Sumário:
I. A prática de não contabilização oportuna de saídas de numerário sem contrapartida e sem suporte documental, que deveriam ser abatidas na conta 11- consubstanciam fluxos que constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.
II. As despesas não documentadas traduzem-se em saídas de meios financeiros do património da empresa, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.
III. Nos casos de despesas não documentadas é sobre o sujeito passivo que recai o ónus da prova do direito que se arroga a deduzir os custos ao lucro tributável, não reconhecido pela AT pelo facto da inexistência de suporte documental a quem basta provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos.
IV. Não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se não ser aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.
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DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (presidente), Luís Alberto Ferreira Alves e Paulo Ferreira Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 14 de Junho de 2022, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., S.A, doravante designado por “Requerente, com o número de identificação fiscal português ..., com sede social em ..., Fração A, com entrada pelos n.ºs ... ... e ..., ...-... Lisboa, requereu ao CAAD a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de IRC e Juros compensatórios, com o n.º 2021..., relativa ao exercício de 2017, na importância total de € 283.647,84 (duzentos e oitenta e três mil, seiscentos e quarenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos).
Em 31 de Março de 2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Autoridade Tributaria.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, as quais nada disseram, foram designados árbitros os signatários que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 14.06.2022.
Em 05.09.2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, e juntou o processo administrativo (“PA”).
No dia 09.11.2022, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas as testemunhas apresentadas pela Requerente. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas finais e o Tribunal indicou a data previsível para prolação da decisão arbitral, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente pela Requerente até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).
Em 24.11.2022, o Requerente apresentou as suas alegações, e a Requerida em 28.11.2022.
Síntese da Posição do Requerente
Os fundamentos apresentados pelo Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
(a) A Requerente, é uma sociedade anónima que tem por objeto a prestação e exercício dos serviços de segurança privada permitidos legalmente e de formação.
(b) Resulta das Conclusões do Relatório de Inspeção notificado à Requerente, que a AT, baseada numa “alegada saída de caixa”, alegadamente ocorrida no exercício de 2017, pretende a tributação em sede de IRC de “alegadas despesas não documentadas”, entendendo, nessa conformidade, ser aplicável o regime da tributação autónoma, conforme prevê e estabelece o artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC.
(c) Em sede de inspeção e de acordo com a AT, “da análise aos elementos solicitados (dossier fiscal), foi possível verificar através do relatório e contas, bem como da IES que o sujeito passivo tinha em Caixa no início do período o montante de € 416.174,74 [quatrocentos e dezasseis mil, cento e setenta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos]”. Sendo que, deste montante, afirma ainda a AT que, em 31 de agosto de 2017, ocorreu uma “alegada retirada de dinheiro de caixa”, na importância de € 415.588,73, a qual, no seu entender, “constitui um exfluxo de caixa sobre o qual não foram encontrados documentos de suporte na contabilidade da sociedade”.
(d) Ora, no entender da Requerente, não só não ocorreu a referida saída de caixa em 31 de Agosto de 2017, na quantia referida, como também não existiu, de todo, a ocorrência de despesas não documentadas ou despesas confidenciais, como afirma a AT em sede de Relatório.
(e) Defende a Requerente que, o saldo referido pela AT de € 415.588,73, respeitava na realidade a levantamentos de quantias monetárias, que foram sendo efetuadas em diversas ocasiões, bem como a alguns pagamentos devidamente identificados, mas indubitavelmente respeitantes a anos anteriores ao ano 2017, mais concretamente, entre os anos de 2011 e 2016.
(f) Quantias essas cujo destino é perfeitamente identificável, na medida em que, conforme se referiu ao Senhor Inspetor os levantamentos se destinaram, praticamente na totalidade, ao sócio da Requerente, o Sr. B..., com o NIF..., assim como os pagamentos efetuados diziam respeito a valores devidos pelo sócio.
(g) Informação que foi transmitida aos Serviços de Inspeção Tributária durante o período de inspeção, tal como consta do Relatório de Inspeção.
(h) A Requerente, na sequência da inspeção, ao pesquisar de que meios de pagamento se tratavam, verificara que eram levantamentos de cheques em numerário e pagamentos, todos eles referentes a anos anteriores a 2017 (ou seja, ocorridos entre 2011 a 2016), maioritariamente a favor do sócio B..., e de um outro ex-sócio C... .
(i) Apercebeu-se de imediato que esses levantamentos/pagamentos não estariam devidamente registados contabilisticamente na conta Caixa.
(j) Ora, tendo existido vários levantamentos em dinheiro para entregar ao sócio e pagamentos a este e por sua conta, sucedera que nunca se procedeu aos respetivos lançamentos na rubrica contabilística correspondente, pelo que continuou a constar da rubrica “Caixa”, ao longo dos aludidos anos, um saldo (elevado), mas que de facto não correspondia aos valores monetários efetivamente existentes em Caixa no início de 2017.
(k) O saldo existente em 1 de janeiro de 2017 não correspondia à realidade, na medida em que grande parte da verba já havia sido levantada e contabilizada ao longo de vários anos (2011-2016), e não em 31 de Agosto de 2017 como se alega em sede de Relatório.
(l) Constatando-se que a contabilidade da empresa, por lapso e erradamente, não havia refletido na “conta do sócio” aqueles valores, mas antes na rubrica de “Caixa”.
(m)Ora, a Requerente tendo constatado esta situação decidiu promover, no ano de 2017, a devida regularização contabilística dos lançamentos nas contas respetivas, uma vez que, como referido, aquele saldo de € 415.588,73 (quatrocentos e quinze mil, quinhentos e oitenta e oito euros e setenta e três cêntimos) encontrava-se erradamente registado na rubrica “Caixa”.
(n) Defende, que este saldo não era mais do que um saldo que já vinha de anos anteriores, e que, por lapso, não foi refletido na conta corrente do sócio, não consubstanciando dinheiro que existia fisicamente em caixa, em termos de valor monetário disponível, uma vez que tem sim origem em retiradas e pagamento de despesas em nome e por conta do sócio e ex-sócio, todas elas em períodos anteriores ao ano de 2017.
(o) Sem qualquer margem para dúvida não era de todo “dinheiro” que existisse fisicamente em caixa em 1 de janeiro de 2017, e que, por sua vez, tivesse saído de caixa em 31 de agosto e 2017, ao contrário do que a AT fez crer em sede de inspeção.
(p) Sustenta que grande parte do saldo que surge no início de 2017 resultava do somatório de vários levantamentos/pagamentos realizados a favor do sócio em períodos anteriores a 2017, os quais, em rigor, deveriam estar titulados em seu nome, motivo pelo qual se promoveu a correspondente reclassificação para a rubrica “278 – B...”.
(q) Ao contrário do que afirma a AT em sede de Relatório de Inspeção, o montante de €415.588,73 (quatrocentos e quinze mil, quinhentos e oitenta e oito euros e setenta e três cêntimos) não foi retirado de caixa no ano de 2017, e muito menos foi retirado de uma só vez.
