Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 809/2021-T
Data da decisão: 2023-02-08  IMI  
Valor do pedido: € 34.251,96
Tema: IMI – Terrenos para construção - Errónea fixação do VPT – apreciação em processo de impugnação de liquidação. Não aplicabilidade dos coeficientes previstos no art. 38.º.
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SUMÁRIO:

 

  • A errónea fixação de um valor patrimonial tributário, não obstante a sua previsão legal como ato destacável, pode ser apreciada em processo de impugnação de liquidação que o assumiu como matéria coletável quando esteja em causa erro de direito na determinação da lei aplicável.

- A utilização dos critérios estabelecidos para avaliação dos prédios urbanos edificados na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não previstos na norma específica do artigo 45.º, do Código do IMI, constitui erro na aplicação do direito, suscetível de alterar a base tributável e o cálculo do imposto.

  • Segundo a lei vigente ao tempo, na determinação do VPT dos “terrenos para construção” não eram aplicáveis os coeficientes previstos no art. 38º do CIMI.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

         I - RELATÓRIO

 

  1. A..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (em diante abreviadamente designada Requerente”), tendo apresentado Reclamação Graciosa das Liquidações de Imposto Municipal obre Imóveis (“IMI”) à margem identificadas por referência ao ano de imposto de 2020 que incidiram sobre os terrenos para construção identificados em epígrafe vem, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 28 de Janeiro, na sua atual redação (em diante abreviadamente designado do “RJAT” - Regime Jurídico da Arbitragem Tributária) e 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular com vista à pronúncia de decisão arbitral de anulação da decisão de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa (ato imediato do presente pedido arbitral) e, em consequência, à anulação parcial das referidas liquidações (atos mediatos do presente pedido arbitral).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 3 de Dezembro de 2021 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 21 de Janeiro de 2022, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 8 de Fevereiro de 2022.

 

II. DO PEDIDO DA REQUERENTE

 

    5. A Requerente foi notificada das liquidações relativas ao ano de imposto de 2019 no valor global de € 50.370,56, tendo procedido ao pagamento integral das Liquidações Contestadas no prazo que dispunha para o efeito.

- Pretende a pronúncia do presente Tribunal Arbitral Singular com vista à anulação da decisão de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada e, em consequência:

  1. À anulação parcial das Liquidações Contestadas: n.ºs: 2019..., 2019 ... e 2019...;
  2. Ao reembolso da quantia paga em excesso a título de IMI no valor de € 34.251,96;
  3. Ao reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor de 4% sobre as quantias indevidamente pagas a título de IMI.

 

6. A Requerente sustenta a procedência do seu pedido, em síntese, pelos seguintes argumentos:

O valor total do IMI liquidado em 2020 diz exclusivamente respeito aos Terrenos para Construção e resulta da aplicação da taxa de IMI em vigor no ano de imposto de 201VPTs”) e9 (0,35%) sobre os valores patrimoniais tributários (“em vigor a 31 de dezembro de 2019, majorada em 30% no caso dos Lotes 2 e 3.

          Porém, posteriormente, a Requerente constatou que na determinação dos VPTs dos Terrenos para Construção que serviram de base às Liquidações, a AT aplicou uma fórmula de cálculo ilegal na qual foi indevidamente considerado um coeficiente multiplicador do VPT (i.e., o coeficiente de localização), e considerada a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.

A Requerente considera assim que foi incorretamente fixado o Valor Patrimonial Tributários (VPT) dos terrenos para construção dos prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os artigos n.ºs U-..., U-... e U... da União de Freguesias de ... e... .

Com efeito, na determinação dos VPTs dos Terrenos para Construção por referência a 31.12.2019, a AT aplicou indevidamente um coeficiente de localização de 2,5, nos termos que abaixo se reproduzem para facilidade de análise:

  1. Terreno para Construção U-
    ...

                                                                                                                        

  1. Terreno para Construção U-...

 

 

  1. Terreno para Construção U-...

 

 

7. Acresce que a Requerente constatou ainda que a fórmula de cálculo do VPT utilizada pela AT não expurgou, como se impunha nos termos legais, a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.

- Tais erros na fórmula de cálculo de determinação do VPT dos Terrenos para Construção conduziram à apresentação, pela Requerente, de novos pedidos de avaliação dos Terrenos para Construção - cf. pedidos de avaliação apresentados pela Requerente que se juntam sob a designação conjunta de Doc. 5 e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

- Com efeito, defende que a fórmula utilizada pela AT e assumida automaticamente pelo sistema eletrónico da AT como passo prévio aos procedimentos de avaliação dos referidos Terrenos para Construção e as Liquidações Contestadas emitidas com base nos VPTs fixados em tais procedimentos de avaliação padecem de diversos erros grosseiros na aplicação do direito, os quais, como veremos, são exclusivamente imputáveis à AT.

