Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 487/2022-T
Data da decisão: 2023-03-14  IRC  
Valor do pedido: € 285.647,07
Tema: IRC / IVA - Preços de Transferência – Cedência da Posição Contratual
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SUMÁRIO:

I -  De acordo com o n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC vigente à data dos factos (2018), Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

 

II – Nos termos do artigo 63.º n.º 4  do Código do IRC “Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre: a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;”

 

III – Compete à Fazenda Pública o ónus da prova da existência dessas relações especiais, bem como os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, devendo o acto ser anulado se tal prova não for feita. (Acórdão do STA, Proc. 766/11.2BEAVR, de 12.05.2021)

 

IV - A AT demonstrou que na cedência da posição contratual estiveram envolvidas entidades relacionadas, como a Requerente e pelo menos 3 dos seus accionistas, com capital social de 60%, o que constitui uma relação em que as partes envolvidas têm, por força da reunião da maioria do capital social, uma influência significativa;

 

V– A AT não fez prova de que os termos e condições contratados entre as partes envolvidas na cedência da posição contratual, no âmbito do contrato de locação financeira em causa nos presentes autos, não seriam substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados entre entidades independentes;

 

VI – Em sede de IVA, verificando-se a existência de relações especiais, na falta de indicação do valor da contraprestação, a aplicação do disposto nas disposições conjugadas do n.º 3, 4, alínea c) e 5 do artigo 16.º do Código do IVA, pressupunha a demonstração pela AT de que não existia serviço similar ao prestado pela Requerente.

 

VII – A AT não logrou provar a inexistência de serviço similar à cedência da posição contratual que lhe permitiria determinar o valor normal da operação nos termos da alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA e não de acordo com a alínea a) do n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral:

 

I – RELATÓRIO

 

A..., S.A., pessoa colectiva ..., com sede social na ..., ..., ..., ..., ...-... Pombal, vem apresentar pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante “RJAT), dos actos de liquidação de IRC – Ano 2018, com o número 2022... e respectiva liquidação de juros com o número 2022... e demonstração de acerto de contas, e IVA – do período 05/2018, com o número 2022..., e respectiva liquidação de juros, com o número 2022..., da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, “AT”), no montante global agregado de €285.647,11 (Duzentos e oitenta e cinco mil seiscentos e quarenta e sete Euros e onze cêntimos), com fundamento em ilegalidade.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo as signatárias, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 19-10-2022.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

A 12 de Janeiro de 2023 foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que foi produzida prova testemunhal e fixado prazo para as partes produzirem alegações escritas e sucessivas, em conformidade com o estatuído na respetiva Acta, que se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.

 

As Partes apresentaram alegações.

 

II. SANEADOR

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, nos termos do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e é competente.

 

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

Face ao disposto no artigo 104.º, n.º1 do CPPT é admitida a cumulação dos pedidos de anulação das liquidações identificadas referentes a IRC e IVA.

 

Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.DO MÉRITO

 

III-1-Matéria de facto

 

III-1-1- Factos provados

 

Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima, cujo objecto social é a «Prestação de serviços médicos – tratamentos de doenças renais», encontrando-se, à data dos factos, fiscalmente enquadrada, em sede de IVA, no regime de isenção e, em sede de IRC, no regime geral de tributação.

 

  1. A Requerente é uma entidade convencionada, no âmbito da convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise, através da unidade de diálise que detém e explora na ..., ..., ..., ..., ...-... Pombal.

 

  1. A actividade da Requerente está sujeita ao licenciamento e fiscalização da Entidade Reguladora da Saúde e da Administração Regional de Saúde do Centro e da verificação e satisfação dos requisitos exigidos em matéria de organização e funcionamento das unidades de saúde para os efeitos da atribuição e manutenção de licença de funcionamento.

 

  1. Por contrato de compra e venda, datado de vinte e três de julho de dois mil e três, a A... adquiriu, pelo preço de €164.603,31 o prédio urbano composto por parcela de terreno para construção, sito na ..., em ..., ..., ..., em Pombal, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal, sob o número ..., da freguesia de ..., com o fim de o destinar à instalação de uma unidade de prestação de cuidados de saúde na área da diálise.

 

  1. No dia 15 de Maio de 2006, a A... celebrou com o Banco I... uma operação de financiamento de sale and leaseback.

 

  1. Por contrato de compra e venda da mesma data, a Requerente vendeu ao I..., que comprou, pelo preço de €500.000,00, o mesmo imóvel que havia adquirido três anos antes, constituído pelo prédio urbano composto por parcela de terreno para construção, sito na ..., em ..., ..., ..., em Pombal, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal, sob o número..., da freguesia de ... .

 

  1. Acto simultâneo, a Requerente celebrou com o Banco I... um contrato de locação financeira imobiliária com o número ..., por via do qual este lhe disponibilizou o capital de €1.500.000,00, como financiamento para o desenvolvimento da sua actividade, que a primeira se obrigou a restituir em 180 rendas mensais, ao longo de 15 anos.

 

  1. Estipularam ainda as partes que, no caso do exercício do direito, não obrigatório e meramente potestativo, da opção de compra, o valor residual seria de 10% do valor do financiamento.

 

  1. Por contrato de 29 de Maio de 2018, a A... declarou, na qualidade de cedente, transmitir a sua posição no contrato de locação financeira imobiliária que havia celebrado com o Banco I... .

 

  1. À data da celebração do referido contrato encontravam-se em dívida rendas do valor de €490.554,48.

 

  1. No caso de cumprimento integral do contrato de locação financeira e do exercício do direito de opção de aquisição pelos locatários, estes teriam de pagar ao locador o valor residual de €150.000,00, acrescidos dos encargos legais ou fiscais que ao caso viessem a caber.

 

  • Naquela data o valor patrimonial tributário do imóvel era de aproximadamente €639.000,00.

 

  1. À data da cessão as rendas vincendas somadas ao valor residual eram do valor de €640.554,48.

