os fundamentos desta liquidação, e obteve, através do e-balcão, informação no seguinte teor: (PPA, 17.º: PA, p.3).

Exmo. Sr.

Informa-se que independentemente do valor, todos os rendimentos obtidos no estrangeiro devem ser declarados.

Tais rendimentos são:

Bélgica - Pensões - 2.534,20

Reino Unido - Banco B... Limited Outro CRS 17.074,17 EUR e Dividendos - 384,52 EUR

Em 22-12-2021 o Requerente questionou a Requerida sobre a forma como foram calculados os rendimentos adicionais e em 28-12-2021 recebeu a seguinte resposta: (PPA, 18.º: PA, p. 5).

De acordo com os elementos disponibilizados por administrações fiscais de outros países, a AT teve conhecimento que no ano de 2017 auferiu rendimentos no estrangeiro, sendo que, não apresentou a declaração de rendimentos, com o respetivo anexo J.

Na ausência de apresentação da declaração, no prazo legal / fixado, a AT procedeu à elaboração de Declaração Oficiosa, com os valores que menciona (Em anexo).

A divergência de valores que refere, deve-se ao facto de que, as administrações fiscais dos países em questão (Bélgica; Reino Unido), reportaram à AT os valores que lhe foram comunicados através interação e-balcão n. 0 1-21 19384709, em dois ficheiros distintos, ambos com os mesmos valores. Na declaração oficiosa consta, assim, a soma de ambas as referidas comunicações.

Se considera que os valores em questão não são os corretos, poderá socorrer-se do procedimento de reclamação graciosa, a apresentar por esta mesma via, selecionando "Imposto ou área" "Justiça Tributária"; "Tipo de Questão" — "Contencioso"; "Questão" — "Reclamação Graciosa". Deverá apresentar documento comprovativo do montante do rendimento auferido no estrangeiro, da sua natureza e do pagamento do imposto, o qual deverá ser emitido ou autenticado pelas Autoridades Fiscais do respetivo Estado de onde são originários os rendimentos.

Anexo à resposta da Requerida de 28-12-2021 o Requerente recebeu a declaração oficiosa, elaborada pelos serviços da Requerida, preenchida com rendimentos prediais no valor de € 231,00, rendimentos de pensões no valor de € 2.534,20, rendimentos de capitais de € 34.917,38 €, que é o somatório das parcelas de € 34.148,34 e de € 769,04 €. (PPA, 20.º e 21.º: doc. 4).

O Requerente fez, através da sociedade B... Limited, broker no Reino Unido (www...), exclusivamente investimentos em CFDs (Contracts For Diference), com o lucro líquido total no ano de 2017 de € 5.294,03. (PPA, 30.º e 41º: doc. nº. 5).

Em 17-12-2021 o Requerente apresentou declaração de rendimentos de substituição do ano de 2017onde declarou rendimentos prediais no valor de € 231,00 e exerceu a opção pelo englobamento. (PPA, 43.º e 44.º: doc. 7)

Na declaração de rendimentos de substituição do ano de 2017, que o Requerente apresentou em 17-12-2021 declarou também ter rendimentos obtidos no estrangeiro de pensões, no valor de € 2.534,20 e incrementos patrimoniais, de opção de englobamento, no valor líquido de € 5.294,03 (PPA, 44.º, doc. 7)

O procedimento para convolação da declaração de substituição apresentada pelo Requerente em reclamação graciosa decorreu no Serviço de Finanças de Almada 1. (R-AT, 14.º: PA, p. 31)

 

  1. Factos não provados

Não foram provados os seguintes factos alegados pela Requerida:

 

i. Que a Administração Fiscal do Reino Unido tenha informado a AT dos rendimentos obtidos nesse país pelo contribuinte A..., com o NIF ... .

ii. Que no caso do Requerente foram comunicados rendimentos da categoria E pelas autoridades fiscais do Reino Unido e rendimentos de pensões pelas autoridades fiscais Belgas.

iii. Que os rendimentos da categoria E foram comunicados pelo Reino Unido em 13/09/2018 e novamente em 29/01/2020, não existindo diferenças quanto à informação comunicada em nome deste contribuinte.

iv. Que o Requerente não declarou aquelas importâncias no anexo J da declaração de rendimentos referente a 2018.

v. Que o Requerente não juntou os documentos que lhe foram solicitados nas interações e-balcão

vi. Tendo a declaração de substituição entregue pelo Requerente sido convolada em reclamação graciosa (nº ...2022...), este foi notificado a 2022/02/08 para apresentar os documentos de suporte.

