Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 222/2022-T
Data da decisão: 2022-12-21  IRS  
Valor do pedido: € 100.593,46
Tema: IRS – Mais-Valias mobiliárias. Artigo 51.º, al. b), do CIRS – Juros de empréstimo enquanto despesas a acrescer ao valor de aquisição de ações.
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SUMÁRIO

  1. O artigo 51.º, alínea b), do Código do IRS (na redação em vigor à data dos factos), conjugado com o artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, estatui que, para a determinação das mais-valias decorrentes da alienação onerosa de partes sociais, ao valor de aquisição das partes sociais acrescem as “despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição” das mesmas.
  2. No caso em apreço, os sujeitos passivos não provaram inequivocamente que o empréstimo em causa esteve relacionado com a aquisição das ações em apreço, pelo que os juros decorrentes do referido empréstimo não acrescem ao preço de aquisição das ações ao abrigo da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha, Arlindo José Francisco e Susana Mercês, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído a 14.06.2022, decidem o seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO
  1. A..., titular do número de identificação fiscal ... (doravante “o Requerente”) e B..., titular do número de identificação fiscal ... (doravante “a Requerente”), casados entre si, ambos residentes na Rua..., ..., ...-... Porto, (adiante conjuntamente designados por “Requerentes”), vieram ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a) e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e, consequente, anulação dos atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “IRS”) e respetivos juros compensatórios, no montante total de €98.492,02 (noventa e oito mil e quatrocentos e noventa e dois euros e dois cêntimos), bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º...2021..., que teve como objeto os ditos atos.
  2. Os Requerentes peticionaram, ainda, “a substituição da liquidação por outra que, a final, reconheça o direito ao reembolso do valor pago em excesso, a título de imposto e encargos resultantes do processo de execução fiscal n.º ...2021..., acrescido dos juros indemnizatórios (...)”, juntaram quinze documentos e arrolaram três testemunhas.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 31.03.2022 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
  4. Os Requerentes não exerceram o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do cargo no prazo aplicável.
  5. A 29.04.2022 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
  6. Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído a 14.06.2022.
  7. Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 14.06.2022 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo e, querendo, requerer a produção de prova adicional.
  8. No dia 25.07.2022, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual se defendeu por impugnação e pugnou pelo indeferimento da produção de prova testemunhal peticionada pelos Requerentes.
  9. Em 26.07.2022, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.
  10.  Por despacho proferido a 28.07.2022, pelo Tribunal Arbitral, foram os Requerentes notificados, para, no prazo de 10 (dez) dias, e tendo em consideração a Resposta da AT, se pronunciarem sobre a necessidade da inquirição das testemunhas arroladas, e indicar sobre que factos incidiria a inquirição das mesmas.
  11. Em 04.08.2022, os Requerentes apresentaram requerimento, no qual reiteraram o interesse e a necessidade da produção de prova testemunhal, por ser essencial para o apuramento da verdade material e boa composição do litígio, e indicaram os factos sobre os quais os depoimentos das testemunhas arroladas deveriam versar.
  12. No dia 05.08.2022, foi proferido pelo Tribunal Arbitral, o seguinte despacho:

1. Indeferir o pedido da Requerida de não inquirição das testemunhas arroladas pelos Requerentes (cfr. Resposta apresentada em 25-07-2022).

 

2. Notifique-se as partes de que a reunião do Tribunal Arbitral prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT se encontra agendada para dia 19-09-2022, às 14:30 horas, e de que a inquirição das testemunhas arroladas terá lugar na mesma.

 

 3. Notifique-se os Requerentes para, no prazo de 5 dias, informarem o CAAD se as testemunha serão apresentados nas instalações do CAAD no Porto ou em Lisboa.

 

4. Notifique-se as partes para, no prazo referido no número anterior, informarem o CAAD sobre a sua vontade em se deslocar às instalações do CAAD, no Porto ou em Lisboa, ou, em alternativa, participar na diligência on-line, via WEBEX.

 

  1. Em 10.08.2022, os Requerentes vieram aos autos informar que pretendiam que as testemunhas fossem apresentadas nas instalações do CAAD e que pretendiam deslocar-se às instalações do CAAD no Porto para participarem presencialmente na diligência.

 

  1. No dia 05.09.2020, a Requerida informou os autos que pretendia participar na diligência de inquirição de testemunhas por vídeo conferência e requereu que lhe fosse dirigido o correspondente convite para a reunião via Webex.

 

  1. Em 19.09.2022, teve lugar a reunião, a que alude o artigo 18.º, do RJAT, na qual os Requerentes prescindiram da testemunha C..., tendo as restantes sido ouvidas (D... e E...).

 

  1.  No dia 22.09.2022, os Requerentes juntaram aos autos o comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente, em cumprimento da notificação efetuada para o efeito, na reunião realizada em 19.09.2022.

 

  1. A Requerida e os Requerentes apresentaram as suas alegações finais, em 28.09.2022 e 29.09.2022, respetivamente, reiterando a argumentação anteriormente expendida e juntaram, em formato Word, as peças processuais apresentadas no decurso da presente lide, tudo em cumprimento da notificação efetuada para o efeito, na reunião realizada em 19.09.2022.

 

  1. Em 14.12.2022, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de direito.

 

 