 

  • Entre os anos de 2006 e 2018 o sujeito passivo utilizou o prédio objecto de locação no

âmbito da sua actividade e adquiriu os equipamentos necessários à adequação do espaço à actividade que ali exerce e à prestação dos cuidados de saúde na área da diálise.

 

o. A Requerente foi sujeita a uma acção de inspeção interna de âmbito parcial, em sede de IRC e IVA, aos exercícios de 2017 e 2018, que culminou em correções ao lucro tributável de IRC no montante total de €9.237,86 e de IVA no montante total de €276.409,25, extraindo-se do teor do relatório de inspeção o seguinte:

 

 

«I.4.1. Correções Meramente Aritméticas em sede IVA

Quadro 1 (Quadro 8)

Montante

1 Valor Tributável na cessão de posição contratual - Prestação de serviços 1.045.542,04 €

2 Taxa de IVA 23%

3 IVA em falta (1x2) 240.474,67 €

Cessão de Posição Contratual - Valor normal (n.º 4, 5 e 10 do art.º 16 do CIVA)

 

I.4.2. Correções Meramente Aritméticas à Matéria Tributável de IRC

Quadro 2 (Quadro 10)

Valor

Declarado

Correção

Valor

Corrigido

LUCRO TRIBUTÁVEL 778 375.013,41 € 37.994,01 € 413.007,42 €

Quadro 07 - Apuramento do Lucro Tributável»

 

  1. No contrato de cessão da posição contratual do contrato de locação financeira identificado nos autos, assinaram em representação da Requerente, como Cedente B... e C..., na qualidade de administradores;

 

  1. No contrato de cessão da posição contratual do contrato de locação financeira identificado nos autos, assinaram em nome dos Cessionários B..., C..., D..., E..., F..., G..., H..., todos accionistas da Requerente, representando o conjunto da totalidade do capital social da Requerente;

 

  1. À data da cessão da posição contratual da Requerente, B..., D..., C... detinham, à data da cessão da posição do contrato de locação financeira identificado nos autos, 60% do total do capital social da Requerente, correspondente a 20% cada um deles;

 

  1. À data da cessão da posição contratual da Requerente, eram, também, accionistas da Requerente, E..., F..., G..., H...;

 

  1. Pela cessão da sua posição contratual, a Requerente não recebeu qualquer contrapartida ou pagamento.

 

  1. A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição sobre o Projeto de Correções, o que veio a fazer em 2022-01-18, convolando-se em definitivas as correções inicialmente propostas.

 

  1. A Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral em 2022-08-10.

 

  1. Os actos de liquidação de IRC e IVA impugnados, cujo prazo para pagamento ocorreu, quanto ao IRC, em 12/05/2022 e quanto ao IVA em 16/05/2022, foram pagos pela Requerente.

 

III- 1-2- Factos Não Provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.

 

III- 1-3- Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [Cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental, o Processo Administrativo, juntos aos autos, bem como a prova testemunhal, consideram-se provados os factos referidos supra. A testemunha aparentou depor com isenção e com conhecimento dos factos que relatou.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

III-2- MATÉRIA DE DIREITO

 

III-2-1- Posição das Partes

 

Entende a Requerente que as correcções aritméticas efectuadas pela AT, em sede de IRC e IVA (2018), com base na existência de relações especiais entre a Requerente, na qualidade de Cedente e os seus accionistas, na qualidade de cessionários, no âmbito do contrato de cessão da posição contratual identificado nos autos, a título gratuito, são ilegais, conquanto não se verificam os pressupostos legais para a aplicação do princípio da plena concorrência.

 

Entende, também, a Requerente que não existem relações especiais entre a própria e os cessionários, na cessão da posição contratual, conquanto a AT não demonstrou como lhe competia a existência de relações especiais quanto a todos os accionistas.

 

Assim sendo, em síntese, a Requerente não concorda com a fundamentação que suporta a correção de IRC no âmbito da operação de cessão da posição contratual celebrada com os seus accionistas, porquanto considera que não existiam relações especiais em relação a todos os accionistas, nos termos dos requisitos previstos no artigo 63.º, n.º 4, )  do Código do IRC, conquanto alguns dos accionistas não intervieram em quaisquer actos de gestão, nem a AT indica a que actos em concreto se refere.

 

Sem prescindir, entende, ainda a Requerente que, em qualquer caso o RIT omite qualquer referência à prática de condições diferentes das que normalmente seriam acordadas entre entidades independentes. Omite qualquer análise comparativa entre as condições estabelecidas pela Requerente na operação vinculada com qualquer outra realizada com entidades independentes, de onde pudesse extrair a conclusão de que tais condições são diferentes e quais seriam as concretas condições acordadas entre entidades independentes em operações vinculadas. Também adoptou a AT o método errado do valor normal, como o valor das prestações já pagas no âmbito do contrato de financiamento celebrado entre a Requerente e uma entidade bancária, em 2006.

 

Mais defende a Requerente que a AT não evidencia no acto que fundamenta a liquidação de IRC (RIT) qual seria o valor de uma operação comparável à realizada pela Requerente, praticado entre entidades independentes, não tendo selecionado qualquer entidade independente nem comparado a operação vinculada com qualquer outra não vinculada, limitando-se a presumir que o valor da plena concorrência corresponde ao valor normal ou valor das prestações já pagas no âmbito do contrato de financiamento celebrado entre a Requerente e o Banco, em 2006.

 

 

Em contraposição, a AT, no âmbito do procedimento inspectivo, sustenta que a operação de cessão da posição contratual em causa constitui uma operação vinculada, conquanto os acionistas B... (Presidente do Conselho de Administração), D... (Vogal do Conselho de Administração) e C... (Vogal do Conselho de Administração), identificados nas linhas 5, 6 e 7 respectivamente, para além de cada um deles deter 20% do capital social, desempenharam funções no Conselho de Administração em 2018 (conforme Certidão Permanente do Registo na Conservatória –Anexo 1), subsumível ao disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 63.º do CIRC e na Cedência de Posição Contratual em análise intervieram como Cessionários B..., C..., D..., E..., F..., G..., H..., todos acionistas e representando em conjunto a totalidade do capital social do sujeito passivo (A... SA).