(r) Assim verifica-se que as saídas de caixa/dinheiro ocorridas nos anos anteriores a 2017, tiveram como destinatário (o sócio B...), encontrando-se devidamente comprovadas pelos seguintes documentos de suporte, nomeadamente, através dos cheques emitidos pela Requerente, conforme de seguida se identificam:
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 17/03/2011, na quantia de € 37.150,56 (trinta e sete mil, cento e cinquenta euros e cinquenta e seis cêntimos);
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 03/01/2012, na quantia de € 52.963,00 (cinquenta e dois mil, novecentos e sessenta e três euros);
• Cheque do ..., com o n...., emitido em 11/01/2012, na quantia de € 17.000,00 (dezassete mil euros);
• Cheque do ..., com o n.º..., emitido em 20/04/2012, na quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 26/04/2012, na quantia de € 11.000,00 (onze mil euros);
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 28/04/2012, na quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 30/04/2012, na quantia de € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros);
• Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 30/04/2012, na quantia de € 9.600,00 (nove mil e seiscentos euros);
• Cheque do ..., com o n.º..., emitido em 12/07/2011, na quantia de € 17.100,00 (dezassete mil e cem euros);
• Cheque do ..., com o n.º..., emitido em 29/08/2014, na quantia de € 79.918,87 (setenta e nove mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos);
• Cheque do ..., com o n.º..., emitido em 31/08/2015, na quantia de € 50.312,24 (cinquenta mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos).
(s) Defende a Requerente, que foram cheques maioritariamente emitidos à ordem do senhor D..., ex-funcionário da Requerente, com funções de Vigilante que habitualmente prestava apoio no escritório como estafeta, a quem competia fazer apoio externo a esta, nomeadamente as deslocações aos Bancos para depósitos e levantamentos, funções que se podem confirmar pelo último recibo de vencimento do ex-funcionário.
Por sua vez, quanto aos meios de pagamento:
i) Cheque do ..., com o n.º..., emitido em 17/03/2011, na quantia de € 37.150,56 (trinta e sete mil, cento e cinquenta euros e cinquenta e seis cêntimos), foi emitido à ordem de B..., sócio da Requerente,
ii) Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 29/08/2014, na quantia de € 79.918,87 (setenta e nove mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), que diz respeito ao pagamento do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do sócio, do ano de 2013, efetuado junto dos CTT em nome e por conta do sócio B..., conforme nota de liquidação de IRS junta.
iii) Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 31/08/2015, na quantia de € 50.312,24 (cinquenta mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos), que diz respeito ao pagamento do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do sócio, do ano de 2014, efetuado junto dos CTT em nome e por conta do sócio B... conforme nota de liquidação de IRS.
iv) Cheque do ..., com o n.º ..., emitido em 12/07/2011, na quantia de € 17.100,00 (dezassete mil e cem euros), foi emitido à ordem de C..., ex-sócio da Requerente.
(t) No que respeita a estes cheques, verifica-se claramente que não foram quantias (dinheiro) que deram entrada em “Caixa”, ou que estavam em “Caixa” no início de 2017, uma vez que está perfeitamente identificado o respetivo beneficiário, e foram os mesmos pagos pela instituição bancária.
(u) Defende que, no que respeita aos cheques à ordem do Sr. D..., ex-funcionário da Requerente, no âmbito das suas funções e em cumprimento de instruções dadas pelo sócio B..., estes foram apresentados nos Bancos respetivos para levantamento das respetivas quantias e entregues ao sócio pelo ex-funcionário.
(v) Sendo sempre o sócio B... o destinatário efetivo das aludidas quantias levantadas junto dos identificados Bancos.
(w)Assim como existia um montante na conta “Caixa” (1101) de € 98 694,45 (noventa e oito mil, seiscentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), registado como tendo dado entrada em “Caixa” no dia 31.12.2016, que resulta de montantes em dívida, quer dos anteriores sócios (E... e C...), quer do atual sócio B..., à Requerente e que consubstanciam valores que ficaram por regularizar pelos ex-sócios, aquando das respetivas saídas, e que acabaram por ser assumidos em 2016 pelo atual sócio B... (cf. Doc. 16).
(x) Motivo pelo qual estas verbas se encontravam registadas na “conta do sócio” (278 237) no montante de € 98 694,45 (noventa e oito mil, seiscentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), e, que, erradamente, conforme Folha de Caixa que se junta, em 31.12.2016 transitaram para a conta “Caixa” (1101).
(y) O que levou a que esta verba também tenha sido alvo de regularização contabilística e tenha transitado novamente para a rubrica 278237 ‒ B..., na medida em que o correto seria nunca ter saído da “conta do Sócio” para a “conta Caixa”
(z) Valor que, naturalmente, também influenciou o saldo de caixa existente em 31.12.2016 e que, consequentemente, passou para 1.01.2017 ‒ saldo de € 416 174,74
(aa) Este adiantamento de valores ao sócio, assim como o reembolso desses valores pelo sócio à Requerente até era habitual,
(bb) Ora, da prova documental junta fica assim demonstrado, por um lado, que o saldo existente no fim de 2016 e no início de 2017, na quantia de € 416.174,74 (quatrocentos e dezasseis mil, cento e setenta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos), é o resultado de um saldo que foi sendo construído ao longo de vários anos (anote-se que entre 2011 e 2016 o saldo de caixa aumentou de € 22 541,78 para € 416 174,74), conforme se pode verificar pelas Folhas de Caixa onde constam os respetivos registos de todos os cheques aqui juntos e respetivas verbas identificadas
(cc) Conclui, que o beneficiário das quantias que formam o saldo de “Caixa” existente em 31.12.2016 foi sempre o sócio da Requerente – B..., com exceção de um dos cheques que foi emitido ao ex-sócio C... (entretanto já falecido).
(dd) Encontrando-se assim a Requerente a ser injustamente e ilegalmente tributada por uma “alegada saída de saldo de caixa” no dia 31 de agosto de 2017, como despesa não documentada, quando: a) naquele ano não ocorreu uma saída de valores monetários naquela importância; b) nem poderia ter ocorrido porque, na data identificada pela AT, esse dinheiro não existia efetivamente em caixa; c) nem poderia ter ocorrido porque, na data identificada pela AT, o saldo de caixa não era composto por aquelas quantias monetárias.
(ee) E o saldo existente no início de janeiro de 2017 vinha sendo influenciado e construído ao longo de vários anos (desde 2011), de acordo com os Balancetes e Folhas de Caixa relativas aos meses dos cheques
(ff) Defende a Requerente, que em 31 de agosto de 2017 não se verificou despesa no montante identificado. Aquilo que aconteceu foi que o saldo inicial da “Caixa” (1.1.2017) se apresentava com aquela importância, pelo facto de nos anos anteriores terem sido feitas várias operações (levantamentos em dinheiro pelo sócio B..., transferências, bem como pagamentos em seu nome).
(gg) Finalmente, cabe ainda referir que não se compreende que a AT espere que o documento de suporte da reclassificação contabilística operada sejam documentos comprovativos de gasóleo, invocando o descritivo incluído no registo contabilístico, relativamente ao qual facilmente e se compreende estar incorreto.
(hh) Manifestamente, está em causa um erro de descrição nos lançamentos contabilísticos, na medida em que foi replicado o descritivo “pagamento gasóleo ‒ projecto alarmes” da linha anterior, que apresentava aquela quantia de € 20 (vinte) euros.
(ii) Defende que do extrato da Conta 11, constante do Anexo 4 do Relatório de Inspeção verificamos que o próprio descritivo desta linha de 31.08.2017 surge como “operações diversos”, ao invés de todas as outras que surgem referenciadas maioritariamente como “despesas”.