I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES

  1. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes alegaram, com vista a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS, aqui sindicados, em síntese, o seguinte:
  1. No dia 25 de fevereiro de 2000, por contrato de compra e venda de ações, o Requerente adquiriu um lote de 22.828 ações com o valor nominal de 1.000$00 (mil escudos) cada na sociedade F... S.A.
  2. Pela aquisição das referidas ações, o Requerente acordou pagar o preço global de 196.313.000$00 (cento e noventa e seis milhões e trezentos e treze mil Escudos) – equivalentes a EUR 979.205,12 (novecentos e setenta e nove mil duzentos e cinco Euros e doze cêntimos) –, o qual foi pago faseadamente e da seguinte forma: (i) o montante de 98.157.000$00 (noventa e oito milhões e cento e cinquenta e sete mil Escudos) a título de sinal e princípio de pagamento, no ato de assinatura deste contrato; e (ii) dez prestações de 9.815.600$00 (nove milhões oitocentos e quinze mil e seiscentos Escudos), a primeira no último dia do mês seguinte ao da assinatura do contrato e as demais no último dia de cada mês imediatamente sucessivo, sendo que, para garantia do bom pagamento das prestações, o Requerente entregou aos Vendedores, na data da assinatura do contrato, dez letras de câmbio, no montante de 9.815.600$00 (nove milhões oitocentos e quinze mil e seiscentos Escudos) cada uma, com as datas de vencimento das referidas prestações.
  3. Para ter capacidade financeira para o pagamento global destas ações – que, fazemos notar, não se esgotou na data da celebração do contrato, estendendo-se em dez prestações mensais após essa data, ou seja, por um período de 10 meses após o mês de assinatura do contrato –, os Requerentes contraíram um empréstimo junto do … (doravante abreviadamente designado “Empréstimo”) no montante de 200.000.000$00 (duzentos milhões de Escudos) – correspondentes a EUR 997.595,79 (novecentos e noventa e sete mil e quinhentos e noventa e cinco Euros e setenta e nove cêntimos), pelo prazo de 2522 dias.
  4. Nos termos do contrato de Empréstimo, o mesmo funcionava através de uma conta aberta em nome dos Requerentes, na qual o montante mutuado por débito naquela, era creditado na conta de depósito à ordem dos Requerentes (sendo o extrato de conta emergente do empréstimo documento bastante para a prova da dívida e da sua movimentação), foi utilizado de acordo com o seguinte plano:
  • 1.º: 100.000.000$00 ou EUR 498.797,90 em 03.04.2000;
  • 2.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.05.2000;
  • 3.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.06.2000;
  • 4.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.07.2000;
  • 5.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.08.2000;
  • 6.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.09.2000;
  • 7.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.10.2000;
  • 8.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.11.2000;
  • 9.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.12.2001;
  • 10.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.01.2001;
  • 11.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 28.02.2001.
  1. O capital mutuado foi amortizado em 10 prestações mensais de EUR 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove Euros e cinquenta e oito cêntimos), vencendo-se a primeira em 28.08.2002 e a última em 28.02.2007.
  2. Este Empréstimo venceu juros calculados dia a dia à taxa correspondente à LISBOR a 180 dias em vigor no último dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros, acrescida de 1,00 pontos percentuais, arredondada para a fração oitava de ponto percentual igual ou superior. De referir que as taxas de juro aplicáveis foram as seguintes: taxa anual efetiva de 5,2456% e semestral de 2,6228%.
  3. Para garantia das obrigações decorrentes do Empréstimo, os Requerentes apresentaram um penhor de títulos sobre o lote das 22.828 ações detidas na Sociedade.
  4. Os Requerentes procederam, no âmbito do Empréstimo, ao pagamento de juros no valor de EUR 211.957,69 (duzentos e onze mil novecentos e cinquenta e sete Euros novecentos e sessenta e nove cêntimos).
  5. No dia 6 de fevereiro de 2002, o Requerente adquiriu um lote de 5.505 ações na Sociedade.
  6. A aquisição foi efetuada por compra conjunta com a sociedade G..., S.A., na qual foi adquirido um lote global de 11.011 ações, cabendo à G... um lote de 5.506 ações e ao Requerente um lote de 5.505 ações.
  7. Por contrato de compra e venda de ações celebrado no dia 14 de março 2017, o Requerente alienou, entre outras, a totalidade das 28.333 ações detidas na Sociedade à H..., S.A., pelo valor global de EUR 5.821.674,86 (cinco milhões oitocentos e vinte e um mil e seiscentos e setenta e quatro Euros e oitenta e seis cêntimos).
  8. Por consubstanciarem, efetivamente, encargos incorridos para o pagamento integral das 22.828 ações adquiridas em 25 de fevereiro de 2000, os Requerentes, de boa-fé e ao abrigo dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real, da colaboração, da verdade material, da justiça, da substância sobre a forma, do inquisitório, da liberdade económica, da cooperação e da proporcionalidade, acresceram ao valor de aquisição dessas ações os juros suportados com o Empréstimo contraído para a aquisição das referidas partes sociais que, de acordo com os cálculos manualmente realizados pelo contabilista dos Requerentes, totalizariam o valor de EUR 230.117,89, embora, como anteriormente já explicado, se confirme agora que o respetivo valor deverá ascender a EUR 211.957,69.
  9. Como tal, considerando o valor dos juros suportados, então declarado, de EUR 230.117,89, temos que da transmissão onerosa das ações operada pelo contrato de transmissão de ações celebrado no dia 14 de março de 2017 resultou o apuramento de mais-valias no valor de EUR 4.046.565,88.
  10. Ao abrigo dos princípios da boa fé, da legalidade, da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real, da colaboração, da verdade material, da justiça, da substância sobre a forma, do inquisitório, da liberdade económica, da cooperação e da proporcionalidade, os juros no valor de EUR 211.957,69, decorrentes da celebração do Empréstimo que os Requerentes suportaram, terão, ao abrigo da CRP e da lei fiscal, de ser considerados para efeitos de determinação da mais-valia sujeita a imposto.
  11. O facto de os Requerentes, aquando da Declaração de IRS Modelo 3 de 2017, terem acrescido ao valor de aquisição das ações em questão o montante dos juros suportados com o Empréstimo, ao invés de declararem o referido valor no quadro das despesas e encargos, trata-se de uma minudência de forma e não pode, como tal, relevar para a desconsideração dos mesmos para efeitos de apuramento da mais-valia.
  12. No que respeita ao facto de o Empréstimo ter sido contraído em data posterior à celebração do contrato de aquisição das ações em questão, refira-se que o intervalo de tempo entre ambos foi sensivelmente de um mês, naturalmente, correspondente ao tempo que as negociações prévias, as burocracias e formalidades da concessão da facilidade de crédito, respetivas garantias e formalização do contrato inevitavelmente acarretam.
  13. Nos termos do contrato, o pagamento do preço das ações foi processado de forma faseada, sendo apenas a primeira tranche do pagamento paga aquando da respetiva celebração e as restantes prestações em momento posterior ao da disponibilização da facilidade de crédito no âmbito do Empréstimo.
  14. No caso em apreço estamos perante um pagamento faseado, que não se esgotou na data da celebração do contrato, antes pelo contrário, estendeu-se por um período de mais 10 meses após o mês de assinatura do contrato, como de resto a AT tem pleno conhecimento, na medida em que lhe foi disponibilizado o contrato de aquisição das ações em apreço.
  15. O facto de o Empréstimo se destinar ao financiamento de necessidades pontuais de tesouraria em nada contradiz o facto de os Requerentes terem contraído o mesmo para a aquisição das ações. Efetivamente, os Requerentes contraíram o Empréstimo para suprir necessidades de tesouraria (ainda que pontuais) para cumprirem nas datas estabelecidas contratualmente o pagamento faseado do preço de aquisição das ações.
  16. O que se verificou e que se traduziu no recurso a financiamento bancário, foi precisamente uma necessidade pontual de ter fundos para cumprir as condições de pagamento das ações adquiridas no âmbito do contrato de compra e venda de ações celebrado em 25.02.2000.
  17. Os fundos mutuados nunca foram recebidos diretamente pelos Requerentes, tendo sido diretamente utilizados pelo Banco para a liquidação atempada das letras de câmbio, nas datas dos respetivos vencimentos, tendo, assim, ficado assegurado o bom cumprimento do contrato de compra e venda de ações.
  18. O Empréstimo em apreço se encontra indubitavelmente ligado, de forma umbilical e totalmente condicionada, à operação de aquisição de ações em análise.
  19. Resulta comprovado que o Empréstimo foi contraído para suprir as necessidades de tesouraria existentes devido à obrigação contratual de pagar a totalidade das 22.828 ações adquiridas.
  20. As declarações dos Requerentes presumem-se verdadeiras e de boa-fé, pelo que se os Requerentes declararam e asseguraram que contraíram o Empréstimo para poder adquirir as ações, mediante o pagamento do respetivo preço, a AT não pode, sem mais, desconsiderar as declarações dos Requerentes, tendo, para esse efeito, que ilidir esta presunção.
  21. Cabia indubitavelmente à AT o ónus da prova de que o Empréstimo contraído não estava relacionado com a aquisição de ações, não lhe bastando desconsiderar pura e simplesmente as declarações dos Requerentes sem lograr provar tal facto, razão pela qual este argumento da AT também não pode proceder.
  22. O facto do contrato de Empréstimo não fazer referência ao objetivo de aquisição das 22.828 ações nunca poderia, face ao princípio da prevalência da substância sobre a forma, implicar a desconsideração dos juros suportados pelos Requerentes para efeitos de apuramento da mais-valia, já que, nuclearmente, o que releva, para o direito fiscal, é o apuramento da efetiva realidade, relevante para efeitos de tributação.
  23. O facto de, conforme invoca a AT, para os Requerentes ser indispensável recorrer a um empréstimo para aquisição das ações e essa ser considerada uma condição inerente a esse sujeito passivo, não implica que as despesas em questão não possam ser consideradas como necessárias e inerentes à aquisição.
  24. Através da celebração do Empréstimo, os Requerentes tiveram capacidade financeira para pagar o preço global das ações e, como tal o negócio foi efetivamente concretizado, e como resultado dessa operação os Requerentes obtiveram, posteriormente, um rendimento decorrente da mais-valia apurada em resultado da alienação onerosa dessas mesmas ações.
  25. O Empréstimo é indissociável e inseparável da aquisição das ações, sendo, assim, intrínseco à realização da mais-valia em questão, pois sem este, não teria havido aquisição, para depois ter havido alienação, para posteriormente existir essa tal mais-valia sujeita a tributação.
  26. Os juros, como já decorria das declarações dos Requerentes – que, naturalmente, só se podem presumir como sendo verdadeiras e de boa-fé – e conforme resulta comprovado da declaração de liquidação do Banco já junta aos presentes autos, foram efetivamente pagos, consubstanciam uma despesa indissociável, necessária e documentalmente provada do Empréstimo, o qual, por sua vez, foi, reitera-se, indubitavelmente necessário para que os Requerentes tivessem capacidade financeira para adquirir as referidas ações e, como tal, inseparável e intrínseco à aquisição das mesmas.
  27. Os juros decorrentes do Empréstimo consubstanciam despesas:
  • Indissociáveis da aquisição das ações;
  • Suportadas pelos Requerentes para a realização da mais-valia; e
  • Encontram-se devidamente comprovados.
  1. Não é sequer legalmente admitido à AT imiscuir-se na esfera privada dos sujeitos passivos de forma a opinar sobre como os mesmos deveriam estruturar os seus investimentos, pelo que deveria ser completamente indiferente à AT se os Requerentes tiveram ou não necessidade de recorrer a um empréstimo para adquirir as ações em causa. Desde logo, porque os sujeitos passivos, neste caso, os Requerentes, têm o direito de gerir os seus investimentos da forma que entenderem mais adequada.
  2. Como corolário do princípio da igualdade tributária, impõe-se que o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva de cada um seja observado pelo legislador ordinário no sentido de definir a incidência objetiva do imposto por referência às três manifestações de riqueza suscetíveis de indiciar a capacidade económica do contribuinte: a riqueza angariada (rendimento); a riqueza possuída (património); e a riqueza despendida (consumo).
  3. A tributação das pessoas deve, nos termos da CRP, assentar fundamentalmente sobre o seu rendimento real, como principal forma de respeitar a sua capacidade contributiva.
  4. Uma decorrência do princípio da capacidade contributiva respeita à tributação do rendimento líquido (apenas o montante líquido constitui verdadeiramente rendimento), o que implica a dedução das despesas relativas à obtenção do rendimento.
  5. A dedução de despesas e encargos deve, assim, ser entendida como uma decorrência da capacidade contributiva, e não um benefício fiscal, pelo que a desconsideração de gastos deverá ser abordada cum grano salis, ou seja, uma vez que o respeito do princípio da capacidade contributiva (e da tributação do rendimento real) – previstos na CRP – pressupõe a dedução de gastos (inclusive os gastos de financiamento), a sua desconsideração não poderá ser colocada em causa por uma leitura restritiva do artigo 51º do Código do IRS.
  6. Como resulta da factualidade exposta, os encargos suportados com os financiamentos cuja consideração se controverte nos presentes autos já produziram e incrementaram rendimentos.
  7. Neste sentido, torna-se evidente que a AT age em clara dissonância com o quadro legal vigente e até mesmo com os princípios sobre os quais assenta o Código do IRS, nomeadamente os princípios da realização e da capacidade contributiva.
  8. Resulta manifesto que os encargos financeiros (i.e., os juros) suportados com a celebração do Empréstimo consubstanciam uma despesa indissociável da aquisição das ações e que, nesse sentido, teve necessariamente de ser suportada pelos Requerentes para a realização da mais-valia, encontrando-se documentalmente provada através da declaração de liquidação do Banco.
  1. Por sua vez, a AT contra-argumentou com base nos seguintes argumentos:
  1. Os juros bancários constituem uma despesa ligada à capacidade económica de determinado agente económico e que representa o custo da compra de dinheiro que lhe permitirá em função do aumento da respetiva capacidade económica efetuar investimentos de diferente natureza adquirir bens ou serviços ou efetuar o pagamento de despesas devidas entre outras.
  2. O preço do recurso a capitais alheios pode ocorrer para finalidades distintas e por motivações muito diversas.
  3. Face ao enquadramento da lei, estas despesas não são enquadráveis no art.º 51.º do CIRS pela seguinte ordem de razões.
  4. Com efeito, qualquer das operações previstas no nº 1 do art. 51º, seja de aquisição, de valorização ou de alienação, pode ocorrer na ausência de pagamento de juros por motivo de recurso aos capitais alheios.
  5. O valor do empréstimo, ou seja, do capital investido tem enquadramento legal no art.º 51º do CIRS. Contudo, a despesa com juros bancários não é uma despesa necessária inerente à aquisição pelo que não tem cabimento no disposto na citada norma legal.
  6. A ocorrência dos juros surgirá ou não, consoante a motivação e a capacidade económica do agente económico. Donde, não é necessária e indispensável à aquisição dos bens.
  7. Não se pode retirar como uma ilação lógica, que o juro pago ao banco pelo capital emprestado é automaticamente considerado como despesa necessária e inerente à alienação.
  8. As despesas são necessárias ou não, conforme se entenda que apenas com a sua realização pode ser concluído o negócio jurídico.
  9. Não se podem confundir duas realidades tão diferentes quanto o capital e os juros.
  10. Despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, são consideradas aquelas sem as quais inelutavelmente, a operação, no caso, aquisição, não se poder vir a realizar.
  11. A AT ao desconsiderar os juros na determinação das mais-valias sujeitas, face ao disposto na referida alínea b) do artigo 51.º do CIRS, fê-lo, porque tais encargos não cabem no conceito de encargos da referida norma, por não poderem ser consideradas despesas indissociáveis da operação de venda.
  12. Toda a jurisprudência citada pelos A, tem subjacente matéria de facto distinta da dos presentes autos.
  13. O Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre esta matéria no Acórdão n.º 451/2010, publicado na segunda série do Diário da República de 19 de Janeiro de 2011. O pedido de declaração de inconstitucionalidade foi no sentido de saber se ao abrigo do princípio da capacidade contributiva haverá que relevar a esse título toda a despesa que se assuma como conditio sine qua non — indissociável, portanto — do rendimento concretamente obtido, porque traduzida numa despesa necessária para a existência do próprio rendimento sujeito a imposto na expressão quantitativa que aquela lhe faz acrescer, e não apenas como despesa inerente ao ato de alienação, independentemente, qua tale, dos custos que determinam a existência da própria mais - valia.
  14. Face à jurisprudência emanada do Tribunal Constitucional, resulta que, é abusiva uma interpretação do artigo 51.º do CIRS que leve à consideração de todas e quaisquer despesas realizada com a aquisição ou alienação do imóvel.
  15. Estão afastadas do âmbito de aplicação da citada norma, as despesas que resultem de negociações bilaterais, v.g. a taxa de juro aplicável aos empréstimos bancários.
  16. A referida alínea b) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS exige muito mais que uma ligação entre a despesa e a aquisição, impõe que a despesa seja “necessária” e que seja inseparável e integrante – “inerente” - da operação de aquisição.
  17. Embora a lei não defina o que entende por “despesas necessárias e inerentes”, estes conceitos têm vindo a ser amplamente definidos na jurisprudência. Tal definição aponta, assim, para um conceito “objetivo” de despesas necessárias e inerentes, ou seja, para as despesas que decorrem, necessariamente, daquela operação.
  18. Apenas estão abrangidas no conceito de despesas necessárias e inerentes aquelas em que o sujeito passivo tem obrigatoriamente que incorrer, em resultado da própria operação. Ficam, assim, excluídas, as despesas em que o sujeito passivo incorre em função de uma necessidade sua (subjetiva), para custear o bem mobiliário adquirido.
  19. Embora do ponto de vista subjetivo, ou seja, do ponto de vista das necessidades financeiras do sujeito passivo, o recurso ao crédito para pagamento das ações possa representar uma despesa necessária, do ponto de vista objetivo, isto é, do ponto de vista da realização da operação, um empréstimo não se apresenta como uma despesa necessária para que a operação se realize. Com efeito, do ponto de vista da realização da operação, é completamente irrelevante a forma como o sujeito passivo se financiou para fazer face à despesa em que incorreu com aquela aquisição.
  20. É irrelevante, se o pagamento foi feito através de poupanças do sujeito passivo, através do recurso ao crédito ou através de qualquer outro meio de financiamento.
  21. Os juros decorrentes de um empréstimo contraído pelo sujeito para proceder ao pagamento das ações, não configura uma despesa “objetiva”, isto é, uma despesa necessária e inerente àquela operação.
  22. Para efeitos da alínea b), do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRS, os juros não configuram um encargo a acrescer ao valor de aquisição, apenas relevam como despesas relativas à compra e venda, com relevância para o calculo da mais-valia em sede de IRS, as que integram a própria aquisição ou alienação, isto é, as que lhe são indissociáveis, e não as que não lhe dizem de forma direta respeito, por estarem situadas a montante ou a jusante da operação (no caso, o empréstimo foi contraído posteriormente à aquisição da ações).
  23. Da declaração emitida pelo Banco Comercial Português, S.A, consta que o empréstimo visou financiar “necessidades pontuais de tesouraria” e que foi contraído em 03.04.2020.
  24. O empréstimo até pode ter sido contraído para suprir necessidades de tesouraria dos requerentes, como afirmam em 97º da PI, mas seguramente, e sem conceder, que essas necessidades não estariam em exclusivo indexadas à compra daquelas acções. Donde resulta claro que, tendo sido contraído mais de um mês depois da celebração do contrato de aquisição das ações e do pagamento da primeira prestação das mesmas, em 25.02.2020 no valor de €489.605,05, nunca aquele empréstimo se pode ter por conexo, e muito menos indispensável à aquisição em apreço.
  25. Não é aceitável que os requerentes afirmem que o empréstimo foi contraído para pagarem aquelas ações – pois que pagaram 50% do valor das mesmas muito antes de contraírem o empréstimo.
  26. É completamente despicienda, nem se vê em que medida pode concorrer para os interesses dos recorrentes, a referência à prevalência da substância sob a forma.
  27. Quanto ao alegado em 98º e ss da PI, e ao acórdão citado em 101º, bem sabem os requerentes que o ónus da prova de que a despesa em apreço deve ser considerada para efeitos de calculo da mais valia, sobre eles sempre impenderia - se acaso não se tratasse de uma questão de direito, como é o caso, - demonstrando a imprescindibilidade e inerência à aquisição em causa. Prescindibilidade e não inerência, de resto, demonstrada pela AT na decisão de indeferimento.
  28. Falecem todos os argumentos dos requerentes, entre eles a indiferenciada invocação de princípios constitucionais, de resto, inteiramente respeitados pela AT.
  29. No caso em apreço, que a Autoridade Tributária se limitou a cumprir, de acordo com o princípio da legalidade previsto no artigo 266º da Constituição e concretizado nos artigos 55.º LGT e no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) o determinado em sede tributação do rendimento das pessoas singulares.

