Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 397/2022-T
Data da decisão: 2023-02-23  IVA  
Valor do pedido: € 3.710.246,05
Tema: IVA - IVA na Atividade de locação financeira desenvolvida por banco (artigo 23.º do CIVA e Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2008).
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SUMÁRIO:

1. O artigo 17°, n° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

2. Cabe ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos de locação financeira.

3. As tarefas típicas, previstas na lei, de gestão do contrato de locação financeira (como a celebração de contratos, a faturação ou a comprovação da existência de seguros), constitui utilização dos bens ou serviços (mistos) determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos de locação financeira, que obtêm enquadramento na atividade exercida pelo banco e que não confere direito à dedução de IVA, por se tratar de atividade isenta.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Signatários Juiz José Poças Falcão (Presidente), Dr. António Alberto Franco (Vogal), e Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso (Vogal e relatora) foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, o qual foi constituído em 6 de setembro de 2022.

 

  1. Relatório

   

1. A..., S.A., sociedade comercial com sede em ... n.º ..., ...‑... Lisboa, titular do NIPC ... (doravante, Requerente), apresentou no dia 30  de junho de 2022 pedido de pronúncia arbitral (PPA), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto‑Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida).

O presente PPA tem por objeto a apreciação da legalidade (i) da autoliquidação de IVA com o n.º... (referente a dezembro de 2019), submetida a 10 de fevereiro de 2020, e (ii) da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa (que seguiu termos na Divisão de Justiça tributária, UGC-Unid. Grandes Contribuintes com o nº de proc. ...2021...) apresentada contra a referida autoliquidação de IVA (doravante, Ato Impugnado);

 

A Requerente pede ao Tribunal a procedência do PPA e consequentemente que o Tribunal: (a) “Determine a anulação dos referidos atos tributário e decisório, nos termos do artigo 163.º do CPA; e; (b) “Na medida da procedência dos pedidos anteriores, condene a entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios e das custas do processo, tudo com as demais consequências legais”.

 

Sumariamente, com base numa extensa jurisprudência que aplica, a Requerente defende no PPA a ilegalidade do Oficio Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA (doravante, OC 2009), na medida em que “sob a autoproclamada intenção de divulgar a correta interpretação a conferir ao artigo 23.º do CIVA, determina a aplicação imperativa do método da afetação real, assente num «coeficiente de imputação específico», às instituições de crédito que desenvolvam a atividade de locação financeira”.

Entende a Requerente que de acordo com o OC 2009, as instituições financeiras que exerçam atividade de locação financeira e de aluguer de longa duração devem adotar no apuramento do IVA a deduzir uma das seguintes metodologias: (i) Método da afetação real («com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens ou serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades»); ou (ii) Método da afetação real com base num «coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA». Ao invés, entende a Requerente ser-lhe aplicável o método do pro rata previsto no artigo 23.º n.º 4 do CIVA.

 

Para defender a sua posição, a Requerente argumenta,

- que “na situação sub judice tendo presente que o IVA incide sobre a totalidade das rendas obtidas pela Requerente decorrentes dos contratos de locação financeira por si celebrados, o critério preconizado pela Autoridade Tributária, na medida em que impede a dedução do imposto na proporção das receitas provenientes dessas rendas, sem que se demonstre a inadequação da utilização do método do pro rata, não se coaduna com a neutralidade fiscal. De facto, a Requerente terá de entregar ao Estado o IVA liquidado sobre a totalidade das rendas, mas não poderá deduzir o imposto que suportou com os inputs relacionados com essa atividade, ainda que apurado numa base proporcional, uma vez que tal proporção, nos moldes em que a Autoridade Tributária a entende, apenas deverá ter em conta a componente dos juros daquelas rendas (e já não a componente de amortização financeira)”;

- a inconstitucionalidade do artigo 23.º n.º 2 e 3, do CIVA, na aceção do OC 2009, por preterição dos artigos 103.º n.º 2, 112.º n.º 5 e 165.º n.º 1 al. i da Constituição (CRP); “sendo as regras sobre o direito à dedução regras de incidência objetiva, na medida em que determinam a matéria coletável em sede de IVA, o artigo 23.º, n.º 2, parte final, e 3, do CIVA, ao permitir que tais regras sejam determinadas pelo Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2008, bule necessariamente com os referidos preceitos constitucionais”;

- a ausência de demonstração pela AT, em cumprimento das regras do ónus da prova previstas no artigo 74.º da LGT, (i) de distorções significativas da tributação suscetíveis de justificar a aplicação do método previsto no artigo 23.º n.º 2 e 3 do CIVA, i.e., o método da afetação real na aceção do OC 2009; e (ii) de que o método alternativo elegido, o método da afetação real na aceção do OC 2009, é mais adequado a suprir estas distorções; entende a Requerente que a faculdade conferida à AT através do artigo 23.º n.º 2 e 3 do CIVA, não pode ser exercida de modo generalizado através de Ofício-Circulado, impondo-se que seja exercida de forma casuística, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade;

- que para efeitos de apuramento da percentagem de dedução no âmbito do método do pro rata, deve também ser tida em consideração a componente de capital das rendas nos contratos de locação financeira, conforme artigo 23.º n.º 4 do CIVA. Os contratos de locação financeira subsumíveis no conceito de prestação de serviços, tal como definido no artigo 4.º do CIVA, estão sujeitos a IVA, nos termos da alínea a) do artigo 1.º do CIVA. De acordo com o artigo 16.º n.º 1 al. h), e 2, do CIVA, o valor tributável em sede de IVA corresponde ao montante da renda (recebida ou a receber do locatário), a qual é composta por capital, juros e comissões. Sendo o IVA liquidado sobre a renda integralmente considerada, “não se descortinam motivos que justifiquem que se ficcione a separação da mesma em capital e juros para efeitos de exercício do direito à dedução.” Uma vez que o IVA não tributa os proveitos das operações económicas, e o legislador não prevê que só o juro releva para efeitos de cálculo do pro rata, “não compete ao intérprete abalar a natureza unitária da contraprestação mediante o expurgo do capital (i.e., da amortização financeira). Tal distorceria manifestamente o sistema do direito à dedução em sede de IVA”. Assim, “configurando o preço pago pelo locatário — aglutinador do capital e dos juros da operação de locação — uma contraprestação unitária para efeitos de IVA, a inclusão integral das rendas no cálculo do pro rata configura o único entendimento suscetível de não causar distorções no sistema do direito à dedução”;