(jj) Assim, ao contrário do que invoca a AT na página 16 do Relatório, onde refere que não foi apresentado documento de suporte por parte do contribuinte, é de reconhecer que sucedeu o oposto, ou seja, foi apresentado o correspondente registo contabilístico, devidamente acompanhado da explicação sobre a natureza daquela quantia e a razão de ser da sua reclassificação contabilística, o que até está reproduzido pela própria AT no Relatório de Inspeção.
(kk) Por todos os motivos apresentados não se compreende o “erro” em que os Serviços de Inspeção Tributária incorreram ao qualificar o registo contabilístico como um exfluxo de caixa, na medida em que, para existir um exfluxo (entendido no sentido contabilístico de saída de caixa, de pagamento) tem de existir movimentação efetiva de dinheiro, e, como se constata pela prova documental apresentada, no ano de 2017 não existiu qualquer movimentação de quantias monetárias, mas tão somente uma reclassificação contabilística de uma rubrica contabilística (11-“Caixa”) para outra (278 ‒ “Outros devedores”), tal como descreveu a AT em sede de Relatório de Inspeção
(ll) Existiram efetivamente fluxos financeiros, no entanto, aquando das retiradas de dinheiro da conta bancária da Requerente, nomeadamente nos períodos de 2011 e de 2012, as quais se encontram perfeitamente refletidas nos extratos da conta “11 ‒ Caixa”, e devidamente comprovadas pelos cheques juntos.
(mm) Defende a Requerente, que as entregas de dinheiro ao sócio B..., ou pagamentos a seu favor, configurariam, naquelas datas, adiantamentos por conta de lucros, cuja regulação se encontra prevista no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais.
(nn) Sustenta a Requerente, tendo a AT alegado que o facto tributário se verificou no período de 2017, cabia-lhe assim fazer prova dos factos constitutivos do direito que invocou, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, ou seja, que as saídas de “Caixa” na quantia de € 415.588,73 (quatrocentos e quinze mil, quinhentos e oitenta e oito euros e setenta e três cêntimos) ocorreram efetivamente no ano de 2017. Prova que a AT não logrou efetuar, nem poderia, uma vez que, conforme a Requerente demonstrou, no ano de 2017 não ocorreram quaisquer saídas de “Caixa”/levantamentos ou pagamentos naquele montante, e muito menos em 31 de Agosto de 2017. Assim como não existe qualquer prova ou fundamento para que a AT possa afirmar que a colocação dos rendimentos à disposição do sócio, ou, hipoteticamente a realização de qualquer despesa, (no caso de não se entender que os levantamentos tiveram a natureza de adiantamentos por conta dos lucros), tenham ocorrido no dia 31 de Agosto de 2017.
(oo) Aliás, qualquer que seja o enquadramento factual, ou seja, de que estamos perante despesas ocorridas nos anos de 2011 a 2016, ou adiantamentos/pagamentos a favor do sócio nos mesmos anos, forçosamente haverá que se concluir que a tributação a recair sobre essas operações (em sede de IRC ou de IRS na esfera do sócio), teria que acontecer dentro do prazo legal de 4 (quatro) anos estabelecido no artigo 45.º da LGT para liquidar o tributo respetivo.
(pp) Defende a Requerente que à luz do preceituado no artigo 45.º da LGT, estamos perante um ato cujo direito de o promover já caducou, pois estão em causa factos tributários que ocorreram anteriormente ao ano de 2017, pelo que, inequivocamente, já caducou o direito à sua liquidação.
(qq) Termina a Requerente, peticionando que deverá o presente pedido arbitral ser dado como procedente, por provado, e, em consequência, ser anulada a liquidação de IRC e Juros, do ano de 2017, com o montante a pagar de €283 647,84, e, em consequência, ser a Requerente indemnizada por prestação de garantia indevida nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária, bem como ser reembolsada do imposto pago se, porventura, entretanto vier a ocorrer o seu pagamento, acrescido de juros indemnizatórios à taxa máxima em vigor, desde a data do pagamento indevido até ao integral e efetivo reembolso, em conformidade com o artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
Síntese da Posição da Requerida
Na perspetiva da Requerida, chamada a pronunciar-se defendeu-se alegando, em síntese o seguinte:
(a) A questão central a dirimir pelo Tribunal Arbitral incide sobre a apreciação da legalidade do ato de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios n.º 2021..., relativa ao exercício de 2017, no valor total de € 283.647,80, resultante da qualificação da saída de meios monetários da Conta Caixa desprovida de justificação, como dispêndio ou desembolso não documentado., i.e., “despesas não documentadas”, sujeitas a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC.
(b) Com efeito, no âmbito do procedimento inspetivo, foram analisados os movimentos contabilísticos na Conta Caixa, tendo sido averiguada a origem e operações subjacentes ao lançamento n.º 8000217, com a descrição de “Diversos”, a débito da conta 1101- “Caixa Sede” e a crédito da conta 278237 – “B...” , no montante de €415.588,73, atribuído erroneamente, conforme esclarece a Requerente, a “Pagamento gasóleo – F... – projecto alarmes” No entanto, conforme consta do Relatório da Inspecção Tributária, não foi apresentado qualquer “comprovativo de terceiro da despesa contabilizada, nomeadamente qualquer comprovante de pagamento justificado com documentos de suporte (...) conexos com esta saída de Caixa.”.
(c) Sobre a ausência de documentação comprovativa da saída dos meios monetários da conta Caixa, consta do RIT, a seguinte explicação fornecida pelo Contabilista Certificado da Requerente: "... dado se ter constatado que o valor em causa se referia a diversos levantamentos anteriores a 2017, alguns deles dificilmente passíveis de serem datados, que se deviam imputar ao accionista, pelo que se procedeu á respectiva regularização de registo patrimonial”
(d) E que o “exfluxo de caixa sobre o qual não foram encontrados documentos de suporte na contabilidade da sociedade, nem nos foi explicada devidamente a origem, ou apresentados outros tipos de elementos de prova por parte do sujeito passivo ou do Contabilista Certificado representa aquilo que, em termos fiscais, se designa de Despesas não Documentadas, na medida em houve uma efetiva salda de meios monetários da sociedade, sem que para tal haja documentos que suportem a saída de tais valores.”
(e) Consequentemente, os SIT procederam ao enquadramento da factualidade em causa no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC.
(f) A situação fáctica em presença, tal como se extrai do Relatório da Inspecção Tributária, bem como dos documentos juntos ao ppa, denuncia, desde logo, um padrão de comportamento caracterizado por manifesto incumprimento das regras básicas de organização e manutenção da contabilidade prescritas pelos artigos 17.º e 123.º do CIRC, no que em concreto respeita à área dos fluxos financeiros, nomeadamente das saídas de meios monetários do património social.
(g) A falta, nomeadamente, dos inventários das existências de Caixa, realizados no final de cada exercício, bem como de extractos das contas bancárias, deita por terra o argumento esgrimido pela Requerente sobre a não correspondência entre o saldo contabilístico inicial da Caixa (€416.174,74) e os meios monetários efectivos detidos no início de 2017, cuja quantia não é sequer mencionada.
(h) A responsabilidade pelo controlo dos fluxos financeiros e, em geral, pela apresentação de demonstrações financeiras que traduzam de forma apropriada e fidedigna a situação patrimonial e os resultados da empresa, incumbe aos seus administradores e auditores, não podendo tal responsabilidade ser cometida à AT, como pretende a Requerente quando declara (V., artigos 47º e 48º do ppa) que caberia aos SIT a contagem física dos valores monetários existentes no início do ano de 2017.
