Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 251/2022-T
Data da decisão: 2023-02-20   
Valor do pedido: € 83.322,75
Tema: IRC - RFAI – Transformação de produtos agrícolas em (novos) produtos agrícolas
Versão em PDF

SUMÁRIO:

 

            1. O âmbito de aplicação do RFAI, tal como configurado pelo artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento, não exclui a aplicabilidade de tal benefício às indústrias cuja atividade consista na transformação de “produtos agrícolas” em “novos produtos agrícolas”.

            2. As normas da União Europeia não contêm uma proibição da concessão de auxílios de Estado, como é o caso do RFAI, às indústrias cuja atividade consista na transformação de “produtos agrícolas” em novos “produtos agrícolas”, salvo nas situações expressamente por elas excecionadas, o que não foi especificamente alegado no presente caso.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

1. A..., unipessoal lda., com o número de identificação fiscal ... e sede na ..., Lote ..., ...-... ..., veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à pronúncia sobre a legalidade das liquidações de IRC referentes aos períodos de 2017 e 2018, no valor de € 79 186,09 e € 4 136,66, requerendo, ainda, reenvio prejudicial para o TJUE.

 

1.1.  O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 11 de abril de 2022.

1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como os signatários como árbitros, nomeação aceite dentro do prazo legal.

1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 23 de junho de 2022.

1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta, juntando o Processo Administrativo.

1.6. No presente processo, foi proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, determinando-se a prorrogação do prazo para decisão, por um período de 2 meses.

 

2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades, nem existindo obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II. Fundamentação

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que tem como objeto social o fabrico e comércio a retalho e por grosso de lacticínios, seus derivados e produtos alimentares, comércio por grosso de carne e de produtos à base de carne, e comércio por grosso de leite, seus derivados e ovos.

4.1.2. Para efeitos da Classificação Portuguesa das Atividades Económicas (CAE Rev. 3), a Requerente exerce a atividade principal de “Indústrias do leite e derivados” à qual corresponde o CAE 10510, à atividade de “Outro comércio a retalho de produtos alimentares, em estabelecimentos especializados, n.e.”, à qual corresponde o CAE secundário 47293, e à atividade de “Comércio por grosso de outros produtos alimentares, n.e.”, à qual corresponde o CAE secundário 46382.

4.1.3. No decorrer do período de tributação de 2017 a Requerente realizou um investimento com vista ao reforço do ativo fixo afeto à atividade de produção de queijo, através da aquisição de equipamentos industriais e da realização de obras nas instalações afetas à produção, tendo incorrido numa despesa total de 543.781,13 euros.

4.1.4. O investimento realizado foi efetuado no âmbito do projeto de investimento único n.º 7422015, com início em 1 de janeiro de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2019, dirigido ao setor de atividade com o CAE 10510 – “Indústrias do leite e derivados”, cuja tipologia é “aumento da capacidade de um estabelecimento já́ existente”

4.1.5. No período de 2017, a Requerente apurou, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, uma coleta de IRC no montante de 139.574,37 euros, tendo apurado, nos mesmos termos, no período de 2018, uma coleta de IRC no montante de 5.835,27 euros.

4.1.6. A Requerente procedeu, na liquidação de IRC dos períodos de 2017 e 2018, à dedução dos valores de 69.787,19 euros e 2.917,64 euros, respetivamente, a título do benefício do RFAI.

4.1.7. Em 15 de abril de 2020, a Requerente foi notificada do início da ação inspetiva efetuada aos períodos de 2017 e 2018, em cumprimento das Ordens de Serviço n.os OI2020... OI2020..., na sequência da qual foram efetuadas correções por dedução alegadamente indevida à coleta, nos períodos de 2017 e 2018, dos montantes de 69.787,19 euros e 2.917,64 euros, respetivamente, por não estarem cumpridos os requisitos dos artigos 22.o a 26.º do CFI conjugado com a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

4.1.8. No Relatório Final da Inspeção considerou-se que: “(...) «porque o produto final obtido (queijo, que integra o capítulo 4 da Nomenclatura de Bruxelas) resultante da transformação de um produto agrícola (leite, que integra, igualmente, o capítulo 4 da Nomenclatura de Bruxelas), encontra-se elencado no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e como tal, considerado também um produto agrícola, de acordo com a definição prevista no art.º 38 do TFUE. E porque apenas beneficiam no âmbito do RFAI os produtos finais, resultantes da transformação de produtos agrícolas, em produtos que não sejam considerados agrícolas, não pode o RFAI ser aplicável à atividade exercida pelo SP de produção de queijo (CAE 10510-“Industrias do leite e derivados”)”.

