SUMÁRIO:
A não aplicação do regime previsto no art. 22.º/1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais aos dividendos a organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM) não residentes em Portugal constitui uma discriminação contrária à liberdade de circulação de capitais (art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1.A..., organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM) constituído e a operar no Grão-Ducado do Luxemburgo, contribuinte fiscal luxemburguês n.º ... e português n.º ..., com sede na ..., ... ..., Luxemburgo, (doravante Requerente), veio requerer – ao abrigo do disposto no 95.º/2 d), da Lei Geral Tributária (LGT), nos art.os 102.º/1 d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 137.º/1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), e 2.º/1 a), 10.º/ 1 a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) – a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre a validade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) por retenção na fonte (ocorridas no mês de Maio de 2017, aquando da colocação à sua disposição de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português), reclamando ainda o pagamento de juros indemnizatórios por erro imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do art. 43.º/1 e 3 d) da LGT.
2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
3.Em 28.1.2022 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
4.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
5.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 4.4.2022.
6.Em 17.5.2022 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação, juntando o processo administrativo.
7.Em 30.9.2022 foi proferido despacho de prorrogação, por dois meses, da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 21.º/2 do RJAT, derivado da tramitação processual e da interposição de períodos de férias judiciais.
8.Em 3.10.2022 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do mesmo diploma, facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de 10 dias simultâneos.
9.A Requerente apresentou as suas alegações em 18.10.2022
10.Em 5.12.2022 e 2.2.2023 foram proferidos despachos de prorrogação, por dois meses cada, da decisão arbitral.
Posição da Requerente
11.Sendo a Requerente um organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM), constituído nos termos da lei luxemburguesa que transpõe a Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.6.2009 (a qual coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a estes organismos), cumpre no seu Estado de residência e constituição exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OICVM (em transposição da mesma directiva).
12.Em Maio de 2017, a Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 291.230,76, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória à taxa de 15%, nos seguintes termos:
13.Não se conformando com a tributação por retenção na fonte de IRC à taxa de 15% que incidiu sobre os dividendos auferidos das referidas participações sociais, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa ao abrigo dos art.os 78.º/1, da LGT, e 137.º do CIRC, por considerar que essa tributação consubstanciava uma discriminação injustificada entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, em violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e, consequentemente, do primado do Direito da União Europeia, consagrado no art. 8.º/4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
14.Esse pedido de revisão oficiosa foi indeferido em 2.11.2021, na sequência do que veio requerer a constituição do tribunal arbitral.
15.Entende a Requerente que os OICVM não residentes são objecto de uma discriminação contrária ao TFUE, uma vez que o regime previsto no art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF, é aplicável apenas aos OICVM residentes em Portugal, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (Lei 16/2015, de 24.2, que transpõe a Directiva 2009/65), não permitindo o Estado português que os OICVM não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da mesma Directiva acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa.
16.É a não aplicação desse regime pela AT à Requerente, por serem dividendos de fonte portuguesa auferidos por OICVM residentes noutro Estado-Membro que é questionada na presente acção.
17.O entendimento da Administração Tributária vai no sentido de que esses dividendos, pagos a OICVM não residentes, são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória, nos termos dos art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4, do CIRC, a qual poderá ser reduzida ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português.
18.Este entendimento gera um tratamento diferenciado dos OICVM constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65, residentes em Portugal, por comparação com os OICVM não residentes em Portugal, constituídos e a operar ao abrigo da mesma Directiva, na medida em que os dividendos de fonte portuguesa pagos aos primeiros não são sujeitos a retenção na fonte nem tributados em sede de IRC (nos termos do art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF), ao passo que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OICVM não residentes são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória.
19.Ora, à Requerente não é sequer possível neutralizar a tributação dos referidos dividendos em Portugal através do crédito de imposto previsto no art. 24.º/2, da CEDT Portugal/Luxemburgo, por estar isenta de tributação em sede de imposto luxemburguês sobre os rendimentos das pessoas colectivas.
20.Trata-se, assim de uma clara discriminação, já que a Requerente reveste características equivalentes aos OICVM residentes em Portugal, em cumprimento das condições previstas na Directiva 2009/65, sendo colocada numa situação de desvantagem comparativamente aos OICVM residentes, tão-só em consequência de não ter a sua residência em Portugal.
21.Este tratamento discriminatório – que resulta da aplicação dos art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b), e 5, e 87.º/4 do CIRC e art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF – consubstancia uma restrição às liberdades fundamentais (art, 63.º TFUE) e consequentemente ao art. 8.º/4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, sendo, assim anulável a decisão de indeferimento da reclamação graciosa os actos de liquidação de IRC, com a consequente obrigação de restituição à Requerente do imposto indevidamente liquidado.