- por fim, que a disponibilização e utilização dos seus recursos indiferenciados (i.e. consumos de eletricidade, água, papel, material informático [hardware e software], telecomunicações e etc.) foi sobretudo determinada no ano de 2019, no âmbito de atividade de locação financeira, pelas tarefas inerentes à disponibilização e utilização dos bens locados (ao invés de às tarefas inerentes ao financiamento propriamente dito). Defende a Requerente que a exclusão da componente do capital das rendas pressupõe a demonstração de que não se verifica uma ligação relevante entre o consumo de recursos indiferenciados e as operações associadas à disponibilização e utilização dos bens locados. No caso concreto, defende a Requerente que se verifica uma “nítida ligação funcional/causal [e preponderância] entre os recursos indiferenciados e as operações atinentes à disponibilização e utilização dos bens locados no âmbito da atividade de locação financeira” (sustentando a Requerente                                 (i) não ser necessária uma prova cabal da relação causal entre os recursos indiferenciados e as operações subjacentes à utilização dos bens locados, e (ii) não ser essencial que os custos se repercutam diretamente na contraprestação suportada pelo locatário subjacente ao capital das rendas suportadas, bastando que se verifique uma “relação funcional presumível entre aqueles e as despesas gerais que contribuíram para a atividade económica do sujeito passivo”).

 

2. O pedido de pronúncia arbitral (PPA) foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 1 de julho de 2022 e foi automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 18 de agosto de 2022, ao abrigo do disposto no artigo 6.º n.º 2 alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os Signatários como Árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo os Signatários comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Ainda em 18 de agosto de 2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 6 de setembro de 2022.

 

6. Em 12 de setembro de 2022, o Tribunal proferiu despacho nos termos do disposto no artigo 17.º n.ºs 1 e 2 do RJAT a ordenar a notificação do dirigente máximo da Administração Tributária para apresentar Resposta (no prazo de 30 dias) e, caso queira, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando que deve ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do mesmo prazo.

 

7. Em 17 de setembro de 2022, a Requerida veio aos autos apresentar Resposta e juntar aos autos o processo administrativo. Na sua resposta, em síntese, a Requerida veio com base numa extensa jurisprudência que aplica, alegar que:

- “o apuramento da percentagem de dedução “específica” definitiva para o ano de 2018 foi efetuado, pela Requerente, corretamente, em concordância com o OC 2009;

- “o facto do valor integral da renda, pago pelo locatário ao locador, constituir o valor tributável sobre o qual incidirá IVA tal não significa que a parte integrante da renda, correspondente à amortização financeira ou do capital tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos. Desde logo, porque a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia "emprestada" e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador”. “Todas os gastos, incluindo os comuns, que a Requerente discrimina ao longo da sua p.i., são suportados pelos clientes locatários, seja por via contratual, comissões ou por via da componente de renda ligada aos encargos e à taxa de risco. As rendas são influenciadas pelos gastos gerais, isto é, estes gastos gerais inerentes à carga administrativa da locação financeira encontram-se reflectidos nas próprias rendas, sobre que o Banco faz incidir o respectivo IVA e que cobram junto do cliente locatário”. “no momento da aquisição desse mesmo input, a Requerente (locadora) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação directa. Assim, a parte da amortização financeira incluída na renda não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, uma vez que aquela mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem”. Conclui, “à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo”. “Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição. Tal redundaria em deduções acrescidas, por parte da ora Requerente, relativamente à generalidade dos inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado, face à realidade das operações tributáveis”;

- “o procedimento, adoptado pelos serviços da Requerida, cumpre as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23.º CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA. Aquela instrução administrativa veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (actual AT) que visou "(...) divulgar a correcta interpretação a dar ao artigo 23º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (...)", procurando afastar algumas dificuldades interpretativas suscitadas pela redacção do artigo 23° do CIVA, harmonizando-o com a doutrina e jurisprudência comunitárias”; “o método adoptado pela inspeção tributária é o único que se mostra adequado para efeitos do exercício do direito à dedução, permitindo, com as especificidades constantes do Oficio - Circulado n.º 30.108 afastar as distorções na tributação, que de outra forma seriam manifestas, conforme amplamente se demonstrou e se encontra referido na norma em causa”; “A aplicação da lei teria de resultar, necessariamente, na aplicação dos princípios orientadores constantes do Oficio-Circulado n.º 30.108. Acresce que, o facto de, no mesmo Ofício - Circulado se explicar o método a utilizar, além de contribuir para promover a segurança jurídica, permite ainda, a realização efetiva das finalidades do direito à dedução, sendo a única que se mostra compatível com o princípio basilar nesta matéria, e em todo o sistema do IVA: o princípio da neutralidade e da justiça fiscal em relação a todos os sujeitos passivos”;

- “a Requerente procedeu à auto-liquidação, aplicando para o efeito o que constava no Ofício-circulado n.º 30.108, para depois reclamar graciosamente aquele método de imputação específica, sem no entanto apresentar quaisquer provas de que, como afirma, os actos de disponibilização de veículos assumem uma preponderância nos gastos que são comuns à actividade sujeita a IVA e à actividade isenta face aos gastos incorridos com actos de gestão e de financiamento do contrato” “Aliás, a própria Requerente confessa ao longo da sua p.i. que não é possível determinar, com objetividade, o grau de utilização dos recursos em cada uma das referidas atividades. Isto é, nem a Requerente consegue indicar uma solução que lhe permita perceber qual das actividades, dentro da locação financeira, consome mais recursos mistos”, sendo que é à Requerente (e não à AT) que compete tal ónus de prova;