 

 

  1. Convicção do tribunal para julgamento da matéria de facto

O julgamento da matéria de facto assentou na prova documental trazida aos autos pelo Requerente e pela que consta do processo administrativo e é inteligível. Lamentavelmente os elementos que dele constam não permitem atribuir-lhes qualquer força probatória, pois não respeitam a noção básica do processo que é uma sequência ordenada de atos, nem o conceito de documento, que é um objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (362.º do Código Civil), não se incluindo neste conceito simples notas sem sinais de autoria nem contexto (v.g. pp. 7 e 23). A prova documental foi apreciada à luz da experiência do tribunal e está referenciado em cada facto o local da sua alegação e do documento probatório considerado[2].

É relevante a matéria de facto alegada pela AT que se considerou como não provada, mas o Processo Administrativo não tem consistência para suportar aquelas alegações. A existência de rendimentos no estrangeiro não pode ser comprovada por meros escritos descontextualizados, como também não pode sê-lo relativamente a rendimentos obtidos em Portugal. Tenha-se presente que o ónus da prova cabe à AT que afirma que a informação foi prestada pelas autoridades fiscais estrangeiras, através de troca automática de informações de contas financeiras, sendo comunicada à AT de forma massiva e que essa informação – os dados informáticos das autoridades tributárias estrangeiras - é posteriormente objeto de tratamento e recolha na aplicação SITI. Mesmo não constando do Processo Administrativo o registo do SITI, não parece ao Tribunal que isso fosse prova suficiente da existência dos rendimentos. É certo que as cópias obtidas a partir dos dados registados informaticamente ou de outros suportes arquivísticos da administração tributária têm a força probatória do original, desde que devidamente autenticadas (76.º-2 da LGT) mas esse regime é privativo da Autoridade Tributária e Aduaneira portuguesa e não tem aplicação às administrações tributárias de países estrangeiros, como se alcança da leitura atenta do n.º 4 do mesmo artigo. E a realidade é que os dados informatizados em causa, são dados das administrações tributárias de outros países.

É ainda de notar que a Diretiva 2011/16/EU de Conselho de 15 de fevereiro de 2011(DAC1), relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade, transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei 61/2013 de 10 de maio, regula sobretudo as regras, procedimentos e prazos complementares necessários à implementação do Regime de Comunicação de Informações Financeiras (RCIF), estabelece o regime de comunicação obrigatória de informações financeiras, fixa regras e procedimentos de cooperação administrativa no domínio da fiscalidade, define as obrigações que impendem sobre as instituições financeiras no que respeita a comunicação de informações, regula e introduz um mecanismo de troca automática e recíproca de informações financeiras da competência da AT ao nível institucional, mas as suas disposições em nada afetam as regras sobre o procedimento tributário que a LGT e o CPPT disciplinam e muito menos colocam em crise o dever de fundamentação dos atos que tem dignidade constitucional. É evidente que o RCIF vigora em Portugal, mas essa regulação não pode servir para ignorar as normas dos artigos 268.º, n.º 3 da CRP e 77.º, n.º 1 da LGT, que impõem a fundamentação dos atos e não serve de fundamento dizer apenas que determinada congénere estrangeira informou a AT da existência de determinados rendimentos. Crê este Tribunal que nesses casos e não havendo obrigações do contribuinte de dispor de contabilidade organizada, a AT terá mesmo de requerer à congénere estrangeira que identifique rigorosamente fontes, montantes e características dos rendimentos e toda a panóplia de informações descritas pela norma do artigo 3.º n.ºs 2 a 6 do Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio, para que possa fundamentar devidamente a sua inclusão no quadro normativo tributário nacional. Como é natural, cada autoridade tributária deve usar a taxonomia própria que consta do RCIF[3] mas o enquadramento desses rendimentos nem sempre é tarefa fácil, porque não é fácil o quadro jurídico português, no que concerne à tributação de rendimentos de capitais, de atividades comerciais e industriais e incrementos patrimoniais que tenham uma base próxima. Se sabemos que mesmo no nosso ordenamento o enquadramento tributário dos rendimentos é motivo frequente de diferendo entre a AT e os contribuintes, o que se dirá quando os rendimentos e as normas de incidência são de ordenamentos jurídicos diferentes. E, repete-se, é à AT que cabe o ónus da prova quando pretende imputar rendimentos não declarados ao contribuinte (74.º-1 da LGT), sem prejuízo do dever de colaboração do contribuinte, mas tendo presente que a ausência de elementos esclarecedores por parte do contribuinte não pode ser entendida como prova da tese contrária, como se retira da norma do artigo 100.º, n.º 1 do CPPT. Se há fundadas dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário, essas dúvidas são em benefício do contribuinte.

