Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 245/2022-T
Data da decisão: 2023-02-14  IMI  
Valor do pedido: € 189.674,52
Tema: IMI; Valor Patrimonial Tributário (VPT); impugnação de liquidações de IMI; pedido de revisão oficiosa – prazos.
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Sumário:

  1. Não há impedimento de princípio a que um alegado erro cometido num acto de fixação do VPT seja apreciado em sede de impugnação dos subsequentes actos de liquidação de IMI que o tomem por base.
  2. Porém, sendo tal vício sancionado com anulabilidade, não pode ser suscitado – ainda que a propósito de actos de liquidação anualmente renováveis que o convoquem – a todo o tempo.
  3. Uma vez definitivamente consolidado o VPT – por decurso do mais longo dos prazos de alteração a que pode estar sujeito – a sua discussão incidental fica tão precludida como a título principal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 6 de Abril de 2022, o FUNDO DE GESTÃO DE PATRIMÓNIO IMOBILIÁRIO A..., com o NIPC..., representado pela sociedade gestora B...–, S.A., NIPC ..., apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, ns. 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
  2. Pretendia a anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) de 2016, 2017, 2018 e 2019, bem como o reembolso do imposto pago no montante total de € 189.674,52 (cento e oitenta e nove mil, e seiscentos e setenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescido de pagamento de juros indemnizatórios.
  3. Subsidiariamente, pedia ainda a desaplicação, “no caso concreto, da norma pretensamente extraída do artigo 45.º do Código do IMI, na redacção vigente à data da verificação do facto tributário, no sentido de que os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do mesmo compêndio legal deveriam ter aplicação na determinação do VPT de terrenos para construção”.
  4. Nomeados os presentes árbitros, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo o Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 15 de Junho de 2020.
  5. Seguindo-se os normais trâmites, em 14 de Setembro a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou diversas excepções.
  6. Em 23 de Setembro foi proferido despacho a conceder prazo ao Requerente para, querendo, se pronunciar sobre as excepções suscitadas.
  7. Em 11 de Outubro foi recebida a resposta do Requerente.
  8. Em 7 de Novembro foi fixado um prazo de 15 dias para alegações simultâneas.
  9. No mesmo dia o Requerente comunicou ao processo que não pretendia apresentar alegações, uma vez que considerava “se encontrar já exposta e definida a posição do Requerente no respetivo articulado”.
  10. A AT também não apresentou alegações.
  11. Em 9 de Dezembro, face às divergências de opinião no seio do Tribunal Arbitral, foi proferido despacho de prorrogação da sua vigência ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.
  12.  Tendo havido mudança de relator, cabe agora decidir, começando pelas excepções suscitadas pela AT.

 

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
  2. As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
  3. A AT suscitou, no fundo, excepções de erro no tipo de processo (“Eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT não são suscetíveis de ser impugnados [a propósito do] ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo;”), de inimpugnabilidade da liquidação por falta de um pressuposto necessário (“Uma vez que os vícios da fixação do VPT, não são sindicáveis na análise da legalidade do ato de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já se consolidaram na ordem jurídica não é, nem legal, nem admissível, a apreciação da correção do VPT [valor patrimonial tributário] em sede de impugnação do ato de liquidação.”) e de intempestividade do pedido (“apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT que contrariam o recente entendimento jurisprudencial nos casos em que não tenha decorrido cinco anos desde a respetiva emissão.”).
  4. Limitando-se a responder à questão da inimpugnabilidade da liquidação, retorquiu o Requerente que “o objecto do presente processo arbitral é a apreciação da (i)legalidade dos actos de liquidação de IMI referentes aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019 com fundamento em errónea colecta de imposto determinada pela Requerida, e não a mera reclamação ou impugnação dos actos de fixação dos VPTs dos terrenos para construção – não obstante ser precisamente a errónea fixação destes valores que, enquanto base tributável para determinação da colecta de IMI, esteve na base da ilegalidade desta mesma colecta.
  5. Vejamos.
  1. Posição da AT sobre a inimpugnabilidade da fixação do valor patrimonial

 

  1. A posição da AT ficou resumida logo no início da sua Resposta:

4.º / Aos atos impugnados não é imputado qualquer vício específico da operação de liquidação ou do seu procedimento ou da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

5.º / O que está em causa, ou seja, o que o Requerente contesta é, apenas e só, o ato destacável de fixação do VPT e não o ato de liquidação.

6.º / Acontece que os vícios do ato que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo.

