Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 701/2021-T
Data da decisão: 2023-01-10  Selo  
Valor do pedido: € 184.508,07
Tema: IS – Comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco. Exceções dilatórias: impossibilidade originária da lide, por falta de objeto; inidoneidade do meio processual; intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
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SUMÁRIO

I.        As comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco em abril de 2017 encontram-se sujeitas a Imposto do Selo, ao abrigo das Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

II.      Não ocorre indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo sujeito passivo, nos termos do artigo 57.º, n.º 5, da LGT, quando a AT profere decisão expressa de indeferimento no prazo de quatro meses referido no n.º 1 do mesmo artigo.

III.    Não se formando o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, o mesmo nunca chega a existir na ordem jurídica, não podendo constituir o objeto imediato de pedido de pronúncia arbitral.

IV.   Quando o sujeito passivo apresenta um pedido de pronúncia arbitral contra um ato de não existe na ordem jurídica, verifica-se uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, a impossibilidade originária da lide, por falta de objeto, suscetível de determinar a absolvição da instância nos termos do artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC. 

V.     Esta exceção dilatória poderá ser suprida pelo Tribunal Arbitral (in casu, considerando a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa), nos termos dos artigos 6.º, n.º 2, e 278.º, n.º 4, do CPC.

VI.   O pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente constitui um meio idóneo para reagir contra a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa em apreço, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, quer se atenda à linha jurisprudencial a que a Requerida faz referência (nos termos da qual a impugnação judicial e o pedido de pronúncia arbitral constituem meios processuais idóneos para reagir contra atos de indeferimento que comportem a apreciação da legalidade de atos tributários), quer se atenda à linha jurisprudencial invocada pela Requerente (nos termos da qual a impugnação judicial e o pedido de pronúncia arbitral constituem meios processuais adequados para discutir a legalidade de atos tributários, independentemente do teor da decisão de indeferimento que sobre eles recaiu).

VII. Para efeitos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, considera-se que um erro nas autoliquidações de Imposto de Selo efetuadas pelo sujeito passivo é imputável à AT, se o sujeito passivo demonstrar que teve conhecimento do teor de uma Informação Vinculativa prestada pela AT a terceiros, que alterou a sua atuação em conformidade com o entendimento que naquela informação foi vertido pela AT, e que efetuou as autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas devido à confiança que votou àquele mesmo entendimento.

DECISÃO ARBITRAL

 

As árbitras designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 10 de janeiro de 2022, Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Professora Doutora Eva Dias Costa e Dra. Marisa Almeida Araújo, acordam no seguinte:

I.  RELATÓRIO

 

A..., S.A., NIF ..., com sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante “Requerente”), na qualidade de sociedade gestora e em representação do ‘Fundo B...’, NIF..., do ‘Fundo C...’, NIF ..., do ‘Fundo D...’, NIF..., e do ‘E... Fund’, NIF ... (doravante “Fundos”), veio, em 29 de outubro de 2021, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), bem como dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. 

 

A Requerente pretende (1) a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que apresentou em 31 de março de 2021 (objeto imediato do PPA) e das autoliquidações de Imposto de Selo a ele subjacentes, efetuadas em abril de 2017, sobre as comissões de gestão cobradas pela Requerente aos Fundos (objeto mediato do PPA), bem como (2) a restituição do montante de imposto que a Requerente entende ter indevidamente autoliquidado sobre as mesmas comissões, no valor global de € 184.508,07, acrescido de juros indemnizatórios.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 2 de novembro de 2021 e, de seguida, notificado à AT.

 

Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os membros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo.

 

Em 21 de dezembro de 2021, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 10 de janeiro de 2022, e notificou a Requerida para apresentar Resposta e juntar o processo administrativo nos termos do artigo 17.º do RJAT nessa data.

 

            A Dra. Teresa Alves de Sousa renunciou justificadamente às funções de árbitro-adjunto, tendo sido substituída, nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Deontológico, pela Dra. Marisa Almeida Araújo em 4 de fevereiro de 2022.

 

A Requerida juntou o processo administrativo e apresentou a sua resposta em 15 de fevereiro de 2022, defendendo-se por exceção e por impugnação, pugnando pela respetiva absolvição da instância ou, assim não se entendendo, pela respetiva absolvição dos pedidos.

 

A Requerente exerceu o seu direito ao contraditório relativamente às exceções invocadas pela Requerida em 2 de março de 2022. 

 

Por Despacho Arbitral de 17 de maio, foram as Partes notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a necessidade de realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e de alegações escritas finais.