- Mais defende a Requerida que a emissão do OC 2009 respeita todas as normas legais e constitucionais, designadamente o princípio da reserva de lei. A Requerida entende que “Atenta a redacção daquele 23.º, n.º 2 do CIVA, infere-se que o legislador quis conferir, e conferiu, poderes à AT para impor condições especiais num método de apuramento de pro rata geral”, enquadrando-se num “poder/dever de colaboração que sobre a AT não poderia deixar de recair, revelando publicamente a interpretação que faz das normas tributárias, o que, perante a complexidade da legislação tributária é, não só razoável, como desejável, contribuindo para a uniformização de procedimentos e aplicação uniforme da lei”;

- Entende a Requerida que a Requerente não trouxe para os autos elementos que lhe permitam: “demonstrar e quantificar através de elementos fidedignos que corroborassem que os inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão”. Mais defende que “os atos que consomem recursos (custos comuns) durante a vigência do contrato são puros atos de gestão da locação financeira e de sobrevivência do financiamento concedido ao locatário”, não estando os mesmos relacionados com atos de disponibilização do veículo. O “acto de disponibilização de veículos a que o STA se refere respeita à fase de pré-venda, à fase de escolha e de encomenda do veículo, em período prévio à cedência do respectivo gozo temporário do veículo contratado, ou melhor dizendo, prévia ao início puro e duro do contrato de locação financeira, em que o veículo é colocado à disposição do cliente e este inicia o pagamento mensal das prestações.”;

- Conclui a Requerida “Impugnam-se todos os artigos da p.i. que estejam em oposição com a presente defesa, porquanto não corresponde à realidade que os actos de disponibilização de veículos absorvam uma carga administrativa predominante no âmbito dos contratos de locação financeira face aos actos de gestão e de financiamento, que, ao fim ao cabo, conforme jurisprudência firmada pelo STA, é a verdadeira questão que tem obrigatoriamente que tem de ser discutida e provada pela Requerente. Para além de que parte desses custos mistos estarem reflectidos nas próprias comissões, que consubstanciam o preço a pagar pelos utentes do crédito de leasing para pagamento de prestação de serviços pelo BBVA, esses custos estão igualmente estimados nos custos gerais que e encargos que compõem o valor da renda, a que acresce o capital, o risco e os juros pelo empréstimo”. Mais pugna a Requerida pelo indeferimento da prova testemunhal, por entender que não é o meio de prova adequado para a Requerente demonstrar que os atos de disponibilização de veículos absorvem uma carga administrativa predominante no âmbito dos contratos de locação financeira, face aos atos de gestão e de financiamento, o que só pode ser demonstrado mediante a apresentação de prova documental dos custos suportados;

 

8. Em 21 de outubro de 2022, o Tribunal proferiu despacho ordenando a notificação da Requerente para, no prazo de 5 dias, indicar por referência aos articulados quais os factos concretos de entre os alegados, que pretende provar, ou contraprovar, através de prova testemunhal. A notificação foi efetuada em 24 de outubro de 2022;

 

9. Em 31 de outubro de 2022, a Requerente veio reiterar o interesse para os autos da inquirição da sua testemunha, e veio também informar a mesma iria responder relativamente aos factos alegados nos artigos 10.º a 51.º do PPA;

 

10. Em 7 de novembro de 2022, foi proferido despacho a agendar para o dia 30-11-2022, com início pelas 10:30, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente na PI. A Requerente e a Requerida foram notificadas, e aceitaram, a data designada para a realização da diligência;

 

11. Na data e hora designada, com o acordo da Requerente e da Requerida, foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT pelos meios de comunicação à distância disponibilizados pelo CAAD, via CISCO WEBEX MEETINGS. Após prestar juramento, a testemunha arrolada foi inquirida pelos Senhores Mandatários (conforme Ata e gravação, ambas registadas no sistema de gestão processual do CAAD) e, seguidamente, o Tribunal                       (i) notificou a Requerente e a Requerida para apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 15 dias; (ii) em cumprimento do disposto no artigo 18.º n.º 2.º do RJAT, designou o dia 28-02-2023 para o efeito de prolação da decisão arbitral; (iii) solicitou às partes o envio das peças processuais em formato Word; e (iv) advertiu a Requerente que até à data da prolação da decisão arbitral deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD;

 

12. Em 16 de dezembro de 2022, a Requerente e a Requerida apresentaram (em simultâneo) alegações escritas, e em 3 de janeiro de 2023 a Requerente juntou aos autos o documento comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente.

    

  1. Saneamento

    

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram‑se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portarias n.º 112‑A/2011 de 22 de Março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

    

  1. Matéria de Facto

III.1    Factos Provados

  1. A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a atividade comercial prevista no artigo 4.º n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92 de 31 de dezembro;
  2. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis a norma de isenção plasmada no artigo 9.º n.º 27, do CIVA — como as operações de financiamento e de concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos —, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado;
  3. A Requerente realiza ainda operações que conferem o direito à dedução deste imposto nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos;
  4. Com efeito, em sede de IVA, a Requerente assume a natureza de sujeito passivo misto ao realizar, simultaneamente, operações que conferem o direito à dedução e operações que não conferem tal direito;
  5. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, do CIVA;
  6. Tal sucedeu, desde logo, quanto à aquisição dos bens — como viaturas — objeto dos contratos de locação financeira, relativamente à qual foi deduzido, na íntegra, o IVA suportado, dado estar diretamente ligada a operações tributadas realizadas a jusante pela Requerente — a locação financeira —, as quais conferem o direito à dedução do imposto;
  7. Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas e, simultaneamente, logrou determinar critérios objetivos do nível de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real estabelecido no artigo 23.º, n.º 2, primeira parte, do CIVA;
  8. Com vista a determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetos indistintamente às diversas operações por si realizadas (i.e., aos recursos indiferenciados, como os consumos de eletricidade, água, papel, material informático [hardware e software], telecomunicações, etc.), a Requerente aplicou o método de dedução plasmado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área da Gestão Tributária do IVA;
  9.  No conjunto das operações que conferem o direito à dedução do IVA, integram-se os contratos de locação financeira, nos quais a Requerente figura como locadora e, nessa qualidade, adquire os bens a locar, sendo os mesmos posteriormente entregues aos respetivos proprietários para seu uso e fruição;
  10. A estrutura atual da área de leasing da Requerente está dividida em 4 núcleos              (cfr. Doc. 4 junto com o PPA):