4.1.9. A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à correção da totalidade dos valores do benefício fiscal do RFAI deduzidos à coleta da Requerente nos períodos de 2017 e 2018, nos montantes de 69.787,19 euros e de 2.917,64 euros, respetivamente.

4.1.10. Na sequência das correções efetuadas, foi a Requerente notificada das liquidações adicionais relativas aos mencionados exercícios, e das demonstrações de liquidação e das demonstrações de acerto de contas, referentes a imposto e juros compensatórios.

4.1.11. No âmbito do processo de execução n.º ...2022..., a Requerente apresentou um pedido de pagamento em prestações da dívida exequenda resultante das liquidações acima identificadas, tendo o pedido sido autorizado pela AT por despacho proferido em 4 de fevereiro de 2022.

4.1.12. Em 8 de abril de 2022 a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

4.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

4.3. Motivação da matéria de facto

 

Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, com o Processo Administrativo, organizado nos termos do artigo 111.º do CPPT, e junto pela Requerida.

           

            5. Matéria de Direito

            5.1. A requerente sustenta o pedido de anulação da autoliquidação num conjunto de diferentes vícios. Quando tal ocorre, o disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, determina que o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos e não exista uma relação de subsidiariedade entre os vícios invocados. Apesar de a tutela mais estável e eficaz dos interesses da Requerente impor, em princípio, o conhecimento prioritário dos vícios substanciais ou de fundo em relação aos vícios de forma, designadamente do vício de falta de fundamentação (que não impede a renovação do ato), deve considerar-se que a falta ou vício de fundamentação pode acarretar um equívoco enquadramento factual e jurídico, afetando a correção da análise dos vícios substanciais, razão pela qual se considera primeiramente o vício apontado à fundamentação.

As exigências de fundamentação dos atos e decisões tributárias constam do artigo 77.º da LGT, que corresponde a uma densificação normativa da injunção constitucional proclamada no art.º 268.º, n.º 3 da CRP, sendo de acentuar que a fundamentação, na sua expressão nuclear, tem de ser “expressa e acessível quando afete(m) direitos e interesses legalmente protegidos”. É pela função que cumpre, ou pelos objetivos que deve satisfazer, que se afere, em cada tipo de situação jurídico-factual, a exigência e grau de densidade da “enunciação contextual, expressa, dos motivos de facto e de direito com base nos quais a administração se decidiu praticar o concreto ato administrativo nos precisos termos em que o fez” e a sua apreensibilidade cognitiva por parte do titular dos direitos afetados (Cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 594/2008, disponível no respetivo website).

A fundamentação é consubstanciada pelo discurso verbalizado pela administração como suporte constituinte da decisão administrativa. Nesta perspetiva, estamos perante uma externação formal das razões de facto e de direito que são contemporâneas ou coetâneas da decisão administrativa e constituintes da mesma, não podendo considerar-se como legítimas todas aquelas que, mesmo com um propósito integrador do sentido da sua anterior declaração, apenas sejam produzidas e invocadas posteriormente. Numa formulação que traduz apenas a síntese do que a doutrina mais autorizada escreveu sobre a matéria, pode repetir-se que a fundamentação se consubstancia num discurso funcional externado pela administração, expresso, formal, explícito, contextual, com capacidade para dar a um destinatário normal, colocado na situação concreta do destinatário do ato as razões “justificantes” e “justificativas” - sob o ponto de vista formal - da concreta decisão administrativa. Consequentemente, para estarmos em face de um discurso normativo-racionalmente justificativo, este não poderá deixar de expressar, no mínimo exigível, os factos apreendidos, o modo como foi efetuada essa prognose, os critérios adotados e as valorações efetuadas, devendo ser apenas tido como suficiente naqueles casos onde se revele uma sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade para revelar inteiramente o juízo do autor do ato administrativo, de modo que possa permitir ao seu destinatário e ao tribunal o controlo da sua validade substancial, aceitando-o, reclamando, recorrendo hierarquicamente ou sindicando-o contenciosamente.