 

Considerando a existência da operação vinculada, a AT conclui que a cedência da posição contratual não se encontra adequadamente reflectida nas declarações fiscais da Requerente, sendo certo que em condições normais de mercado um contrato de cessão da posição contratual outorgado entre entidades independentes não seria acordado sem que fosse estabelecida a contraprestação para a operação.

 

Mais entende a AT encontrar-se demonstrada a análise comparativa pelo facto da cedência da posição contratual ter sido acordada a título gratuito, pois, em condições normais de mercado, um contrato de cedência da posição contratual outorgado entre entidades independentes não seria acordado sem que fosse estabelecida a contraprestação para a operação.

 

Relativamente ao valor das correcções realizadas, a AT defende ter adoptado o método mais apropriado à operação, tendo, por isso, considerado que “Por não haver operação similar à cessão da posição contratual em análise, o valor tributável da prestação em IVA é o seu valor nominal, não podendo este ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da referida prestação de serviço. Neste contexto, entendeu-se que, por não ter existido  operação similar, o valor deve ser o das rendas pagas desde 2006 até à data da cedência da posição contratual (€1.045.542,04), pois, sem esse custo não teria sido realizada a cedência da posição contratual.

 

Conclui, assim, a AT que a Cedência de Posição Contratual do Contrato de Locação Financeira Imobiliária - é uma operação vinculada, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º do CIRC e da alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, estando assim sujeito a observância do Princípio de Plena Concorrência.

 

Em face da constatação da existência de relações especiais, defende a AT que cabia ao sujeito passivo o ónus de reunir a prova que permita demonstrar que os termos e condições estabelecidos na transação se regem pelo princípio da plena concorrência, i.e., são em tudo idênticos aos que se verificariam num contexto de ausência de relações especiais, o que não logrou fazer.

 

Para além disso, a AT aplica como critério da determinação do valor normal a soma das prestações vencidas e pagas pelo cedente, sem considerar todos os elementos do contrato, ou seja, o custo do serviço para o cedente, tal como tem sido sancionado pela jurisprudência (Acórdão do TCAN, de 11.02.2021, proc. 00860/12.2BEAVR, Acórdão do CAAD, de 23.03.2020, proc. 458/2019-T, Acórdão Marinov C.142/12 do TJUE), o que constitui, também, uma desconformidade do artigo 16.º, n.º 4 do Código do IVA com o artigo 80.º da Directiva IVA.

 

A Requerente, por sua vez, argumenta que relativamente às correcções efectuadas em sede de IVA, na determinação do valor normal da prestação de serviços de cessão da posição contratual, a AT considera que não existe operação similar à operação realizada, o que não tem sustentação dada a frequência de operações tipo. Por isso, o acto de liquidação de IVA é ilegal visto que a determinação do valor normal da prestação por referência à soma das prestações vencidas e pagas ao cedente de serviços de cessão da posição contratual, parte do pressuposto não demonstrado de que não existe operação similar.

 

Com base no disposto na alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA, defende a AT que o valor normal da operação não pode ser inferior ao custo suportado pela Requerente, que corresponde a €1.045.542,04, um vez que não existe operação similar.

 

III-2-2- Thema decidendum

 

Em face do pedido e da fundamentação das Partes, entende-se que a questão central gira em torno da eventual ilegalidade dos actos de liquidação impugnados, face às regras de preços de transferência, da operação de cessão da posição contratual, a título gratuito, no âmbito de um contrato de leasing de imóvel.

 

Em suma, a Requerente invoca como causas de pedir:

  1. Ilegalidade por violação do artigo 63.º do Código do IRC;
  2. Ilegalidade por violação do artigo 80.º da Directiva IVA e n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA

 

III-2-3- Ilegalidade por violação do artigo 63.º do Código do IRC:

 

Dispõe o n.º 1 do art.º 63º. do Código do IRC, na redação vigente à data dos factos (2018) que “Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

 

O n.º 2 determina que  “O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.

 

O n.º 4 desse mesmo artigo determina o seguinte:

 

“Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respetivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respetivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto; 

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais;

g) Entidades cujo relacionamento jurídico possibilita, pelos seus termos e condições, que uma condicione as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional; 

h) Uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.

 

A regulamentação da determinação dos preços de transferência consta da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, vigente à data dos factos.

 

No que concerne ao ónus da prova:

 

Segundo o artigo 75.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT)

Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.

 

Por sua vez, quanto à fundamentação e eficácia, dispõe o n.º 3 do artigo 77.º da LGT o seguinte:

3 - Em caso de existência de operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, ou de operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo de imposto sobre o rendimento e qualquer outra entidade, sujeita ou não a imposto sobre o rendimento, com a qual aquele esteja em situação de relações especiais, e sempre que haja incumprimento de qualquer obrigação estatuída na lei para essa situação, a fundamentação da determinação da matéria tributável corrigida dos efeitos das relações especiais deve observar os seguintes requisitos:

a) Descrição das relações especiais;

b) Indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo;

c) Aplicação dos métodos previstos na lei, podendo a Direcção-Geral dos Impostos utilizar quaisquer elementos de que disponha e considerando-se o seu dever de fundamentação dos elementos de comparação adequadamente observado ainda que de tais elementos sejam expurgados os dados susceptíveis de identificar as entidades a quem dizem respeito;

 

No caso dos autos, o ónus de prova da existência de relações especiais cabe à Requerida, enquanto pressuposto da sua actuação quanto a fazer correcções de acordo com o regime dos preços de transferência, com vista aferir a legalidade das mesmas.