Posição do Requerente sobre a impugnabilidade da fixação do valor patrimonial

  1. O Requerente invoca, em primeiro lugar, o princípio geral da impugnação unitária que vigora no âmbito do contencioso tributário (artigo 54.º do CPPT), do qual resulta que “regra geral, só o acto final e definitivo de um procedimento tributário é que será passível de ser impugnado / reclamado pelo contribuinte através dos meios graciosos e / ou judiciais que sejam previstos na lei”; e, em segundo lugar, tendo em conta que o artigo 86.º da LGT e o artigo 134.º do CPPT prevêem a possibilidade de impugnação contenciosa directa dos actos de avaliação ou fixação da matéria colectável, que a “susceptibilidade de impugnação administrativa dos actos interlocutórios de um determinado procedimento tributário nos termos do n.º 1 do artigo 66.º da LGT, não impede que os interessados possam “recorrer ou impugnar a decisão final [daquele mesmo procedimento] com fundamento em qualquer ilegalidade”, conforme o disposto no n.º 2 deste artigo 66.º” (destaque e sublinhado no original).
  2. Percorre de seguida alguma jurisprudência estadual e arbitral sobre a questão de saber se será ou não possível impugnar (ou reclamar) do acto tributário de liquidação de IMI com fundamento em ilegal fixação do valor patrimonial tributário (VPT) do bem imóvel que se encontra sujeito a tal liquidação e da qual resultou uma errónea determinação da colecta deste imposto sem ter previamente impugnado autonomamente o acto prévio de fixação do VPT.
  3. Invoca, designadamente, o Acórdão do STA de 27 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 01725/13, o Acórdão do STA de 8 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 01685/13 e o Acórdão de 29 de Março de 2017 do STA, proferido no processo n.º 0312/15.
  4. Invoca também a Decisão proferida no Proc. 760/2020-T: “a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto -, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.”. Conclui o Tribunal que, inexistindo essas razões, faz sentido que se possa apreciar a questão da avaliação dos imóveis em sede de impugnação da subsequente operação de liquidação.
  5. O Requerente elencou ainda outras decisões arbitrais (Processos ns. 57/2022, 33/2022 e 10/2022), bem como doutrina no mesmo sentido.

 

Decidindo:

  1. Ainda que tendo sido proferido em caso com especificidades quase opostas à dos autos (estava em causa uma impugnação no processo de avaliação do bem da sua anterior inscrição oficiosa na matriz, não impugnada), a posição assumida pelo STA no seu Acórdão de 29 de Março de 2017, proferido no processo n.º 0312/15, parece suficientemente genérica para o cobrir: “o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a esclarecer que a susceptibilidade de impugnação autónoma decorre da lesividade do acto e que caso o contribuinte não tenha contra ele reagido no momento em que ele surgiu e se tornou lesivo pode ainda vir a atacar esse mesmo acto quando ele se insira num procedimento de liquidação e venha a determinar um acto posterior de liquidação”.
  2. Isso não poderá ser assim, claro, onde o legislador fixou a reacção contra o primeiro acto como condição de reacção contra o segundo. Mas, fora desses casos, a posição de princípio assim formulada é conforme à obrigação constitucional de conferir aos cidadãos uma tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição).
  3. Dessa posição de princípio, genérica, pode passar-se para o enquadramento do específico tipo de casos em que está em causa uma fixação do Valor Patrimonial Tributário (VPT) e a sua subsequente utilização como base de incidência da taxa do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) – ou, o que já não é o caso dos autos, do seu Adicional (AIMI).
  4. Sobre este tipo específico de casos há já um considerável lastro de jurisprudência, quer estadual, quer arbitral, ainda que em sentidos divergentes:

- sobre a inimpugnabilidade do VPT em sede de impugnação de actos de liquidação de IMI, a AT cita as decisões do STA proferidas nos processos n.º 0885/16, de 10 de Maio de 2017, n.º 1808/12.0BEPRT, de 18 de Outubro de 2018, e n.º 633/14 de 15 de Fevereiro de 2017, as decisões do Tribunal Central Administrativo Sul proferidas nos processos n.º 5964/12 de 20 de Dezembro de 2012, n.° 03586/09, de 25 de Abril de 2010 e n.° 02125/07, de 12 de Fevereiro de 2008, e as decisões do CAAD proferidas nos processos ns. 487/2020-T, 540/2020-T, 40/2021-T, 510/2021-T, 528/2021-T e 614/2021-T;

- em sentido oposto, o Requerente invoca os Acórdãos do STA de 29 de Março de 2017, proferido no processo n.º 0312/15, e de 27 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 01725/13, as decisões do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 2765/12.8BELRS, de 31 de Outubro de 2019 e as decisões arbitrais proferidas nos processos ns. 760/2020-T, 297/2021-T, 10/2022, 33/2022, 53/2022-T e 57/2022-T.

  1. Na Decisão proferida no Proc. n.º 760/2020-T invocou-se que constituiria uma diminuição das garantias dos cidadãos pretender que – quando isso não resulte da lei (ou das exigências do sistema) – a possibilidade de impugnação autónoma de um pressuposto de um acto de liquidação inibiria a sua apreciação a propósito de uma sua consequência. Até porque não poucas vezes a lesividade de um acto só é percebida no momento posterior da sua invocação como pressuposto de outro acto.
  2. A Decisão proferida no Proc. n.º 718/2021-T, louvando-se na decisão anteriormente citada e notando que o prazo para impugnar o VPT era “substancialmente inferior ao prazo para impugnar o acto final de liquidação”, constatou que “se o objectivo do legislador era encurtar aquele prazo de forma a consolidar na ordem jurídica o acto de fixação do VPT, tornando-o inimpugnável, por via da formação de caso decidido, seria incoerente a previsão no artigo 115.º, do Código do IMI da possibilidade de requerer a revisão oficiosa do acto de liquidação com base em “erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”, onde se inclui (…) o erro na fixação da base tributável, isto é, na fixação do VPT.”.
  3. Por outro lado, na Decisão proferida no Proc. n.º 835/2021-T, entendeu o Tribunal Arbitral que

o artigo 77.º, n.º 1, do CIMI, ao dispor que do “resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial”, não pode ser interpretado como implicando um ónus processual de impugnação do ato de fixação do valor patrimonial tributário, o que apenas poderia suceder se o pedido de segunda avaliação, a que se refere o artigo 76.º, n.º 1, do CIMI, tivesse sido previsto como uma forma de impugnação administrativa necessária destinada a permitir o ulterior acesso à via contenciosa.