Compulsando o teor da fundamentação da decisão em crise, constata-se que o referido vício não existe. Com efeito, crê-se que a Requerente confunde o vício da falta de fundamentação com a alegada ilegalidade que ela julga decorrer da aplicação da lei desvelada pela fundamentação administrativa, com a qual discorda. In casu, torna-se patente que a Requerente compreendeu os motivos pelos quais a AT entendeu efetuar as correções em crise, como resulta do alegado no artigo 22.º do Requerimento de pronúncia arbitral, onde refere que “o fundamento das correções efetuadas pela AT é exclusivamente a falta de enquadramento da atividade principal da Requerente no âmbito sectorial de aplicação do RFAI, por força do preceituado: [§] (i)  No artigo 1.o da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, por remissão do n.º 1 do artigo 22.º do CFI; e [§] (ii)  Na parte final do n.º 1 do artigo 22.º do CFI, o qual exceciona do âmbito de aplicação do RFAI as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

            Improcede, pelo exposto, a invocada falta de fundamentação.

 

            5.2. Cumpre aferir agora se as liquidações padecem de ilegalidade face ao âmbito de aplicação do RFAI, tendo em conta o disposto nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 282/2014, e o regime europeu.

            5.2.1. Comecemos por apurar o quadro normativo relevante.

No artigo 1.º Código Fiscal ao Investimento dispõe-se, sob a epígrafe “Objeto”:

1 - O Código Fiscal do Investimento, doravante designado por Código, estabelece:

a) O regime de benefícios fiscais contratuais ao investimento produtivo;

b) O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI);

c) O sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial II (SIFIDE II); e

d) O regime de dedução por lucros retidos e reinvestidos (DLRR).

2 - O regime de benefícios fiscais contratuais ao investimento produtivo e o RFAI constituem regimes de auxílios com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014, da Comissão, de 16 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014, e alterado pelo Regulamento (UE) 2021/1237, da Comissão, de 23 de julho de 2021, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 270/39, de 29 de julho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC). 

(…)”.

Por outro lado, o artigo 2.º do mesmo Código refere:

“Artigo 2.º        

Âmbito objetivo

(…)

2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:

a) Indústria extrativa e indústria transformadora;

b) Turismo, incluindo as atividades com interesse para o turismo;

c) Atividades e serviços informáticos e conexos;

d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;

e) Atividades de investigação e desenvolvimento e de alta intensidade tecnológica;

f) Tecnologias da informação e produção de audiovisual e multimédia;

g) Defesa, ambiente, energia e telecomunicações;

h) Atividades de centros de serviços partilhados.

3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior. 

 

O artigo 22.º do mesmo diploma estabelece que:

“Artigo 22.º

Âmbito de aplicação e definições

1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

(…)”.

Por seu turno, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que define os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes a várias atividades, dispõe que:

“(…)

Atendendo à necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014, são também definidos na presente portaria os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais.

Assim:

Manda o Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e da Economia, ao abrigo do n.º 3 do artigo 2.º do Código Fiscal do Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, e nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo Código, o seguinte:

Artigo 1.º

Enquadramento comunitário

Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.

Artigo 2.º

Âmbito setorial

Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior, as atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro:

(…)

b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33;

(…)”.

 

No direito da União, o RGIC (Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014), dispõe:

“Artigo 1.o

Âmbito de aplicação

(...)

3. O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

a) Auxílios concedidos no setor da pesca e da aquicultura, nos termos do Regulamento (UE) n.o 1379/2013 do Parla­ mento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, que estabelece a organização comum de mercado no setor dos produtos da pesca e da aquicultura, altera os Regulamentos (CE) n.o 1184/2006 e (CE) n.o 1224/2009 do Conselho e revoga o Regulamento (CE) n.o 104/2000 do Conselho (1), com exceção dos auxílios à formação, dos auxílios ao acesso das PME ao financiamento, dos auxílios à investigação e desenvolvimento, dos auxílios à inovação a favor das PME e dos auxílios a trabalhadores desfavorecidos e trabalhadores com deficiência;

b) Auxílios concedidos no setor da produção agrícola primária, com exceção da compensação de custos adicionais que não custos de transporte nas regiões ultraperiféricas, tal como previsto no artigo 15.o, n.o 2, alínea b), dos auxílios em matéria de consultoria a favor das PME, dos auxílios ao financiamento de risco, dos auxílios à investigação e desenvolvimento, dos auxílios à inovação a favor das PME, dos auxílios à proteção do ambiente, dos auxílios a traba­lhadores desfavorecidos e a trabalhadores com deficiência;

c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários;

(...)”.