(i) Efectivamente, para suprir as deficiências de natureza documental das saídas de meios monetários não contabilizadas em exercícios anteriores, cuja regularização alegadamente foi efectuada pelo lançamento contabilístico de 31/08/2017, a Requerente, em sede de impugnação, juntou aos autos um conjunto de cheques sacados sobre a conta bancária no ... (cfr., lista do art. 29º do ppa), nos anos de 2011, 2012, 2014 e 2015, cuja soma ascende a €304.544,67, pelo que nem pelo elemento quantitativo poderiam justificar o valor lançado a crédito da conta Caixa (€415.588,73).
(j) E, ainda, que se acrescente àquele montante a importância de €98,694,45, que alegadamente transitou, a 31/12/2016, por erro, para a conta Caixa (V., artigos 36º a 39º PI) mesmo assim o valor total seria de €403.239,12 e não de €415.588,73.
(k) A par desta incoerência material, que não permite estabelecer uma conexão inequívoca com o lançamento contabilístico de Caixa, datado de 31/08/2017, também não resulta provado a que título foram feitos os levantamentos da conta bancária, que a Requerente atribui exclusivamente ao actual sócio e, bem assim, se foram reflectidos na conta de depósitos bancários dos anos a que respeitam.
(l) Por conseguinte, impõe-se concluir que não fica demonstrado que os valores sacados através dos cheques cujo beneficiário efectivo é identificado como sendo o actual sócio B..., apesar de emitidos em nome de um trabalhador da empresa, estivessem a influenciar (positivamente) o saldo da conta Caixa a 01.01.2017, ao contrário do que é sugerido.
(m) Ou seja, mesmo que se aceitasse como válida a tese – que repita-se não está comprovada – de que os meios monetários levantados das contas bancárias através dos cheques e que o beneficiário efectivo fosse o sócio, a verdade é que nada está demonstrado que estejam relacionadas com o movimento contabilistico registado na conta Caixa a 31/08/2017.
(n) Posto isto, não é possível concluir com um grau de certeza razoável que o lançamento efectuado na conta Caixa em 31/08/2017, tenha sido motivado pela regularização das saídas de meios monetários do património da sociedade, verificadas em anos anteriores, tituladas pelos cheques emitidos em nome do sócio ou do trabalhador (senhor D...).
(o) Assim sendo, não há qualquer razão fundada para afastar a presunção natural de que os meios monetários revelados pelo saldo da conta Caixa, à data de 01.01.2017, integravam o património da empresa.
(p) Acresce que a Requerente qualifica o registo da quantia, de €415.588,73, retirada da conta Caixa, a débito na conta 278237 – B... (sócio), como um direito (dívida do sócio para com a sociedade cfr., artigo 22.º do ppa), mas nada adianta, em concreto, a respeito da natureza das operações subjacentes ao nascimento de tal direito.
(q) Ora, como se alude no RIT, as saídas de caixa não documentadas subsumem-se ao conceito de “despesas não documentadas”, tal como tem sido consolidado pela jurisprudência.
(r) O significado de despesas não documentadas, reconduz-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita determinar a natureza das despesas ou o seu beneficiário.
(s) O argumento esgrimido pela Requerente de que “o seu destino é perfeitamente identificável”, na medida em que “os levantamentos se destinaram, praticamente na totalidade, ao sócio da Requerente, o Sr. B..., assim como os pagamentos efetuados diziam respeito a valores devidos pelo sócio”, por si só, não invalida a qualificação como “despesas não documentadas”.
(t) Com efeito, tal interpretação apenas seria admissível em relação à noção, mais restrita, de despesas confidenciais que deixou de ser aplicável a partir da sua eliminação do texto legal, pela LOE para 2008, não sendo agora exigível, nem constitui atributo do conceito de despesas não documentadas, o desconhecimento do beneficiário das mesmas.
(u) E, não obstante seja indicado que o destinatário das importâncias retiradas do saldo da conta Caixa, por via do lançamento de 31/08/2018, seja o sócio B..., tal identificação não afasta a qualificação de “despesas não documentadas”;
(v) A lei actual, com uma função dissuasora e sancionadora de determinados comportamentos, basta-se com a saída de fundos gerados pela actividade da empresa para fins conhecidos ou desconhecidos, mas sem suporte documental.
(w) Resulta, pois, das considerações expostas que existe fundamento material para extrair a conclusão de que se está perante “despesas não documentadas” para efeitos do artigo 88º, nº 1 do Código do IRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem qualquer suporte documental que permita concluir pelo destino que lhes foi dado.
(x) No presente caso, a documentação disponibilizada, constante dos autos, não permite reconstruir ou suportar a lógica argumentativa da Requerente que pretende justificar, estabelecendo uma conexão entre o movimento contabilístico efectuado a 31/08/2017 como sendo a regularização das saídas de meios monetários da conta bancária da sociedade nos anos de 2011 a 2015.
(y) Refere a Requerida, que nem o total das importâncias sacadas por cheques é coincidente com o valor da retirada de Caixa reconhecida, a 31/08/201, nem os seus destinatários finais são integralmente conhecidos, portanto, os documentos e justificação por este apresentados não logram comprovar o destino invocado.
(z) Por fim, a Requerente alega caducidade do direito à liquidação do acto tributário contestado, por entender que, quer estejam em causa despesas não documentadas quer adiantamentos por conta de lucros, os factos relevantes reporta a exercícios anteriores a 2017.
(aa) Ora, o facto em análise e com relevância tributaria é o lançamento efectuado em 31/08/2017, que constitui o reconhecimento contabilístico da saída de Caixa, i.e. da realização da despesa não documentada.
(bb) Na tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa ou prática do ato, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo, in casu, ocorrido na data do lançamento contabilístico.
(cc) Tendo em conta que se trata da liquidação relativa ao período de tributação de 2017, como o facto tributário ocorreu nesse exercício, o prazo inicia-se a 01/01/2018, tendo o seu termo final a 31/12/2021.
(dd) Conclui a Requerida, desta forma, não assistir razão à Requerente:
(i) Quer sobre a qualificação como despesa não documentada e sujeição a tributação autónoma, por se encontrarem preenchidos os requisitos legais (cfr., artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC) da retirada da conta Caixa, da importância de €415.588,73, sem suporte documental que identifique a natureza das operações subjacentes;
(ii) O argumento esgrimido pela Requerente de que o seu destino é perfeitamente identificável, na medida em que “os levantamentos se destinaram, praticamente na totalidade, ao sócio da Requerente, assim como os pagamentos efetuados diziam respeito a valores devidos pelo sócio”, por si só, não invalida a a qualificação como “despesas não documentadas”, pois não é exigível, nem constitui atributo do conceito de despesas não documentadas, o desconhecimento do beneficiário das mesmas.
(iii) quer em relação ao momento temporal a que se reporta o facto tributário, que emerge e ganha consistência com o reconhecimento contabilístico das saídas de meios monetários, não tendo logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores a 2017, sendo que o saldo desta conta que figura no balanço de 31/12/2016 e que constitui o saldo inicial do exercício de 2017, era de €416.174,74, criando para todos os efeitos, a convicção legítima de que tal valor integrava o património da sociedade e não o dos sócios.