Não se identificaram outras alegações de factos relevantes, da qual se excluem, obviamente, as conclusões e invocação de direito pelas partes.

 

  1. Fundamentação – matéria de direito
    1. O fundamento do Requerente e o contraditório da AT

Para sustentar o seu pedido o Requerente imputa ao ato sub judicio as seguintes características:

  1. Que lhe são ilegalmente acrescentados rendimentos pretensamente auferidos no ano de 2017, baseados em elementos obtidos do estrangeiro e ao dispor da Autoridade Tributária e com base neles a AT criou erradamente a obrigação tributária em causa, contendo erros graves quer na qualificação como na quantificação dos factos que a AT considera e que conduzem a uma discrepância entre a situação declarada pelo Requerente e a obrigação de imposto resultante da obrigação que consta do ato impugnado (PPA, 2-5);
  2. Que a liquidação em crise “assenta mesmo em factos sumariamente inventados” (PPA, 9.);
  3. Que foi o próprio Requerente que depois de ser notificado da liquidação teve de indagar junto da AT sobre os fundamentos da liquidação.
  4. Que, de acordo com o que o próprio Requerente afirma a AT fez acrescer ao seu rendimento pensões no montante de € 2.534,20 que auferiu da segurança social belga, que lhe comunicou através do E-balcão (PPA, 15-17).
  5. Que lhe foram ainda imputados alegados "Dividendos" provenientes do Reino Unido, estranhamente duplicados em determinadas rúbricas, rigorosamente idênticas.
  6. Que mais tarde lhe foi facultada declaração oficiosa preenchida pela AT onde além de € 231 de rendimentos prediais e da pensão de € 2.534,20 de fonte estrangeira que o impugnante efetivamente auferiu, a AT, com espanto do Requerente, acrescentou, no campo rendimentos de capitais (categoria E) o montante de € 34.148,34 a título de "outros rendimentos de capitais" (código E22) e o montante de € 769,04 a título de "dividendos ou lucros" (código El 1), que são rendimentos que nunca auferiu (PPA 20-22).
  7. Por conseguinte tem carácter inteiramente ficcionado o rendimento imputado ao Requerente, certamente por um mais que óbvio e grosseiro erro de interpretação dos elementos colhidos pela AT.
  8. E que a AT faltou ao dever legal de proceder às averiguações necessárias com vista à descoberta da verdade material (artigo 580 da LGT), se dúvidas houvesse acerca da forma como se haveria de interpretar os elementos obtidos do estrangeiro (PPA, 25).
  9. Que a AT efetuou o preenchimento oficioso de declaração de rendimentos e do ato tributário subsequente, consubstanciado na liquidação aqui impugnada, sem que os tenha precedido de audição prévia, em desrespeito com os artigos 60.º da LGT, 45.º do CPPT e das normas Constitucionais dos artigos 266.º, n.º 1 e 267.º, n.º1.
  10. O Requerente recusa ainda, apresentando fundamentos, o enquadramento feito pela AT aos rendimentos de capitais e o valor dos mesmos (PPA, 29-41).
  11. Imputa expressamente à AT a violação do princípio da legalidade, conferido pelo artigo 266.º, n. 2 da CRP e do dever de investigação e da descoberta da verdade material (PPA, 47, 71 e 73).
  12. que o exercício dos poderes deveres da Autoridade Tributária não pode basear-se em impressões, palpites ou entendimentos, mas antes na lei e na prova dos factos constitutivos dos direitos de que se arroga (PPA, 86).
  13. E que, sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado" (artigo 100 nº. 1 do CPPT) (PPA, 90.)
  14. Conclui afirmando que a AT não fundamenta adequadamente a sua posição com elementos que ultrapassem as meras impressões, palpites e entendimentos e que o Requerente se dispôs e prestou todos os esclarecimentos no sentido de afastar quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à qualificação dos factos tributários relevantes PPA, 92 e 93).
  15. E termina afirmando que a AT violou o poder-dever de audição prévia e do direito do impugnante à participação nas decisões que lhe digam respeito.