  1. Convergem nestes argumentos teleológicos e técnicos razões de princípio e de conveniência: não é tecnicamente inadequado que essa apreciação se faça e, do ponto de vista da protecção dos direitos dos contribuintes, é desejável que se faça, como parece ser o entendimento cada vez mais alargado da jurisprudência arbitral.
  2. Procede assim a argumentação do Requerente sobre a possibilidade de impugnar a fixação do VPT em sede de apreciação da determinação do valor de IMI a pagar em cada ano.
  3. Coisa diversa é saber até quando e como é que uma apreciação de um segundo acto se pode volver numa apreciação do primeiro. Se há actos que são recorrentemente invocados noutros – como, justamente, a avaliação de um imóvel é invocada para, em cada ano que passa, se lhe aplicar a taxa de IMI correspondente –, isso quer dizer que são impugnáveis a todo o tempo?
  4. Ou, mais concretamente: quer dizer que passados 20, ou 50, ou 100 anos…, sobre a fixação do valor do imóvel, pode esse valor vir a ser impugnado a propósito do apuramento da liquidação do IMI por, na fórmula do Requerente, “ser precisamente a errónea fixação destes valores que, enquanto base tributável para determinação da colecta de IMI, esteve na base da ilegalidade desta mesma colecta”?
  5. Já se notou o absurdo oposto: caso isso não fosse possível, então “perpetuar-se-ia” um valor que seria ilegal.
  6. Só que, salvo o devido respeito, não se atendeu então à tipicidade dos vícios dos actos. Se o legislador tivesse fulminado com a nulidade a errada determinação do VPT, certamente que este poderia ser invocado na liquidação do IMI de 2010, como na de 2020, como na de 2050, ou na de 2100… sendo tal erro sancionado com anulabilidade, não pode, evidentemente, ser tal vício suscitado – a propósito de actos de liquidação anualmente renováveis que o convoquem – a todo o tempo.
  7. Entender de outro modo seria criar jurisprudencialmente um regime de nulidade à margem da – e, portanto, contra a – vontade do legislador.
  8. Parece, assim, que tem de se distinguir a decisão binária sobre poder/não poder apreciar num processo dirigido à impugnação de uma liquidação um outro acto de que esta depende – e que o Tribunal entendeu que é de decidir pela positiva –, da decisão não-binária sobre as condições em que tal apreciação pode ocorrer.
  9. O que leva à consideração de outra das excepções suscitadas pela AT: a da tempestividade da impugnação do valor patrimonial atribuído aos imóveis sobre os quais o Requerente pagou IMI nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019.

 

  1. Posição da AT sobre a tempestividade do pedido de revisão oficiosa

 

  1. Na sua Resposta, defendeu a AT que

Mesmo que se admitisse a possibilidade de apresentação de revisão oficiosa, o prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária.

 

  1. Invocando nesse sentido jurisprudência arbitral (Processos ns. 487/2020-T, 540/2020-T e 40/2021-T) que distingue actos de liquidação (contemplados no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, e – podemos dizer – sujeitos a um prazo de legalidade de 4 anos para a sua revisão) e actos de fixação da matéria tributável (contemplados no n.º 4 do mesmo artigo 78.º, e – podemos dizer – sujeitos a um prazo de oportunidade de 3 anos para a sua revisão[1]).
  2. Essa questão de tempestividade – limitada (porque diferenciada em relação a cada uma das liquidações de IMI) – era combinada com outra questão de tempestividade – mais abrangente (porque transversal a todas as liquidações) referida aos actos subjacentes de fixação do VPT.
  3. Daí que, face às datas de fixação do VPT dos vários imóveis, a AT extraísse a seguinte conclusão:

Por isso, tendo em conta as datas dos atos de avaliação sub judice, que, como se vê das Cadernetas prediais juntas com o ppa no Doc nº4, as avaliações foram concretizadas até 2016, pelo que se conclui que o pedido de revisão oficiosa apresentado em 25-11-2021 sempre seria intempestivo.

 

 

Posição do Requerente sobre a tempestividade do pedido de revisão oficiosa

 

  1. Como se referiu, o Requerente defendeu a impugnabilidade da fixação do VPT em sede de sindicância das liquidações de IMI nele baseadas, mas não se pronunciou sobre nenhuma das demais excepções suscitadas pela AT.

 

 

Decidindo:

 

  1. Antes de avaliar as razões aduzidas pela AT, importa contextualizá-las.
  2. O n.º 1 do artigo 168.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) dispõe o seguinte:

Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de seis meses, a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, em qualquer dos casos desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respetiva emissão.