(iv) quer em matéria de caducidade do direito à liquidação, pois, sendo o ano de referência 2017, ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos, contado nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT.
(ee) Termina a Requerida, peticionado ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos com as legais consequências.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo dirigido à anulação de atos de retenção na fonte de IRC (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, a contar da data da presunção do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra os atos tributários impugnados.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
É admissível a cumulação de pedidos relativos a diferentes atos e anos tendo em conta que estão em discussão as mesmas circunstâncias de facto e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, conforme previsto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
A. A Requerente, é uma sociedade anónima que tem por objeto a prestação e exercício dos serviços de segurança privada, permitidos legalmente, e de formação. Cf. PPA
B. A Autoridade Tributária e Aduaneira para cumprimento da Ordem de Serviço OI201...., instaurou procedimento inspetivo interno à Requerente, de âmbito parcial, com referência ao exercício do ano de 2017, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 14.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária a Aduaneira.
C. A ordem de serviço mencionada teve por objeto avaliar a situação tributária do sujeito passivo, quanto a deduções efetuadas pelo sujeito passivo no campo 767 ‒ Mais-valia contabilística e referente sobretudo à alienação de um imóvel sem que tenha procedido a qualquer acréscimo de Mais-valia fiscal no que a esse imóvel diria respeito na declaração de rendimentos modelo 22 ”. cf. RIT.
D. No âmbito do procedimento inspetivo, foram analisados os movimentos contabilísticos na Conta Caixa, tendo sido averiguada a origem e operações subjacentes ao lançamento n.º 8000217, com a descrição de “Diversos”, a débito da conta 1101- “Caixa Sede” e a crédito da conta 278237 – “B...”, no montante de €415.588,73, atribuído a “Pagamento gasóleo – F... – projecto alarmes”.
E. Resulta do RIT de relevante para os Autos o seguinte:
F. A Requerente devidamente notificada para o exercício do seu direito de Audição, não o exerceu. Cf. RIT.
G. A Requerente foi notificada em 9 de Dezembro de 2021 das correções resultantes da ação inspetiva, do relatório e conclusões.
H. A Requerente foi notificada em 9 de Dezembro de 2021 da liquidação adicional de IRC com o n.º 2021..., relativa ao exercício de 2017, na importância total de € 283.647,84 (duzentos e oitenta e três mil, seiscentos e quarenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), e foi notificada da demonstração de acerto de contas datada de 12 de Dezembro de 2022, com seguinte teor (cf. Doc. 1 do PPA:
2. Factos não Provados
Com relevância para a decisão da causa, não se provou o alegado pela Requerente que:
a) O mencionado saldo de € 415.588,73 (quatrocentos e quinze mil, quinhentos e oitenta e oito euros e setenta e três cêntimos), respeitava a levantamentos de quantias monetárias, que foram sendo efetuadas em diversas ocasiões, bem como a alguns pagamentos respeitantes a anos anteriores ao ano 2017, mais concretamente, entre os anos de 2011 e 2016.
b) Que o destino dessas quantias seja identificável e que se destinaram ao Sr. B..., sócio da Requerente, e a um outro ex-sócio C..., assim como que os pagamentos efetuados dissessem respeito a valores devidos pelo sócio. [Assumindo que o valor de € 167.381,87 de cheques emitidos à sua ordem ou para pagamento dos seus IRS de 2013 e 2014, não constitui justificação suficiente para a desqualificação como despesa não documentada para efeitos da tributação autónoma prevista no artigo 88.º do CIRS].
c) Que diziam respeito a despesas com o Sr. D..., ex-funcionário da Requerente, com funções de Vigilante que habitualmente prestava apoio no escritório como estafeta ou que eram entregues ao sócio B... .
d) Que a totalidade do mencionado valor de € 415.588,73 respeitasse a distribuição antecipada de lucros ao sócio B... nos termos previstos no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais.
3. Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental e testemunhal junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que é consensual.
Em relação à prova testemunhal importa salientar o contributo trazido pelos depoimentos do Sr. G..., Responsável Direção Financeira, e da Sra. H..., funcionária área financeira, que demonstraram ter conhecimento direto da atividade da Requerente mas não lograram explicar as incongruências contabilísticas e os movimento financeiros em causa.
IV. Do Mérito
1. Despesas não documentadas, prevista no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, delimitação das questões a apreciar
O thema decidendum do presente pedido de pronuncia arbitral diz respeito à legalidade da liquidação adicional de IRC a título de despesas não documentadas, fundada na divergência entre os valores contabilisticamente registados na conta Caixa (11), e os valores aí efetivamente encontrados e a consequente sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, bem como a aferição do critério temporal definidor dessa tributação e a caducidade do direito à liquidação.
Em suma, o Requerente argumenta que o movimento de saída de caixa referido pela AT no montante de € 415.588,73, respeitava na realidade a levantamentos de quantias monetárias que foram sendo efetuadas em diversas ocasiões, bem como a alguns pagamentos devidamente identificados, mas indubitavelmente respeitantes a anos anteriores ao ano 2017, mais concretamente, entre os anos de 2011 e 2016, tendo existido vários levantamentos em dinheiro para entregar ao sócio e pagamentos a este e por sua conta, sucedendo que nunca procedeu aos respetivos lançamentos na rubrica contabilística correspondente, mas sim como entradas na rúbrica de “Caixa”, nela se mantendo ao longo dos aludidos anos e perfazendo um saldo (elevado), mas que, de facto, não correspondia aos valores monetários efetivamente existentes em Caixa no início de 2017.
A Requerida contra-argumentou, resultante da qualificação da saída de meios monetários da Conta Caixa desprovida de justificação, como dispêndio ou desembolso não documentado, considerando a ausência de documentação comprovativa da saída dos meios monetários da conta Caixa e a não identificação da natureza das operações subjacentes. Mais refere, que o argumento esgrimido pela Requerente de que o seu destino é perfeitamente identificável, na medida em que “os levantamentos se destinaram, praticamente na totalidade, ao sócio da Requerente, assim como os pagamentos efetuados diziam respeito a valores devidos pelo sócio”, por si só, não invalida a qualificação como “despesas não documentadas”, pois não é exigível, nem constitui atributo do conceito de despesas não documentadas, o desconhecimento do beneficiário das mesmas.
Conforme elencado, o thema decidendum do presente pedido de pronúncia arbitral é a apreciação da questão das despesas não documentadas, cumprindo, para esse efeito, decidir e apreciar sobre as seguintes questões, concretamente: primeiro, a quem compete o ónus da prova da verificação das despesas; segundo, se as despesas aqui em apreço constituem despesas não documentas para efeitos artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC; e, por último, a aferição do critério temporal definidor dessa tributação e da respetiva caducidade do direito à liquidação.
Cumpre assim decidir.
2. Ónus da prova das Despesas
Iniciamos a nossa análise pela apreciação do respetivo ónus da prova das despesas aqui em apreço.
Conforme sublinha SALDANHA SANCHES, quanto ao ónus da prova e deveres de cooperação, “Quando se fala em ónus da prova numa relação, como a relação jurídica tributária, em que a atividade da administração fiscal se faz no estrito cumprimento de uma habilitação legal, termos de falar sempre em ónus da prova em sentido material, o qual representa uma mera extensão dos deveres de cooperação que a lei atribui ao contribuinte, tendendo, por vezes, a confundir-se com eles”. Mais refere “sempre que esteja em dúvida a necessidade de uma certa despesa, o sujeito passivo deverá colaborar com a Administração fiscal, para fornecer elementos que ponham fim a essa dúvida”. (Saldanha Sanches, pag. 388, Manual de Direito Fiscal, 3.º Ed.)