22.De facto, sendo o Direito Comunitário aplicado na ordem interna nos termos que o próprio Direito da União determina (art, 8.º/4 da CRP), o princípio do primado implica que, em todos os casos, a norma nacional ceda perante o Direito Comunitário (T.C. HARTLEY, 2003, Foundations of European Community Law, Oxford: Oxford University Press, p. 228; GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO QUADROS, 1997, Manual de Direito Internacional Público, Lisboa: Almedina, pp. 125 e 126; ALBERTO XAVIER, 2007, Direito Tributário Internacional, Lisboa: Almedina, p. 216; ac. 9.3.1978, Simmenthal, proc. 106/77).
23.Nesse enquadramento importará aprofundar a análise da situação (que aplica o regime de isenção de tributação em sede de IRS apenas aos OICVM residentes em Portugal) conferindo:
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Se a situação cai no âmbito de aplicação do TFUE;
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Se os art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4, do CIRC e 22.º/1, 3 e 10, do EBF, ao consubstanciarem uma discriminação entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, constituem uma restrição a uma das liberdades fundamentais previstas no TFUE; e
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Se existe um motivo justificativo para a restrição ao exercício dessa liberdade fundamental e, caso exista, se essa restrição é proporcional ao fim que visa atingir.
24.A conferência da primeira exigência (i) parece evidente, na medida em que é pacífico na jurisprudência que a situação pela qual um residente de um Estado-Membro recebe dividendos de uma participação no capital social de uma sociedade residente noutro Estado-Membro constitui uma operação intracomunitária que se encontra abrangida pelo TFUE (ac.s Verkooijen, proc. C -35/98, Manninen, proc. C-319/02, ACT 4, proc. C-374/04, e Denkavit II, proc. C-170/05).
25.A jurisprudência da União responde também ao segundo requisito (ii), na medida em que nela se assume que a legislação nacional de um Estado-Membro que determina uma tributação dos dividendos distribuídos a accionistas residentes noutro Estado-Membro é susceptível de bulir, quer com a liberdade de estabelecimento constante do art. 49.º do TFUE, quer com a livre circulação de capitais prevista no art. 63.º do TFUE (ac.s Baars, proc.º C-251/98, Cadbury Schwepps proc.º C-196/04, FII, proc.º C-446/04, e ACT 4, proc.º C-374/04).
26.A discriminação – que não é definida pelo TFUE – reconduz-se a uma ideia de desigualdade de tratamento entre os nacionais dos diversos Estados-Membros, sendo a mesma desvantajosa para os nacionais de outros Estados-Membros (em relação aos do Estado que aplica esse tratamento) – como acontece na situação em análise, já que a aplicação do regime nacional colocou um OICVM accionista residente noutro Estado-Membro, numa situação claramente desfavorável face aos OICVM residentes em Portugal.
27.Ora, no Direito da União, a admissibilidade de uma diferenciação restringe-se aos casos em que ambos não se encontrem em situações objectivamente comparáveis (ac.s Futura Participations, proc.º C-391/97, Marks & Spencer,proc.º C-446/03 e Denkavit II, proc.º C-170/05).
28.A exigência de comparabilidade decorre da própria noção jurisprudencial de discriminação, segundo a qual esta consiste na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou na aplicação da mesma regra a situações diferentes (ac. ACT 4, proc.º C-374/04).
29.No caso, aplicando uma interpretação de substância sobre a forma, um OICVM não residente e um OICVM residente no mesmo Estado-Membro da sociedade distribuidora dos dividendos estarão numa situação comparável, se apresentarem uma conexão comum com o sistema fiscal desse Estado-Membro (MALCOM GAMMIE, Mars 2003, The Role of the European Court of Justice in the Development of Direct Taxation in the European Taxation in the European Union, Bulletin for International Taxation, IBFD: Amsterdam, p. 89).
30.As situações são, nestes termos, comparáveis (ac. Denkavit II, proc.º C-170/05; tb. ac. ACT 4, proc.º C-374/04, Emerging Markets de 10.4.2014, proc.º C-190/12, Fidelity Funds, de 21.6.2018, proc.º C-480/16; tb. decisões arbitrais de 23.6.2019, proc.º 90/2019-T, de 27.12.2019, proc.º 528/2019-T, de 6.11.2020, proc.º 11/2020-T), até por operarem ao abrigo da mesma directiva europeia.
31.Conclui-se, portanto, que (ii) os art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4, do CIRC e 22.º/1, 3 e 10, do EBF, ao consubstanciarem uma discriminação entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, constituem uma restrição a uma das liberdades fundamentais previstas no TFUE, nomeadamente ao art. 63.º TFUE, que consagra a liberdade de circulação de capitais.