- Assim, o indeferimento tácito na origem do presente pedido arbitral fundamentado nos referidos erros imputáveis aos serviços da AT resultou, em termos muito simplistas, que a Requerente pagou um valor de IMI manifestamente superior (em mais de 50%) àquele que seria devido.

- Defende em suma, que o VPT agregado dos referidos terrenos para construção por referência a 31.12.2019 devia ter sido fixado pela AT em € 4.179.580,00 ao invés do VPT agregado que foi ilegalmente fixado pela AT de € 13.061.170,00, pelo que o VPT fixado em excesso ascende a € 8.881.590,00.

- A tal VPT em excesso corresponde necessariamente um IMI em excesso de € 34.251,96 por referência ao ano de imposto de 2019 (€ 8.881.590,00 * 0,35%).

    

III. DA RESPOSTA DA AUTORIDADE TRIBUTÀRIA E ADUANEIRA

 

8. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou a sua resposta sustentando que o procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher.

Considera ainda que a impugnação não abrange os erros ou vícios que eventualmente tenham ocorrido nessa ação.

Entende que a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª  avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

 

Neste ponto, remete para a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a saber:

 

  1. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 633/14 de 15/2/2017, onde se refere:

 

O ato de fixação do valor patrimonial tributário constitui acto destacável do procedimento administrativo, pelo que se forma caso decidido ou caso resolvido na falta de recurso judicial dessa decisão, a qual, assim, se consolida na ordem jurídica, não podendo ser posta em causa na impugnação judicial da liquidação respectiva.”

 

  1. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo 5964/12 de 20/12/2012

 

“2. A avaliação dos prédios constitui um acto destacável para efeitos de impugnação graciosa ou judicial, sendo que apenas da 2.ª avaliação cabe impugnação judicial, pelos vícios ou  erros próprios  desta, que  não atacada se consolida na ordem jurídica, como caso decidido ou resolvido;”

Conclui que, na ausência de, durante um certo lapso de tempo, de contestação, o valor patrimonial tributário, ao abrigo do princípio da segurança jurídica, consolida-se na ordem jurídica.

Mais refere, nomeadamente a Decisão arbitral n.º 40/2021:

“Assim, o sujeito passivo de IMI pode impugnar as liquidações de IMI, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes actos de fixação dos valores patrimoniais. Não sendo impugnado tempestivamente o acto de fixação de valores patrimoniais, cristaliza-se a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que “o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeita”.

 

Assim, conclui que por estar consolidada a fixação do valor patrimonial tributário, não podem os actos de liquidação ser anulados com fundamento em erros no cálculo do VPT.

 

IV - SANEAMENTO

 

9.  O Tribunal encontra-se regularmente constituído.

     - As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

     - O processo não enferma de nulidades.

 

10. A 28 de março de 2022, o Tribunal Arbitral concedeu um prazo de dez dias para, querendo, a Requerente exercer o seu direito de contraditório sobre o pedido de dispensa das alegações finais apresentado pela Requerida.

 

- O que fez, pronunciando-se sobre as que considera exceções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, apresentando os motivos por que não devem proceder:

“(…) - No que diz respeito ao pedido de dispensa de alegações finais apresentado pela Requerida, o Requerente informa este douto Tribunal de que não se opõe a tal dispensa na medida em que a posição adotada pelo Requerente está suficientemente desenvolvida e cabalmente demonstrada no pedido arbitral apresentado.

- No entanto, ainda que não o tenha feito de forma processualmente adequada, a Requerida parece ter apresentado defesa por exceção.

- Com efeito, na Resposta apresentada nos presentes autos, a Requerida começou por fazer uma súmula do pedido da Requerente – cf. artigos 1.º e 2.º da Resposta –,base em vícios dos atos de fixação dos valores patrimoniais tributários (“VPTs”) de terrenos para construção e a “consolidação do ato tributário que determinou o VPT” – cf. artigos 3.º a 8.º e 10.º a 35.º da Resposta passando de seguida a apresentar defesa, que embora não alegue de forma processualmente adequada, parece configurar defesa por exceção, ao alegar (ainda que não o demonstrando) a inimpugnabilidade dos atos de liquidação consta.