 

  1. SANEAMENTO
  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
  2. As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  3. Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.
  4. O processo não enferma de nulidades.
  5. Inexiste, deste modo, quaisquer obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:
  1. No dia 25 de fevereiro de 2000, por contrato de compra e venda de ações celebrado entre I... e J..., na qualidade de vendedores, por um lado, e pelo Requerente e pela G... S.A., na qualidade de compradores, por outro lado, o Requerente adquiriu um lote de 22.828 ações com o valor nominal de 1.000$00 (mil escudos) cada na sociedade F... S.A. (Cf. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  2.  Pela aquisição das referidas ações, o Requerente acordou pagar o preço global de 196.313.000$00 (cento e noventa e seis milhões e trezentos e treze mil Escudos) – equivalente a EUR 979.205,12 (novecentos e setenta e nove mil duzentos e cinco Euros e doze cêntimos) –, o qual foi pago faseadamente e da seguinte forma: (i) o montante de 98.157.000$00 (noventa e oito milhões e cento e cinquenta e sete mil Escudos) a título de sinal e princípio de pagamento, no ato de assinatura deste contrato; e (ii) dez prestações de 9.815.600$00 (nove milhões oitocentos e quinze mil e seiscentos Escudos), a primeira no último dia do mês seguinte ao da assinatura do contrato e as demais no último dia de cada mês imediatamente sucessivo, sendo que, para garantia do bom pagamento das prestações, o Requerente entregou aos Vendedores, na data da assinatura do contrato, dez letras de câmbio, no montante de 9.815.600$00 (nove milhões oitocentos e quinze mil e seiscentos Escudos) cada uma, com as datas de vencimento das referidas prestações (Cf. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  3. No dia 3 de Abril de 2000, os Requerentes contraíram um empréstimo junto do …, destinado ao financiamento de necessidades pontuais de tesouraria, no montante de 200.000.000$00 (duzentos milhões de Escudos) – correspondentes a EUR 997.595,79 (novecentos e noventa e sete mil e quinhentos e noventa e cinco Euros e setenta e nove cêntimos), pelo prazo de 2522 dias (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  4. Nos termos do contrato de Empréstimo, o mesmo funcionava através de uma conta aberta em nome dos Requerentes, na qual o montante mutuado por débito naquela, era creditado na conta de depósito à ordem dos Requerentes, tendo sido aquele utilizado de acordo com o seguinte plano (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido):
  • 1.º: 100.000.000$00 ou EUR 498.797,90 em 03.04.2000;
  • 2.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.05.2000;
  • 3.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.06.2000;
  • 4.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.07.2000;
  • 5.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.08.2000;
  • 6.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.09.2000;
  • 7.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.10.2000;
  • 8.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 30.11.2000;
  • 9.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.12.2001;
  • 10.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 31.01.2001;
  • 11.º: 10.000.000$00 ou EUR 49.879,79 em 28.02.2001.
  1. O capital mutuado foi amortizado em 10 prestações mensais de EUR 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove Euros e cinquenta e oito cêntimos), vencendo-se a primeira em 28.08.2002 e a última em 28.02.2007 (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  2. Tal Empréstimo venceu juros calculados dia a dia à taxa correspondente à LISBOR a 180 dias em vigor no último dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros, acrescida de 1,00 pontos percentuais, arredondada para a fração oitava de ponto percentual igual ou superior (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  3. As taxas de juro aplicáveis foram as seguintes: taxa anual efetiva de 5,2456% e semestral de 2,6228% (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  4. Para garantia das obrigações decorrentes do Empréstimo, os Requerentes apresentaram um penhor de títulos sobre o lote das 22.828 ações detidas na Sociedade (Cf. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  5. No âmbito do referido empréstimo, os Requerentes declararam que suportaram encargos, a título de juros, que, em conformidade com os mapas de cálculo juntos com o pedido de pronúncia arbitral (Cf. Documentos n.ºs 8 e 9, cujo teor se dá por reproduzido), ascenderam ao montante total de EUR 230.117,89.
  6. Em 26 de Maio de 2021, o Banco … emitiu uma declaração de liquidação, que atesta que os Requerentes procederam, no âmbito do aludido empréstimo, ao pagamento de juros, no valor de EUR 211.957,69 (duzentos e onze mil novecentos e cinquenta e sete Euros novecentos e sessenta e nove cêntimos) (Cf. Documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  7. Por contrato de compra e venda de ações celebrado no dia 14 de março 2017, o Requerente alienou 28.333 ações, que detinha na Sociedade F... S.A. à H..., S.A., pelo valor global de EUR 5.821.674,86 (cinco milhões oitocentos e vinte e um mil e seiscentos e setenta e quatro Euros e oitenta e seis cêntimos) (Cf. Documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  8. Os Requerentes declararam a referida alienação no Quadro 9 do Anexo G da Declaração Modelo 3 de IRS, onde acresceram ao valor de aquisição dessas ações os juros suportados com dito Empréstimo contraído, que, em conformidade com os mapas de cálculo juntos com o pedido de pronúncia arbitral (Cf. Documentos n.ºs 8 e 9, cujo teor se dá por reproduzido), totalizariam o valor de EUR 230.117,89.
  9. Pela Ordem de Serviço n.º OI2020..., de 28 de setembro de 2020, foi determinado o procedimento inspetivo interno aos Requerentes, na sequência de uma proposta de ação inspetiva para “assegurar a correta aplicação da alínea b) do artigo 48.º do Código do IRS, ou seja, aferir a formação do valor de aquisição a título oneroso de partes sociais” (Cf. Documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  10. O âmbito do referido procedimento inspetivo foi parcial, em sede de IRS, com incidência temporal no período de 2017 (Cf. Documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  11. Os Requerentes foram notificados do Relatório de Inspeção contendo as correções resultantes da análise interna, as quais tiveram como documento base de análise a Declaração de Rendimentos Modelo 3, entregue em 08.06.2020, e identificada pelo número ... (Cf. Documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  12. Do referido Relatório resultou uma correção, em sede de IRS referente ao período de 2017, no valor de EUR 89.561,88 (oitenta e nove mil quinhentos e sessenta e um Euros e oitenta e oito cêntimos), pelo facto de a AT considerar que os encargos financeiros suportados pelos Requerentes com o Empréstimo contraído terão de ser excluídos para efeitos de apuramento da mais-valia mobiliária obtida no ano em questão, tal como resulta do aludido documento, que aqui se transcreve (Cf. Documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido):

Assim, no que diz respeito aos juros declarados se, por um lado, o sujeito passivo não logrou provar, documentalmente, que estavam inequivocamente associados à obtenção de capital para aquisição das ações, por outro, mesmo que o fizesse, esse encargo não poderia ser considerado inerente ao custo de aquisição das ações mas sim inerente ao custo do empréstimo contraído para aquisição dessas ações.

Sem prejuízo do referido, cabe por fim aferir, embora o sujeito passivo não tivesse assim declarado, se os juros relativos ao empréstimo poderiam ser considerados despesas suscetíveis de ser acrescidas, para efeitos de determinação das mais-valias, ao valor de aquisição das ações, uma vez que a alínea b) do artigo 51.º do CIRS prevê o acréscimo de despesas desde que (i) necessárias, (ii) efetivamente praticadas, e (iii) inerentes à aquisição de ações.

(…).

Ora, se é admissível que para um determinado sujeito passivo seja indispensável recorrer a um empréstimo, para adquirir um conjunto de ações, essa terá de ser considerada uma condição que é inerente a esse sujeito passivo e não, propriamente, à aquisição de ações. Com efeito, contrair um empréstimo não é uma condição indissociável à aquisição de um lote de ações, porquanto é objetivamente possível adquirir (essas ou outras) ações sem recurso a um empréstimo.