32.De facto, tal como o TJUE explicou no respeitante à liberdade de estabelecimento – aplicável por analogia à livre circulação de capitais – admitir que o Estado-membro de estabelecimento possa aplicar livremente um tratamento diferente, unicamente pelo facto de a sede de uma sociedade estar situada noutro Estado-membro, significaria esvaziar esta disposição do seu conteúdo (ac. ACT 4, de 12.12.2006, proc.º C-374/04).
33.Nesse sentido, os benefícios ou vantagens de natureza fiscal atribuídos a residentes devem ser concedidos, nas mesmas condições, a não residentes.
34.Não colhe o argumento de que a referida restrição pode eventualmente ser neutralizada pelo Estado da residência do Requerente, através do mecanismo de crédito de imposto previsto no art. 24.º/2, da CEDT Portugal/Luxemburgo, já que, como foi referido anteriormente, estando a Requerente isenta de tributação em sede de imposto luxemburguês sobre os rendimentos das pessoas colectivas, não poderá reclamar tal crédito de imposto no Estado da sua residência.
35.Entrando na conferência do terceiro elemento de análise (iii), constata-se que para que uma legislação fiscal como a portuguesa pudesse ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, não obstante o seu caracter discriminatório, seria necessário que a diferença de tratamento pudesse ser justificada por razões imperiosas de interesse geral, sejam elas (a) a necessidade de salvaguardar a coerência do regime fiscal português, (b) a necessidade de garantir a preservação da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, (c) a necessidade de evitar a diminuição de receitas fiscais ou (d) a necessidade de garantir a eficácia dos controlos (ac.s Verkooijen, proc.º C-35/98, Manninen, proc.º C-319/02 e Amurta proc.º C-379/05).
36.Ora, no regime em análise, não existe qualquer justificação tendo por base (a) a necessidade de manutenção da coerência do sistema fiscal português. Para isso, seria necessário demonstrar um nexo directo entre a isenção de tributação concedida aos dividendos recebidos por um OICVM português e o facto dessa entidade ser residente em Portugal (ac. Bosal Holdings, proc.º C-168/01; ac. Emerging Markets, de 10.4.2014, proc.º C-190/12; ac. Fidelity Funds, de 21.6.2018, proc.º C-480/16), o que manifestamente não acontece.
37.Também não tem cabimento, no caso, como justificação da discriminação, uma suposta (b) necessidade de garantir a preservação da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, pois essa justificação não é invocável, tal como o TJUE declarou relativamente à tributação de dividendos, (ac. Fidelity Funds, de 21.6.2018, proc.º C-480/16; ac. Emerging Markets, de 10.4.2014, proc.º C-190/12) e, no mesmo sentido se tem pronunciado o CAAD (cf. decisões de 23.7.2019, proc.º 90/2019-T e de 27.12.2019, proc.º 528/2019-T).
38.Não colhe, igualmente, uma justificação invocando (c) a necessidade de evitar a diminuição de receitas fiscais, já que, genericamente, a mera redução de receitas fiscais não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral, susceptível de ser invocada para justificar uma medida, em princípio, incompatível com uma liberdade fundamental (ac. Emerging Markets, proc.º C-190/12).
39.E também não se poderá invocar, no caso, (d) a necessidade de garantir a eficácia dos controlos administrativos, pois isso apenas seria admissível se fosse deixado aos não residentes a possibilidade de demonstrarem que preenchem no Estado-Membro da residência, exigências equivalentes (ac. Comissão/Portugal, de 6.10.2012, proc.º C-493/09).
40.De facto, a garantia da efectividade da supervisão financeira não justifica, por si só, a diferenciação de tratamento entre fundos residentes e fundos não residentes em Portugal, sendo necessário que o regime nacional permitisse aos interessados fazerem prova de que satisfazem as exigências que lhes permitiriam beneficiar da isenção (decisões arbitrais de 23.7.2019, proc.º 90/2019-T e de 27.12.2019, proc.º 528/2019-T).
41.A concluir, a Requerente impugna ainda o argumento usado pela AT na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa segundo o qual, seria necessário aferir a compatibilidade do regime de tributação de OICVM a não residentes com o facto de estes eventualmente não serem tributados em sede de Imposto do Selo, nos termos da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo, contrariamente ao que sucede com os OICVM residentes, e de os OICVM residentes alegadamente serem sujeitos à tributação autónoma prevista no art. 88.º/11, do CIRC.
42.De facto, as disparidades de tratamento fiscal não asseguram necessariamente a neutralização da desvantagem fiscal em que ficaram colocados os fundos não residentes, pelo que não pode afirmar-se que os regimes sejam equivalentes (cf. decisões arbitrais de 27.12.2019, proc.º 528/2019-T e de 26.6.2020, proc.º 548/2019-T).