                “- A Requerida invoca, nos artigos 10.º a 35.º da sua Resposta, as alegadas “consolidação do ato tributário que determinou o VPT” e “inimpugnabilidade do ato de liquidação com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário” por não ser “(...) legal, nem admissível, a apreciação da correção do VPT em sede de impugnação do ato de liquidação, ou da decisão de indeferimento tácito que não se pronuncie sobre o ato de liquidação” - cf. artigo 35.º da Resposta.”

 

11. Quanto a este ponto, assiste razão a Requerente neste ponto, pois o reconhecimento da competência em razão da matéria do tribunal arbitral implica a apreciação das exceções alegadas pela Requerida.

-Nesse sentido, importa então delimitar o âmbito das excepções invocadas pela Requerida e a resposta da Requerente: A consolidação do ato tributário que determinou o VPT “e “inimpugnabilidade do ato de liquidação com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário

12. Em suma, a Requerida sustenta que (…)  o procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, e que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher.

- E cuja impugnação não abrange os erros ou vícios que eventualmente tenham ocorrido nessa avaliação.

- Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação,

Ou seja, a errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da 2.ª avaliação que não na posterior liquidação consequente.”

- Para suportar este entendimento, a Requerida cita vários excertos de jurisprudência dos Tribunais Superiores (ponto 15 a 19 da Resposta).

 

-     No seu entender, forma-se caso decidido ou resolvido na eventualidade de aqueles actos não serem impugnados nos termos e no prazo fixado para o efeito, já que o objectivo do legislador ao prever a sua impugnação autónoma foi a de alcançar a estabilização e consolidação da matéria tributável em momento anterior ao da efectivação da liquidação. Com base neste pressuposto, os actos de avaliação se consolidaram na ordem jurídica, já que a Requerente não pediu uma segunda avaliação nem procedeu à impugnação do VPT fixado quanto a cada um dos terrenos para construção em causa nos presentes autos. Por considerar a Requerida que a errónea qualificação e quantificação do VPT não pode ser apreciada no âmbito da liquidação que lhe é consequente e por considerar que os tribunais arbitrais não têm competência para apreciar a legalidade dos actos de fixação do VPT, defendeu a Requerida que o tribunal arbitral era incompetente para apreciar e anular o acto de liquidação impugnado nos presentes autos.

 

13. Por seu turno, a Requerente contrapõe argumentos, defende entender-se que o caso vertente “ é simplesmente um caso especial e totalmente diferente dos casos em que a Requerida está certamente a pensar e sobre os quais se debruçaram quer a doutrina quer a jurisprudência invocadas pela Requerida na sua Resposta.( nos pontos 21 e seguintes no seu requerimento)

 

14. O facto de os atos de fixação do VPT serem autonomamente sindicáveis não significa que os atos de liquidação com base neles emitidos não sejam naturalmente sindicáveis.

 

15- Não é  posta em causa qualquer divergência quanto a elementos dos prédios (v.g. área do terreno, área bruta de construção, área bruta privativa ou dependente, localização) mas antes um passo prévio e uma fórmula que foi assumida ilegalmente pelo sistema informático da AT para servir de base a todos os procedimentos de avaliação de terrenos para construção iniciados desde a entrada em vigor do Código do IMI.

-  Tal como referido a Requerente invocou, no pedido arbitral apresentado, um precedente relevante e recente do TCA Sul (o Acórdão, de 31.10.2019, proferido no processo n.º 2765/12.8BELRS) e vários precedentes arbitrais, em concreto, as decisões arbitrais: (i) de 10.05.2021 proferida no processo arbitral n.º 487/2020-T; (ii) de 24.06. 2021 proferida o processo arbitral n.º 500/2020-T; (iii) de 30.06.2021 proferida no processo arbitral n.º 483/2020-T; (iv) de 27.07.2021 proferida no processo arbitral n.º 41/2021-T; (v) de 10.08.2021 proferida no processo arbitral n.º 485/2020-T; (vi) de 25 de outubro de 2021, proferida no processo arbitral 501/2020-T; (vii) de 22 de novembro de 2021, proferida no processo arbitral 504/2020-T; e (viii) de 26 de novembro de 2021, proferida no processo arbitral 486/2020-T, estes sim sobre casos idênticos ao que ora de discute, que foram objeto de análise detalhada no ponto 2.2 do pedido arbitral apresentado, sobre o qual a Requerida não emitiu qualquer pronúncia na sua Resposta, e para o qual novamente se remete.

 

Em todas as mencionadas decisões, em sentido contrário ao defendido pela Requerida, são apreciados atos de liquidação de IMI aos quais foram imputadas ilegalidades decorrentes da ilegalidade do VPT dos terrenos para construção com base no qual o imposto foi liquidado.