 

Quanto aos pressupostos do artigo 63.º do IRC em especial que se está perante condições especiais aplicáveis em operações comparáveis estabelecidas entre entidades independentes, o mesmo cabe ao SP, como decorre da exigência do dossier dos preços de transferência. No caso dos autos, apesar da situação não exigir a aplicação desse dossier, o ónus da prova não podia deixar de recair sobre o mesmo, até por ser ele que melhor conhece a operação realizada e os seus contornos financeiros. 

 

Não assiste assim, em termos gerais, razão ao SP quando alega que o ónus de prova recai todo sobre a Requerida. Acontece, porém, que, atendendo à posição do SP, enveredando a Requerida por fazer correções por aplicação do regime dos preços de transferência, passa a recair sobre si o ónus de prova dos pressupostos da sua actuação, demonstrando que a operação não observa aqueles pressupostos.

 

Como ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 194/2021-T, “As operações realizadas em situações  em que há relações especiais devem observar as condições de mercado, em situação de livre concorrência, devendo o contribuinte ou, se ele não o fizer, a Autoridade Tributária e Aduaneira, corrigirem matéria tributável, com aumento ou diminuição, em função da divergência entre os preços praticados e os preços praticados entre autoridades independentes ( artigos 77.º, n.º3, da LGT e 63.º do Código do IRC).”

 

Vejamos.

 

A apreciação das ilegalidades invocadas impõe que se analise:

 

  1. A existência de relações especiais entre as partes envolvidas;
  2. O afastamento do princípio da plena concorrência na operação realizada de cessão da posição contratual relativamente ao que ocorreria entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência.[1]

 

§1.º Quanto às relações especiais

 

Não obstante o artigo 63.º supra citado não defina o que deve entender-se por "relações especiais", a doutrina fiscal vem considerando que tais relações existem quando haja situações de dependência, nomeadamente no caso de relações entre uma sociedade e os sócios, entre empresas associadas ou entre sociedades com sócios comuns ou ainda entre empresas mães e filiadas.

 

É entendimento pacífico que o n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC constitui uma enumeração exemplificativa do que podem ser relações especiais. “Trata-se de uma enumeração meramente exemplificativa, pelo que a AT pode proceder a correcções necessárias para a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais em outras situações, não previamente tipificadas pelo legislador, cabendo-lhe demonstrar que uma entidade tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra (artigo 77.º, n.º 3 da LGT).[2]

 

Ficou demonstrado nos autos que a Requerente cedeu a sua posição contratual, no âmbito do contrato de locação financeira, a todos os seus accionistas, sendo certo que B... e C... intervieram, na qualidade de representantes da Requerente, como Cedentes, e como Cessionários intervieram, entre outros accionistas,  B..., D... e C..., cuja soma das referidas participações totaliza precisamente, para cada um dos referidos sócios, a participação de 20% no capital social da sociedade (17,14 %: 3= 5,713%; 5,713 % + 14,28 % = 19,993 %) com uma participação no capital social total de 60%. [3]

 

Em face desses factos demonstrados por documentos, entende-se que o facto da situação de relações em apreço não caber, nos exactos termos, nos exemplos previstos no artigo 63.º, n.º 4 do código do IRC em relação a todos os accionistas não prejudica que se verifiquem relações especiais entre as partes envolvidas. Na verdade, considerando a “ratio” da norma que é o de salvaguardar o princípio da plena concorrência, entende-se aquele princípio beliscado quando, como é o caso, entre a Requerente e um conjunto de accionistas com uma participação maioritária, que podem, em concreto, exercer em função das relações de participação social uma influência significativa nas decisões de gestão da Requerente, é celebrado o contrato de cessão da posição contratual devidamente identificado.[4] Acresce que, os  cessionários, no âmbito do contrato em análise, são todos os accionistas da Requerente, entidade cedente, os quais representam em conjunto a totalidade do capital social do sujeito passivo.

 

Por todo o referido, somos de concluir que no caso em apreço a cessão da posição contratual  pela Requerente aos seus accionistas é uma operação vinculada, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º do CIRC e da alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, estando assim sujeito à observância do Princípio de Plena Concorrência, já referido.

 

Sucede que, resulta da Lei e da Jurisprudência que cabia, também, à AT demonstrar em que termos decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias. Na verdade, o ónus da prova que recai sobre a AT compreende também os “termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, além de descrever e quantificar o montante efetivo que serviu de base à correção” – cf., por todos, Acórdão do STA n.º 145/14, de 11 de março de 2015.

 

Assim, encontra-se a AT obrigada a fundamentar os actos tributários emitidos com a referida base legal, de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 3 da LGT, acima transcrito.

 

§2.º Quanto ao cumprimento do princípio da plena concorrência

 

No caso concreto em análise, verifica-se que relativamente ao pressuposto da correcção com base nas regras dos preços de transferência, que consiste em demonstrar “os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias”, consta do RIT – fls.274- o seguinte:

 

 

 

Na Resposta apresentada nos autos, a AT defende que em condições normais de mercado, um contrato de cedência da posição contratual outorgado por entidades independentes não seria acordado sem que fosse estabelecida uma contraprestação para a operação.

 

Apreciada a argumentação desenvolvi, constata-se que a AT limitou-se a emitir um juízo conclusivo, sem base em nenhum facto ou exemplo comparativo, que em condições normais de mercado, um contrato de cedência da posição contratual outorgado entre entidades independentes não seria acordado sem que fosse estabelecida a contraprestação para a operação.

 

Assim, verifica-se que a AT não fez constar do RIT a fundamentação da correcção ao lucro tributável com base nas regras dos preços de transferência, no que respeita à prova do pressuposto legal respeitante aos “termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias”.

 

Na verdade, a fundamentação do RIT a este propósito assenta numa conclusão de violação do disposto do artigo 23.º do Código do IRC, no que concerne à dedutibilidade das menos-valias, que parte do pressuposto ou assunção de que, pelo facto da operação de cedência da posição contratual ter sido realizada sem contrapartida financeira, a mesma presume-se que não seria praticada entre entidades independentes.