10.1) Contratação de Leasing Mobiliário: Contratação e formalização de Operações de Locação Mobiliária; Gestão Operacional de processos de leasing de bens móveis em construção/ montagem (Pré-financiamento); e Operações de Cessão de Posição Contratual;

10.2) Contratação Leasing Imobiliário: Contratação e Formalização de Operações Locação Imobiliária; Gestão operacional de processos de leasing de Imóveis em Construção (Pré-Contratos); e Operações de Cessão de Posição Contratual;

10.3) Fluxos e Ativações Financeiras: Ativação de Contratos, conferência e pagamento de faturas de fornecedores de Locação Financeira; Preparação, tratamento e recebimento dos fluxos de Locação Financeira; Gestão Financeira de Operações de Locação à Construção/ Montagem e acompanhamento de plafonds Obras/Construção;

10.4) Especializado Pós-Venda: Operações sobre Contratos: Rescisões Totais/ parciais, Alterações Financeiras aos Contratos de Locação Financeira Mobiliária e Imobiliária; Atividades relacionadas com a Gestão de Bens, Móveis e Imóveis Locados. Tratamento de Impostos sobre o Património, Alterações aos Imóveis; e Escrituras de Opção de Compra. Retoma e Venda de bens;

  1. É através dos núcleos 10.1) e 10.2) (núcleos especializados de emissão de contratação) que as operações entram uma vez decididas pela estrutura comercial. São estas áreas que irão tramitar todo o processo, até a Requerente estar em condições ou de pagar o bem ao fornecedor, depois de ter recebido a fatura (leasing mobiliário), ou de celebrar o contrato de compra e venda e o contrato de locação financeira (leasing imobiliário); uma vez entregue o bem ao cliente, passa para o núcleo 10.3), que trata de toda a parte contabilística de locação financeira, designadamente a cobrança ao cliente; o núcleo 10.4) trata de qualquer alteração ao contrato de locação financeira, ou questões relacionadas com a propriedade do bem como o pagamento de impostos, multas, ou recuperação de crédito;
  2. No ano de 2019, a Requerente tinha 17 colaboradores (a nível nacional) afetos ao núcleo de locação financeira (mobiliária e imobiliária) na sua globalidade;
  3. Em 2019 a Requerente dispunha de 387 balcões (com um conhecimento mínimo do contrato de locação financeira), podendo o cliente dirigir-se a qualquer balcão do seu segmento com vista a dar início ao contrato de locação financeira; seguidamente é feita a decisão comercial; o processo é aprovado e normalmente quando chega ao núcleo 10.1) chega com os dados do cliente e uma fatura pro forma do bem; esta informação é inserida na aplicação de negócios e com base na mesma serão emitidas as peças contratuais; seguidamente as peças contratuais são remetidas à estrutura comercial, e em simultâneo é remitida carta ao fornecedor a informar aprovação da operação e instruindo que seja tratada a encomenda, e quando o processo documental estiver pronto a Requerente entra em contacto com o fornecedor para dar ordem: (i) para emitir a fatura, (ii) para registar o bem (tratando-se de um veículo automóvel) junto da conservatória, e (iii) para entregar o bem ao locatário, mediante assinatura (pelo locatário) do auto de receção (o auto de receção é devolvido pelo fornecedor ao Banco como prova de que o bem escolhido pelo cliente está na posse do mesmo);
  4. Uma vez recebido o auto de receção (que comprova o recebimento do bem escolhido pelo cliente) a Requerente dá início à fase seguinte: registo da fatura, pagamento do bem, e iniciar o cash flow do próprio contrato (emitir faturas, debitar/faturar rendas);
  5. Os procedimentos inerentes às Ações e aos Pedidos de Servicing para contratos de Leasing destina-se às seguintes Estruturas: (i) Estruturas Comerciais; (ii) Departamento de desenvolvimento e Marketing de Empresas (Dinamização); (iii) Departamento de Meios Operacionais — Crédito — Leasing e Factoring; (iv) Departamento Comercial Sul e Departamento Comercial Norte (Mesas de Crédito); e  (v) Departamento de Crédito; e abrange a tipologia dos serviços descritos no Documento junto aos autos como Doc. 6, o qual se considera integralmente reproduzido;
  6. A atividade de locação financeira da Requerente, para além das Normas Gerais de Leasing Operativa e Servicing acima identificadas, rege-se ainda por Normas específicas, estas referentes ao leasing automóvel e ao restante leasing mobiliário (equipamentos) e ao leasing imobiliário, conforme documentos juntos como Doc. 7, Doc. 8 e Doc. 9;
  7. Quando os bens locados são equipamentos/maquinaria com características técnicas específicas, exigem maior know-how;
  8. A Requerente realiza as seguintes tarefas: (i) no que respeita à faturação, emissão das faturas e recibos mensais, (ii) no que respeita à redação e alteração dos contratos, contratação (interna e externa) de serviços de assessoria jurídica, (iii) no que respeita a seguros, controle da sua validade, (iv) no que respeita a situações de incumprimento contratual, contratação (interna e externa) de serviços de assessoria jurídica, designadamente, de advogados com vista à propositura de ações judiciais (por exemplo: providência cautelar para recuperação dos bens locados);
  9. Estão previstas no preçário as tarefas desenvolvidas pela Requerente que são faturadas e cobradas mediante comissão cobrada pela Requerente (determinado com base nos preços de concorrentes no mercado) nos termos do preçário;
  10. No ano de 2019, aplicando o entendimento vertido no OC 2009, a Requerente deduziu provisoriamente, a título de IVA, o montante de 3.339.221,46 EUR, decorrente da aplicação de uma margem de dedução de 9%;
  11. Esta dedução foi apurada considerando apenas os juros e outros encargos relativos à atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente (ou seja, desconsiderando o capital [i.e., a amortização financeira] incluído nas rendas auferidas pela Requerente no âmbito de tal atividade).
  12. Neste contexto, na declaração periódica de IVA de dezembro de 2019, a Requerente deduziu, a título definitivo, IVA no montante de 2.968.196,84 EUR [3.339.221,46 EUR — 371.024,62 EUR (a título de regularizações a favor do Estado)], decorrente do apuramento de uma percentagem de dedução definitiva de 8%;
  13. Em 28 de dezembro de 2021 a Requerente apresentou Reclamação Graciosa da autoliquidação de IVA apurado na declaração periódica de dezembro de 2019, junto da Direção de Finanças de Lisboa, à qual foi atribuído o número de entrada 12407, em 2021/12/28;
  14. Esta Reclamação Graciosa seguiu termos com o número de processo ...2021... na UGC — Unidade de Grandes Contribuintes, e foi indeferida por decisão expressa de 2022.03.14, com os fundamentos constantes da mesma decisão, a qual se encontra no processo administrativo e considera-se integralmente reproduzida;
  15. A 1 de abril de 2022, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, tendo a Requerida convertido em definitivo o entendimento anteriormente projetado.