 

  1. Quer dizer que a AT, cinco anos passados sobre a fixação do VPT de um imóvel, fica impossibilitada de o alterar com fundamento em erro. O que, obviamente, a não impede de fazer substituir o errado VPT por um novo VPT – determinado, desejavelmente, sem o erro que afectava o primeiro (como aliás decorre do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 115.º do Código do IMI). Tal como nada impede que o interessado promova um novo processo de avaliação.
  2. Uma vez que, no caso, se não se trata de apurar como é que se pode substituir um VPT fixado por outro, mas sim de – ainda que a propósito da impugnação de liquidações que são condicionadas por ele – impugnar o (único) VPT estabelecido, o que está em causa não é propriamente o limite da actuação administrativa, mas sim o limite da intervenção jurisdicional.
  3. Quer dizer que a questão não está em saber se a AT podia ou não, dentro do limite de 5 anos fixado no CPA, revisitar o putativo erro que teria cometido, mas sim o de saber se uma decisão jurisdicional pode, a todo o tempo, fazer um juízo sobre um VPT que – passados 5 anos – a AT não pode corrigir (nem – por ficar fora dos seus poderes – pode ser determinado pelos tribunais).
  4. Corroborando a relevância desse enquadramento prévio, escreveu-se na Decisão proferida no Proc. n.º 835/2021-T (onde se julgou procedente o pedido de anulação de liquidações de IMI com fundamento na errada determinação do VPT dos imóveis):

O decurso do prazo para a Administração proceder à anulação administrativa de um ato administrativo não sana os vícios de que o ato possa padecer, mas implica apenas que os seus efeitos se tornam definitivos, adquirindo a força jurídica de caso decidido ou caso resolvido. (…)

O caso decidido, no entanto, apenas releva na relação entre a Administração e o particular, e não impede que o interessado lance mão dos meios processuais de impugnação contenciosa contra o ato administrativo, ainda que a Administração não possa já anulá-lo administrativamente.

 

  1. Donde se concluía aí que

A consolidação na ordem jurídica do ato administrativo anulável só opera (…) quando tenha decorrido o prazo legalmente previsto para o interessado deduzir o competente meio processual de impugnação, na medida em que só pelo decurso desse prazo é o ato se torna inimpugnável jurisdicionalmente.

 