A regra geral do ónus da prova recai sobre quem os invoque, nos termos dos artigos 74.º n.º 1 da LGT e 342.º, n.º 1 do CC.
Conforme enumerado no artigo 74.º, n.º 1 da LGT “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” e, no mesmo sentido, o artigo 342.º, n.º 1 do CC: 1. “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”
Sobre o ónus da prova dos gastos fiscalmente dedutíveis nos termos aqui em apreço, o Acórdão Arbitral, Processo 236/1014-T de 4 de Maio de 2015, do Doutor Jorge Lopes de Sousa, Professor Doutor António Martins e Dr. João Menezes Leitão, já decidiu sobre questão idêntica:
“Em consequência, cabe à Administração Tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua actuação, para o que deve provar os factos constitutivos de que legalmente depende a decisão administrativo-tributária com certo conteúdo e com certo sentido. Pelo seu lado, cabe ao contribuinte provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.” (…) “Como tal, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 74.º da LGT, cabe à Requerente a demonstração das bases e situações fácticas em que se sustentam os ajustamentos, desreconhecimentos e regularizações que, por ela, foram promovidos e cuja relevância e consistência tributárias afirma, recaindo, pois, sobre a Requerente o ónus de esclarecer, comprovar e documentar as operações em causa e sua justificação. Isto mesmo, aliás, é expressamente reconhecido pela Requerente que, nas suas alegações (n.º 3), assume que “sobre a Requerente impendia o ónus de prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Nesta sequência, deve, ainda, assinalar-se que resulta do artigo 75.º, n.º 1 da LGT que as declarações dos contribuintes, apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, se presumem verdadeiras. Porém, esta presunção cessa nomeadamente se essas declarações, contabilidade ou escrita, ou os respectivos dados de suporte, apresentarem omissões, erros e inexactidões ou forem recolhidos indícios fundados de que não reflectem ou impedem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo (art. 75.º, n.º 2, al. a) da LGT). Recorde-se ainda que, nos termos do n.º 3 do art. 75.º da LGT, “[a] força probatória dos dados informáticos dos contribuintes depende, salvo o disposto em lei especial, do fornecimento da documentação relativa à sua análise, programação e execução e da possibilidade de a administração tributária os confirmar”. (…) Ora, sempre que se aplique a al. a) do n.º 2 do art. 75.º da LGT, “será sobre o contribuinte que recai o ónus de prova dos factos declarados ou inscritos na sua contabilidade ou escrita sobre que existam dúvidas probatórias”, pelo que “as dúvidas que no processo judicial subsistam sobre a matéria de facto, não podem considerar-se dúvidas fundadas” para os efeitos do n.º 1 do art. 100.º do CPPT (vd. assim Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, vol. II, 6ª ed, 2011, p. 133).
Daí que incida sobre a Requerente o ónus da demonstração efectiva dos factos inscritos e das razões na base dos ajustamentos realizados na contabilidade, não bastando ficar a dúvida sobre a viabilidade da respectiva justificação, porquanto o disposto no n.º 1 do art. 110.º do CPPT tem a sua aplicação fulcral quando é a Administração Tributária a afirmar a existência dos factos tributários e respectiva quantificação (cfr., assim, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26.2.2014, proc. n.º 0951/11). Deste modo, a prova produzida deve assegurar, com a certeza exigível, que as regularizações e ajustamentos realizados possuem consistência e materialidade bastante em face das justificações que lhe presidem.
O referido Acórdão é bastante esclarecedor quanto a responsabilidade do ónus da prova.
Como tal, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 74.º da LGT, cabe à Requerente o ónus de esclarecer, comprovar e documentar as operações em causa. Cabe-lhe demonstrar e justificar a sua relevância e consistência tributárias, recorrendo a meios de prova documental e, se necessário, complementar testemunhalmente os elementos fáticos que sustentam a sua correção, pois foram pela Requerente promovidos.
Neste sentido, “sempre que esteja em dúvida a necessidade de uma certa despesa, o sujeito passivo deverá colaborar com a Administração fiscal, para fornecer elementos que ponham fim a essa dúvida”. (Saldanha Sanches, pag. 388, Manual de Direito Fiscal, 3.º Ed.)
Prosseguindo a analise, estabelece o artigo 75.º, n.º 1 e o n.º 2 alíneas a) e b), da LGT que:
1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.
2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:
a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;
b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;
Como decorre do teor expresso da parte final desta norma, a presunção aqui não prejudica os «demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos».
Não se aplicando a presunção quanto à dedutibilidade de despesas, por não se encontrar expressamente prevista, vale a regra geral sobre a repartição do ónus da prova que consta do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, que estabelece que «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».
Nesta matéria, sendo o Sujeito Passivo quem invoca o interesse empresarial das despesas que efetuou é sobre ele que recai o ónus da prova desse requisito.
Adicionalmente, convém realçar que a Requerente, conforme resulta da factualidade supra elencada e como resulta do processo inspetivo, quanto à divergência de caixa (aqui em análise) de 415.588,73€, esta foi identificada na contabilidade como sendo um “pagamento gasóleo-F... – projeto Alarmes”, não tendo sido apresentado qualquer documento de suporte para essa despesa por parte da Requerente, que veio posteriormente a informar, já em sede do PPA, respeitar a levantamentos de quantias monetárias de conta bancária sua, efetuadas em diversas ocasiões, bem como a alguns pagamentos devidamente identificados, mas “indubitavelmente” respeitantes a anos anteriores ao ano 2017, mais concretamente, entre os anos de 2011 e 2016.
Esta divergência, que se verifica não só na identificação contabilística da despesa, na sua natureza e no momento das alegadas despesas, para efeitos artigo 75.º, n.º 2 alíneas a) e b), da LGT, afasta necessariamente a presunção de veracidade do n.º 1 do mesmo artigo, consolidando assim que o ónus da prova das despesas compete a Requerente, o qual independentemente do afastamento desta presunção, já lhe competiria por força do. n.º 1 do artigo 74.º da LGT.
Perante o exposto, e em consonância com a moldura legal prevista nos artigos, art. 31.º LGT, e no n.º 1 do art. 74.º, e artigo 75.º, n.º 2 alienas a) e b), da LGT, cabe à Requerente a comprovação das suas despesas.
Face à prova produzida pela Requerente, as despesas por esta invocadas no presente pedido de pronuncia arbitral, não possuem a base necessária documental que constitua prova suficiente para que se considerem documentadas, pois não permitem determinar a sua natureza nem o destinatário identificado, bem como os valores alegados não coincidem com o valor da correção contabilística de 415.588,73€.
3. Despesas não documentadas, subsecção ao artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC
Enfrentando a questão, como se fez notar, a Requerente não fez prova das despesas aqui em discussão, nesse sentido, passamos à segunda questão nos autos, cumprindo decidir se estas despesas constituem ou não despesas não documentadas nos termos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC e, como tal, sujeitas a Tributação Autónoma, tal como resulta da correção efetuada pela AT.