 

Conforme resulta do Guia dos Preços de Transferência da OCDE 2022: “Tax Administration should not automatically assume that associated enterprises have sough to manipulate their profits. There may be a genuine difficulty in accurately determining a market price in the absence of market forces or when adopting a particular commercial strategy. Its important to bear in mind that the need to make adjustments to approximate arm´s length conditions arises irrespective of any contractual obligation undertaken by the parties to pay a particular price or any intention of the parties to minimize tax.(…) The consideration of transfer pricing should not be confused with the consideration of problems of tax fraud or tax avoidance, even though transfer pricing policies may be used for such purposes.”[5]

 

Não se verifica ou aplica, nesta sede, nenhuma presunção que possa justificar a correcção à matéria colectável da Requerente com base na singela conclusão de que em condições normais de mercado, a cedência da posição contratual não teria sido realizada a título gratuito.

 

Até porque não constitui a gratuitidade da operação prova ou presunção só por si da não verificação do princípio da plena concorrência, pois, como resulta da Lei e da jurisprudência, a análise comparativa entre entidades dependentes e independentes tem de assentar não só nos termos do negócio, como nas condições, não sendo o preço só por si fundamento da violação do princípio da plena concorrência. Na verdade, tem sido entendido que Compete à Fazenda Pública o ónus da prova da existência dessas relações especiais, bem como os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, devendo o acto ser anulado se tal prova não for feita - Acórdão do STA, Proc. 766/11.2BEAVR, de 12.05.2021.[6]

 

Também não pode ser aceite a dispensa da prova do pressuposto da comparabilidade da operação, com base na alegação da AT de que que não existiam operações comparáveis, no mercado, não só por tal ser incompreensível, dada a quantidade de operações do género que se realizam no mercado, como também por não existir qualquer razão válida que justifique a falta de comparação. Na verdade, só poderia haver justificação para a falta de comparabilidade de uma operação como a realizada nos autos num cenário em que as entidades associadas realizassem operações que as entidades independentes não efectuariam, ou operações que - atentos os termos e condições concretamente impostos por um específico regime jurídico aplicável apenas às sociedades associadas -, as entidades independentes estivessem impedidas de realizar.

 

Sendo o negócio celebrado - cessão da posição contratual, num contrato de locação financeira - uma operação correntemente realizada no mercado, entre entidades independentes e dependentes, não se vê fundamento para considerar que a operação não seria comparável com outras realizadas no mercado.

 

A Lei é muita clara ao impor a prova dos pressupostos da sua actuação à AT, não podendo tal prova assentar em conclusões ou deduções, não fundamentadas.

 

Cabia aqui à AT demonstrar que a cedência da posição contratual, numa situação parecida com a da Requerente, deveria ser onerosa, o que não fez.

 

Deste modo, omitindo a AT a “descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias”, o acto de liquidação de IRC impugnado é ilegal, devendo ser anulado - (Cfr. Acórdão do STA, proc. 20188, de 6.11.1996, Acordão do TCA Sul, proc. n.º 0278/04 de 04.10.2005, CAAD, Proc. 109/2015-T, de 22 de Setembro de 2015).

 

Assim, conclui-se que o acto tributário de IRC padece de vício de violação de Lei e, também, de fundamentação deficiente, legalmente equivalente a vício de falta de fundamentação, pelo que, não pode deixar de ser anulado.

 

Por todo o exposto, o pedido arbitral mostra-se, nesta parte, procedente.

 

 

III-2-4 - Ilegalidade por violação do artigo 80.º da Directiva IVA e n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA

 

Passemos agora à análise do enquadramento em termos de IVA da operação negocial de cessação da posição contratual do locatário no contrato de locação financeira imobiliária que foi realizada nos termos descritos no probatório.

 

Não vem questionada a qualificação para efeitos de IVA da operação de cessão da posição contratual do locatário em contrato de locação imobiliária como prestação de serviços, de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IVA, preceito que tem o seguinte conteúdo “Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade” e, de acordo com o n.º 1 do artigo. 4.º do mesmo CIVA, “São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens”. Como ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 458/2019-T, “(…) a cessão da posição contratual do locatário – que se analisa na transmissão do complexo de direitos e obrigações e das demais situações ativas e passivas, que decorrem para essa parte da relação contratual estabelecida com o locador, operando a sua substituição no contrato base, que passa a vigorar e a operar os seus efeitos entre a cedida e a cessionária (cfr arts. 424.º e seguintes do Código Civil) – não se reconduz a uma transmissão da propriedade de um bem corpóreo, que permanece na titularidade da entidade locadora, pelo que se subsume ao conceito residual de prestação de serviços para efeitos de IVA, em conformidade com os arts. 4.º, n.º 1, e 1.º, n.º 1, al. a) do CIVA”. No mesmo sentido, cfr., entre outros, Conceição Soares Fatela, “O IVA na cessão da posição contratual da locatária financeira”, in Cadernos de IVA 2015, pp. 166 ss.

 

A divergência entre as partes centra-se no valor a atribuir à cessão da posição contratual operada nos autos.

 

Comecemos pela análise da legislação aplicável.

 

Dispõe o n.º 1 do artigo 16.º do Código do IVA:

 
 

Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.”

 

Por sua vez determina-se na alínea c) do n.º 2, o seguinte:

Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é:

  1. Para as operações referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º, o valor normal do serviço, definido no n.º 4 do presente artigo;”

 

No n.º 4 prevê-se o seguinte: “Para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, entende-se por valor normal de um bem ou serviço:

a) O preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efectuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efectuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar;

b) Na falta de bem similar, o valor normal não pode ser inferior ao preço de aquisição do bem ou, na sua falta, ao preço de custo, reportados ao momento em que a transmissão de bens se realiza;

c) Na falta de serviço similar, o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.”