  1. Temos, portanto, duas conclusões que se afiguram fundamentais: Primeira: a limitação temporal que a lei impõe à alteração de actos administrativos não vincula os tribunais; Segunda: as limitações temporais à reacção jurisdicional contra os actos administrativos consolida definitivamente estes, tornando-os inimpugnáveis.
  2. Dessas duas conclusões pode extrair-se uma terceira: se os prazos de impugnação jurisdicional forem mais curtos do que o prazo de anulação administrativa, o acto consolida-se com o decurso deste prazo de anulação; se o prazo de anulação administrativa for mais curto do que os prazos de impugnação jurisdicional, o acto consolida-se com o decurso destes prazos de impugnação. 
  3. Desta conclusão pode extrair-se uma quarta: passado que seja o mais longo desses dois prazos, o acto administrativo pode ser substituído, mas não pode ser anulado (administrativamente), nem impugnado (jurisdicionalmente).
  4. E desta quarta conclusão pode dar-se por segura uma quinta: não há actos administrativos anuláveis que possam ser perpetuamente censuráveis. Tal implicaria que, afinal, não eram anuláveis, mas sim nulos – e a nulidade não pode ser de criação jurisdicional.
  5. Uma implicação desta quinta conclusão é a de que não se pode obter por excepção o que não se pode obter por acção. Ou seja: justamente porque um acto deixa de poder ser impugnado por via directa, deve também deixar de poder ser incidentalmente desaplicado, ou incidentalmente considerado inválido.
  6. Se este é o enquadramento geral, a sua aplicação ao caso dos autos depende apenas da verificação das datas de fixação do VPT dos diferentes imóveis sujeitos a tributação em IMI em 2016, 2017, 2018 e 2019. Ora, das “Tabelas com o cálculo, por imóvel, do montante de IMI pago em excesso” (juntas como Documento 3 do pedido de revisão oficiosa) resulta que os montantes de avaliação de cada um dos imóveis tributados se mantiveram invariantes ao longo dos períodos de cobrança (de 2016 a 2019).
  7. Quer dizer que se pode dar como provado o alegado pela AT na sua Resposta (“as avaliações foram concretizadas até 2016, pelo que se conclui que o pedido de revisão oficiosa apresentado em 25-11-2021 sempre seria intempestivo”).
  8. É verdade que o Requerente argumentou demoradamente no pedido de revisão oficiosa (junto como Documento 1 do PPA) que tal pedido era tempestivo (usando como padrão o prazo de 4 anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT), e é verdade que a AT invocou que, mesmo para tal pedido, o prazo aplicável era o previsto nos ns. 4 e 5 do artigo 78.º da LGT (de 3 anos).
  9. Em qualquer caso – e a procedência dessas razões da AT levaria apenas a uma redução do âmbito das liquidações impugnadas – não era só a tempestividade da reacção supletiva[2] contra as liquidações que estava em causa.
  10. Salvo melhor entendimento, e pelas razões acima aduzidas, havendo que considerar DOIS actos administrativos diferentes (o de fixação do VPT de cada prédio e o de cada uma das liquidações incidentes sobre cada um deles) haveria que ponderar DOIS tipos de prazos diferentes: o de consolidação do acto de fixação do VPT e o de consolidação de cada uma das liquidações.
  11. Já se tendo acima concluído que tal consolidação se dá com o prazo mais longo, pode admitir-se que os VPT se tornam definitivos passados 5 anos.
  12. Assim, ao defender a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, o Requerente laborou no equívoco de a pretender estabelecer em relação a cada um dos sucessivos actos de liquidação, quando, na verdade, não era essa tempestividade que estava em causa, mas também a tempestividade dessa via de reacção indirecta face ao anterior acto de fixação do valor patrimonial.
  13. O que se compreende facilmente se se pensar que não houve, em nenhuma das liquidações cuja revisão foi solicitada, imputação de qualquer vício a elas intrínseco: em todas, a única coisa que estava em causa era a aplicação da taxa prevista na lei a um valor previamente fixado.
  14. Assim, teríamos a seguinte sequência:
    1. Durante o prazo de impugnação do acto prejudicante (fixação do VPT), este pode ser visado tanto directamente como indirectamente (na apreciação do acto prejudicado: liquidação do IMI que nele se baseie);[3]
    2. Passado o prazo de consolidação jurisdicional do acto prejudicante (que é o prazo do pedido de revisão oficiosa em matéria de fixação da matéria tributável previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT), este só pode ser visado indirectamente na apreciação do acto prejudicado;[4]
    3. Até ao limite do prazo de correcção administrativa de erros (5 anos, nos termos do n.º 1 do artigo 168.º do CPA) a convocação indirecta dos VPT em sede de discussão jurisdicional das liquidações de IMI deve poder ser objecto de apreciação jurisdicional, mesmo que tal não seja já possível por via de acção;[5]
    4. Para lá desse prazo, não parece que haja poderes jurisdicionais para o fazer, justamente porque a última fragilidade do acto de fixação do VPT – a sua vulnerabilidade à reponderação administrativa – deixou de existir. Ficando definitivamente consolidado, não pode passar a ser simultaneamente válido e inválido.[6]  
  15. Ora, mesmo que esta sucessão de regimes seja complexa, não parece que a alternativa de admitir que tais VPT pudessem ser recorrentemente impugnáveis, por excepção, depois de terem ficado consolidados pelo decurso do mais longo dos prazos (de alteração administrativa ou de impugnação jurisdicional), fosse melhor: uma fixação errada de um VPT seria, depois desse último prazo, um acto-zombie, nem válido, nem invalidável.
  16. Não parece que a dogmática das invalidades ganhe em ser dotada desta nova figura, quando é possível conciliar os efeitos da janela temporal prevista na lei para a correcção de erros administrativos (5 anos) com a presumível substituição dos actos administrativos que padeçam desses erros e se tenham consolidado depois de passado tal prazo.
  17. Assim, considerando que a fixação dos VPT que informaram a fixação dos actos de liquidação de IMI ocorreu há mais de 5 anos, é entendimento do presente Tribunal Colectivo que tais actos de liquidação não podem já ser censurados. 
  18. Procedendo a excepção de intempestividade – que é de conhecimento oficioso – fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas (cfr., por ex., o que se escreveu no Acórdão do STA de 20 de Junho de 2018, proferido no proc. 0748/15[7]: “é pacífico o entendimento da jurisprudência desta Secção no sentido de que a intempestividade do meio processual utilizado gera o indeferimento liminar da respectiva petição inicial, impossibilitando o conhecimento quanto ao mérito da causa de pedir.”).

 

 

  1. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral Colectivo indeferir o Pedido de Pronúncia Arbitral, condenando o Requerente nas custas, nos termos infra fixados.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 189.674,52 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos), montante indicado pela Requerente e não contestado pela AT.

  1. CUSTAS

Custas a cargo do Requerente, no montante de € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2023

 

O Árbitro Presidente (e relator, por vencimento)

 

 

                                                               Victor Calvete

 

 

O Árbitro Adjunto

 

 

Alberto Amorim Pereira

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execepto em transcrições que o sigam.

 

Vencida conforme declaração que segue:

 

Com todo o respeito pela posição que saiu vencedora neste Tribunal Arbitral Coletivo, voto vencida, com os seguintes fundamentos:

 

Questões prévias

Antes de se analisar o mérito do pedido formulado pela Requerente, quanto às exceções, cabe desde logo avaliar se o princípio da impugnação unitária, consagrado no artigo 54.º do CPPT, obsta ou não a que sejam discutidas ilegalidades inerentes à determinação do VPT no âmbito da impugnação da legalidade dos atos de liquidação de IMI que lhe são subsequentes. Para o efeito acompanhamos a posição já seguida nos Processos n.º 718/2021-T e n.º 454/2022-T.

Do referido princípio decorre que, em regra, os vícios dos actos interlocutórios do procedimento apenas são invocáveis no âmbito da impugnação do acto de liquidação final. Só assim não será nos casos em que os actos interlocutórios produzam um efeito externo imediatamente lesivo na esfera jurídica dos contribuintes, caso em que poderão ser objecto de impugnação contenciosa directa e autónoma.