Pelo seu lado a AT sustenta a legalidade da liquidação, alinhando os seguintes argumentos:

  1. Que a AT foi informada pela Administração Fiscal do Reino Unido dos rendimentos obtidos nesse país pelo Requerente no âmbito da Diretiva 2011/16/EU de Conselho de 15 de fevereiro de 2011(DAC1), relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade (transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei 61/2013 de 10 de maio) e no CRS (Common Reporting Standard - Norma para a Troca Automática de Informações de Contas financeiras), sendo comunicada à AT de forma massiva. (R-AT, 4. e 5.).
  2. Que no caso do Requerente foram comunicados rendimentos pelas autoridades fiscais do Reino Unido e da Bélgica, que o Requerente não declarou e que, por isso a AT procedeu, nos termos do art.º 76.º do CIRS, à elaboração de Declaração Oficiosa, de acordo com os valores conhecidos (R-AT, 8.º a 10.º).
  3. O valor probatório da informação oficial recebida, proveniente das autoridades fiscais estrangeiras, conforme disposto no artigo 76º, nºs 1 e 4 da Lei Geral Tributária (LGT), fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.
  4. E que, “demonstrada a validade da informação de que a AT dispõe, o ónus da prova inverte-se cabendo ao Requerente demonstrar que os rendimentos que as Autoridades Fiscais estrangeiras comunicaram à AT não estão corretos, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 74º da LGT, uma vez que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos invocados recai sobre quem os invoca.” (R-AT, 19.º).
  5. Terminando com a afirmação de que a o direito de participação do Requerente se satisfez com as interações que fez com o E-balcão mas que o Requerente não juntou os documentos solicitados.

 

  1. Objeto do litígio

Tenha-se presente que, como se disse no capítulo próprio, não há qualquer prova de ter existido qualquer informação da obtenção de rendimentos por parte de autoridades fiscais estrangeiras no processo administrativo que, quanto a esses hipotéticos rendimentos apenas contém (pp. 7, pp.11, 23-24 e 27), em folhas de papel branco várias vezes repetidas, sem timbre, sem assinatura, sem carimbo ou qualquer sinal que revele a sua autoria, com texto e números escritos em português, com referências diversas, muitas deles ininteligíveis (v.g “outro CRS”), referências a entidades pagadoras de países diversos numa mesma folha e extratos bancários que não são obviamente informações de congéneres estrangeiras ou informações internas da AT (pp. 12-14, 23, 26-32), que não permitem aferir da origem dos seus dados e que nem contém a assinatura de qualquer responsável da própria AT, que lhes confira credibilidade. Aliás, só com muita bondade se pode considerar que aquele conjunto de papéis digitalizados constitui um processo, em termos jurídicos pois falta-lhe o elemento fundamental: a sucessão organizada de atos.

o0o

Constitui objeto do litígio saber (i) se foi cumprido o direito de audição e participação na decisão pelo requerente, (ii) se o ato praticado se encontra devidamente fundamentado.

 

  1. Aplicação do direito

Como é pacífico para a comunidade jurídica, sem grandes citações doutrinárias ou jurisprudenciais, a prática dos atos que definem os direitos e obrigações tributários faz-se através do procedimento, nos termos da norma do artigo 54.º, n.º 1 da LGT. A liquidação é feita através de procedimento, com forma escrita, embora possa sê-lo em suporte ou com tramitação eletrónica (n.º 2 do citado artigo), está sujeita ao princípio do inquisitório (58.º da LGT) que exige que a AT realize todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, onde vigora o princípio da colaboração (59.º da LGT), que garante aos contribuintes o acesso, a título pessoal ou mediante representante, aos seus processos individuais (59.º-g) LGT), o princípio da participação (60.º da LGT), que compreende o direito de audição antes da liquidação e o princípio da fundamentação e eficácia (77.º da LGT), que exige que a decisão do procedimento é sempre fundamentada com indicação dos factos e do direito aplicáveis (n.º 1 da norma citada). Os mesmos princípios têm também assento nas normas dos artigos 44.ºe 45.º do CPPT.

O procedimento de liquidação, em especial, está regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, e impõe que quando a AT tome conhecimento fundamentado documentalmente de rendimentos não declarados pelo sujeito passivo e devidamente suportados, instaura oficiosamente o procedimento de liquidação (59.º-7 do CPPT).