 

No n.º 10 do artigo 16.º, sobre relações especiais determina-se o seguinte:

O disposto no n.º 1 não tem aplicação nas transmissões de bens ou prestações de serviços efectuadas por sujeitos passivos que tenham relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, com os respectivos adquirentes ou destinatários, independentemente de estes serem ou não sujeitos passivos, caso em que o valor tributável é o valor normal determinado nos termos do n.º 4, quando se verifique qualquer uma das seguintes situações: 

a) A contraprestação seja inferior ao valor normal e o adquirente ou destinatário não tenha direito a deduzir integralmente o imposto;

b) A contraprestação seja inferior ao valor normal e o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços não tenha direito a deduzir integralmente o imposto e a operação esteja isenta ao abrigo do artigo 9.º;

c) A contraprestação seja superior ao valor normal e o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços não tenha direito a deduzir integralmente o IVA.”

 

Não obstante, segundo o n.º 11 “A derrogação prevista no número anterior não será aplicada sempre que seja feita prova de que a diferença entre a contraprestação e o valor normal não se deve à existência de uma relação especial entre o sujeito passivo e o adquirente dos bens ou serviços.”

 

Por sua vez, o artigo 80.º da Directiva IVA dispõe o seguinte:

 

1. A fim de evitar a fraude ou evasão fiscais, os Estados-Membros podem tomar medidas para que, relativamente às entregas de bens e prestações de serviços que envolvam laços familiares ou outros laços pessoais próximos, laços organizacionais, patrimoniais, associativos, financeiros ou jurídicos, definidos pelo Estado-Membro, o valor tributável seja o valor normal, nos seguintes casos:

a) Quando a contraprestação seja inferior ao valor normal e o destinatário da operação não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.º a 171.º e 173.º a 177.º ;

b) Quando a contraprestação seja inferior ao valor normal e o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.º a 171.º e dos artigos 173.º a 177.º e a operação esteja isenta ao abrigo dos artigos 132.º , 135.º , 136.º , 371.º , 375.º , 376.º , 377.º , 378.º , n.º 2, 379.º, n.º 2, ou dos artigos 380.º a 390.º -C;

c) Quando a contraprestação seja superior ao valor normal e o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços não tenha direito a deduzir totalmente o IVA ao abrigo dos artigos 167.o a 171.o e 173.o a 177.o .Para efeitos do primeiro parágrafo, os laços jurídicos podem abranger as relações estabelecidas entre um empregador e um empregado ou a família deste ou quaisquer outras pessoas com ele estreitamente relacionadas.

2. Quando exerçam a faculdade prevista no n.º 1, os Estados-Membros podem especificar as categorias de fornecedores, prestadores, adquirentes ou destinatários às quais são aplicáveis as medidas.

3. Os Estados-Membros devem informar o Comité do IVA das medidas nacionais adoptadas em aplicação do n.o 1, na medida em que não se trate de medidas que tenham sido autorizadas pelo Conselho antes de 13 de Agosto de 2006 nos termos dos n.º s 1 a 4 do artigo 27.º da Directiva 77/388/CEE e que continuem em vigor ao abrigo do n.º 1 do presente artigo.

 

Estando em causa uma prestação de serviços, a título gratuito, pode ler-se na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 458/2019-T, “44. Constituindo a operação de cessão da posição contratual em apreço uma prestação de serviços, nos termos do n.º 1 do art. 4.º do CIVA, sujeita e não isenta de IVA, o valor tributável é determinado pela contraprestação obtida ou a obter, caso exista, nos termos do n.º 1 do art. 16.º do CIVA (“Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”), ou se a operação for realizada a título gratuito, conforme previsto na al. b) do n.º 2 do art. 4.º do CIVA (“Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso: b) As prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma”), é apurado por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, que estabelece que: “Para as operações referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º, o valor normal do serviço, definido no n.º 4 do presente artigo”.

 

No caso em apreço, como se pode ler no RIT, a AT seguiu o seguinte raciocínio:

(..) - Entende-se por valor normal o preço que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço similar;

 - Não existe operação similar à cessão de posição contratual em análise;

 - Não existindo serviço similar, sendo o valor tributável da prestação de serviços em IVA o seu valor normal, não pode este ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da referida prestação serviço;

-Não havendo operação comparável, a única operação que pode servir de base consiste no Contrato de Locação Financeira Imobiliário, celebrado pelo sujeito passivo em 2006, no qual foi fixado o valor da contraprestação e cujo custo suportado pelo sujeito passivo até à data de cedência de posição contratual de locatário/cedente corresponde a €1.045.542,04, de acordo com a contabilidade do sujeito passivo. Ora, não tendo existido essa operação não existiria a prestação de serviços agora em análise;

- Assim sendo, o custo suportado pelo sujeito passivo para a realização em causa corresponde ao valor das rendas pagas;».

 

Alega por sua vez a Requerente, entre o mais, que o valor de mercado do imóvel corresponde ao custo somado das rendas vincendas e do valor residual, que os cessionários assumiram.

Para o SP o valor tributável fixado pela AT não corresponde ao valor normal, tal como o define o artigo 80 da DIVA e o n.º 4 do artigo 16.º do CIVA, incorrendo em interpretação deste preceito em desconformidade com o disposto no artigo 80.º da DIVA.

 

O SP conclui “Sem prescindir, sempre resulta comprovado que existe manifesto excesso de quantificação, porquanto o valor das prestações vincendas, enquanto encargo a suportar pelo cessionário para assumir a posição contratual do cedente, corresponde ao valor que qualquer destinatário, no estádio de comercialização em que é efectuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efectuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar.

E como tal ao valor normal do serviço prestado.

Pelo que também por estas razão sempre as liquidações seriam anuláveis por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.”

 

Na Decisão arbitral, proferida no processo n.º 458/2019-T, foi analisada questão semelhante, pelo que acompanharemos a jurisprudência aí fixada com as devidas adaptações por nos revermos na mesma.