Resulta, então, que os encargos financeiros incorridos com a aquisição de partes sociais, não podem influenciar a determinação do valor de aquisição a título oneroso de partes sociais.

(…).

Face ao exposto são excluídos, para efeitos de apuramento da mais valia mobiliária, atento o estatuído na alínea b) do artigo 48.º do Código do IRS conjugado com a alínea b) do artigo 51.º do mesmo diploma, os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais, no valor de EUR 230.117,89.

 

  1. Os Requerentes foram notificados do ato de liquidação em causa nos presentes autos – consubstanciado nos atos tributários de demonstração de liquidação de IRS, de demonstração de acerto de contas e de demonstração de liquidação de juros – (Cf. Documentos n.ºs 3, 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  2. Os Requerente não procederam, atempadamente, ao pagamento do ato de liquidação aqui controvertido, no montante total de EUR 98.492,02, tendo, por esse motivo, sido citados pessoalmente para o processo de execução fiscal n.º ...2021... (Cf. Documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  3. Em 28 de Outubro de 2021, os Requerentes efetuaram o pagamento no valor global de EUR 100.593,46 (o qual resulta da soma dos seguintes valores: EUR 98.492,02 referente ao valor da liquidação aqui em crise; EUR 901,42 relativo a juros de mora e EUR 1.200,02 a título de encargos processuais) (Cf. Documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  4. No dia 19 de novembro de 2021, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa, peticionando a anulação do ato de liquidação de IRS em causa nos presentes autos, com todas as consequências legais, nomeadamente o reembolso aos Requerentes do valor pago em excesso, a título de imposto e de encargos resultantes do processo de execução fiscal n.º ...2021..., acrescido dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos por lei (Cf. Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  5. Na sequência da reclamação graciosa apresentada, a AT emitiu o respetivo projeto de decisão, no âmbito do qual projetou indeferir a reclamação graciosa com base no argumento de que os juros suportados não consubstanciam despesas “necessárias” e “inerentes” à operação de aquisição de ações em causa, pelo que seriam de desconsiderar do cálculo da mais-valia mobiliária em apreço (Cf. Documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido).
  6. Os Requerentes não exerceram o seu direito de audição, pelo que a AT emitiu a decisão final que confirmou o indeferimento da reclamação graciosa apresentada, que aqui se controverte.

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Não ficou provado que:

 

  1. O empréstimo contraído pelos Requerentes, em 3 de Maio de 2000, junto do …, no valor de 200.000.000$00 (duzentos milhões de Escudos), se destinou à aquisição das 22.828 ações.

 

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

  1. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante “CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
  3. Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7, e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, estão assentes, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

  1. Atendendo a que os Requerentes não juntaram quaisquer meios de prova que comprovassem, de forma inequívoca, que empréstimo por eles contraído, em 3 de Maio de 2000, junto do …, no valor de 200.000.000$00 (duzentos milhões de Escudos), se destinou à aquisição das 22.828 ações, considera-se não provado, com relevo para a decisão, o facto supra indicado – III.2. FACTOS NÃO PROVADOS, alínea A) –.

 

  1. O depoimento das testemunhas ouvidas não logrou provar factos suscetíveis de influenciar a decisão da causa.

 

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

A questão que cumpre apreciar, segundo a posição das partes, consiste em determinar se os encargos financeiros correspondentes a juros suportados com o empréstimo contraído pelos Requerentes, em 3 de Maio de 2000, junto do …, no valor de 200.000.000$00 (duzentos milhões de Escudos), estão abrangidos pelos conceitos de “(...) despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, (...)”, estabelecidos na alínea b), do n.º 1, do artigo 51.º, do CIRS.

 

As mais-valias são incrementos patrimoniais, tais como definidos nos artigos 9.º e 10.º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “CIRS”), inserindo-se nos rendimentos de Categoria G, os quais correspondem, essencialmente, a ganhos resultantes de uma valorização dos bens (os denominados “ganhos traduzidos pelo vento” ou windfall gains no dizer anglo-saxónico), cujo tratamento fiscal na legislação portuguesa contém muitas especificidades, desde logo face à opção, por parte do legislador, de apenas tributar as mais-valias no momento da realização

 

Com efeito, constituem mais-valias, no presente caso, os ganhos obtidos, que resultem da alienação onerosa de partes sociais ou de outros valores mobiliários, sendo o ganho sujeito a IRS constituído pela diferença entre o valor de realização (valor da efetiva contraprestação) e o valor de aquisição (custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal), líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, se for caso disso (Cf. alínea b), do n.º 1, do artigo 10.º, alínea f), do n.º 1, do artigo 43.º, alínea b), do artigo 48.º, todos do CIRS).

 

Tratando-se de valores mobiliários da mesma natureza e que confiram idênticos direitos, para o cálculo das mais-valias considera-se que os títulos alienados são os adquiridos há mais tempo (Cf. alínea d), do n.º 6, do artigo 43.º, do CIRS).

 

De referir que o valor de aquisição ou equiparado de partes sociais é, nos termos do n.º 1, do artigo 50.º, do CIRS, corrigido pela aplicação de coeficientes para o efeito aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, sempre que tenham decorrido mais de vinte e quatro meses entre a data da aquisição e a data da alienação ou afetação.

 

Por outro lado, e para o que aqui releva, diz-nos a alínea b), do n.º 1, do artigo 51.º, do CIRS, que:

 

1- Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem:
(...)
b) As despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, nas situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 10.º.

 

Assim, e apesar das mais-valias constituírem acréscimos patrimoniais não decorrentes da atividade produtiva, é incontornável que o “ganho obtido” – artigo 10.º, n.º 1, do CIRS –, pode resultar da assunção de toda uma séria de despesas/encargos/custos, sem os quais aquele não existiria, ou não assumiria a expressão quantitativa que tais encargos possibilitam (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo 0585/09 de 18.12.2009).

 

Nessas hipóteses, em que essa expressão quantitativa do “ganho” tenha subjacente a realização de despesas que contribuem necessária e decisivamente para a sua epifania, haverá que as tomar em linha de conta na medida em que só atribuindo-lhes relevância se atingirá a real capacidade contributiva do sujeito, tributando-o, em conformidade, pelo “ganho” líquido, não podendo deixar de se estabelecer uma relação de mútua interferência causal entre as despesas que sejam conditio da existência da mais-valia, ou da sua dimensão quantitativa, e os ganhos que sem elas não existiriam, ao menos no valor que aquelas propiciaram (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo 0585/09 de 18.12.2009).

 

Conforme se pronunciou o Tribunal Arbitral, no âmbito do processo n.º 300/2014-T: “Deverá considerar-se despesa “necessária e inerente”, para efeitos do disposto no artigo 51.º, al. b), do CIRS, toda a despesa que se assuma como conditio sine qua non – indissociável, portanto – do rendimento concretamente obtido, porque traduzida numa despesa necessária para a existência do próprio rendimento sujeito a imposto na expressão quantitativa, que aquela lhe faz acrescer e não apenas as despesas que sejam formalmente indissociáveis do negócio, sem as quais o mesmo não poderá ser realizado formalmente.

 

In casu, o legislador não determinou qualquer presunção de custos, nem concretizou a sua estipulação forfettaria, mas antes um regime analítico-personalizado de valoração das “despesas necessárias” para a aquisição e alienação de onde emerge o rendimento sujeito a imposto.

 

De acordo com este critério, as legalmente designadas “despesas necessárias, inerentes à aquisição e alienação”, não serão apenas as despesas formalmente necessárias à aquisição e alienação, ou seja, aquelas que se assumem como conditio sine qua non da válida realização do negócio no plano formal, outrossim as que são concreta e materialmente necessárias e determinantes da emergência ou obtenção do ganho obtido.   

 

Pois, o legislador visa tributar os ganhos, que se traduzam no aumento do património do sujeito passivo, em conformidade com os princípios constitucionais, em especial o princípio da capacidade contributiva.

 

O primeiro fundamento deste princípio é encontrado no princípio da igualdade (artigo 13.º, da CRP), de modo a que a distribuição dos encargos tributários seja feita de acordo com a capacidade de cada um, isto é, exigindo-se um critério idêntico para todos os cidadãos na repartição de impostos e sendo esse critério o da capacidade contributiva (assim, no Acórdão n.º 348/97 e, mais recentemente, nos Acórdãos n.ºs 695/2014 e 590/2015). A capacidade contributiva é, assim, a medida da diferença. E, a partir da sua articulação com os demais princípios materiais da Constituição fiscal – em particular o artigo 103.º, da CRP – que podemos retirar o princípio da capacidade contributiva, ao pressupor uma repartição justa dos encargos de acordo com a capacidade de cada um, a resposta à demanda constitucional de uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (artigo 103.º, n.º 1), a que não deixa de se referir o Acórdão n.º 211/2003 – e, bem assim, vê-lo concretizado no princípio de a tributação incidir sobre o rendimento real dos contribuintes (artigo 104.º, n.º 2), caso se admitisse que a disposição constitucional em causa tem um leque de destinatários mais vasto que o da sua letra e tomando-se por seguro, como faz JOSÉ CASALTA NABAIS, que este preceito constitucional mais não é do que uma concretização, uma explicitação dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal (Direito Fiscal, cit., p. 171).” (Cf. Decisão arbitral, processo n.º 331/2019-T)

 

Em síntese, e como escreve SÉRGIO VASQUES, o princípio da capacidade contributiva constitui o pressuposto, o limite e o critério da tributação (Cf. Manual de Direito Fiscal, reimpressão, Edições Almedina, S.A., Coimbra, 2015, p. 296).

 

Com efeito, e mais concretamente, para o imposto sobre o rendimento, “o princípio da capacidade contributiva implica, (...), o chamado princípio do rendimento líquido, segundo o qual apenas o montante do rendimento líquido constitui (verdadeiro) rendimento para o pagamento dos impostos, ou seja, que a cada categoria de rendimento sejam deduzidas as despesas específicas para a sua obtenção. Quer isto dizer que, em princípio, todos os gastos necessários a produção ou obtenção de determinado rendimento, como expressão negativa da capacidade contributiva que são, devem ser excluídos desse rendimento.” (Cf. José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 520 e 521).

 

Ao que acresce o estipulado no artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”), no qual se refere que “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”, e bem assim, na “situação patrimonial, incluindo os legítimos encargos, do agregado familiar” (Cf. artigo 6.º, n.º 1, al. b), do citado diploma).

 

Dito isto, e de acordo com o aludido princípio constitucional, é necessário existir uma correspondência entre as mais-valias ou incrementos patrimoniais e a capacidade contributiva do sujeito passivo e para tanto tem de ser tidas em consideração para o seu cálculo as despesas, desde que necessárias (e apenas estas), para obter um aumento patrimonial.

 

Pois, caso contrário, e reiterando o já dito no Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 162/2004, “um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha reta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real.”. (negrito nosso)

 

Ora, conforme já referido, o regime jurídico do IRS, estatui que o ganho sujeito a IRS é constituído pela mais valia resultante da alienação onerosa de partes sociais, que assenta na diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (Cf. artigo 10.º, n.º 4, al. a), do CIRS), deduzido as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação (Cf. artigo 51.º, n.º 1, al. b), do CIRS).