 

III.2    Factos não Provados

 

Com relevância para a decisão da causa, não foi considerada como provada a matéria de facto que estava em contradição com os documentos apresentados pela Requerente e com a factualidade resultante do depoimento da única testemunha arrolada. Não foi igualmente considerada provada a matéria que embora tenha sido enquadrada no PPA como matéria de facto, mas que este Tribunal considera que constitui matéria de direito ou que tem caráter meramente conclusivo (como o enquadramento das operações realizadas pela Requerente como operações de disponibilização e utilização dos bens locados vs. operações de financiamento propriamente ditas).

 

III.3    Fundamentação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos foram dados como provados com base (i) nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles, e (ii) no depoimento da testemunha arrolada, que falou de forma clara e credível, demonstrando ter conhecimento direito da factualidade que lhe foi perguntada.

 

  1. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

A questão de fundo essencial que está em causa nos presentes autos respeita à legalidade da interpretação do disposto no artigo 23.º n.º 2 do CIVA no sentido veiculado pelo OC 2009, questão esta que, conforme iremos ver infra, já foi extensivamente trabalhada quer na jurisprudência Nacional, quer na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Comecemos por analisar o quadro legal aplicável:

A letra do artigo 23.º do CIVA (com a epígrafe “Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista”) no que respeita à parte que nos interessa nos autos é a seguinte:

 

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do activo imobilizado que tenham sido utilizadas na actividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à actividade exercida pelo sujeito passivo.

6 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efectuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objectivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afectação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efectuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita”.

 

 

Por sua vez, a letra do OC é a seguinte:

 

1. O ofício circulado nº 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.

2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (nº 3 artº 23º).

3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o nº 2 do artigo 23º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.

4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.

5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.

6. Face à anterior redacção do artigo 23º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.

No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do nº 4 do artigo 23º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.

7. Face à actual redacção do artigo 23º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº 2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº 4 do artigo 23.º do CIVA”.

 

No caso concreto, a Requerente submeteu a autoliquidação de IVA em causa nos autos em cumprimento do disposto no artigo 23.º n.º 2 a n.º 4 do CIVA, na interpretação veiculada pelo OC 2009 (ou seja, “considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.”). Defendendo a ilegalidade deste enquadramento, a Requerente apresentou reclamação graciosa da referida autoliquidação, pedindo a retificação da mesma por forma a considerar no cálculo da percentagem de dedução, também o montante correspondente às rendas pagas no âmbito dos contratos de Leasing (designadamente, leasing automóvel) ou de ALD. A Requerida indeferiu a reclamação graciosa pugnando pela legalidade do enquadramento assumido na autoliquidação de IVA submetida pela Requerente.

 

Respondendo desde já às duas questões de Direito colocadas pela Requerente (a conformidade deste enquadramento com o princípio da neutralidade do IVA e com a Constituição), chamamos à colação o Acórdão do STA de 17 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 01077/14.7BEPRT (cujo entendimento está em conformidade com o entendimento assumido em diversos outros Acórdãos do mesmo Tribunal, como o Acórdão de 24 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 084/19.8BALSB, o Acórdão de 20 de janeiro de 2021, o Acórdão de 05/26/2021, proferido no processo n.º 038/20.1BALSB, sendo que este último remete para o Acórdão de uniformização de jurisprudência que se pronunciou sobre esta questão, proferido em 24 de Março de 2021, no processo n.º 087/20.0BALSB), que por facilidade de referência, e à luz do princípio da uniformidade do Direito, ora reproduzimos:

 

No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pelo recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença a qual julgou improcedente a impugnação, padece de erro de julgamento, uma vez que “a imposição de um método de percentagem de dedução no âmbito das atividades de Leasing e ALD, no qual seja desconsiderado a componente de amortização de capital, não tem qualquer suporte nem na letra e nem no espírito do mecanismo de dedução previsto na Diretiva do IVA, nem, por conseguinte, no artigo 23.° do Código do IVA, na redacção vigente à data”, incorrendo em violação e interpretação das normas nacionais e comunitárias, bem como dos princípios que lhe estão subjacentes.

Na verdade, tomando em linha de conta as conclusões recursórias, a controvérsia suscitada nos autos prende-se com a inclusão, ou não, no numerador e no denominador, no cálculo do pro rata de dedução, da componente respeitante à amortização de capital incluída nas rendas de locação financeira (Leasing e ALD).