43.Impugna ainda a Requerente, o argumento da AT relativo aos regimes de tributação autónoma aplicada a residentes e não residentes (art. 22.º/8 do EBF e 88.º/11 do CIRC) já que esta última regra apenas ocorre quando as respectivas partes sociais não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período e, por outro lado, apenas é aplicável a entidades isentas de IRC, o que não é o caso dos OICVM residentes, uma vez que estes apenas se encontram isentos de derrama municipal e estadual, nos termos do art. 22.º/6 do EBF.
44.Assim, os dividendos auferidos por OICVM residentes não são sujeitos a tributação autónoma (senão excepcionalmente).
45.Não existirão, por isso, quaisquer argumentos que possam justificar o tratamento discriminatório decorrente da retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pela Requerente em 2018, devendo concluir-se que os art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4, do CIRC e o art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF, consubstanciam uma restrição discriminatória à livre circulação de capitais, contrária ao art. 63.º do TFUE e, bem assim, ao art. 8.º/4, da CRP, tornando, por isso, ilegais as liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas.
46.Pede, assim, a Requerente, a anulação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa n.º ...2021... e, bem assim, das liquidações por retenção na fonte, com a consequente restituição do imposto retido, e o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º da LGT.
Posição da Requerida
47.A Requerida defende-se, insistindo na constatação feita pelos serviços da AT aquando do pedido de revisão oficiosa de que não existe qualquer ilegalidade nas retenções na fonte em causa, na exacta medida em que foram efectuadas em estreita obediência ao quadro legal vigente.
48.Esclarece, por outro lado, ser seu entendimento de que lhe cabe actuar em harmonia com as normas vigentes, sem cuidar da conformidade das mesmas com os regras relativas à livre circulação de capitais – e á interpretação das mesmas pelo TJUE – já que tal missão permanecerá na competência dos órgãos próprios.
49.Entrando na análise do regime nacional – contestado pela Requerente – a Requerida insiste que o quadro legislativo aplicável revela numa opção no sentido de aliviar a tributação dos OIC (que corresponde a uma designação equivalente, mas abreviada, de OICVM) em sede de IRC, subtraindo à sua base tributável os rendimentos de capitais (art. 5.º CIRS), prediais (art. 8.º CIRS) e de mais-valias (art. 10.º CIRS), e bem assim as derramas municipal e estadual (art. 22.º EBF), deslocando a tributação para a esfera do Imposto de Selo (tendo sido aditada à TGIS a verba 29 que tributa, em cada trimestre, 0.0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos).
50.Esta tributação apenas incide sobre os OIC residentes (abrangidos pelo art. 22.º EBF), ficando de fora os OIC que operem ao abrigo de legislações estrangeiras.
51.Por outro lado, o regime nacional relativo a OIC residentes, não apenas dispensa a integração dos dividendos na matéria colectável em IRC, mas dispensa também da retenção na fonte (art. 22.º/10 EBF).
52.Além disso, subsiste a possibilidade de os OIC residentes serem sujeitos a taxas de tributação autónoma nos termos do art. 88.º CIRC e art. 22.º/8 EBF, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.
53.E a esta tributação autónoma sobre os dividendos não estão sujeitos os OIC não residentes (não abrangidos pelo art. 22.º do EBF).
54.Assim sendo, os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos no Luxemburgo, não são genericamente comparáveis, dado que a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que, aparentemente, os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos.
55.Por isso, para efeitos de comparação da carga fiscal incidente sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF e os OIC constituídos na Luxemburgo, é redutor e manifestamente insuficiente para extrair conclusões, atender apenas ao imposto retido na fonte e abstrair de outras imposições suscetíveis de onerar fiscalmente os dividendos.
56.Cabe à AT, por força do princípio da legalidade, aplicar as normas legais que a vinculam (art. 3.º CPA ex vi art 2.º c) LGT), assumindo que, no processo de elaboração dessas normas, o legislador doméstico terá tido em atenção todo o ordenamento jurídico, quer nacional quer internacional, pelo que essas normas devem respeitar os mesmos, sendo certo, também, que não cabe à administração tributária a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia.
57.A livre circulação de capitais, consagrada no art. 63.º TFUE, proíbe a discriminação entre capitais do Estado-Membro e capitais provenientes de fora (seja de um outro Estado-Membro seja de um Estado terceiro).
58.A distribuição de dividendos efectuada por sociedades residentes em Portugal ao ora requerente é passível de ser qualificada como movimento de capital na acepção do art. 63.º do TFUE e da própria Directiva 88/361/CEE, de 24.6.1988 (que elenca as operações e transacções transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento colectivo).