 

No artigo 2.º (“Definições”), refere-se:

“Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:

(…)

10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013;

 

No artigo 13.º, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional”, dispõe-se que:

“A presente secção não é aplicável aos seguintes auxílios:

(...)

c)  Auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes que compensem os custos de transporte de mercadorias produzidas nas regiões ultraperiféricas ou em zonas escassamente povoadas e concedidos a favor de:

i)  atividades na produção, transformação e comercialização dos produtos enumerados no anexo I do Tratado; ou

ii)  atividades classificadas no Regulamento (CE) n.o 1893/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, que estabelece a nomenclatura estatística das atividades económicas NACE Revisão 2 e que altera o Regulamento (CEE) n.o 3037/90 do Conselho, assim como certos regulamentos CE relativos a domínios estatísticos específicos (1) como a agricultura, a silvicultura e a pesca (secção A da nomenclatura estatística das atividades económicas NACE Rev. 2), as indústrias extrativas (secção B da NACE Rev. 2) e a distribuição de eletri­cidade, gás, vapor e ar condicionado (secção D da NACE Rev. 2); ou

iii)  transporte de mercadorias por condutas;

(...)”.

 

Por outro lado, nas Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (OAR), publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 27-07-2013, refere-se no ponto 10 que: “A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica, com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações (…)”.

E na nota de rodapé 11 esclarece-se que: “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”

Já nas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204/1, de 01-07-2014, refere-se no ponto 33 que: “Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020. Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”.

 Por fim, no ponto 168 das mesmas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 estabelece-se que: “Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a)  Regulamento (UE) n.o 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tra­tado (53);

(b)  Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c)  As condições estabelecidas na presente secção”.

 

            5.2.2. Uma das preocupações do legislador pátrio, ao criar o Código Fiscal do Investimento (CFI) e o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), foi a de adaptar tais instrumentos “às novas regras europeias aplicáveis em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, tendo em vista a promoção da competitividade da economia portuguesa e a manutenção de um contexto fiscal favorável ao investimento”, como se refere no artigo 1.º da Lei n.º 44/2014, de 11 de julho, que autorizou o Governo a aprovar um novo Código Fiscal do Investimento. O mesmo diploma, no artigo 2.º, n.º 2, refere que a autorização tem como sentido e extensão: “a) [a]daptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente: [§] i) [À]s disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria, que define as condições sob as quais certas categorias de auxílios podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno; ii) [À]s regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional; [§] b) [e]stabelecer que o regime seja aplicável aos benefícios contratuais ao investimento a conceder até 31 de dezembro de 2020; [§] c) [d]efinir as regiões e atividades económicas suscetíveis da concessão de benefício ao abrigo deste regime, em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional (...)”.

            Em consonância, o CFI, logo no seu artigo 1.º, refere que o RFAI constitui um regime de “auxílios com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC)”. E, no artigo 2.º, n.º 2, concretiza que “[o]s projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC”, referindo na alínea d) desse precito, as “atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais”. A harmonização com o regime europeu relativo aos auxílios estatais fica, por fim, bem vincada quando o legislador refere no artigo 22.º, relativo ao RFAI, que o mesmo é “aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC” (itálico aditado).

            Deste quadro legislativo, resulta que o RFAI tem aplicação a todas as empresas dos sectores de atividade referidos no artigo 2.º, onde se inclui o da Requerente, exceto se existir uma exclusão por força das OAR ou do RGIC.