Um caso típico é precisamente o acto de fixação do VPT, que ao estabelecer a base de incidência para efeitos de tributação em sede de IMI, implica igualmente consequências no âmbito da liquidação de outros tributos, tais como o AIMI, o IMT, o Imposto do Selo ou outros tributos nos quais o VPT pode ser juridicamente relevante, tais como o IRS ou o IRC.

De resto, a suscetibilidade de impugnação contenciosa directa e autónoma dos actos de fixação do VPT resulta da própria lei, designadamente do disposto no artigo 86.º da LGT e no artigo 134.º do CPPT. Isto ainda que se preveja igualmente que tal possibilidade está dependente do esgotamento dos meios graciosos previstos no respectivo procedimento de avaliação, designadamente do recurso ao mecanismo da segunda avaliação previsto no artigo 76.º do Código do IMI cujo resultado é, nos termos do artigo 77.º daquele mesmo código e do artigo 97.º, n.º 1, alínea f), do CPPT, objecto de impugnação judicial.

            Neste sentido pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 2765/12.8BELRS, em 31 de Outubro de 2019, no qual se referiu o seguinte:

“[a] fixação do VPT constitui, como se disse, um acto administrativo em matéria tributária, destacável e, por isso, passível de impugnação autónoma. A impugnação autónoma dos actos destacáveis tem como propósito oferecer uma maior garantia aos administrados, permitindo-lhes reagir atempadamente de molde a evitar a produção de efeitos lesivos, que se projectam no acto final do procedimento ou em actos externos a este.

A impugnabilidade autónoma constitui um desvio ao princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54.º do CPPT), que postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte. Este artigo prevê a possibilidade de impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos prévios a essa liquidação (actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos dessa decisão final).

Como assim, sendo a fixação do VPT um acto destacável, ele goza de possibilidade de impugnação autónoma, independentemente da existência ou não de liquidação (…)”.

Sem prejuízo do que se referiu, a verdade é que esta exceção ao princípio da impugnação unitária não preclude a possibilidade de impugnação dos vícios dos atos de fixação do VPT (ato interlocutório) no âmbito do ato de liquidação subsequente (ato final do procedimento), tal como ressalva o próprio artigo 54.º do CPPT.

            De facto, o que resulta da lei é que os sujeitos passivos podem impugnar os atos de fixação do VPT e não que têm de impugnar esses atos interlocutórios de forma a assegurar a impugnabilidade dos vícios neles constantes no âmbito da impugnação dos atos de liquidação subsequentes. Dito de outro modo, a exceção que a lei consagra ao princípio da impugnação unitária mais não é do que a atribuição aos sujeitos passivos e demais interessados de uma garantia adicional de tutela das respetivas posições jurídicas, possibilitando uma sindicância antecipada de ilegalidades que se poderão repercutir em atos (lesivos) posteriores. O mesmo é dizer que a referida exceção não materializa um ónus de impugnação do ato de fixação do VPT enquanto condição sine qua non à posterior impugnação do ato de liquidação que lhe é subsequente.

            Mas ainda que se considerasse que dos artigos 86.º, n.º 2, da LGT e 134.º, n.º 7, do CPPT decorre a consagração de um regime de tutela administrativa prévia, sempre haveria que se considerar que esse ónus apenas se impõe na estrita ótica do ato interlocutório impugnado, porquanto é por referência a este que se consagra aquele regime. Significa isto que a obrigatoriedade de utilização prévia dos meios de tutela administrativos cinge-se à contestação direta e autónoma do ato de fixação do VPT e já não ao ato de liquidação que lhe é subsequente e relativamente ao qual não resulta da lei qualquer limitação quanto à sua impugnação contenciosa.

            A este respeito convém recordar que do artigo 185.º do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT resulta que as limitações aos princípios da impugnação unitária e da tutela jurisdicional efetiva, no que à imposição de impugnações administrativas necessárias diz respeito, apenas é admitida nos casos expressamente qualificados como tal por lei, como sucede a título de exemplo nos casos de reclamação graciosa necessária previstos nos artigos 131.º a 133.º-A do CPPT. Isto sem contar que a regra no contencioso administrativo e, por aplicação subsidiária, no contencioso tributário, por força do disposto no artigo 51.º, n.º 3, do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT, é a de que a impugnação de atos interlocutórios tem um carácter facultativo, não ficando precludida a impugnação do ato final do procedimento com base em vícios do ato intermédio.

            Conclusão esta que é certificada pela previsão do princípio da impugnação unitária no artigo 54.º da LGT, onde se refere de forma expressa e inteligível que em certos casos os atos interlocutórios do procedimento são suscetíveis de impugnação contenciosa «sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida».

            Entendimento diverso resultaria numa clara diminuição das garantias dos contribuintes, já que a pretexto do reforço da tutela jurisdicional efetiva concretizado pela sindicância antecipada de ilegalidades do procedimento, aqueles acabariam por ver limitada a possibilidade de impugnação do ato final do procedimento. De facto, se a “discussão antecipada da legalidade” do ato interlocutório de fixação do VPT não for entendida como uma faculdade mas antes como um efetivo ónus de impugnação, ao qual está associado um efeito preclusivo da sindicância futura dessas ilegalidades, o legislador não estaria a excecionar a ratio subjacente à previsão do princípio da impugnação unitária de forma a assegurar e incrementar a tutela jurisdicional efetiva, bem pelo contrário.