Em primeiro lugar e conforme adiante se demonstra e aprofunda, o momento fiscalmente relevante nos presentes autos é 31/08/2017, data sobre a qual se deve apreciar a legislação aplicável, ou seja, a data em que foi efetuado o lançamento contabilístico; nesse sentido, iniciamos pela análise do regime fiscal aplicável a essa data.
Estabelecia o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro:
Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma
1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.
Sobre o conceito de despesas utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido pelo CIRC, e não coincide com o conceito de gastos, previsto artigo 23.º do CIRC, pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
A jurisprudência já se debruçou sobre esta questão e, para o efeito, realçamos os seguintes acórdãos do STA e decisões do CAAD.
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 02.02.2022 proferido no processo 02421/15.5BEPRT:
I - Despesa não documentada é aquela a que falta em absoluto o comprovativo documental.
II - Falando a lei em despesa não documentada, está a reportar-se à documentação do ato pelo qual o sujeito passivo suporta a despesa que é suscetível de afetar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC, não relevando nesse âmbito a documentação do destino da despesa, ou da identificação do seu beneficiário.
Em igual sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19/04/2017, proferido no processo 01320/16.
Deverá igualmente ter em consideração que as despesas não documentadas são aquelas em relação às quais não existe prova documental, embora não haja ocultação da sua natureza, origem ou finalidade (neste sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13-12-2019 no processo 9941/16.2BCLSB).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo Acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.
Na jurisprudência arbitral é defendido este entendimento, designadamente, 235/2020, 794/2020-T, 259/2021-T, 794/2020-T, 819/2021-T.
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que melhor garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto, o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.
Revertendo ao caso concreto, resulta da factualidade exposta, que a Requerente não logrou apresentar prova que documentasse as despesas alegadamente incorridas, encontrando-se, assim, preenchidos os elementos caracterizadores da figura designada por «despesas não documentadas» sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC.
No caso em apreço, a AT demonstrou inequivocamente as razões que, no seu entender, justificavam a aplicação de tributação autónoma e, em cumprimento dos princípios da verdade material e inquisitório, notificou a Requerente para justificar e/ou apresentar suporte documental para as despesas não documentadas que identificou, o que esta não logrou fazer quer no decurso da inspeção, quer no presente pedido de pronúncia arbitral.
Deste modo, aderindo aos fundamentos vertidos nas mencionadas decisões, conclui-se que a AT cumpriu o ónus de prova quanto aos elementos constitutivos da tributação autónoma, pelo que improcede o pedido com base neste fundamento.
4. Caducidade do Direito a Liquidação e imputação das despesas não documentadas ao período de tributação
Atendendo ao exposto, estamos perante despesas não documentadas, para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º, do CIRC, cumprindo agora apreciar a questão da caducidade do direito à liquidação e qual o período de tributação a que devem ser imputadas as despesas aqui em análise, ou seja, compete determinar qual o momento que se deve considerar para efeitos da realização da despesa.
Da posição das partes, resulta que a Requerente alegou que os factos são respeitantes aos anos de 2011 e 2016, enquanto a Requerida contra-argumentou que o ano de referência é 2017, que trata da liquidação relativa ao período de tributação de 2017, pelo que, tendo ocorrido o facto tributário nesse exercício, o prazo inicia-se a 01/01/2018, tendo o seu termo final a 31/12/2021.
Compete assim apreciar sobre a questão da imputação temporal das despesas, especialização dos exercícios e caducidade.
Há, sobre esta questão, jurisprudência que se seguirá de perto. Temos presente, em particular, as decisões do CAAD proferidas nos processos com os números 689/2017-T, 235/2020, 794/2020-T, 259/2021-T e 819/2021-T.
Como salienta a decisão arbitral n.º 235/2020 e 794/2020-T, para a qual se remete, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas. Não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se que não lhe é aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios, o que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário [o exercício], que em Portugal corresponde, em regra, ao ano civil (artigos 8.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1 do Código do IRC).
Assim, na decisão arbitral do processo 235/2020-T se entendeu que “a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”.
Em igual sentido, foi decidido na decisão arbitral do processo 689/2017-T, a qual escreveu: “existindo saldos de caixa considerados excessivos em todos os anos anteriores mais próximos do ano de 2014, e não tendo sido aferido em relação a eles se os valores estavam ou não em caixa por não ter sido efetuado o mesmo exercício de conferência que foi efetuado para o exercício de 2015 e para o exercício de 2014, é plausível concluir que as saídas podem ter ocorrido em qualquer dos anos anteriores atento que os saldos de caixa respetivos dariam cobertura ao montante das saídas considerado para efeitos de tributação autónoma.”
Aprofundando a questão, conforme nos diz a decisão 259/2021-T:
“No fundo, ao que se recorre aqui é a uma presunção natural (ao id quod plerumque accidit), ao seja, ao juízo de probabilidade fundada na experiência prática do modo de funcionamento de sociedades “familiares” em que há uma geral indefinição das fronteiras entre o património da sociedade e o dos sócios. Desse ponto de vista, é evidentemente “plausível” (e, reconheça-se, muito mais plausível do que a alternativa) que as saídas de caixa tenham ocorrido ao longo de vários exercícios económicos, e que a evolução dos montantes registados em caixa seja ela própria um indício desse processo cumulativo. O problema desta linha argumentativa é ser incompatível com uma presunção normativa que tem uma inequívoca base de conformação de comportamentos dos sujeitos passivos de impostos: a de que os dados e apuramentos inscritos na contabilidade ou escrita dos contribuintes gozam de presunção de veracidade (n.º 1 do artigo 75.º da LGT). Assim, entre uma presunção de experiência quanto à normalidade das coisas e uma presunção legalmente estabelecida como regra de conduta, não parece haver dúvidas de que, para efeitos jurídicos (e não sociológicos, por exemplo) se deve dar preferência a esta. Entende assim o presente Tribunal Arbitral que a presunção da veracidade contabilística só cessou no momento da verificação das disponibilidades da caixa da sociedade sujeita a inspeção e na data em que essa inspeção se realizou.”
O momento da tributação das despesas deve, desta forma, reportar-se à data em que ocorreu a saída de caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC.
Convém igualmente referir, e seguindo a jurisprudência neste assunto, veja-se a decisão do 412/2020-T:
“Pelas suas características específicas, as «despesas não documentadas» afastam a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC, assente no critério de competência económica. Com efeito, este critério é materialmente insuscetível de aplicação às «despesas não documentadas», na medida em que se desconhece a natureza e a causa das transações correspondentes. Quando se trata de estabelecer a respetiva imputação a um dado exercício apenas pode ser utilizado o critério de competência de caixa. Em todo o caso, mesmo este critério da competência de caixa só é praticável se se estiver perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também refletido nas contas de meios monetários. A verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física, só podendo o mesmo ser imputado ao exercício de 2018”.
Mais nos diz a decisão:
“Inicialmente dotadas de autonomia formal e sistemática, as tributações autónomas viriam a ser inseridas no CIRC quando da Reforma Fiscal de 2001, com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, sendo-lhes aplicáveis as disposições do CIRC relativas à apresentação de declarações, à autoliquidação, à liquidação adicional e as demais que sejam necessárias para a sua aplicação. As tributações autónomas em IRC são apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respetiva liquidação reporta-se a cada período fiscal. Nos termos do respetivo regime legal, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas. No entanto, daí não resulta que também lhes seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios e da anualidade, este enunciado no artigo 8.º, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».
30. Sobre esta questão, a jurisprudência constitucional já se pronunciou esclarecendo que «A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal».