 

Como se pode ler na Decisão Arbitral referida,

“(…) a operação de cessão da posição contratual de locatário sub judice, efetivada gratuitamente a favor da cessionária, por não envolver qualquer contrapartida nem se destinar a qualquer fim comercial ou de realização do objeto social da empresa, enquadra-se no disposto na al. b) do n.º 2 do art. 4.º do CIVA, segundo a qual são consideradas prestações de serviços a título oneroso as prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma, consubstanciando-se, assim, um caso do denominado autoconsumo externo de prestações de serviços, do que decorre, por força da citada al. c) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, que o valor tributável é “o valor normal do serviço”, definido no n.º 4 do mesmo art. 16.º do CIVA.”

 

 

Nestes termos, deixando de lado os segmentos normativos que apenas valem para a transmissão de bens (como sucede, desde logo, com a al. b) do referido n.º 4 do art. 16.º), o valor normal do serviço corresponde, em termos gerais, ao preço que um destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar ou então, em última análise, na falta de serviço similar, ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.

 

Sobre como funciona o ónus da prova no regime de preços de transferência em IVA “(…) o regime excepcional de tributação pelo valor normal apenas é aplicável quando se demonstre que (i) a contraprestação paga difere do valor normal e (ii) e o transmitente /prestador ou o adquirente /destinatário não têm direito integral à dedução, o que resulta na perda de receita fiscal” (Cfr.  Mariana Gouveia de Oliveira e Mário Silva Costa, “O IVA e os Preços de Transferência: Breves Notas sobre o Regime Português”, in Cadernos IVA 2014, pp.292 ss).

Os mesmos autores continuam “Ora, a tributação de acordo com o valor normal consubstancia, na sua essência, um regime de tributação pelos métodos indirectos, na medida em que o valor tributável não é determinado pela capacidade contributiva demonstrada pelo contribuinte, mas antes, de acordo com valores padrão.

“Assim sendo, nos termos do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, «[…] compete à administração tributária o ónus de prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao contribuinte o ónus de prova do excesso na respectiva quantificação».

 

Pois bem, atendendo à fundamentação seguida no RIT, dando-se como preenchido o pressuposto das relações especiais, importa indagar se a AT, ao concluir sem mais que o valor normal da prestação de serviços equivale à totalidade das prestações pagas pela Requerente, está a seguir um entendimento que se adequa ao que resulta do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA.  

 

Vejamos.

 

Como consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 458/2019-T,

53. Na verdade, o que a al. a) do n.º 4 do art. 16.º do CIVA, em que a AT enquadrou a cessão da posição contratual em causa, impõe considerar como “valor normal do serviço” é, como se viu, o preço que um destinatário, em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar.

“54. Ora, o “serviço” (para efeitos do IVA) aqui em jogo é a própria cessão da posição contratual de locatário, portanto a cedência da situação negocial complexa de que era titular o cedente no contrato de locação financeira imobiliária, cujo valor económico suscetível de ser encarado como um bem é a “síntese das vantagens e sacrifícios económicos que o contrato encerra” (MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, Coimbra, 1982, p. 397).

“55. Assim, o que assoma, em termos jurídico-económicos, na cessão da posição contratual em juízo não é a direta transmissão do imóvel, que permanece, como já se disse, na titularidade da entidade locadora, mas sim o complexo de direitos e obrigações associado à posição de locatário no contrato de locação financeira, no qual se destaca, é certo, o direito de adquirir o imóvel no termo do contrato pelo valor residual estabelecido, mas uma vez pagas as prestações convencionadas reportadas ao momento da transmissão da posição contratual e cumpridos os demais deveres contratuais fixados (como, aliás, o reconhece a AT, ao declarar em sede de decisão de indeferimento da reclamação – cfr. facto provado n.º X – que está em causa “um direito de natureza obrigacional e de conteúdo económico, que se traduz na transferência do direito de adquirir o imóvel, uma vez pagas as rendas”), o que implica, desde logo, ter em consideração, para a valoração exigida, fatores como o montante do capital em dívida à data da cessão.”

 

Aplicando o exposto ao caso em análise, afigura-se contraditória desde logo a fundamentação de que não existe serviço similar e não há operação comparável, para efeitos de IRC, pois, se a operação é única, não tem comparável e se não existe serviço similar não há como concluir que a Requerente praticou condições diferentes daquelas que seriam estabelecidas entre entidades independentes em operações não vinculadas comparáveis A fundamentação do acto de liquidação sub judice apresenta-se, assim, de forma contraditória, quando comparados os pressupostos de facto alegados para a liquidação de IRC e de IVA.

 

Por outro lado, a AT, por estar em causa uma cessão a título gratuito, limita-se a dar como adquirido que não existe serviço similar, sem o demonstrar, concluindo que o valor normal deve corresponder a um valor não inferior ao custo suportado pela Requerente na execução da prestação de serviços, ou seja, à soma das prestações vencidas e pagas pelo cedente.

 

A Requerida não dá desta forma cumprimento ao ónus de prova que sobre si impendia, recorrendo a um valor normal do serviço cujo critério conclusivo não se adequa ao que resulta do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA.

 

Na verdade,  como ficou dito, o “valor normal do serviço” tido como o preço que um destinatário, em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar, relativamente a uma operação de cessão da posição contratual como a realizada nos termos descritos no probatório, não pode equivaler, sem mais, ao valor das rendas vincendas ou prestações vencidas com base na mera consideração de que não existe serviço similar.

 

Conquanto, de acordo com o disposto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IVA, quando os sujeitos passivos tenham relações especiais, a contraprestação seja inferior ao valor normal, e os transmitentes ou adquirentes não tenham direito à dedução integral do IVA, aplica-se o disposto no n.º 4 do artigo 16.º do código do IVA, segundo o qual:

Para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, entende-se por valor normal de um bem ou serviço:

  1. O preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efectuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efectuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar;”

 

Só, na falta de serviço similar, pode o valor normal ser determinado, de acordo com a alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA, que determina que o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.