Por outro lado, o prazo de impugnação do ato de fixação do VPT é substancialmente inferior ao prazo para impugnar o ato final de liquidação. E se o objetivo do legislador era encurtar aquele prazo de forma a consolidar na ordem jurídica o ato de fixação do VPT, tornando-o inimpugnável, por via da formação de caso decidido, seria incoerente a previsão no artigo 115.º, do Código do IMI da possibilidade de requerer a revisão oficiosa do acto de liquidação com base em “erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”, onde se inclui, como se verá, o erro na fixação da base tributável, isto é, na fixação do VPT.

De forma algo similar ao que se deixou exposto, considerou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 760/2020-T, em 22 de julho de 2021, o seguinte:

«A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto –, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta. Há, pois, que ponderar sobre a ratio das normas que preveem a impugnabilidade judicial autónoma de atos administrativos que constituem pressuposto de outros atos administrativos.

Estas razões serão, essencialmente, três:

(i) O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.

(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida)

(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).

Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores».

            Neste sentido, assistia à Requerente a faculdade de impugnar direta e autonomamente os diversos atos de avaliação que fixaram o VPT dos terrenos para construção objeto dos presentes autos, como também lhe assistia a faculdade de impugnar os atos de liquidação de IMI emitidos com base nos VPT’s anteriormente fixados, aí arguindo os vícios próprios destes últimos atos que inquinaram o ato final de liquidação que neles se baseou.

            Nestes termos, julgam-se improcedentes as exceções dilatórias invocadas pela Requerida na sua resposta a este respeito, consideram-se admissível a impugnação dos atos de liquidação de IMI com base em vícios próprios dos atos de determinação do VPT.

 

Da tempestividade do pedido de revisão oficiosa

Ainda a título de exceção, invocou também a Requerida que se verificava a intempestividade do pedido de revisão oficiosa, que apenas podia ter sido impulsionado pela Requerente nos três anos posteriores ao do ato tributário, em conformidade com o disposto no n.º 4, do artigo 78.º da LGT. Assim sendo, cumpre então apreciar se a Requerente podia ou não ter impulsionado a revisão dos atos de liquidação de IMI ora contestados com fundamento em erro imputável aos serviços nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

            Enquanto ponto de partida, cumpre desde logo referir que a possibilidade de impulsionar a revisão oficiosa de atos de liquidação de IMI se encontra prevista no artigo 115.º do Código do IMI, que para além de remeter genericamente para o artigo 78.º da LGT, determina expressamente na alínea c), do n.º 1, que a revisão pode ter fundamento em “erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido”.

            Ora, na medida em que se concluiu anteriormente pela possibilidade de sindicar vícios na fixação do VPT no âmbito da impugnação do ato de liquidação subsequente, independentemente de ter sido autonomamente impugnado aquele ato interlocutório, verifica‑se que a Requerente podia, em abstrato, impulsionar a revisão dos atos de liquidação de IMI, com fundamento em erro imputável aos serviços, no prazo de 4 anos, nos termos previstos no artigo 78.º, n.º 1, da LGT. Registe-se a este respeito que os erros alegados pela Requerente e que se traduzem na aplicação de coeficientes multiplicadores de afetação, de localização e/ou de qualidade e conforto nas avaliações do VPT dos terrenos para construção, são erros que a serem julgados procedentes são unicamente imputáveis aos serviços, porquanto foi a AT que procedeu ao apuramento do VPT de cada um daqueles prédios urbanos, conforme resulta da matéria de facto dada como provado nos presentes autos.

A este respeito, vejam-se as considerações do Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 2765/12.8BELRS, em 31 de Outubro de 2019, no qual se considerou em sentido similar o seguinte:

“(…) ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.

É o que sucede com o artigo 78.º da LGT, que prevê a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro, mecanismo que se encontra presente na legislação tributária de outros países, como sucede em Espanha com o artigo 219.º da Ley General Tributária.

O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo‑lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.

Todavia, como já se disse, o artigo 78.º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação e qualquer tributo(2). O que não quer dizer que seja de todo imprestável para o caso sub judice, visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.

Ora, ultrapassada que está actualmente a questão de saber se a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.

O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.”. (destaque nosso)

            Em face do exposto, e na medida em que o prazo para a revisão dos atos de liquidação de IMI deve ser contado nos termos conjugados do artigo 78.º, n.º 1, da LGT e 129.º, n.º 2, do Código do IMI, verifica-se que ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos para a Requerente impulsionar a revisão dos actos de liquidação objecto do pedido de revisão oficiosa. Consequentemente, verifica-se que o pedido de pronúncia arbitral também foi apresentado dentro do prazo previsto para o efeito, sendo assim improcedente a excepção dilatória invocada pela Requerida a este respeito.

 

Da aplicação do artigo 38.º do Código do IMI aos terrenos para construção

Cumpre finalmente aferir a legalidade dos actos de liquidação de IMI contestados pela Requerente, tendo para o efeito em conta que o VPT dos respectivos terrenos para construção foi determinado pela AT através da aplicação de coeficientes de afectação, de localização e/ou de qualidade e conforto.