Segundo o recorrente, o Tribunal a quo baseou a sua fundamentação no erróneo pressuposto de que a contabilização do valor total das rendas pagas no âmbito dos contratos de locação financeira, que visam o financiamento da aquisição dos veículos, cria uma distorção na tributação inaceitável face à intenção legislativa subjacente à fórmula prevista no artigo 23.°, n.°4 do CIVA, bem como face aos princípios gerais do IVA, com principal destaque para o princípio da neutralidade. Acrescendo que a sentença também considerou que os n.°s 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA procedem à transposição do disposto no artigo 173.°, n.° 2 al. e) da Diretiva IVA, (correspondente ao artigo 17.°, n.° 5 da Sexta Diretiva), no sentido de que a existência de uma fórmula pré-determinada para alcançar o pro rata de dedução não impede que o Estado membro, entre outros, autorize ou obrigue o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e serviços, concluindo que aqueles artigos atribuem à AT "um poder genérico de impor determinados métodos de cálculo, mais ou menos próximos do método da afetação real ou da fórmula de determinação pro rata, desde que o método de cálculo traduza uma mais precisa determinação da percentagem a deduzir face à realidade económica do sujeito passivo."

Em suma: o pomo da discórdia radica no discernimento sobre se a exclusão, do cálculo do pro rata, da componente de amortização do capital nas rendas de locação financeira tem cabimento no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA, tendo em conta a fórmula prevista pelo legislador comunitário e nacional e os princípios gerais do IVA, com principal destaque para o princípio da neutralidade e se, é lícito à AT impor a aludida exclusão sob a guarida do disposto no artigo 23°, nº 2 e 3 do CIVA.

Como decorre do antedito, para o recorrente o n.° 4 do artigo 23.º do Código do IVA não pode ser interpretado no sentido de estabelecer restrições ao critério do pro rata, desde logo porque no sistema do IVA, estando harmonizado a nível comunitário, as regras de dedução deverão obedecer às regras e princípios comunitários e à Directiva IVA que determina não apenas que o método do pro rata geral de dedução como princípio geral de dedução do IVA suportado em inputs utilizados de forma indistinta em operações tributadas e isentas, como também que a fórmula de cálculo para efeitos de determinação do IVA proporcionalmente dedutível.

Mais concretamente, ainda segundo o recorrente, o n.°1 do artigo 174.° da Directiva IVA, estabelece que a fórmula de cálculo do IVA dedutível resulta de uma fracção cuja composição ou fórmula de cálculo está pré-definida sem quaisquer concessões a uma margem de livre decisão dos Estados-Membros (e muito menos pela via administrativa), sendo que, o n.° 2 daquele normativo são enumerados taxativamente os montantes que não são tomados em consideração no cálculo da percentagem de dedução: transmissões de bens de investimento, por um lado, e operações imobiliárias e financeiras, quando sejam acessórias, por outro lado. Nada mais, à luz da Directiva IVA, deve ser excluído do cálculo do pro rata.

Por assim ser, aduz também o recorrente, quer o legislador comunitário, quer o nacional, adoptaram o entendimento de que, em geral, o volume de negócios (a contraprestação das operações de transmissão de bens e de prestação de serviços) de cada tipologia de operações (as que conferem e as que não conferem o direito a dedução) constitui um bom critério para o cálculo do IVA a deduzir, considerando-o o regime-regra supletivo e matéria de dedução no âmbito de "custos comuns" ou residuais. E resulta do artigo 73.° da Diretiva IVA, e da alínea h) do n.º 2 do artigo 16.° do Código do IVA a "renda recebida ou a receber do locatário" constitui o valor tributável sobre que há-de incidir o IVA. Por isso que sejam integralmente sujeitas a IVA as rendas de contratos de locação financeira (desde que não seja aplicável uma isenção, como ocorre nas operações imobiliárias, e mesmo neste caso, renunciável), quer na parte correspondente à consideração da amortização financeira ou do capital, quer na parte correspondente aos juros e remuneração de outros encargos (ou ganhos).

Na óptica do recorrente, o método do pro rata, imposto pelo legislador comunitário, prevê a inclusão no denominador do montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA relativo às operações que confiram direito à dedução e as que não confiram direito à dedução, sendo que o volume de negócios corresponde precisamente, ao valor da contraprestação, que, no caso da locação financeira, é a renda.

Porém, o recorrente ressalva que nos termos do artigo 173.°, n.°2, da Directiva IVA, reconhece-se a possibilidade de os Estados-Membros tomarem determinadas opções no âmbito do cálculo do pro rata de dedução, nomeadamente, conforme previsto na al. c), "autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e serviços", possibilidade essa que o legislador nacional não acautelou, o que força a conclusão de que na perspectiva do legislador nacional a aplicação do método pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.º é adequada para assegurar o direito à dedução, não encerrando quaisquer distorções na tributação.

Está, pois, em causa a questão do método de percentagem de dedução no âmbito das actividades de Leasing e ALD e no qual não foi considerada a componente de amortização de capital - inclusão, ou não, no numerador e no denominador, no cálculo do pro rata de dedução.

Sobre esta matéria já existe abundante jurisprudência, nomeadamente a consagrada nos Acórdãos de 29/10/2014, Processo nº. 1075/13, de 17/06/2015, Processo nº01874/13, de 27/01/2016, Processo nº 0331/14 e do Pleno de 04/03/2020, nos Processos nºs 052/19.0BALSB e 07/19.4BALSB e de 30/09/2020, Processo nº095/19.3BALSB (Pleno).

Por assim ser, aderimos em absoluto à jurisprudência estabilizada deste STA adoptando a solução que foi ditada no aresto proferido no Processo Processos nº052/19.0BALSB (Pleno) referido condensada no respectivo bloco fundamentador que passa a transcrever-se de modo adaptativo:

“ (…)

A questão em causa nos presentes autos já se colocou por diversas vezes a este Supremo Tribunal Administrativo, que tem respondido de forma uniforme nos diversos Acórdãos proferidos a seu respeito – veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos proferidos por esta Secção do STA a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, a 3 de Junho de 2015 no Processo n.º 0970/13, a 17 de Junho de 2015 no Processo n.º 01874/13, a 27 de Janeiro de 2016 no Processo n.º 0331/14 e a 15 de Novembro de 2017 no Processo n.º 0485/17 (Acórdão Fundamento).