 

Como resulta do disposto na alínea a) e c) do n.º 4 do artigo 16.º do Código do IVA, a determinação do valor normal por referência ao custo suportado pelo sujeito passivo, como é proposto no presente caso pela AT, só teria enquadramento legal, caso fosse demonstrado pela AT que não existia serviço similar, à cessão de posição contratual sindicada, o que não se verificou, em concreto.

 

Uma vez que o Tribunal, na formulação do juízo de legalidade dos actos sindicados tem que atender, sem mais, aos termos como eles ocorreram, apreciando essa legalidade em função da respectiva fundamentação contextual, procede, pois, neste âmbito, o erro na determinação do valor tributável em IVA da operação em juízo de cessão da posição contratual da Requerente no contrato de locação financeira, o que implica que as liquidações impugnadas, padecem de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por aplicação indevida do artigo 16.º, n.º 4, do Código do IVA.

 

Termos em que se conclui pela respectiva anulação.

 

 

III-2-5 - Questões de conhecimento prejudicado 

 

O Tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões, abstendo-se de se pronunciar sobre as que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT). Contudo as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

 

Em face da solução dada, que garante tutela eficaz à Requerente, fica prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão incluída no pedido de pronúncia arbitral.

 

III-2-6 - Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC e de IVA, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

IV – Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e anular o acto tributário de liquidação de IRC n.º 2022..., referente ao período de tributação de 2018, e respectiva liquidação de juros e demonstração de acerto de contas;
  2. Julgar procedente o pedido arbitral de anulação do acto tributário de liquidação de IVA n.º 2022..., referente a 05/2018 e respectiva liquidação de juros;
  3. Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, a título de IRC e de IVA, acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

 

V. Valor da causa

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €285.647,07.

 

 

VI. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.202,00, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 14 de Março de 2023

 

 

 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

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Fernanda Maças (Árbitro Presidente)

 

 

 

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Magda Feliciano

(Árbitra Adjunta e Relatora)

 

 

 

 

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Ana Paula Rocha

(Árbitra Adjunta)

 

 

 

 

 

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990)



[1] Cfr. Acórdão do TCA Sul, Proc. 332/18.1BEFUN, de 11.11.2021:

1. O art.º 75/1 da LGT estabelece uma presunção de veracidade das declarações apresentadas pelos contribuintes à AT, bem como dos dados constantes da sua contabilidade e escrita;

2. Cessa tal presunção de veracidade e inverte-se o ónus da prova dos factos objecto da contabilidade e escrita, caso a AT recolha indícios fundados de que a declaração, contabilidade e escrita não reflectem ou impeçam o apuramento da matéria tributável real do sujeito passivo.

3. A AT pode desconsiderar os efeitos tributários de contratos que justificam lançamentos contabilísticos, se recolher indícios bastantes de que o seu conteúdo declarativo não tem aderência á realidade, nem tem subjacente qualquer substância económica, unicamente visando a obtenção ilícita de vantagens fiscais.

4. Sendo assim transversalmente entre entidades independentes ou relacionadas, tratando-se de entidades relacionadas, a AT pode ainda corrigir os efeitos tributários dos contratos ao abrigo do regime de preços de transferência, instituído no art.º 63.º do Código do IRC.

5Para tanto, a AT terá de demonstrar dois requisitos: (i) a existência de relações especiais entre as duas entidades e (ii) que se está perante condições especiais não aplicáveis em operações comparáveis estabelecidas entre entidades independentes.

6. Não tendo a AT, por um lado, recolhido indícios fundados de que o conteúdo declarativo de determinado contrato constante da contabilidade do contribuinte não tem aderência à realidade nem tem subjacente qualquer materialidade, nem, por outro lado, tendo demonstrado os pressupostos de que depende a correcção dos efeitos tributários dos contratos ao abrigo do regime dos preços de transferência, tem de se considerar verdadeiro, bem que presuntivamente, o conteúdo declarativo do designado “contrato comercial”, nomeadamente, quanto à natureza e substância das operações e respectivo preço.

7. Como assim, nenhuma prova se impõe ao contribuinte fazer quanto à substância económica do negócio, ou de que o preço indicado no designado “contrato comercial” se trata de um preço de plena concorrência.

[2] Código do IRC, Anotado e Comentado, pág. 536, Rui Marques, Almedina 2019.

[3] Cfr. CAAD, proc. n.º 275/2014-T CAAD, de 5.12.2014: “Como se pode verificar, nos termos deste artigo, está manifestamente preenchido o requisito da existência de relações especiais entre a sociedade e os seus sócios, sendo que o facto de estes não estarem sujeitos a IRC não exclui a aplicação desta disposição.”

[4] As participações por parte de uma entidade noutra podem ser categorizadas em “controlo”, “controlo conjunto”, “influência significativa” e “participação simples”. A NCRF 14 – Concentrações de Atividades Empresariais (§§9) define “controlo” como “o poder de gerir as políticas financeiras e operacionais de uma entidade ou de uma atividade económica a fim de obter benefícios da mesma”, o que se materializa ao adquirir mais de metade dos direitos de voto da outra entidade ou se no processo de concentração tiver obtido “a) poder sobre mais de metade dos direitos de voto da outra entidade em virtude de um acordo com outros investidores ou b) poder para gerir as políticas financeiras e operacionais da outra entidade segundo uma cláusula estatutária ou um acordo ou c) poder para nomear ou demitir a maioria dos membros do órgão de gestão da outra entidade ou d) poder de agrupar a maioria dos votos nas reuniões do órgão de gestão da outra entidade.

[5] OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022

[6] Vide também Acórdão do STA, Proc. n.º 01209/11.7BELRS, de 10.11.2021, Acórdão do TCA Sul, Proc. n.º 1882/14.4BESNT, de 16.12.2020.