31. Nas palavras da mesma instância suprema, «no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e, por isso, passível de tributação.» Por seu lado, o Supremo Tribunal Administrativo sustentou, que «Sobre a razão de ser das tributações autónomas, segundo a doutrina dominante, o legislador criou taxas de tributação autónomas que visam aplicar-se a determinado tipo de despesas com vista a dissuadir as sociedades, no caso de IRC, a apresentá-las com regularidade e de elevado montante, para evitar que os sujeitos passivos de IRC utilizem determinadas despesas para proceder a distribuição camuflada de lucros e para evitar a fraude e a evasão fiscal» .
32. Daqui resulta que, à luz do objeto e do fim da norma do artigo 88.º n.º 1 CIRC, não existe qualquer fundamento hermenêuticamente válido, do ponto de vista das regras interpretação das leis fiscais (artigo 11.º n.º 1 LGT), para se limitar a respetiva aplicação aos casos de contabilização da despesa como gasto ou/e ser necessário afetar o resultado líquido do período de tributação. Pelo contrário, devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afetaram o resultado líquido do período. Também estas se reconduzem à categoria das despesas não documentadas. Dificilmente se poderia entender de outro modo, considerando estar em causa evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, favorecendo a erosão da base tributária e a transferência indevida de lucros (base erosion and profit shifting).
33. Embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, a tributação autónoma é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa. Trata-se de um imposto de obrigação única, incidindo sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos e instantâneos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada, desprovida de qualquer relação com o volume de negócios da empresa. A tributação autónoma exprime o exercício de uma função regulatória através do CIRC, inerente às finalidades e exigências de um Estado de direito material, onde se incluem objetivos incentivar a formalização da economia, o rigor e a fiabilidade das contas das empresas, prevenir a fraude e a evasão fiscal, nomeadamente através da retirada dissimulada de ativos monetários.”
Aplicando a citada jurisprudência aos presentes autos, resulta que a Requerente, realizou o movimento contabilístico registado na conta Caixa em 31/08/2017, tendo identificado como “pagamento gasóleo-F...– projeto Alarmes”, no valor de 415.588,73€, pelo que a verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada nessa data. Pese embora, a Requerente alegue que as despesas dizem respeito a 2011 a 2016, contudo, conforme resulta da factualidade, a Requerente não logrou fazer prova das despesas em apreço, consequentemente não logrou fazer prova da data em que as mesmas alegadamente foram realizadas.
Mais se refere, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede na situação vertente, é inviável a determinação da data saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa ou a data do movimento contabilístico.
Nesse sentido, e face à legislação e jurisprudência exposta, a data que o Tribunal considera relevante, será a data do movimento contabilístico registado na conta Caixa, respetivamente 31/08/2017.
Data a partir da qual se inicia o prazo para o exercício do direito a liquidação de 4 anos, tal como previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT.
Para efeitos de contagem do prazo de caducidade, relevamos que durante este período que mediou entre 2017 e 2021, nos termos do artigo 6.º da Lei 16/2020, de 19 de maio, o prazo de caducidade encontrava-se suspenso durante o período de total de 160 dias, respetivamente, de 09.03.2020 a 03.06.2020 e 21.01.2021 até 16.04.2021, o qual acresce aos 4 anos do prazo de caducidade aqui em analise.
Veja-se neste sentido a decisão do CAAD n.º 132/2022-T:
“O regime legal da suspensão dos prazos foi reeditado nos seus precisos termos, aquando do segundo surto da pandemia de COVID-19, tendo sido publicada a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que entrou em vigor a 22.01.2021 e veio aditar à Lei n.º 1-A/2020 o artigo 6.º-C, com a epígrafe “Prazos para a prática de atos procedimentais”.
O que leva à conclusão de que o prazo de dois anos contado desde 20.01.2019 foi objeto de duas suspensões, num total de cento e sessenta dias (1ª suspensão – de 09.03.2020 a 03.06.2020 – oitenta e seis dias; 2ª suspensão – de 22.01.2021 a 06.04.2021 – setenta e quatro dias), pelo que o prazo para apresentação das reclamações graciosas só terminaria a 29.06.2021 (i.e., após cento e sessenta dias contados desde 20.01.2021).”
Tal como já havia sucedido em 2020, este regime foi revogado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, que entrou em vigor a 06.04.2021, e estabeleceu, no seu artigo 4.º, um regime específico para os prazos administrativos e, no seu artigo 5.º, o regime a aplicar aos demais (prazos) de prescrição e caducidade, ambos com teor idêntico aos anteriores artigos 5.º e 6.º, da Lei n.º 16/2020, de 19 de maio, respetivamente
Terminado o prazo em 31 de Agosto de 2017, decorridos 4 anos sobre o movimento contabilístico registado na conta Caixa, o prazo terminaria 31 de Agosto de 2021, ao qual se adiciona os supra mencionados 160 dias, o qual terminaria em 7 de Fevereiro de 2022.
Contudo, esse prazo ficou suspenso, por força do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, o qual nos diz: 1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.
Revertendo ao caso em apreço, verificamos da factualidade, que a Requerente foi notificada da ordem de serviço com o n.º OI2019..., que se efetivou em 19 de Março de 2021, o sujeito passivo foi notificado através do ofício..., para “a apresentar vários elementos, entre os quais o extrato da conta 11 – Caixa, bem como das folhas da caixa” (conforme resulta do RIT).
A Requerente foi posteriormente notificada pelo ofício ... de 21 de Julho de 2021, “o documento de suporte para esta saída de caixa – lançamento contabilístico n.º 8000217 de 31 de Agosto” (conforme resulta do RIT). Ao qual a Requerente não apresentou resposta ao ofício e foi aberto pela AT o Despacho n.º DI2021... para levantamento do documento solicitado.
A ação inspetiva externa foi notificada ao Requerente em 14 de Outubro de 2021, por meio de notificação pessoal.(conforme resulta do RIT), nesta data, o prazo ainda se encontrava em vigor, por força da do artigo 6.º da Lei 16/2020, de 19 de maio.
Neste sentido, o prazo de caducidade suspendeu-se por força do n.º 1 do artigo 46.º da LGT. A decisão final foi notificada no dia 9 de Dezembro de 2021, dentro dos seis meses, e a ora liquidação foi emitida em 09-12-2021 com data limite de pagamento em 31-01-2022, foi assim dentro do prazo de 4 anos.
Improcede assim o pedido de caducidade do direito de liquidação peticionado pela Requerente.
5. Sobre a Indeminização Por Prestação de Garantia Indevida
Por todo o exposto, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente, ficando prejudicado o conhecimento da pretendida condenação da Autoridade Tributária no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.
V. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal em:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado, dele se absolvendo a Requerida e
b) Condenar a Requerente nas custas do processo.
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor € 283.647,84, indicado pelo Requerente, respeitante ao montante das retenções na fonte de IRC cuja anulação pretende (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Custas no montante de € 5.202,00 (cinco mil duzentos e dois euros), a suportar integralmente pela Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifiquem-se as Partes e, bem assim, o Ministério Público para efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
Lisboa, 30 de Janeiro de 2023
Os árbitros,
José Poças Falcão (Presidente),
Paulo Ferreira Alves (Árbitro Adjunto)
Luís Alberto Ferreira Alves (Árbitro Adjunto Relator)