 

Na interpretação dos conceitos do artigo 51.º, do CIRS (que encerram alguma margem de indeterminação), e atendendo ao supra exposto, é fundamental ter em consideração os princípios constitucionais e legais sobre que assenta, em especial o princípio da igualdade e da capacidade contributiva, na medida em que se exige um nexo de causalidade entre o incremento patrimonial e a tributação do rendimento real.

 

Pois, dado que se trata, no artigo 51.º, do CIRS, de despesas necessárias (e apenas estas, de modo a que não se abram portas a conluios que favoreçam a fraude fiscal) à obtenção do rendimento, a regra aí prevista é uma concretização, relativamente ao cálculo das mais valias, do princípio da capacidade contributiva e, em particular, do princípio da tributação do rendimento líquido objetivo – princípios estruturantes do CIRS.

 

Aqui chegados, cumpre, assim, determinar se os encargos financeiros (juros), suportados pelos Requerentes, no âmbito do empréstimo por eles contraído, estão intrinsecamente conectados com a aquisição das aludidas ações, e demonstrar se sem os encargos os Requerentes teriam obtido a mais valia.

 

Vejamos:

 

Decorre da factualidade dada como assente que o fim visado pelo aludido empréstimo, contraído pelos Requerentes, no montante de 200.000.000$00, assentou no financiamento de necessidades pontuais de tesouraria, tendo aqueles suportado juros, no valor de EUR 211.957,69 (Cf. Documentos n.ºs 7 e 10 juntos com o pedido de pronúncia arbitral). 

 

Ficou, ainda, provado que no momento da assinatura do dito contrato de compra e venda de ações (que ocorreu mais de um mês antes da celebração do contrato de empréstimo), o Requerente pagou, a título de sinal e princípio de pagamento, o montante de 98.157.000$00 – equivalente a EUR 489.605.05 – a que corresponde a 50% do valor global do preço acordado para a compra das mencionadas ações (Cf. Documentos n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

Encontra-se, também, demonstrado, que os Requerentes alienaram mais ações (28.333) do que aquelas que foram adquiridas (22.828) no âmbito do referido contrato de compra e venda de ações (Cf. Documentos n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

Ora, atenta a realidade factual trazida aos autos e aos elementos probatórios que a suportaram, é inequívoco que não existe uma relação direta entre tal empréstimo e a aquisição das 22.828 ações, ou seja, os Requerentes não lograram demonstrar o respetivo nexo de causalidade, não resultando dos autos que sem o empréstimo aqueles não teriam adquirido tais ações e criado, posteriormente, o rendimento, aquando da sua alienação, porquanto:

 

O contrato de empréstimo, junto pelos Requerentes, ao pedido de pronúncia arbitral como Documento n.º 7, indica expressamente que o mesmo se destinava ao financiamento de necessidades pontuais de tesouraria, inexistindo qualquer referência, nesse mesmo documento, a um outro destino, que não fosse aquele, ou seja, não consta de tal contrato uma única menção à aquisição das ditas ações.

 

Mais, não foi carreado aos autos pelos Requerentes outros meios de prova que viessem contrariar o teor do aludido contrato ou que permitissem extrair que o referido empréstimo visava o financiamento da aquisição das mencionadas ações.

 

Aliás, os Requerentes contraem o dito empréstimo, no montante de 200.000.000$00, em 03 de abril de 2000, ou seja, decorrido mais de um mês da assinatura do contrato de compra e venda de ações, bem sabendo que aquando da sua celebração, já haviam pago, a título de sinal e princípio de pagamento, a importância de 98.157.000$00.

 

Com efeito, quando os Requerente recorrem ao aludido empréstimo, naquele valor, já tinham procedido ao pagamento (no momento da assinatura do contrato de compra e venda de ações de 25 de fevereiro de 2000), da importância de 98.157.000$00, o que corresponde a 50% do valor global do preço acordado para a compra das mencionadas ações, do que se conclui que não ficou demonstrada a incapacidade daqueles para o pagamento global das mesmas e a consequente necessidade do empréstimo para a sua aquisição na totalidade.

 

Dito de outra forma, os Requerentes não lograram provar que não tinham capital próprio para adquirir as 22.828 ações (antes pelo contrário, pois, metade do valor global do preço acordado para a respetiva compra, foi pago, sem recurso a qualquer financiamento) e, por, conseguinte, que teriam necessariamente de recorrer à banca (antes pelo o contrário, pois, a ser imprescindível, só o seria para adquirir metade das ações), o que demonstra a indispensabilidade do aludido empréstimo.

 

Por outro lado, os Requerentes alienaram mais ações (28.333) do que aquelas que foram adquiridas (22.828), no âmbito do contrato de compra e venda de ações de 25 de fevereiro de 2000, pelo que, mesmo que o contrato de empréstimo em apreço se destinasse à aquisição das 22.828 ações, as restantes 5.505 ações não teriam qualquer relação com este, nem tampouco com as despesas que dele decorrem (juros). 

 

Por tudo o que foi dito, é manifesto que os elementos de prova carreados aos autos pelos Requerentes não comprovam, de forma inequívoca, que o empréstimo foi contraído para a aquisição das 22.828 ações, nem tampouco demonstraram a incapacidade daqueles para o pagamento global das mesmas e, a consequente, necessidade do empréstimo para o efeito, pelo que as despesas dele decorrente (juros) não são conditio sine qua non do rendimento concretamente obtido.

 

Com efeito, verifica-se que o empréstimo contraído não está intrinsecamente conectado à aquisição das ditas ações, não sendo necessário para as adquirir (na medida em que não foi feita prova pelos Requerentes neste sentido, antes pelo contrário) e, efetivamente, se não é necessário, também o não são as despesas inerentes ao empréstimo, nomeadamente, os juros.

 

Aqui chegados, não restam dúvidas, que não devem ser aceites como despesas necessárias, ou inerentes à aquisição (por não terem qualquer relação intrínseca, não sendo desta indissociável), os juros pagos pelos Requerentes, no âmbito do referido empréstimo.

 

Desta feita, e como já se disse, não decorre dos autos, que sem a obtenção daquele empréstimo os Requerentes não poderiam ter adquirido e alienado as ditas ações e criado o rendimento e a mais-valia.

 

Assim, e face ao exposto, as despesas (juros) em que incorreram os Requerentes, no âmbito do aludido empréstimo, por não serem necessários, nem tampouco inerentes à aquisição das ditas ações, pelos motivos acima explanados, não estão abrangidas pela al. b), n.º 1, do artigo 51.º, do CIRS, devendo, por isso, ser mantidas na ordem jurídica as liquidações aqui controvertidas, as quais não enfermam de qualquer ilegalidade.

 

Neste sentido, os atos tributários aqui em crise não resultam de erros de facto e/ou de direito imputáveis à Requerida, pelo que não assiste aos Requerentes o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, da LGT.

 

Por fim, ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, prevista no artigo 130.º, do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios invocados pelos Requerentes.

 

 

V. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar o pedido de pronúncia arbitral inteiramente improcedente e, em consequência, condenar os Requerentes no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DA CAUSA

Os Requerentes indicaram € 98.492,02 (noventa e oito mil e quatrocentos e noventa e dois e dois cêntimos) como valor da causa no pedido de pronúncia arbitral (correspondente ao valor dos atos de liquidação contestados), não tendo a Requerida se pronunciado a este respeito. Cumpre ao Tribunal fixar o valor da causa nos termos da lei (questão de conhecimento oficioso), tal como reconhecido pelo Douto Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 14.10.2020, proferido no processo n.º 062/18.4BCLSB, no qual se pode ler:

“A fixação do valor de uma acção visa assegurar finalidades de ordem pública, e que, por conseguinte, tal questão é do conhecimento oficioso do tribunal, que deve sindicar a correcção de um eventual acordo, expresso ou tácito, das partes, e o legislador de 2008, cremos, fez uma clara distinção entre o poder das partes e o poder do juiz: aquelas têm o poder, e o dever, de indicar o valor da causa; este tem o poder-dever de o fixar, nunca ficando dispensado de examinar se a indicação feita pelas partes, por acordo expresso ou tácito, está conforme à realidade, segundo os critérios legais.”

No presente processo, o pedido abrange não só a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021..., e dos atos de liquidação que dela foram objeto, e o consequente reembolso do montante de € 98.492,02, com também abrange o reembolso do valor pago a título de juros de mora (€ 901,42) e encargos / custas resultantes do processo de execução fiscal n.º ...2021... (€ 1.200,02), pelo que também estes valores influenciam a utilidade económica do pedido e devem ser considerados na determinação do valor da causa (conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 97.º-A, n.º 1, alíneas a) e e), do CPPT, 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT, e 297.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Nestes termos, fixa-se ao processo o valor de € 100.593,46 (cem mil e quinhentos e noventa e três euros e quarenta e seis cêntimos).

 

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas, a cargo dos Requerentes, em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.]

Lisboa, 21 de Dezembro de 2022

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

 

Rita Correia da Cunha

(Presidente, com voto de vencido em anexo)

 

Arlindo José Francisco

(Árbitro Adjunto)

 

 

Susana Mercês

(Árbitra Adjunta)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VOTO DE VENCIDO

Em 30.03.2022, os Requerentes apresentaram pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) com vista (i) à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2017, da demonstração de acerto de contas n.º 2021..., e da demonstração de liquidação de juros n.º 2021..., das quais resultou um valor de imposto e juros compensatórios a pagar de €98.492,02, (ii) à declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021..., que teve como objeto os referidos atos de liquidação, (iii) ao reembolso do valor pago em excesso, a título de imposto e juros compensatórios (€98.492,02), de juros de mora (€901,42), e de encargos / custas resultantes do processo de execução fiscal n.º ...2021... (€1.200,02), no total de €100.593,46, e (iv) à condenação da AT no pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos por lei.

Acompanhando o sentido decisório da Decisão Arbitral, que determinou a improcedência do PPA, a minha divergência em relação à mesma tem origem na apreciação da prova testemunhal produzida na reunião de dia 19.09.2022, e na análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores relevante para a questão decidenda. Por motivos de clareza, passo a expor a apreciação da matéria de facto e de Direito pertinente para o caso sub judice que me parece mais correta à luz do direito constituído e da jurisprudência portuguesa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

  1. Em 25.02.2000, por contrato de compra e venda de ações celebrado entre I... e J..., na qualidade de vendedores, e o Requerente e a sociedade G... S.A., na qualidade de compradores, o Requerente adquiriu um lote de 22.828 ações, com o valor nominal de 1.000$00 cada, na sociedade F... S.A. – “F...” (Cf. Documento n.º 6 junto ao PPA).
  2. Pela aquisição das referidas ações, o Requerente acordou pagar o preço global de 196.313.000$00 – equivalente a €979.205,12 – o qual foi pago faseadamente e da seguinte forma: (i) o montante de 98.157.000$00, a título de sinal e princípio de pagamento, no ato de assinatura do contrato de compra e venda de ações; e (ii) dez prestações de 9.815.600$00, a primeira no último dia do mês seguinte ao da assinatura do contrato, e as demais no último dia de cada mês imediatamente sucessivo (Cf. Documento n.º 6 junto ao PPA).
  3. Para garantia do bom pagamento das prestações referidas no ponto anterior, o Requerente entregou aos vendedores, na data da assinatura do contrato de compra e venda de ações, dez letras de câmbio, no montante de 9.815.600$00 cada uma, com as datas de vencimento das mesmas prestações (Cf. Documento n.º 6 junto ao PPA).
  4. No dia 03.04.2000, os Requerentes contraíram um empréstimo junto do … no montante de 200.000.000$00 – correspondente a €997.595,79 (Cf. Documento n.º 7 junto ao PPA).
  5. Este empréstimo destinou-se à aquisição das 22.828 ações da sociedade F... pelo Requerente (Cf. testemunhos do Dr. D... e do Dr.E...).
  6. Para garantia das obrigações decorrentes deste empréstimo, os Requerentes apresentaram um penhor de títulos sobre o lote das 22.828 ações detidas na sociedade F...  (Cf. Documento n.º 7 junto ao PPA).
  7. Nos termos do contrato deste empréstimo, o mesmo deveria ser utilizado de acordo com o seguinte plano:

1.º: €498.797,90 em 03.04.2000;

2.º: €49.879,79 em 31.05.2000;

3.º: €49.879,79 em 30.06.2000;

4.º: €49.879,79 em 31.07.2000;

5.º: €49.879,79 em 31.08.2000;

6.º: €49.879,79 em 30.09.2000;

7.º: €49.879,79 em 31.10.2000;

8.º: €49.879,79 em 30.11.2000;

9.º: €49.879,79 em 31.12.2001;

10.º: €49.879,79 em 31.01.2001;

11.º: €49.879,79 em 28.02.2001.