59.O regime do art. 63.º TFUE tem aplicabilidade directa – pelo que proíbe quaisquer restrições injustificadas da liberdade de circulação de capitais – vinculando os Estados-Membros a absterem-se de quaisquer medidas legislativas, administrativas e jurisdicionais restritivas – sendo o seu regime complementar das demais liberdades (circulação de mercadorias, estabelecimento e prestação de serviços), beneficiando de um progressivo reforço a partir da criação da União Económica e Monetária.
60.A verdade é que, se o art. 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros, bem como quaisquer retenções aos pagamentos entre Estados-Membros e países terceiros, o art. 65.º permite a estes [a]plicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido e, bem assim, [t]omarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública. Essas medidas não devem, no entanto, constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
61.No entanto, para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF e se tal diferenciação é susceptível de afectar o investimento em acções emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo – que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
62.Além do facto de o imposto retido à Requerente poder eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.
63.Não pode, por isso, afirmar-se que se esteja perante situações objectivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes, pelo contrário.
64.Assim, embora a Requerente, estando isenta de imposto sobre o rendimento no Luxemburgo, não tenha direito a qualquer crédito fiscal por retenção de impostos no estrangeiro nem a possibilidade de solicitar à respectiva autoridade tributária, o reembolso dos impostos retidos no estrangeiro, sempre se dirá que, sendo os rendimentos do Fundo tributados na esfera dos investidores, por distribuição ou imputação, fica-se sem saber se o direito ao crédito de imposto é ou não transferido para os investidores proporcionalmente aos rendimentos distribuídos ou imputados anualmente, assegurando a neutralidade na tributação dos rendimentos dos investimentos realizados directamente pelos investidores ou por intermédio desse tipo de instrumentos financeiros.
65.A doutrina dos acórdãos invocados pela Requerente só pode ser entendida atendendo às circunstâncias dos casos concretos submetidos àquele Tribunal. Ora, não se tratando de orientações claras, precisas e inequívocas resultantes da apreciação da conformidade com o Tratado de realidades factuais e normativas idênticas, não há qualquer vinculação à mesma.
66.Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objectivas dos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, necessário se torna comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos.
67.Assim, embora não exista a obrigação de retenção na fonte sobre os dividendos pagos por sociedades residentes aos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF, a verdade é que estes estão sujeitos a uma tributação autónoma, à taxa de 23%, por aplicação conjugada do art. 88.º/11 do CIRC e art. 22.º/8 do EBF, excepto se as correspondentes acções forem detidas, de modo ininterrupto, por período igual ou superior a um ano.
68.Acresce que as acções integram o património dos OIC e, caso os rendimentos provenientes dos dividendos sejam capitalizados (reinvestidos) pelo Fundo, entram para o cálculo do valor tributável em Imposto do Selo, nos termos definidos no art. 9.º/5 do CIS.
69.Para avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório há, portanto, que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo art. 22.º do EBF relativamente aos dividendos e às correspondentes acções.
70.Ora, como se viu, a carga fiscal incidente sobre os OIC residentes pode exceder o imposto retido na fonte sobre os dividendos auferidos por Fundos de investimento de outros Estados-Membros (ac. TJUE de 11.10.2009, Comissão/Portugal, proc. C-493/09, n.º 31).
71.O que existe, no caso em apreço, é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância.
72.Em lugar de se acentuar a discriminação existente no Estado de residência fiscal do credor dos rendimentos, será mais acertado falar em diferentes modalidades de tributação que até pode redundar, em certos casos, numa carga fiscal menor dos dividendos auferidos em Portugal por Fundos de Investimento constituídos ao abrigo da legislação de outros Estados-Membros da UE.
73.Relativamente à jurisprudência em que se apoia a Requerente – nomeadamente aos acórdãos proferidos nos processos C-338/11 a C-347/11, Santander Asset Management SGIIC, S.A, deve ter-se presente que os casos concretos sobre os quais o tribunal se debruça (fundos de investimento constituídos ao abrigo da legislação francesa ou dinamarquesa) podem não estar sujeitos a qualquer forma de tributação sobre os dividendos distribuídos por sociedades de outros Estados-Membros. Na verdade, um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.
74.Mesmo no ac. de 6.10.2011, do proc.º C-493/09 (Comissão/Portugal) que a Requerente cita, a consideração de que se tratava de uma restrição inadmissível à livre circulação de capitais referia-se a um regime fiscal que comportava a isenção total dos rendimentos auferidos. Essa constatação está na origem da alteração do art. 16.º do EBF – através da Lei 64-B/2011, de 30.12. – que passou a exigir, para a isenção dos dividendos pagos por sociedades residentes a Fundos de Pensões constituídos ao abrigo da legislação outros Estados-Membros da UE ou do Espaço Económico Europeu, que as partes sociais sejam detidas de modo ininterrupto há, pelo menos, um ano.