            À data dos factos, previa-se no artigo 38.º, n.º 1, do Código do IMI que “[a] determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão: Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv, em que: Vt = valor patrimonial tributário; Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização; Cq = coeficiente de qualidade e conforto; Cv = coeficiente de vetustez”. Pelo contrário, quanto aos prédios urbanos qualificados como terrenos para construção, determinava-se no artigo 45.º, n.º 1, do Código do IMI que “O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação”.

            Do regime jurídico previsto para cada um dos referidos “tipos” de prédios urbanos resultava que só o VPT dos prédios para habitação, comércio, indústria e serviços é que era determinado através de uma fórmula que previa a aplicação de coeficientes de afectação, de localização, de qualidade e conforto e/ou de vetustez. Quer isto dizer que, à data dos factos, não se previa a aplicabilidade daqueles coeficientes para os terrenos para construção. Conclusão esta que é certificada pelo facto de a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, ter alterado a redacção do artigo 45.º do Código do IMI de forma a prever expressamente a aplicação de alguns daqueles coeficientes no apuramento do VPT dos terrenos para construção.

            De resto, é pacífico na jurisprudência que este era o regime vigente à data, tendo o STA uniformizado jurisprudência através do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0183/13, em 21 de Setembro de 2016, no qual se decidiu que:

(…) na determinação do seu valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente, aqui discutido, de qualidade e conforto relacionado com o prédio a construir. O que, faz todo o sentido e dá coerência ao sistema de tributação do IMI uma vez que os coeficientes previstos nesta fórmula só podem ter a ver com o que já está edificado, o que não é o caso dos terrenos para construção alvo de tributação específica, sim, mas na qual não podem ser considerados para efeitos de avaliação patrimonial factores ainda não materializados”.

            Este entendimento foi posteriormente confirmado por diversos acórdãos do STA que versaram sobre os demais coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI, de que é exemplo o acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0170/16.6BELRS, em 23 de Outubro de 2019.

            Por fim, regista-se que esta inaplicabilidade é defendida pela AT no artigo 8.º da sua Resposta, na página 2, onde refere que:

 «Importa desde já sublinhar que a Autoridade Tributária tem vindo a acolher o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto».

 

A este respeito a própria Requerida emitiu a seguinte Instrução de Serviço n.º .../2021, de 5 de abril de 2021, da Direção de Serviços de Justiça Tributária da AT:

«- a intenção de a AT adaptar a sua atuação à jurisprudência do STA e dos tribunais centrais administrativos no que concerne à determinação do VPT dos terrenos para construção a qual deve ser efetuada de acordo com a regra constante do artigo 45.º do Código do IMI, não podendo ser considerados os coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI, como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e de conforto;

- nos processos e procedimentos pendentes, assim consideradas as situações de litígio entre os contribuintes e a administração tributária (...) a AT profira despacho favorável ao contribuinte nos procedimentos de contencioso administrativo pendentes de decisão e promova, nos termos e nos prazos previstos no artigo 112.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pela revogação do ato impugnado nos processos de impugnação judicial, bem assim que na pendência da impugnação judicial observe o que resulta da «Instrução n.º 15 – Divulgação de entendimento quanto à revisão oficiosa de ato tributário impugnado judicialmente»;

- que seja proferida decisão favorável aos contribuintes nos processos e procedimentos pendentes, nos termos explicitados, e que seja promovida a correção (anulação parcial) dos atos de liquidação que constituem o objeto do litígio entre os contribuintes e a administração tributária (…), cumprindo o desígnio legal de “reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”, conforme disposto no artigo 100.º da Lei Geral Tributária».

Constata-se, assim, que o teor e alcance desta Instrução de Serviço foram totalmente ignorados pela Requerida, pelo menos no domínio do presente processo arbitral.

 

Em face do exposto, julga-se verificada a ilegalidade invocada pela Requerente, impondo-se a anulação parcial dos atos de liquidação de IMI contestados nos presentes autos.

 

Assim sendo, não se acompanha nestes pontos a Decisão proferida.

Razões pelas quais voto vencida.

 

 Árbitro Adjunta

 

Ana Pinto Moraes

 



[1] Sem prejuízo de hoje se dever entender, face à jurisprudência do STA, que esse juízo é estritamente vinculado: vejam-se as decisões do CAAD proferidas nos processos ns. 267/2022-T e 466/2022-T, bem como os acórdãos do STA aí referidos.

[2] Supletiva porque estas não foram atempadamente impugnadas, foram sujeitas a um pedido de revisão oficiosa.

 

[3] Incidentalmente: durante este período subscrever-se-ia a tese da impugnabilidade indirecta dos VPT em sede de apreciação jurisdicional das liquidações, defendida pelo Requerente.

 

[4] Incidentalmente: durante este período subscrever-se-ia a tese da impugnabilidade indirecta dos VPT em sede de apreciação jurisdicional das liquidações, defendida pelo Requerente.

 

[5] Incidentalmente: durante este período subscrever-se-ia a tese da impugnabilidade indirecta dos VPT em sede de apreciação jurisdicional das liquidações, defendida pelo Requerente.

 

[6] Incidentalmente: a partir deste momento subscrever-se-ia a tese da inimpugnabilidade indirecta dos VPT em sede de apreciação jurisdicional das liquidações, defendida pela AT.

Em conclusão: as duas teses que dividiram a jurisprudência e a doutrina seriam, afinal, conciliáveis no tempo.