(Cf. Documento n.º 7 junto ao PPA).

  1. O capital mutuado foi amortizado em 10 prestações mensais de €99.759,58, vencendo-se a primeira em 28.08.2002 e a última em 28.02.2007 (Cf. Documento n.º 7 junto ao PPA).
  2. Os Requerentes procederam, no âmbito do aludido empréstimo, ao pagamento de juros no valor global de €211.957,69 (Cf. “Declaração de Liquidação” emitida pelo … em 26.05.2021, junta ao PPA como documento n.º 10).
  3. Por contrato de compra e venda de ações celebrado no dia 14.03.2017, o Requerente alienou 28.333 ações que detinha na sociedade F... e 100 ações detidas na sociedade F... S.A. à sociedade H..., S.A., pelo valor global de €5.821.674,86 (Cf. Documento n.º 11 junto ao PPA).
  4. Relativamente ao ano de 2017, os Requerentes apresentaram as seguintes declarações modelo 3 de IRS:

 

(Cf. Informação contida no Ofício n.º ... – DST/2021, de 29.12.2021, junto ao PPA como documento n.º 1).

  • No Quadro 9 do Anexo G da declaração modelo 3 com a identificação ... – 2017 – ...– 43 (a última das declarações modelo 3 apresentadas), os Requerentes adicionaram, ao valor de aquisição dessas ações, o montante de €230.117,89 (Cf. Informação constante do Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como documento n.º 12).
  • Por Ofício n.º..., de 12.5.2020, foi solicitado ao Requerente o envio dos documentos de suporte que titularam as operações supra mencionadas (Cf. Informação constante do Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como documento n.º 12).
  • Em 16.6.2020, o Requerente disponibilizou os elementos solicitados, incluindo mapas de cálculo dos juros suportados com o empréstimo, no montante total de €230.117,89 (Cf. Documentos n.ºs 8 e 9 juntos ao PPA, e informação constante do Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como documento n.º 12).
  • Pela Ordem de Serviço n.º OI2020..., de 28.09.2020, foi determinado o procedimento inspetivo interno ao IRS do ano 2017 dos Requerentes, na sequência de uma proposta de ação inspetiva para “assegurar a correta aplicação da alínea b) do artigo 48.º do Código do IRS, ou seja, aferir a formação do valor de aquisição a título oneroso de partes sociais” na declaração modelo 3 com a identificação ...– 2017 –...–...(Cf. Documento n.º 12 junto ao PPA).
  • Os Requerentes foram notificados do Relatório de Inspeção Tributária (Ofício n.º..., de 24.05.2021), do qual resultou uma correção, em sede de IRS do ano 2017, no valor de €89.561,88, pelo facto de a AT ter concluído que os encargos financeiros (juros) suportados pelos Requerentes com o empréstimo contraído em 03.04.2000 são de excluir para efeitos de apuramento da mais-valia mobiliária obtida em virtude da alienação das ações na sociedade F..., com os seguintes fundamentos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Cf. Informação constante do Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como documento n.º 12).

  1. Na sequência deste Relatório de Inspeção Tributária, os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.º 2021 ..., da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., e da demonstração de liquidação de juros n.º 2021 ..., das quais resultou um valor de imposto e juros compensatórios a pagar de €98.492,02 (Cf. Documentos n.ºs 3, 4 e 5 juntos ao PPA).
  2. Os Requerente não procederam, atempadamente, ao pagamento destes atos de liquidação, tendo, por esse motivo, sido citados pessoalmente no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2021... (Cf. Documento n.º 13 junto ao PPA).
  3. Em 28.10.2021, os Requerentes efetuaram o pagamento do montante global de €100.593,46, o qual resulta da soma dos seguintes valores: €98.492,02, a título de imposto e juros compensatórios, referente ao valor dos atos de liquidação aqui em crise; €901,42, relativo a juros de mora; e €1.200,02, a título de encargos processuais/custas relativos ao processo de execução fiscal n.º ...2021... (Cf. Documento n.º 14 junto ao PPA).
  4. Na sequência deste pagamento, o processo de execução fiscal n.º ...2021... foi extinto a 30.10.2021 (Cf. Informação constante do processo administrativo, a fls. 151 e 152).
  5. No dia 18.11.2021, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa (que deu origem ao processo n.º ...2021...), peticionando a anulação dos atos de liquidação em causa nos presentes autos, por vício de violação de lei e da Constituição, com todas as consequências legais, nomeadamente, o reembolso aos Requerentes do valor pago em excesso, a título de imposto e de encargos resultantes do processo de execução fiscal n.º ...2021..., acrescido dos juros indemnizatórios (Cf. Documento n.º 2 junto ao PPA).
  6. Na sequência da reclamação graciosa apresentada, a AT notificou os Requerentes do projeto de decisão de indeferimento (Ofício n.º ..., de 24.03.2021) (Cf. Documento n.º 15 junto ao PPA).
  7. Os Requerentes não exerceram o seu direito de audição, pelo que a AT notificou os Requerentes, em 03.01.2022, da decisão final que confirmou o indeferimento da reclamação graciosa apresentada (Ofício n.º ... – DST/2021, de 29.12.2021), com fundamento na análise que se transcreve:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Cf. Documento n.º 1 junto ao PPA).

  1. Os Requerentes apresentaram o PPA que deu origem ao presente processo em 30.03.2022.

 

§2. Factos não provados

Atendendo às várias soluções plausíveis das questões de Direito pertinentes no caso sub judice, considerei os seguintes factos como não provados:

  1. Os Requerentes não tinham, à data da aquisição das ações na sociedade F... (25.02.2000), fundos ou capacidade financeira para pagar o preço global das mesmas (Cf. alegado pelos Requerentes nos artigos 94.º e 137.º do PPA).
  2. O empréstimo contraído em 03.04.2000 pelos Requerentes junto do … foi necessário para os Requerentes terem fundos para cumprir as condições de pagamento acordadas no contrato de compra e venda das ações na sociedade F... (celebrado em 25.02.2000) (Cf. alegado pelos Requerentes nos artigos 19.º, 94.º, 97.º e 136.º do PPA).

 

§3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Considerei provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, da prova testemunhal produzida, e dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados, e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

No tocante à prova testemunhal produzida, cumpre referir que, na reunião de dia 19.09.2022, foram ouvidas duas testemunhas: o Dr. D... e o Dr. E... . Com relevo para a decisão, ambas as testemunhas declararam que o empréstimo contraído pelos Requerentes junto do … em 03.04.2000 se destinou à aquisição do lote de 22.828 ações na sociedade F... pelo Requerente em 25.02.2000.

Não vendo motivo para questionar a isenção das testemunhas, que revelaram conhecimento direto dos factos sobre os quais foram inquiridas, e a veracidade dos respetivos testemunhos, a minha convicção é a de que o empréstimo contraído pelos Requerentes junto do … destinou-se efetivamente à aquisição do lote de 22.828 ações na sociedade F... . Se é verdade que o pagamento das duas primeiras prestações do preço das ações (em 25.02.2000 e 31.03.2000, respetivamente) ocorreu antes da primeira tranche do capital mutuado ser disponibilizada pelo … aos Requerentes (em 03.04.2000), também é verdade que tal discrepância temporal é facilmente justificada por atrasos decorrentes das formalidades envolvidas na concessão de crédito (tal como confirmado pela testemunha Dr. E...). A referência no contrato de empréstimo de que este se destina ao “financiamento de necessidades pontuais de tesouraria” não parece particularmente relevante, na medida em que não afasta a conexão entre o empréstimo e a aquisição das ações em causa.

Acresce que ocorreu uma coincidência ao nível do montante dos pagamentos realizados pelos Requerentes no âmbito do contrato de compra e venda das ações em apreço (de 25.02.2000) e dos montantes disponibilizados pelo … aos Requerentes no âmbito no contrato de empréstimo (de 03.04.2000), assim como ocorreu uma coincidência temporal significativa entre estas transações (oito tranches do capital mutuado foram disponibilizadas pelo … exatamente no mesmo dia em que os Requerentes se encontravam obrigados a efetuar o pagamento de prestações do preço das ações). Estas circunstâncias acordam com as declarações das testemunhas supra referidas, pelo que, na minha perspetiva, a prova documental e a prova testemunhal produzida no âmbito do presente processo é suficiente para concluir que o empréstimo contraído pelos Requerentes junto do … se destinou à aquisição do lote de 22.828 ações na sociedade F... .

Já relativamente aos factos elencados supra como não provados, os documentos juntos ao processo nada referem, e as declarações das testemunhas não lograram provar os mesmos. O Dr. D... testemunhou que o Requerente foi aconselhado no sentido de realizar o investimento com recurso a um empréstimo e não a capitais próprios, independentemente de dispor ou não dos respetivos fundos. Nenhuma das testemunhas afirmou ter conhecimento da situação financeira dos Requerentes e que, sem o empréstimo junto do …, estas não teriam fundos para adquirir as ações na sociedade F... .

Ora, no caso sub judice, o ónus da prova de que os juros devem ser considerados como uma despesa relevante para efeitos da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS impende sobre os Requerentes, cabendo-lhes demonstrar que se trata de uma despesa necessária e inerente à aquisição das ações na sociedade F... . Isto porque a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que, à luz do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, assim que a AT prova a factualidade que a levou a não aceitar determinado custo / despesa, ou contesta a verificação dos pressupostos de que depende a respetiva dedução, é ao sujeito passivo que compete fazer prova que o custo / despesa cumpre os respetivos pressupostos de dedutibilidade (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.11.2016, processo n.º 0600/15; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 02.02.2010, processo n.º 03669/09; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 02.02.2010, processo n.º 03669/09).

Acresce que o facto de o Requerente ter procedido ao pagamento de mais de 50% do preço das ações antes de contrair o empréstimo junto do … (em 03.04.2000) indicia que os Requerentes tinham, à data da aquisição das ações na sociedade F... (25.02.2000), capacidade financeira para pagar a maior parte do preço das mesmas sem recorrer a um empréstimo bancário, e que o empréstimo contraído junto do … não foi necessário para os Requerentes terem fundos para cumprir a totalidade das condições de pagamento acordadas no contrato de compra e venda das ações na sociedade F... .