75.Não se tratando, portanto, de situações materialmente idênticas e em que a aplicação correcta do direito comunitário se revela tão evidente (acto claro) que não deixe margem para qualquer dúvida razoável quanto ao modo como deve ser resolvida a questão suscitada, a AT encontra-se subordinada ao princípio da legalidade.
76.O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objectivamente comparáveis.
77.Não pode, por isso, concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no art. 22.º/3 do EBF – não esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do art. 63.º do TFUE, tal como se reconhece na decisão arbitral do proc. 96/2019-T, que incide sobre matéria em tudo idêntica àquela que é analisada no presente processo.
78.Conclui a Requerida que devem ser mantidas as retenções na fonte supra mencionadas, referente ao IRC do ano fiscal de 2017, devendo concluir-se pela improcedência do PPA.
79.Acrescenta ainda que, sem ceder nem conceder, ainda que se considere que a ilegalidade da decisão da revisão oficiosa é imputável à AT, os erros que afectam as retenções na fonte não são imputáveis a esta, pois não foram por ela praticadas e, consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios, face ao preceituado no art. 43.º da LGT, apenas se concebendo a sua ocorrência com a decisão da revisão oficiosa.
II. Saneamento
80.O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação da liquidação de impostos (art.os 2.º e 5.º do RJAT).
81.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º do RJAT.
82.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).
83.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Matéria de facto
Factos provados
84.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
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A Requerente é um organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM), constituído nos termos da lei luxemburguesa que transpõe a Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.6.2009 (que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a estes organismos);
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A Requerente é administrada pela sociedade B..., entidade também com residência no Luxemburgo;
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A Requerente é, para efeitos fiscais, residente no Grão-Ducado do Luxemburgo, nos termos e para os efeitos do art. 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e o Grão-Ducado do Luxemburgo (CEDT Portugal/Luxemburgo);
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A Requerente não pode beneficiar de crédito de imposto ou reembolso no Luxemburgo;
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Em Maio de 2017, a Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 291.230,76, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória à taxa de 15%, nos seguintes termos:
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A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativa à tributação por retenção na fonte de IRC à taxa de 15% que incidiu sobre os dividendos auferidos das referidas participações sociais, ao abrigo dos art.os 78.º/1, da LGT, e 137.º do CIRC, por considerar que essa tributação consubstanciava uma discriminação injustificada entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, em violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no art. 63.º do TFUE e, consequentemente, do primado do Direito da União Europeia, consagrado no art. 8.º/4, da CRP.
-
Esse pedido de revisão oficiosa foi indeferido em 2.11.2021, na sequência do que veio a ser requerida a constituição do tribunal arbitral.
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Os dividendos, pagos a OICVM não residentes, são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória, nos termos dos art.os 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4 do CIRC.
-
Subsiste um tratamento diferenciado dos OICVM constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65, residentes em Portugal, por comparação com os OICVM não residentes em Portugal, constituídos e a operar ao abrigo da mesma Directiva, na medida em que os dividendos de fonte portuguesa pagos aos primeiros não são sujeitos a retenção na fonte nem tributados em sede de IRC (nos termos do art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF), ao passo que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OICVM não residentes são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória.
Factos não provados
85.Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.
86.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos com a petição e no processo administrativo remetido pela AT, bem como nas posições assumidas pelas partes.
III. Matéria de Direito
87.A questão controvertida nos presentes autos é a de saber se a retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), a título definitivo, sobre dividendos pagos a OICVM não residentes em Portugal viola o Direito da União e o Direito Constitucional.
88.De facto, o art. 22.º/1 do EBF não dispensa de retenção na fonte a título definitivo os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OICVM residentes noutros Estados Membros da União Europeia, enquanto o n.º 3 dispensa essa retenção quando esses dividendos sejam distribuídos a OICVM que actuem e operem de acordo com a legislação nacional.
89.Ora o art. 63.º do TFUE proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados Membros da União Europeia ou entre estes e países terceiros, sendo que, tal como reconhece a Requerida, a distribuição de dividendos efectuada por sociedades residentes em Portugal a sociedades não residentes - como é o caso da ora Requerente - é passível de ser qualificada como movimento de capital na acepção do referido normativo convencional.