Concordamos com esta orientação jurisprudencial, não apenas por ser aquela que se encontra actualmente consolidada mas também, e sobretudo, por ser aquela que se revela mais curial.

Tal como aconteceu nos arestos acima referidos, também nos presentes autos se verifica que a questão a decidir é em tudo idêntica à que foi objecto de pronúncia pelo TJUE a 10 de Julho de 2014 no processo n.º C-183/13 (Acórdão Banco Mais), na sequência de pedido de reenvio suscitado por este STA no âmbito do processo n.º 1017/12.[1]

A questão formulada pelo STA ao TJUE foi a seguinte: “Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?”.

E o TJUE emitiu pronúncia nos termos seguintes: “O artigo 17°, n° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Conforme se explicitou no Acórdão proferido por este STA a 17 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 01874/13, aquilo que o TJUE concluiu é “que a norma comunitária não se opõe a que um Estado-membro obrigue um banco que efectue, concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, operações de locação financeira, a incluir na fracção destinada ao apuramento do montante relativo ao direito à dedução dos bens e serviços de utilização mista (edifícios, consumos de electricidade, serviços transversais, etc., que sejam utilizados indistintamente para a realização de operações que confiram e não confiram direito à dedução do IVA suportado), apenas a dita parte componente dos juros incluídos nas rendas de contratos de locação financeira, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão destes contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”.

E isto porque “na apreciação do TJUE, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios (que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos), leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel”.

Sucede que a Recorrida põe em causa a aplicabilidade desta jurisprudência do TJUE ao caso dos autos, arguindo que o artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “não constitui a transposição, para o ordenamento jurídico interno, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, da Sexta Directiva (hoje constante do artigo 173.º da Directiva do IVA)”.

Mas sem razão que lhe assista.

Vejamos as disposições legais em causa:

O artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA dispõe que: “Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação” (nosso sublinhado).

E o artigo 17.º, n.º 5 da Directiva 77/388/CEE dispõe que: “No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução, previstas nos n º 2 e 3, como para operações sem direito à dedução, a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. Este pro rata é determinado nos termos do artigo 19º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo. Todavia, os Estados-membros podem:

(…)

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços (nosso sublinhado)”.

Como já se esclareceu no Acórdão proferido por este STA a 3 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 0970/13, ao interpretar as normas supra referidas o TJUE tomou em consideração que “na interpretação de uma disposição de direito da União, importa ter em conta não apenas os respectivos termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (acórdão SGAE, C-306/05, EU:C:2006:764, n. 34). E que no caso em apreço, o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado-Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados-Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24 do Acórdão) ”.

Neste contexto, não só se verifica que o artigo 19.º n.º 1 da Sexta Directiva (intitulado “Cálculo do pro rata de dedução”) remete unicamente para o pro rata previsto no artigo 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, desta Directiva, como se verifica que, “embora o segundo parágrafo do artigo 17.º, n.º 5, da Sexta Directiva preveja que essa regra de cálculo se aplica a todos os bens e serviços de utilização mista adquiridos por um sujeito passivo, o terceiro parágrafo desse artigo 17.º, n.º 5, que também inclui a disposição que figura na alínea c), começa com a conjunção adversativa «todavia», que implica a existência de derrogações à referida regra (acórdão Royal Bank of Scotland, EU:C:2008:750, n.º 23). - Parágrafos 25 e 26.

Ora, nesta perspectiva a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços» ”.

E é precisamente por este motivo que não colhe a argumentação da Recorrida quando vem arguir que nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA é, necessariamente, “toda a renda recebida (ou seja, capital e juros) que constitui o valor tributável da locação financeira, pelo que não seria admissível “distinguir onde a lei não distingue” aquando da dedução de IVA relativamente a bens e serviços que são comprovadamente de utilização mista”. E não colhe porque, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.

Porém, importa considerar que esta possibilidade concedida aos Estados-Membros apenas se revela possível na medida em que o método seguido garanta uma determinação mais precisa do pro rata de dedução que resulta do critério baseado no volume de negócios (vide, assim, o Acórdão Banco Mais e o Acórdão BLC Baumarkt, proferido a 8 de Novembro de 2012 no Processo C-511/10).

Por outras palavras, e como já se consignou no Acórdão deste STA proferido a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, “a circunstância de o Tribunal de Justiça ter considerado que a Administração Tributária poderia criar um sistema específico para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista não significa que, perante a legislação nacional tal sistema específico seja pura e simplesmente admitido, em todas as situações, como não o é, de resto, face à legislação comunitária. Resulta, de modo inequívoco, do acórdão do Tribunal de Justiça que tal situação será excepcional, quando a utilização desses bens e serviços de utilização mista seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos – aqueles que obtêm enquadramento na actividade exercida pelo banco e que não confere direito à dedução de imposto, por se tratar de actividade isenta –”. Aquilo que importa, portanto, é que “sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos”.

Porém, compulsado o probatório fixado na decisão arbitral em crise, não é possível descortinar se a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Recorrida foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes ou, ao invés, pela disponibilização dos veículos.

Como de forma unânime tem afirmado o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo, os juízos de facto ou juízos sobre factos, incluindo os juízos de valor sobre matéria de facto, e a própria interpretação dos factos e das ilações que as instâncias deles retiram não podem ser formulados ou reapreciados pelo tribunal de revista. Assim, e porque este Tribunal de recurso não dispõe de base factual para decidir o presente recurso jurisdicional – uma vez que ele pressupõe uma realidade de facto que não está pré-estabelecida nem aqui pode estabelecer-se por virtude de o Supremo Tribunal Administrativo, como tribunal de revista, carecer de poderes de cognição em sede de facto – verifica-se um défice na fixação dos elementos de facto pertinentes para a discussão do aspecto jurídico da causa, que impõe a necessidade de ampliação da matéria de facto.”