Pelo exposto, conclui-se que não ficou provado que, à data da aquisição das ações na sociedade F... (25.02.2000), os Requerentes não tinham fundos ou capacidade financeira para adquirir as mesmas, ou que o empréstimo contraído em 03.04.2000 pelos Requerentes junto do … foi necessário para os Requerentes terem fundos para cumprir as condições de pagamento acordadas no contrato de compra e venda das ações na sociedade F... .

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

Questão decidenda

No ano de 2017, o artigo 51.º do Código do IRS (redação dada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro) dispunha o seguinte:

“Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem:

 

  1. Os encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos, e as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, bem como a indemnização comprovadamente paga pela renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a esses bens, nas situações previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º;

 

  1. As despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, nas situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 10.º”

A legalidade dos atos de liquidação aqui sindicados (emitidos na sequência de procedimento inspetivo) deve ser analisada em conformidade com o conteúdo do Relatório de Inspeção Tributária de 24.05.2021 (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.09.2020, processo n.º 0921/15.6BEPRT), e não de acordo com a fundamentação contida na decisão de indeferimento da reclamação graciosa de 29.12.2021 (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 04.10.2017, processo n.º 0406/13). Isto por a fundamentação do ato de liquidação a posteriori não ser relevante para a decisão judicial / arbitral, e o Tribunal Arbitral ter de quedar-se pela formulação de um juízo sobre a legalidade do ato tal como ele ocorreu, apreciando a sua legalidade à luz da sua fundamentação contextual e contemporânea (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.11.2019, processo n.º 0859/04.2BEPRT; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.01.2016, processo n.º 0324/15).

Nos termos do referido Relatório de Inspeção Tributária, a correção em sede de IRS do ano 2017 que deu origem à emissão dos atos de liquidação aqui sindicados assenta na conclusão de que os encargos financeiros (juros) suportados pelos Requerentes com o empréstimo contraído em 03.04.2000 são de excluir para efeitos de apuramento da mais-valia mobiliária obtida em virtude da alienação das ações na sociedade F..., por (i) os documentos apresentados pelos Requerentes no decorrer do procedimento inspetivo não evidenciarem, de forma inequívoca, que os juros foram cobrados no âmbito de um empréstimo contraído para efeitos de aquisição das ações em causa (não tendo os Requerentes logrado provar que os mesmos estavam inequivocamente associados à obtenção de capital para a dita aquisição), e por (ii) os juros corresponderem a um encargo financeiro que não tem uma relação intrínseca e indissociável com a aquisição das ações, nem fazem parte da sua essência, tal como exigido pela alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS (na redação em vigor à data dos factos).

Conforme exposto supra, relativamente ao primeiro argumento, a minha convicção é a de que os Requerentes lograram provar que os juros em apreço estiveram associados à obtenção de capital para a aquisição de ações na sociedade F... . Interessa agora atentar ao segundo argumento contido no referido Relatório de Inspeção Tributária.

Tendo em consideração a posição das partes, a questão decidenda é a de saber se os juros suportados no âmbito do empréstimo contraído para adquirir as ações em causa deverão ser qualificados como despesas enquadráveis na alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS, ou seja, como “despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição” de participações sociais. As partes subscrevem conceitos diferentes de despesas “necessárias” e “inerentes” à aquisição de participações sociais.

Senão vejamos.

Conceito estrito de despesas “necessárias” e “inerentes” à aquisição de participações sociais subscrito pela AT / Requerida

No Relatório de Inspeção Tributária de 24.05.2021, a AT concluiu que os juros em causa não podem ser qualificados como despesa necessária e inerente à aquisição das ações em causa, para efeitos da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS, visto que os juros decorrentes de um empréstimo bancário constituem um custo financeiro inerente ao próprio empréstimo bancário, e não uma despesa inerente a uma aquisição de participações sociais. A fundamentação contida na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes e na resposta da Requerida ao PPA é essencialmente idêntica: as aquisições de participações sociais podem ocorrer na ausência de empréstimos bancários (e do pagamento de juros), pelo que despesas com juros não lhe são inerentes, antes dependendo da motivação subjetiva e capacidade económica subjetiva do agente económico que pretende adquirir as participações sociais. Ainda que um empréstimo se destine a financiar uma aquisição de participações sociais, os juros decorrentes do mesmo não são inseparáveis, indissociáveis, ou parte integrante da operação de aquisição das participações sociais, nem lhe dizem respeito de forma direta. Nesta perspetiva, despesas necessárias e inerentes à aquisição de participações sociais são as despesas que os sujeitos passivos têm obrigatoriamente de incorrer em resultado da operação, ou seja, aquelas despesas sem as quais, inelutavelmente, a aquisição não se poderia vir a realizar.

Este entendimento estrito do conceito de despesas “necessárias” e “inerentes” na alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS tem respaldo na jurisprudência dos Tribunais Superiores. No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.11.2009, processo n.º 0585/09, relativo a despesas suportadas com a amortização de dívidas contraídas para efeitos de garantia das quotas cedidas, pode ler-se:

“No critério legal, só as despesas inerentes são necessárias, pelo que só elas são relevantes.

Ora, o qualificativo “inerente”, logo etimologicamente - in re - contém, a se, uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável.

De outro modo: a despesa há-de ser integrante da própria alienação.
Não se vê, efectivamente, que outro sentido se possa atribuir à expressão “inerentes à alienação”.

A posição dos recorrentes fica-se pela necessidade da despesa, não se atribuindo então, rigorosamente, àquela expressão, qualquer sentido útil.

E, pelo contrário, há-de entender-se que ela não só traz em si um quid significante acrescentativo, como é mesmo a verdadeira subordinante do preceito.

Não basta, pois, como aliás se refere na sentença, que as despesas sejam conexas à obtenção do rendimento; é necessário que elas dele sejam indissociáveis.

Ora, não é a hipótese das despesas em causa, que apenas são conexas à alienação, não são dela inseparáveis: aquela podia perfeitamente ter lugar sem elas, ainda que por um valor diferente.”

Quanto a despesas suportadas com a extinção e pagamento de penhoras (necessárias para libertar os bens dos encargos que sobre eles recaiam), o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 03.03.2016, processo n.º 05182/11, veio dizer o seguinte:

“há que atender aos princípios da necessidade (despesas "necessárias" à alienação ou aquisição) e da inerência (despesas "inerentes" à alienação ou aquisição), pois a eles faz apelo o legislador ao consagrar tais expressões. Exige-se a concomitância dos dois princípios, já que eles se encontram conexionados entre si: «e as despesas necessárias (...), inerentes à (...)».

Despesas necessárias hão-de ser, pois, aquelas sem as quais a aquisição ou alienação não são possíveis. Assim, a título de mero exemplo, como não é possível vender um imóvel, validamente, sem ser por escritura pública, há uma relação de necessidade inerente entre as despesas da escritura e a alienação do bem.

Despesas "inerentes" à aquisição ou alienação são as despesas "necessárias" à concretização das mesmas mas que, além de necessárias à transmissão ou alienação, fazem parte da essência da própria aquisição ou alienação.

A penhora traduz uma apreensão do bem, não para possibilitar a sua alienação ou aquisição, mas para segurança e garantia e eventual preferência na realização de créditos através da venda (entenda-se aquisição ou alienação).

Ou seja, a remoção de obstáculos (da penhora), para abrir caminho a uma venda sem ónus ou encargos, é uma realidade exterior à alienação ou aquisição, que, está, na verdade, conexionada com estas, mas, não faz parte da essência intrínseca das mesmas. A aquisição ou alienação de um imóvel com ónus ou encargos será possível? Entendemos que a resposta é positiva. Normalmente, o que bem se compreende, a aquisição ou alienação é feita livre de ónus ou encargos. Todavia, em nosso modesto entendimento, pode ser efectuada sem essa condição.

Assim, sendo tais pagamentos conexos com a alienação, eles não se apresentam inerentes a esta. Sobre o mesmo bem penhorado podem incidir diversas penhoras, correspondentes a diversas quantias exequendas, que, no total, podem representar um valor, por mera hipótese, muito superior ao valor do próprio bem. O pagamento de todas essas quantias exequendas para libertar o bem de modo a poder ser alienado fora do processo, ou processos, executivo, assim, não representa uma despesa inerente à alienação que venha a ser feita.”

No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14.04.2015, processo n.º 06824/13, relativamente a despesas com a amortização de capital, juros, imposto do selo, seguros e provisão para despesas judiciais, conexas com o distrate de uma hipoteca associado a uma alienação de um imóvel, pode ler-se que o seguinte:

“do texto legal resulta a expressão despesas “necessárias” e “inerentes” pelo que devem ser interpretadas conforme a necessidade e a inerência da despesa face à alienação do imóvel, pelo que se coloca a questão de saber se tal “assumpção”, com os gastos inerentes, constitui despesa enquadrada naquele normativo, a considerar para efeitos de tributação da mais-valia respectiva. E, aí, a subordinante é, sem dúvida, “a inerência” da despesa à alienação.

No critério legal, só as despesas inerentes são necessárias, pelo que só elas são relevantes. Tal critério contém uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável.

De outro modo: a despesa há-de ser integrante da própria alienação.

Não se vê, efectivamente, que outro sentido se possa atribuir à expressão “inerentes à alienação”.

Não basta, pois, que as despesas sejam conexas à obtenção do rendimento, é necessário que elas dele sejam indissociáveis.

Ora, não é a hipótese das despesas em causa, que apenas são conexas à alienação, não são dela inseparáveis.

Regressando ao caso concreto, fácil é concluir que as despesas que o Recorrente apresenta relativas á obtenção do distrate da hipoteca, nomeadamente a amortização de capital, os juros, o imposto do selo, os seguros e a provisão para despesas judiciais com referência ao imóvel, são despesas inerentes ao contrato de empréstimo bancário e não despesas inerentes à alienação do imóvel.

O facto de o Recorrente ter contratualizado com uma instituição bancária um empréstimo/mútuo com hipoteca para adquisição do imóvel, não pode relevar para efeitos do cálculo da mais-valia. Se assim fosse qualquer sujeito passivo que recorre-se ao crédito bancário quando da aquisição de imóveis teria sempre uma mais-valia reduzida na sua alienação, uma vez que descontava todas despesas decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca, incluindo a amortização do capital e respectivos juros. Tais despesas podem eventualmente ser tidas em conta mas apenas como deduções à colecta de IRS.

Todas as verbas pagas a título de amortização do capital em divida e despesas a ele inerentes não podem obviamente ser consideradas para efeitos da alienação do imóvel uma vez que não estão com ela conexas, mas antes inerentes, ou conexas, com financiamento em si mesmo. Além disso o valor de aquisição em sede de IRS consiste no preço pago pelo imóvel, pelo que se fossem ainda considerados os custos com a amortização do financiamento para aquisição do imóvel estar-se-ia a assistir a uma duplicação do valor de aquisição.”