90.Ocorrendo um tratamento diferenciado, prejudicial para a Requerente enquanto OICVM não residente, constata-se uma contrariedade inequívoca do disposto no art. 63.º TFUE, na medida em que é susceptível de dissuadir os não residente de investir num Estado-Membro (cf. ac. 21.6.2018, Fidelity Funds, proc.º C-480/16, n.os 40 e 44; ac. 10.5.2012, Santander Asset Management SGIIC, proc.os C‑338/11 a C‑347/11, n.º 15; ac 25.1.2007, Festersen, proc.º C‑370/05, n.° 24; ac. 18.12.2007, A, proc.º C‑101/05, n.° 40 e ac. 10.2.2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, proc.os C‑436/08 e C‑437/08, n.° 50).
91.De facto, na situação em apreço – tal como acontecia na situação apreciada pelo TJUE no ac. Fidelity Funds, referido no parágrafo anterior – [a]o fazer uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OICVM não residentes e ao reservar aos OICVM residentes a possibilidade de obter a isenção de tal retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa nos processos principais procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OICVM não residentes (n.º 43 do referido acórdão).
92.Constatando-se a existência de uma restrição, importa conferir se essa mesma restrição é justificável nos termos do art. 65.º/1 a) TFUE que afirma que o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em situação idêntica no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
93.A Requerente entende que não e explica-o detalhadamente, socorrendo-se de inúmeras referências bibliográficas e jurisprudenciais (sendo que, em relação a estas, não pode deixar de se lamentar o carácter incompleto das mesmas, na medida em que, não apenas, por vezes, ignora a referência à data da decisão – o que seria compreensível quando se tratasse de repetições –, mas principalmente porque nunca refere o número ou parágrafo do aresto do qual retira a afirmação pretendida). Tão extensa é a explicação, que nos vemos obrigados a evitar segui-la (acolhendo ou afastando os argumentos, sendo caso disso), sob pena de prolongarmos a análise para lá do necessário.
94.A Requerida entende que sim – que se trata, portanto, de uma situação integrável no regime excepcional do art. 65.º/1 a) TFUE.
95.Explica, no essencial, que as situações – dos OICVM residentes e não residentes – não são comparáveis, já que, em relação ao regime aplicável aos primeiros, o legislador revela opções legislativas específicas que aliviam a tributação em IRC e municipal deslocando-a para o imposto de selo (cf. n.º 49, supra), ao passo que em relação aos últimos (os não residentes) preferiu optar por uma retenção na fonte.
96.A argumentação da Requerida, neste ponto, não colhe.
97.Desde logo porque, constituindo o art. 65.º/1 a) TFUE uma excepção à regra geral da proibição das restrições à livre circulação de capitais fixada no art. 63.º do mesmo tratado, ele é necessariamente de interpretação estrita, não podendo assumir-se que toda a distinção em função da residência seja automaticamente compatível (ac. 17.9.2015, Miljoen, proc.os C-10/14, C-14/14 e C-17/14, n.º 63; ac. 17.10.2013, Welte, proc.º C‑181/12, n.os 42, 43; ac, 17.1.2008, Jäger, proc.º C‑256/06, n.° 40; ac. 11.9.2008 , Eckelkamp e o., proc. C-11/07, n.° 57; ac. 11.9.2008, Arens‑Sikken, proc.º C-43/07, n.° 51; ac. 22.4.2010, Mattner, proc.º C-510/08, n.° 32).
98.Ora, o facto de reservar aos OICVM residentes a possibilidade de obter uma isenção da retenção na fonte não é justificado por uma diferença de situação objectiva entre esses OICVM e os não residentes, pelo que tal restrição apenas pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, se for adequada para garantir a realização do objectivo por ela prosseguido e se não for além do que é necessário para o alcançar (ac. Fidelity Funds, cit., n.os 63 e 64; ac. de24. 11.2016, SECIL, proc.º C‑464/14, n.º 56).
99.Nada disso é invocado ou explicado pela Requerida, que se limita a explicar a existência de regimes diferentes, não justificando essa diferença, e parecendo querer encontrar uma equivalência entre ambos,
100.Chegando mesmo a afirmar que a aplicação do imposto de selo, conjugada com a eventual aplicação do regime previsto no art. 88.º CIRC, pode, em certos casos, exceder os 23% (o que ultrapassaria a taxa de 15% de retenção na fonte aplicada aos OICVM não residentes).
101.O argumento não colhe, porque aponta apenas a situações limite (em especial o caso da tributação autónoma de 23%, a qual ocorre apenas quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período). Ora a comparação não pode naturalmente fazer-se através de situações limite. E, por outro lado, o argumento cai por força dos factos, já que pretende afirmar um regime mais vantajoso para os OICVM não residentes, o qual, se existisse, não justificaria o pedido da Requerente.
102.A par desse argumento, a Requerida afirma (ou pretende concluir) que as situações não são comparáveis. Também esta pretensão não colhe.