De acordo com a matéria de facto assente, em 29-11-2021 o Requerente foi notificado da liquidação de acerto de IRS relativa ao ano de 2017. Nem a Resposta da AT nem o PA contêm qualquer dado anterior a esta data; quer dizer, o Requerente recebeu a liquidação de acerto sem que tivesse tido conhecimento do início desse procedimento, mas, sobretudo, não foi notificado para se pronunciar antes da sua decisão, confrontando-o com o projeto da decisão e sua fundamentação como exigem as normas do artigo 60.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 da LGT. Além disso, a própria decisão, que no caso é a própria demonstração da liquidação, não foi acompanhada de explicação, mesmo sucinta, das razões de facto e de direito que a motivaram, contrariando claramente a norma do artigo 77.º, n.º 1 da LGT.

É claro que há situações em que a AT está dispensada de ouvir o sujeito passivo antes da decisão ou, até, situações em que pode ser dispensada a própria fundamentação. Vejamos.

As normas no artigo 60.º, n.º 2 da LGT, dispensam a audição do sujeito passivo quando a liquidação se baseie em declaração do contribuinte (n.º 2-a), quando a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei ou o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito (n.º 2-b). O caso dos autos não se enquadra em nenhuma destas situações.

É entendimento jurisprudencial, a existência de duas situações típicas em que a omissão prévia da audição poderá não ter consequências invalidantes do ato praticado; são elas[4]:

  • quando a decisão do procedimento resulta de uma transparente ponderação dos elementos de facto e de direito submetidos à sua apreciação;
  • quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de atividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão.

Como é bom de ver e face aos factos concretos, o caso dos autos não se enquadra em nenhuma destas situações em que, mesmo sem observância da lei, a jurisprudência aceita o princípio do aproveitamento de atos que não foram devidamente fundamentados. O regime consensual, na doutrina[5] e na jurisprudência[6] apontam inequivocamente para a invalidade dos atos que não contenham a participação dos contribuintes na decisão, através da sua audição e a respetiva fundamentação.

Em sentido diverso daquele que este Tribunal vem referindo, a AT sustentou a validade da liquidação, recorrendo à norma do artigo 76.º do CIRS e às normas artigo 76º, nºs 1 e 4 da Lei Geral Tributária. Analise-se a pertinência destes argumentos e, sobretudo, se lhe permitem obviar às regras gerais de audição e fundamentação. Com exceção da regra do artigo 76.º-4 do CIRS, nenhuma outra norma se aplica ao caso sub judicio. Já as normas do artigo 76.º, n.º1 e n.º4 da LGT, não se alcança de que forma pretende a AT aplicá-las porque o direito aplica-se aos factos e esta não logrou provar, como lhe competia, que existiam informações concretas, identificadas e fidedignas da existência de rendimentos no estrangeiro. É certo que o próprio Requerente afirma tê-los tido mas não é admissível fazer liquidações sem que os elementos fundamentais da relação jurídica sejam prévia, clara e inequivocamente apresentados e não o foram e por isso constam da matéria não provada, na configuração que a AT lhes deu. Veja-se que o artigo 76.º-4 é claríssimo: “São abrangidas pelo n.º 1 [as informações da própria AT] as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado”. Não é possível localizar qualquer informação de autoridades estrangeiras[7], pelo que não há facto e sem facto não pode haver tributação.

A AT sustenta ainda que “o direito de participação do Requerente se satisfez com as interações que fez com o E-balcão”. Vejamos, o direito de participação do sujeito passivo deve ser anterior à decisão e prática do ato, como se extrai da norma do artigo 60.º, n.º 1 da LGT, que regula que a participação dos contribuintes é feita ao nível da formação das decisões, o que logicamente implica que estas ainda não se tenham concretizado e a alínea a) deste artigo é lapidar: os contribuintes têm “direito de audição antes da liquidação”. Está assente que a liquidação foi feita em 29-11-2021 e todos os documentos que constam do PA, incluindo as ditas interações com o e-balcão são posteriores a essa data (não se considerando as que não ostentam data), datando a primeira de 22-12-2021, i.e., 23 dias após a liquidação.

Não procede nenhum dos argumentos sustentados pela AT e a violação das regras que se referiram, reguladoras, em especial do direito de participação e da obrigação de fundamentação do ato tributário – a liquidação - geram a sua invalidade, pelo que há que o anular.

 

  1. A reconstituição da situação

O Requerente conclui o seu pedido de pronúncia arbitral pedindo (i) a restituição ao impugnante dos montantes por si pagos, conexos com tal liquidação adicional, acrescidos de juros indemnizatórios; e (ii) a substituição do ato cuja anulação pede, por outro ato que reflita a obrigação de imposto constituída nos termos corretamente declarados pelo impugnante em 17/12/2021

Vejamos a questão dos juros e dos montantes que o Requerente diz ter pagado, conexos com a liquidação adicional que se vai anular.