Seguindo, pois, essa jurisprudência consolidada no Pleno do STA, cumpre definir idêntico desfecho para o presente recurso”.

Chegados aqui, e mais uma vez seguindo aquela que é linha de orientação da jurisprudência do STA e do TJUE, concluímos que também na situação em causa “Caberia, por isso, ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.

Assim, e para concluirmos este ponto, diremos resumidamente que, para o juízo sobre a necessidade e adequação do recurso a «um coeficiente de imputação específico» (para não fugir da expressão do ofício), competiria ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, apesar de ser uma instituição financeira que realiza operações de locação financeira para o setor automóvel utilizando para o efeito bens e serviços de utilização mista, no seu caso, essa utilização não é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos” (in Acórdão do STA de 24 de fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 84/19.8BALSB).

 

O entendimento segundo o qual cabe à Requerente o ónus da prova de “que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos”, está em conformidade com o disposto no artigo 74.º da LGT, norma que decorre da aplicação do disposto no artigo 342.º do Código Civil que “consagra o princípio de que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” (in Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14 de janeiro de 2021, proferido no processo n.º 380/13.8BELLE).

 

No caso concreto, embora a Requerente tente enquadrar a factualidade alegada no sentido de levar o Tribunal a concluir que a atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente se divide em dois grupos de operações (operações de disponibilização e utilização dos bens locados vs. operações de financiamento propriamente ditas), a verdade é que as operações descritas no PPA e demonstradas pela prova testemunhal e documental apresentada pela Requerente, constituem operações de gestão e financiamento dos contratos de locação financeira, celebrados entre a Requerente e os seus clientes – que obtêm enquadramento na atividade exercida pelo banco, e que não confere direito à dedução de imposto, por se tratar de atividade isenta.

 

O artigo 1.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF) prevê: “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”. As instituições de crédito, como a Requerente, são autorizadas a desenvolver a atividade de “Locação de bens móveis, nos termos permitidos às sociedades de locação financeira”, nos termos do artigo 4.º n.º 1 al. (p) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, Republicado pela Lei n.º 23‐A/2022, de 9 de dezembro).

 

O artigo 9.º n.º. 1,  do RJCLF prevê que são obrigações do locador designadamente “b) Conceder o gozo do bem para os fins a que se destina”; prevendo ainda o n.º 2 da mesma norma que cabe ao locador “(a) Defender a integridade do bem, nos termos gerais de direito; (b) Examinar o bem, sem prejuízo da actividade normal do locatário; e (c) Fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados no bem pelo locatário”.

 

A testemunha arrolada deixou bem claro no seu depoimento que a escolha (i) do bem (automóvel) e (ii) do fornecedor; é da competência do cliente. A Requerente terá intervenção na escolha do modo de financiamento adequado (discussão entre o cliente e o seu gestor de conta, em regra, numa agencia da Requerente), na análise do perfil do cliente e da viabilidade da modalidade contratual escolhida, mas no que respeita à entrega do bem, a testemunha disse expressamente que a Requerente só intervém junto do fornecedor para solicitar (i) a emissão da fatura, e (ii) a recolha da assinatura do termo de entrega; e na sequência da entrega destes dois documentos (pelo fornecedor à Requerente), a Requerente paga o bem ao fornecedor, e aí sim, dá início à gestão do contrato de locação financeira celebrado com o cliente.

 

O conjunto de tarefas que a Requerente conseguiu demonstrar nos presentes autos que são efetivamente desenvolvidas pela Requerente no âmbito do contrato de locação financeira — designadamente a tarefa de legalizar o bem, emissão dos contratos, faturação, obrigações tributárias e outras obrigações legais — são tarefas inerentes ao contrato de locação financeira e que, por um lado, decorrem da aplicação da lei (como o facto da Requerente receber as liquidações de impostos respetivas, e encaminhar as mesmas ao cliente, ou mesmo as obrigações relacionadas com os seguros) e por outro lado, enquadram-se na gestão corrente do contrato de locação financeira.

 

A título de exemplo, veja-se a obrigação do locatário de “Efectuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados” (artigo 10.º n.º 1 al. j) do RJCLF), tendo a testemunha ouvida nos autos afirmado que a Requerente se limita a verificar a existência do seguro (o que se enquadra no direito/obrigação do locatário de examinar o bem, prevista no artigo 9.º n.º 2 al. b) do RJCLF).

 

Não se descortina assim como enquadrar as alegadas tarefas desenvolvidas pela Requerente (que são tarefas tipicamente desenvolvidas pelas instituições de crédito, no âmbito da atividade de locação financeira) como “inerentes à disponibilização e utilização dos bens locados”; quando constituem na verdade tarefas típicas de gestão do contrato de locação financeira, determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

 

Termos em que, o presente PPA é julgado totalmente improcedente por não provado, com as demais consequências legais.

 

  1. DECISÃO

 

Termos em que, decide este Tribunal

a) Declarar totalmente improcedente o presente PPA, mantendo-se o ato impugnado no ordenamento jurídico; e

b) Condenar a Requente no pagamento das custas do processo.

 

  1.     VALOR DO PROCESSO

  

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 3 710 246,05.

 

   

  1. CUSTAS

   

O montante das custas (a cargo da Requerente) é fixado em EUR 47 124,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).

  

Notifique-se.

Lisboa, 23 de fevereiro de 2023.

 

Juiz José Poças Falcão (Presidente)

 

 

 

 

Dr. António Alberto Franco (Vogal)

 

 

 

 

Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso (Vogal e relatora)

 



[1] Acórdão Do Tribunal De Justiça (Quarta Secção) de 10 de julho de 2014, no processo n.º C-183/13 (Acórdão Banco Mais), na sequência de pedido de reenvio suscitado por este STA no âmbito do processo n.º 1017/12:           “O artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.