 

- Inúmeras são as decisões que vão no sentido da posição defendida pela Requerente:

 

- No sumário da decisão arbitral proferida no âmbito do processo arbitral 483/2020-T, pode ler-se o seguinte:

I - Impende sobre a Administração Tributária o dever de decisão sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados pelos sujeitos passivos (artigo 56.º, n.º 1, da LGT), dentro do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 57.º, da LGT, cujo decurso faz presumir o indeferimento para efeitos de reação contenciosa.

II -  Deste princípio da decisão resulta a impugnabilidade da decisão que sobre o pedido venha a ser proferida, devendo igualmente admitir-se a possibilidade de o contribuinte poder “reagir contra o silêncio que sobre ele recair”. Estando em causa a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, o meio processual adequado é a impugnação judicial.

III - A utilização analógica dos critérios estabelecidos para avaliação dos prédios urbanos edificados na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não previstos na norma específica do artigo 45.º, do Código do IMI, constitui erro na aplicação do direito, suscetível de alterar a base tributável e o cálculo do imposto.

IV - Provado o erro dos serviços na determinação do VPT dos terrenos para construção nos anos de 2008 e 2009, de que decorreu a liquidação de IMI, no ano de 2015, em valor superior ao devido, poderia o contribuinte, ainda que o não tivesse feito antes, invocar tal erro, nos termos conjugados dos artigos 78.º, n.º 1, da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, estando a AT obrigada a rever oficiosamente tal liquidação, poder-dever que decorre dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que esta tem de observar na globalidade da sua atividade, conforme os artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.”.

 

16- A questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um acto destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto -, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.

 - Estas razões serão, três:

  1. O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.
  2. A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida)

  1. Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).

 

- Acompanhando de novo a decisão arbitral proferida no processo n.º 760/2020-T, (…) Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê.

Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação). Num quadro interpretativo da lei que procura dar relevância à sua conformidade com os princípios constitucionais, não podemos subscrever, como constituindo uma regra sem exceções, o pensamento do distinto Autor em que a Requerida, no essencial, se louva.

- Com base num VPT ilegal   foram produzidas liquidações de um tributo exigidas indevidamente  à Requerente e cuja ilegalidade pode suscitar conforme o exposto.

 

          - Pelo que improcede a exceção ora em causa.

- O tribunal arbitral é, pois, competente.

 

V. DO MERITO

 

16. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

- Em 31.12.2019 a Requerente era superficiária dos prédios urbanos inscritos na matriz predial urbana da União de Freguesias de ... e  ... sob os artigos matriciais U-..., U-..., e proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo matricial U-..., os quais correspondem aos lotes n.ºs 1, 2 e 3, respetivamente, do Alvará de Licença de Reparcelamento e de Obras de Urbanização n.º ... emitido pela Câmara Municipal de Cascais (em diante abreviadamente designados de “Terrenos para Construção”) - cf. cadernetas prediais que se juntam sob a designação conjunta de Doc. 2 e dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

            - A Requerente foi notificada das Liquidações Contestadas, relativas ao ano de imposto de 2019 no valor global de € 50.370,56, - cf. cópia das Liquidações Contestadas que se juntam como Doc. 3 e dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

- O valor total do IMI liquidado em 2020 (€ 50.370,56) diz exclusivamente respeito aos Terrenos para Construção - cf. Doc. 3 junto - e resulta da aplicação da taxa de IMI em vigor no ano de imposto de 2019 (0,35%) sobre os valores patrimoniais tributários (“VPTs”) em vigor a 31 de dezembro de 2019, majorada em 30% no caso dos Lotes 2 e 3.

 

 

Descrição

Artigo matricial

Afetação

VPT

Lote 1

Terreno para Construção

€ 8.626.440,00

Lote 2

Terreno para Construção

€ 3.293.490,00

Lote 3

Terreno para Construção

€ 1.141.240,00

Total

€ 13.061.170,00

 

 

- A Requerente procedeu ao pagamento integral das liquidações contestadas no prazo que dispunha para o efeito.

- Após o pagamento das liquidações de IMI, a Requerente constatou que na determinação dos VPTs dos Terrenos para Construção que serviram de base às liquidações contestadas, a AT aplicou uma fórmula de cálculo na qual foi considerado indevidamente um coeficiente multiplicador do VPT (i.e., o coeficiente de localização), e considerada a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.

    - Na determinação dos VPTs dos Terrenos para Construção por referência a 31.12.2019, a AT aplicou um coeficiente de localização de 2,5.