103.De facto, a partir do momento em que um Estado‑Membro, de maneira unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só as sociedades residentes mas também as sociedades não residentes, relativamente aos rendimentos que recebem de uma sociedade residente, a situação das referidas sociedades não residentes assemelha‑se à das sociedades residentes (ac, Fidelity Funds, cit., n.º 54; ac. 25.10.2012, Comissão/Bélgica, proc.º C‑387/11, n.º 49; ac. 20.10.2011, Comissão/Alemanha, proc.º C-284/09, n.º 56), o que implica a comparabilidade.
104.Invoca ainda a Requerida o facto de o imposto retido à Requerente poder eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.
105.A demonstração de que a Requerente não poderia obter um crédito de imposto dedutível no país da sua residência ficou provada documentalmente. A Requerida não o contesta, acrescentando apenas que essa dedutibilidade poderá, todavia, surgir na esfera dos investidores, pelo que, no seu entender, deveria a Requerente demonstrar o contrário.
106.Sobre esta matéria bastará voltarmos, de novo, ao citado ac. Fidelity Funds, que, para numa situação idêntica e face a esse mesmo argumento, esclarece que, se o objectivo da regulamentação em causa é deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o accionista desse veículo, então serão, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos accionistas que devem ser consideradas determinantes, e não a técnica de tributação utilizada. Assim, a impossibilidade de tributar os participantes não residentes sobre os dividendos distribuídos pelos OICVM não residentes deve ser assumida por coerência com a lógica da deslocação do nível de tributação do veículo para o accionista (n.os 60 e 62).
107.Não tem, portanto, cabimento, a exigência da AT de que a Requerente teria de demonstrar a inexistência de um eventual crédito de imposto de que pudessem ser beneficiários os accionistas, até porque essa prova sempre seria impossível de produzir, na medida em que sendo o número destes, indeterminados, podem, além disso, residir em qualquer ponto do planeta.
108.A requerida invoca ainda uma decisão do CAAD, favorável à AT, numa situação em tudo idêntica à do presente PPA (cf. art. 95.º da Resposta).
109.O argumento é relevante, na medida em que, muito embora não existam propriamente precedentes judiciais, não é expectável ou desejável, por princípio, que as decisões do CAAD se contrariem. Essa circunstância impõe, por isso, uma ponderação especial.
110.Porém, analisada a decisão em causa (do proc. 96/2019-T) – nos termos aliás transcritos na Resposta – verifica-se que o sentido daquela não é replicável na situação sub judice. E isto porque, no caso, a decisão foi favorável à AT porque o tribunal entendeu que teria sido necessário à Requerente invocar e demonstrar a impossibilidade de dedução do imposto (no caso, na RFA), o que não terá acontecido.
111.Acontece que, na situação agora em apreço, essa invocação e demonstração ocorreram, pelo que, aparentemente, poderia mesmo ser invocado o argumento a contrario sensu, ou seja, em benefício da Requerente.
112.Não colhe, portanto, genericamente, a argumentação da Requerida.
113.E constatando-se que o regime aplicado envolve um tratamento discriminatório violador do art. 63.º do TFUE, não justificável à luz do art.º 65.º/1 a) do mesmo tratado, tem de considerar-se que o mesmo regime deve ser desaplicado, por força do art. 8.º/4 da CRP, já que, sendo o Direito da União aplicado nos termos definidos por ele mesmo, o princípio do primado (cf. Declaração 17 anexa ao TFUE) impõe essa solução.
Juros indemnizatórios
114.A Requerente pede que, havendo provimento do pedido, seja a AT condenada no pagamento de juros indemnizatórios, o que a Requerida impugna, alegando que os erros que afectam as retenções na fonte não são lhe imputáveis, pois não foram por ela praticadas e, consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática, à face do preceituado no artigo 43.º da LGT.
115.Não colhe, novamente, a argumentação da Requerida.
116.. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. Ora, no caso destes autos, é manifesto que, quanto às liquidações que, pelo acima exposto, se considera estarem feridas de ilegalidade, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que a ora Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV. Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
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Julgar procedente o pedido de a anulação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa n.º ...2021... e, bem assim, das liquidações por retenção na fonte, com a consequente restituição do valor de € 51.393,66, correspondente ao imposto retido;
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Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;
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Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 51.393,66 (cinquenta e um mil trezentos e noventa e três euros e sessenta e seis cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 2.142 € (dois mil cento e quarenta e dois euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos art.os 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e art. 4.º/5, do RCPAT.
Notifiquem-se as Partes e, bem assim, o Ministério Público para efeitos do disposto no art. 280.º/3 da CRP e no art. 72.º/1a) e 3 da Lei 28/82, de 15.11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
Lisboa, 23 de Fevereiro 2023
O Árbitro
Rui M. Marrana
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º/5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º/1 e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.