            Ora, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, não pode fugir deste entendimento ou contorná-lo, restringindo-o ao âmbito das atividades abrangidas pelo RFAI, mesmo quando estas não resultem excluídas pelos referidos instrumentos europeus. Assim, na referência ao “enquadramento comunitário” constante do artigo 1.º desse diploma – quando aí se refere que em “conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores (...) da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (...)” – não pode extrair-se entendimento diferente daquele que resulta do quadro legal vertido no CFI, sob pena de inconstitucionalidade, ex vi o disposto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

            Nestes termos, a correta interpretação do disposto nos artigos 1.º e 2.º da Portaria, e a aplicação do regime constante do CFI, num caso como o presente, em que está em causa uma atividade de transformação de produtos agrícolas em novos produtos agrícolas, implica apurar-se a interferência regime europeu, designadamente saber-se se essa atividade vai excluída pelas OAR ou pelo RGIC.

            A Requerida considera que a atividade da Requerente se encontra integrada no conceito de “transformação de produtos agrícolas”, sendo que, uma vez que o produto final desta atividade é um produto agrícola, enumerado no Anexo l do Tratado, esta atividade se encontra excluída do RGIC, de acordo com o disposto nos seus pontos 10 e 11.

            Ora, tal conclusão não se afigura apodítica. Com efeito, tal como resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à atividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa” ou “sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”. 

            Assim, de forma semelhante à decisão tirada no Processo n.º 187/2022-T, pode aqui afirmar-se que «não se verificando qualquer destas situações no presente caso (tal alegação não consta da fundamentação das liquidações impugnadas), há que concluir que a aplicação do benefício fiscal RFAI aos investimentos realizados pela Requerente também não é afastada pelo RGIC. [§] Mais, o artigo 13.º, alínea b), do RGIC, que define o “âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional”, confirma a sua aplicação à atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, quando exclui do seu âmbito de aplicação os “auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica”, mas clarificando que não é como tal considerada” «a transformação de produtos agrícolas”».

Por outro lado, também no quadro das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 não se vislumbra a proibição da aplicação do RFAI à atividade de transformação industrial de produtos agrícolas em novos produtos agrícolas. De facto, compulsando o teor das Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola, para as quais se remete nas OAR, dispõe-se no ponto 33 que em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020. Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”. E, no ponto 168 dessas Orientações refere-se precisamente que “Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio: a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado; (b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020; (c) As condições estabelecidas na presente secção”.

            Do exposto pode concluir-se que a atividade da Requerente de transformação de produtos agrícolas não resulta excluída do âmbito das OAR, sendo permitidos os auxílios estatais uma vez satisfeitas as condições aí previstas, não procedendo o entendimento de que a atividade da requerente fique excluída do âmbito do RFAI apenas “porque o produto final obtido (queijo, que integra o capítulo 4 da Nomenclatura de Bruxelas) resultante da transformação de um produto agrícola (leite, que integra, igualmente, o capítulo 4 da Nomenclatura de Bruxelas), encontra-se elencado no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, como defende a Requerida.

            Observe-se que esta conclusão vai ao encontro do teor de pretéritas decisões deste CAAD que recaíram sobre questões análogas. Para além do já referido acórdão arbitral tirado no Processo n.º 187/2022-T, considerem-se ainda os arestos proferidos nos Processos n.os 43/2022 e 164/2022-T, a cuja fundamentação também aderimos.

            Destarte, pelo exposto, conclui-se pela ilegalidade das liquidações impugnadas, por erro nos pressupostos de direito e consequente violação de lei, determinante da sua anulação, e, consequentemente, a ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios, que teve como pressuposto tais liquidações (artigo 35.º, n.º 8, da LGT).

 

            6. Reenvio Prejudicial

            Tendo sido solicitado o reenvio prejudicial para o TJUE, entende este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de direito europeu, necessária para apreciação da legalidade das liquidações impugnadas é clara, pelo que não há necessidade de efetuar o reenvio sugerido, sendo que a sua aplicação, como se referiu, já foi objeto de anteriores decisões deste CAAD.

            Como tal, não se afigura necessário o reenvio para o TJUE.

 

 

7. Decisão

 

Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular as liquidações de IRC, relativas aos períodos de 2017 e 2018, aqui contestadas;
  2. Determinar, em consequência, a restituição das quantias pagas pela Requerente; e
  3. Condenar a Requerida nas custas processuais.

 

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 83 322,75 €.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2 754,00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 20 de fevereiro de 2023,

 

 

 

(Fernando Araújo)

 

 

 

 

(Paulo Lourenço)

 

 

 

 

(João Pedro Rodrigues)