- Em 03.05.2021, a Requerente apresentou uma, reclamação graciosa contra as liquidações contestadas nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 68.º e seguintes do CPPT, na qual suscitou diversas questões de ilegalidade dos referidos atos tributários e solicitou a anulação parcial dos mesmos e, consequentemente, o reembolso do IMI pago em excesso, com todas as consequências legais (incluindo o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios.

- Consequentemente, a entidade competente para a decisão dispunha de um prazo legal de quatro meses para apreciar a reclamação graciosa e proferir decisão.

            - Na falta de resposta por parte da AT no prazo legal, formou-se presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, precisamente no dia 03.09.2021.

 

17.  Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

- Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

- Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.

- Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

18.  Apreciação da questão

 

Nos termos do n. 1 do art. 135º-C do CIMI, o valor tributável, que constitui a matéria coletável deste imposto adicional, corresponde à soma dos valores patrimoniais tributários, reportados a 1 de janeiro do ano a que respeita o adicional ao imposto municipal sobre imóveis, dos prédios que constam nas matrizes prediais na titularidade do sujeito passivo, pelo que a correta determinação desses valores é pressuposto da legalidade da liquidação do imposto.

 

- Relativamente às normas legais cuja concreta aplicação é diretamente colocada em crise, temos que, nos anos em que tiveram lugar as fixações dos VPT (cfr. b) do probatório) ora em causa:

 

            - O artigo 45.º do Código do IMI estabelecia as normas de determinação do VPT dos terrenos para construção, dispondo o seu n.º 3 – o que aqui releva - que na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42º (características estas relativas à localização).

- A consideração do fator localização consta também do artigo 38º do mesmo Código. A aplicação do coeficiente de localização (e outros) previsto no art. 38º do CIMI na avaliação de terrenos para construção, tem sido afastada pela jurisprudência do STA, nomeadamente pelo Ac. do STA de 23-10-2019 (rec. 0170/16), segundo o qual os coeficientes de localização, qualidade e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38º do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afetação não podem ser aplicados analogicamente por serem suscetíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI).

 

- No essencial, temos que, relativamente aos terrenos para construção, a consideração autónoma do coeficiente de localização previsto no art.º 38º do CIMI redundaria numa dupla consideração deste fator, uma vez que o mesmo já deve relevar na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação, nos termos do nº 3 do art.º 45º do CIMI.

          - Na fórmula para avaliação dos prédios urbanos que prevê, o art. 38.º do Código do IMI consagra ainda, nos termos do seu n. º 1, designadamente, os coeficientes de afetação, qualidade e conforto.

 

- Relativamente à relevância dos coeficientes de qualidade e conforto, estando em causa terrenos para construção, há que considerar a questão esclarecida, no domínio da lei ora aplicável, após a prolação do Acórdão para uniformização de jurisprudência do STA (pleno) de 21-09-2016,  01083/13, tomado no seguimento do que já era sua jurisprudência maioritária – vd. o acórdão antes citado - , segundo o qual (i) na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq) (ii) o artigo 45º do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção,, (iii) o coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38º do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços, não pode ser aplicado analogicamente por ser susceptível de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto.

 

- O mesmo entendimento tem sido sufragado pelo STA relativamente ao coeficiente de afetação (o artigo 45º do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção; os coeficientes de afetação (…), fatores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38º do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto – entre outros, ac. do STA 824/15, de 20-04-2016)

 

- Conclui-se pois pela procedência do pedido.

 

 - Atentos os factos dados como provados, a quantificação do montante de imposto pago em excesso pela Requerente em razão da ilegalidade parcial da liquidação impugnada decorre de simples operações matemáticas, a Requerente pagou, ilegalmente, um excesso em excesso por referência ao ano de imposto de 2019 de € 34.251,96, e devendo as Liquidações Contestadas (e a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa que manteve tais liquidações na ordem jurídica) ser anuladas, são devidos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor de 4% por ano nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

VI - Juros indemnizatórios  

 

- A Requerente pede reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.

  - O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

         - Como se viu, estamos perante um erro de direito cometido pela AT, a qual fez uma errónea aplicação das normas jurídicas aplicáveis, pelo que a Requerente tem o direito a receber juros estes a serem contados desde a data do pagamento indevido (artº 43º, n.º 1, da LGT).   

 

VII - Decisão   

 

     De harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal julgar     procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Julga-se totalmente procedente o pedido de anulação parcial da liquidação impugnada e, consequentemente, condena-se a Requerida a devolver à Requerente a quantia € 34.251,96;
  2. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 4 deste acórdão e condenar a Administração Tributária a pagá-los a Requerente.

 

VIII- Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 34.251,96, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

IX - Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 08-02-2023

 

O Árbitro

 

 

 

(Maria da Graça Martins)