Mais recentemente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.11.2020, processo n.º 0245/17.4BELRA, distingue “comissões imobiliárias” e “despesas suportadas com a extinção e pagamento de penhoras” (ambas despesas conexas com a alienação de bens), aceitando as primeiras como despesas dedutíveis, porquanto estão, inequivocamente, conexas com a transação concreta na origem das mais-valias (sendo-lhe inerentes), e rejeitando a dedutibilidade das segundas, porquanto só são necessárias para libertar os bens dos encargos que sobre eles recaia (não sendo inerentes à alienação dos bens). A este respeito, o Doutro Tribunal veio dizer:

“temos que despesas inerentes à alienação são aquelas que são inseparáveis da alienação, que com esta têm uma relação intrínseca, que não meramente extrínseca e que dela são indissociáveis.

Com este pano de fundo, deparamos, in casu, com uma despesa que teve em vista a desoneração do imóvel alienado para ser entregue livre de ónus ou encargos, situação que não se vislumbra como indissociável da alienação.

Na verdade, embora tal despesa esteja conexionada com a venda não é inerente a esta, é-lhe exterior, tanto assim que nem sequer havia impedimento legal a que o imóvel tivesse sido vendido com esse ónus, embora tal venda não fosse oponível à execução (artigo 819º do C. Civil).

Por outro lado, como se refere na sentença recorrida, citando Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, 2.ª edição Almedina, pág. 140) e Paula Rosado Pereira (Estudos sobre o IRS, Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Cadernos IDEFF, n.º 2, Almedina, 2005, pág. 108) exemplos de despesas necessárias e efectivamente praticadas inerentes à aquisição e alienação são as relativas a registos e escrituras-públicas e a comissão paga ao agente imobiliário que intermediou a venda.

Além disso, como se retira da anotação ao artigo 51º do CIRC (Códigos Anotados & Comentados, IRS, Edição Julho 2015, Coordenação Prof.ª Doutora Glória Teixeira e Mestre Patrícia Anjos Azevedo, Lexit, o Informador Fiscal, página162/163 “Na esteira da tributação tendencial de rendimentos reais e efectivos este artigo confere relevância fiscal aos seguintes encargos e despesas na determinação dos ganhos (mais-valias) sujeitas a imposto: (…)

b) As despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à aquisição, nas situações a que se refere o art. 1º, n.º 1alínea a) - v.g. o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e os encargos notariais e de registo predial suportados com a aquisição do imóvel alienado - e, na redacção dada pela Lei 82-E/2014, de 31 de Janeiro, nas situações a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 1 do mesmo artigo.

c) As despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação, nas situações a que se referem as alíneas), b) e c) do art.º 10.º - considerando-se como tais aquelas que se mostrem inequivocamente conexas com a transacção concreta na origem da mais-valia tributável (v.g. comissões de mediação imobiliária ou de corretagem) e não sendo enquadráveis, nesta vertente, quaisquer outras como encargos com processos judiciais de despejo de ocupantes de um imóvel”.

Assim, conforme se conclui na decisão recorrida, não se pode considerar como despesa necessária inerente à alienação as despesas suportados com a extinção e pagamento de penhoras, pois que, não são dedutíveis na determinação do rendimento colectável (mais-valias) em IRS, na medida em que, estas despesas só foram necessárias para libertar os bens dos encargos que sobre eles recaia.

Finalmente, como aponta o Ex.mo Magistrado do Ministério Publico, o caso das comissões imobiliárias é diferente das despesas em causa, pois que, se o interessado opta pela venda do imóvel através da mediação imobiliária, como pode fazer, estas despesas estão, inequivocamente, conexas com a transacção concreta na origem das mais-valias, são-lhe inerentes, o que já não acontece, como vimos, com os encargos com a desoneração do imóvel alienado.”

Dos Acórdãos referidos supra resulta que os Tribunais Superiores interpretam o conceito de despesas necessárias e inerentes à aquisição de participações sociais, para efeitos da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS, como integrando despesas que, para além de necessárias, fazem parte da essência da própria aquisição de participações sociais, que a integram, que com ela têm uma relação intrínseca, que dela são indissociáveis, ou inseparáveis. Excluídas do referido conceito ficam as despesas que não são indissociáveis, ou inseparáveis, da aquisição de participações sociais, no sentido de que esta poderia ocorrer sem aquelas. A obtenção de fundos para adquirir participações sociais através de um empréstimo bancário é uma realidade exterior à aquisição de participações sociais, que pode estar conexionada com ela, mas não faz parte da sua essência, nem lhe é inerente. Isto por a aquisição de partes sociais ser possível sem recurso a empréstimos bancários.

A AT emitiu os atos de liquidação e a decisão de indeferimento aqui sindicados com base nesta jurisprudência, tendo dela extraído a conclusão de que os juros pagos pelos Requentes ao abrigo do contrato de empréstimo celebrado com o … não constituem despesas necessárias e inerentes à aquisição das ações na sociedade F..., para efeitos do disposto na alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS. A posição dos Requerentes fica-se pela conexão entre o empréstimo / respetivos juros e a aquisição das ações na sociedade F..., não demonstrado que a despesa em causa é indissociável, ou inseparável, da aquisição de ações em causa, no sentido de que esta não poderia ocorrer sem aquela. Ao invés, os Requerentes alegam que a interpretação do conceito de despesas necessárias e inerentes à aquisição de participações sociais subscrita pela AT / Requerida e decorrente da jurisprudência supra mencionada viola a nossa Constituição.

Todavia, no Acórdão n.º 451/2010, de 19.01.2011, o Tribunal Constitucional veio dar o seu assentimento a um conceito estrito de despesas necessárias e inerentes ao dizer que “o qualificativo “inerente”, logo etimologicamente - in re - contém, a se, uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável. De outro modo: a despesa há-de ser integrante da própria alienação”. Segundo o Tribunal Constitucional, não basta que “as despesas sejam conexas à obtenção do rendimento; é necessário que elas dele sejam indissociáveis”. Neste Acórdão estava em causa a qualificação, como despesas necessárias e inerentes à alienação de quotas, dos gastos relacionados com dívidas respeitantes a duas contas caucionadas, garantidas pelas quotas alienadas, que os alienantes assumiram de forma a ceder as quotas livres de ónus e encargos. O Tribunal Constitucional salientou que tais despesas “apenas são conexas à alienação, não são dela inseparáveis: aquela podia perfeitamente ter lugar sem elas, ainda que por um valor diferente”, e que a “posição dos recorrentes fica-se pela necessidade da despesa”, não atribuindo à expressão inerentes “qualquer sentido útil.”

O Tribunal Constitucional rejeitou o argumento de que a norma do artigo 51.º, alínea b), do Código do IRS, interpretada no sentido de que as despesas necessárias e inerentes à alienação de participações sociais são apenas aquelas sem as quais não pode existir a própria alienação, viola os princípios da capacidade contributiva, ou da tributação das empresas fundamentalmente sobre o rendimento real, notando que não é “constitucionalmente exigível um critério normativo que permita a dedução de uma despesa que seja de considerar materialmente necessária à concreta alienação pelo valor estipulado”.

Na verdade, o nosso Tribunal Constitucional parece admitir exceções ao princípio geral da tributação do rendimento líquido (associado aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva), que afinal não obriga o legislador a estatuir a dedutibilidade de toda e qualquer despesa necessária para o rendimento ocorrer. Se, em geral, o princípio da capacidade contributiva dita que deve ser considerado como tributável apenas o rendimento líquido, o certo é que o Tribunal Constitucional tem vindo a reconhecer ao legislador uma certa margem de liberdade para limitar ou excluir certos custos / despesas (Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, de 18.12.2014). De forma mais abrangente, é referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.11.2017, processo n.º 0437/17, que o “legislador goza de grande liberdade de conformação quanto às despesas que considera ilegíveis, em sede de IRS, para serem deduzidas ao rendimento tributável, deixando de desconsiderar, ou, pelo menos, estabelecendo um limite máximo, muitas das despesas que as pessoas e as famílias efectuam necessariamente na sua vida quotidiana.” O que os princípios da igualdade e da capacidade contributiva proíbem certamente são “discriminações arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas, sendo tidas como tais todas as que não encontrem um apoio suficiente na distinta materialidade das diferentes situações que se contemplam ou na compatibilização do aludido princípio da igualdade com outros princípios constitucionalmente acolhidos.” (Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 711/2006, de 29.12.2006).

À luz desta jurisprudência, não se vislumbra em que medida os princípios constitucionais invocados pelos Requerentes afastam a interpretação do artigo 51.º, alínea b), do Código do IRS sustentada pela AT e decorrente da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Interessa, contudo, considerar a interpretação da referida disposição sustentada pelos Requerentes, e se a mesma conduz à conclusão de que, no caso sub judice, os juros suportados pelos Requerentes devem acrescer ao preço de aquisição das ações em apreço, ao abrigo da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS.

Conceito lato de despesas “necessárias” e “inerentes” à aquisição de participações sociais subscrito pelos Requerentes

Os Requerentes defendem que os juros em apreço devem ser qualificados como despesa necessária e inerente à aquisição das ações em causa, para efeitos da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS, visto que, sem o empréstimo junto do … (e os juros correspondentes), não teria havido aquisição de ações na sociedade F... . Alegam os Requerentes que, através da celebração do empréstimo, tiveram capacidade financeira para adquirir as ditas ações.

Este entendimento tem respaldo na Decisão Arbitral de 02.10.2014, processo n.º 300/2014-T, relativa à qualificação de juros bancários como despesas necessárias e inerentes à aquisição e valorização de um imóvel, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRS. O Tribunal Arbitral considerou que os juros suportados pelo sujeito passivo são de acrescer ao valor de aquisição porquanto (i) independentemente de ter, ou não, necessidade de recorrer ao crédito bancário para adquirir / valorizar o imóvel, verifica-se que o empréstimo contraído está intrinsecamente ligado à aquisição / valorização do imóvel, sendo assim necessário para o adquirir / valorizar (trata-se de uma livre escolha do sujeito passivo, mas uma escolha intrinsecamente ligada à aquisição / valorização do imóvel, e à obtenção do rendimento); (ii) não tendo o sujeito passivo capital próprio para adquirir / valorizar o imóvel, teria necessariamente de recorrer à banca, o que demonstra o carácter de indispensabilidade do empréstimo, uma vez que sem ele não poderia o sujeito passivo adquirir / valorizar, e posteriormente alienar o imóvel, nem obter o ganho tributável.

Desta Decisão Arbitral parece resultar que basta que um empréstimo seja contraído para adquirir um imóvel, ou participações sociais, para que os respetivos juros se qualificarem como despesas necessárias e inerentes à referida aquisição para efeitos do artigo 51.º do Código do IRS. Cumpre notar que os Requerentes não subscrevem exatamente esta interpretação, ao invés sublinhando o facto de, sem o empréstimo, não terem tido fundos para adquirir as ações na sociedade F..., e de o empréstimo ter sido necessário / essencial para tal aquisição, tornando-se, assim, inerente à mesma. Todavia, tal como referido supra, estes factos não se podem considerar como provados à luz dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida. Assim, ainda que se aceitasse a interpretação da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS subscrita pelos Requerentes, sempre seria de rejeitar o argumento dos Requerentes.

 

Conclusão

À luz da matéria de facto elencada supra, é forçoso concluir que, quer se adote a interpretação da alínea b) do artigo 51.º do Código do IRS subscrita pela AT / Requerida (assente na jurisprudência dos Tribunais Superiores), quer se adote a interpretação do mesmo preceito subscrita pelos Requerentes, o resultado no caso sub judice é o mesmo: a improcedência do PPA.

 

Rita Correia da Cunha