Como se deixou dito noutro local, o direito aplica-se a factos e nem no seu PPA nem nas suas alegações o Requerente sustenta, nem prova, ter suportado e satisfeito os custos que alega no seu pedido. Tais factos são constitutivos (ou essenciais) do seu direito e têm de ser por si alegados (5.º, n.º1 do CPC), não sendo suscetíveis sequer de aperfeiçoamento, porque não se pode aperfeiçoar o que nem sequer existe (6.º, n.º 2 e 590.º, n.º 2, b) do CPC). Trata-se afinal de um pedido que não tem causa de pedir e é por isso inepto, havendo que absolver a AT da instância, nesta parte, nos termos combinados das normas dos artigos 29.º-1-e) do RJAT e dos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2-a), 578.º e 577.º-b) e 278.º-1-e) do CPC).

Já quanto ao pedido de substituição do ato sub judicio por outro, emanado de acordo com a lei, este Tribunal é incompetente, como resulta da norma do artigo 2.ª, n.º 1, alínea a), que restringe os seus poderes à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, estando-lhe vedada a intromissão nos poderes próprios da Administração Pública, no caso da AT. A incompetência é uma exceção dilatória, aplicando-se aqui, mutatis mutandis, a fundamentação legal referida no parágrafo anterior, importando, também aqui, a absolvição da AT da instância.

 

  1. Decisão

 

Pelos fundamentos invocados este Tribunal decide:

 

i.  Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRS impugnada que se declara inválida;

ii. Absolver a Requerida da instância dos pedidos de restituição dos montantes alegadamente pagos pelo Requerente, conexos com a liquidação adicional, acrescidos de juros indemnizatórios;

iii. Absolver a Requerida da instância do pedido de substituição do ato cuja anulação pede, por outro ato que reflita a obrigação de imposto constituída nos termos declarados pelo impugnante em 17/12/2021.

iv. Condenar a Requerida no pagamento das custas, nos termos que constam no capítulo próprio.

 

  1. Valor do processo

Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 11.200,49 €.

 

  1. Custas

O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerida, nos termos do artigo 527.º-1 do CPC.

 

Notifique-se.

Lisboa, 22 de março de 2023

O árbitro

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)

 



[1] Quando se referencia determinada página do PA, indica-se a numeração que consta no programa leitor do ficheiro.

[2] Nesta referenciação utilizaram-se os acrónimos “PPA”, para o Pedido de Pronúncia Arbitral; “R-AT” para a Resposta da AT; e “PA” para o processo administrativo.

[3] Vejam-se as extensas definições dos artigos 4.º-A até 4.º-H do Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio para se alcançar a dificuldade de equiparar todos aqueles conceitos, com aqueles que são usados nas codificações fiscais portuguesas.

[4] Vejam-se, entre outros o acórdão do STA de 24-10-2012, processo n.º 0548/12, [Fernanda Maçãs], acessível em www.dgsi.pt e o acórdão do STA, em plenário, de 15-10-2014, processo n.º 01374/13, [Francisco Rothes], acessível em www.dgsi.pt

[5] Veja-se Jorge Lopes de Sousa, Benjamim Silva Rodrigues, Diogo Leite de Campos - Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada. 4.ª Edição. Encontro da Escrita: 2012, anotação ao artigo 60.º.

[6] Neste sentido veja-se o recente acórdão do STA de 02-02-2022, processo 0208/04.0BEPRT , [José Gomes Correia], acessível em www.dgsi.pt ou com um âmbito mais lato da obrigação de fundamentação com apoio nas normas da UE, o também recente acórdão do STA 17-12-2019, processo n.º 01770/18.5BELSB, [Ana Paula Lobo], acessível em www.dgsi.pt

[7] Note-se que mais tarde, em 28-12-2021, quando a AT afirmou que “de acordo com os elementos disponibilizados por administrações fiscais de outros países, a AT teve conhecimento de que no ano de 2017 auferiu rendimentos no estrangeiro” (PA, p.5) e o Requerente em 21-12-2021 pediu para lhe serem facultados os referidos documentos, em 08-01-2022, a AT afirmou que “essa informação é interna, entre os serviços da Autoridade Tributária” (PA, p. 6), em desrespeito pela norma do artigo 59.º-2-g) da LGT.