 

Não tendo as partes se pronunciado a este respeito, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações finais escritas, por Despacho Arbitral de 8 de junho de 2022, no qual foi também indicada a data previsível para prolação da Decisão Arbitral.

 

A Requerente pagou a taxa arbitral subsequente em 7 de julho de 2022.

 

Por Despacho Arbitral de 8 de julho de 2022, o Tribunal prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de direito relevante para a decisão.

 

Em 9 de setembro de 2022, o Tribunal proferiu novo despacho arbitral, no qual (i) notificou a Requerente para, no prazo de 10 dias, juntar as Informações Vinculativas n.ºs 1795, 17743 e 17644 (referidas pela Requerente no requerimento que apresentou em 2 de março de 2022), e explicitar em que medida se baseou nas mesmas quando procedeu às autoliquidações de imposto contestadas; (ii) notificou a Requerida para, querendo, se pronunciar sobre os documentos juntos pela Requerente no prazo de 10 dias a contar da junção dos mesmos; e (iii) prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na necessidade de esclarecimentos adicionais por parte da Requerente, e de se assegurar o contraditório.

 

Em 19 de setembro de 2022, a Requerente juntou ao processo as Informações Vinculativas n.ºs 17743, 17925 e 177644, e fez menção à Informação Vinculativa n.º 4416 no requerimento que apresentou.

 

Na sequência deste requerimento da Requerente, a Requerida pronunciou-se sobre a admissibilidade e relevância das referidas Informações Vinculativas por requerimento apresentado em 30 de setembro de 2022.

 

Por Despacho Arbitral de 8 de novembro de 2022, o Tribunal prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de direito relevante para a decisão.

 

 

Posição da Requerente

 

A Requerente autoliquidou erroneamente o montante de € 184.508,07, a título de Imposto de Selo relativo às comissões de gestão que cobrou aos Fundos em abril de 2017, nos termos da Verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto de Selo. Esta norma de incidência é aplicável a “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”, mas não a sociedades gestoras de fundos de capital de risco, como é o caso da Requerente, ou a sociedades de capital de risco. 

 

De facto, não existindo na legislação fiscal qualquer conceito de instituição de créditosociedade financeira ou instituição financeira, deverá atender-se ao disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT e, como tal, recorrer-se ao ramo do direito do qual sejam provenientes aqueles conceitos, ou seja, ao direito bancário e financeiro, mais especificamente ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), publicado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (com diversas alterações legislativas posteriormente). Este diploma representa toda a arquitetura do sistema bancário e financeiro nacional, espelhando a evolução histórica da legislação bancária europeia, bem como as intervenções legislativas que, ao longo da história, o legislador foi sentindo a necessidade de efetuar, constituindo o único diploma existente no ordenamento jurídico português que elenca, qualifica e densifica, expressamente, as entidades que se enquadram na categoria de instituições de créditosociedades financeiras e instituições financeiras (conforme consta da al. z) do artigo 2.º-A e dos artigos 3.º e 6.º do referido diploma). 

 

A versão original do artigo 6.º do RGICSF previa expressamente na alínea h) do n.º 1 que as sociedades de capital de risco eram qualificadas como sociedades financeiras. Esta alínea foi revogada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, pelo que as sociedades de capital de risco perderam a qualificação jurídica de sociedades financeiras, deixando de se enquadrar no conceito de instituições financeiras e no âmbito do RGICSF, ou da supervisão do Banco de Portugal (passando para a esfera da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários). O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 319/2002 demonstra que o objetivo de todas as respetivas alterações legislativas foi fomentar a competitividade e o desenvolvimento da atividade do capital de risco em Portugal.

 

Conclui a Requerente que, não se encontrando as sociedades de capital de risco ou as sociedades gestoras de fundos de capital de risco tipificadas como sociedades financeiras no RGICSF (na redação em vigor após 2002), não restam dúvidas que as comissões de gestão por elas cobradas se encontram excluídas da esfera de incidência subjetiva da Verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo. 

 

Este entendimento é reforçado pelas alterações introduzidas pela Lei do Orçamento de Estado para 2003 com o intuito de criar regimes fiscais benéficos para a atividade de capital de risco em Portugal, nomeadamente a alteração introduzida à alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo (atual artigo 7.º) no sentido de acrescentar as sociedades de capital de risco à isenção de Imposto do Selo aí prevista.

 

Atendendo aos princípios gerais de interpretação das leis, nos termos dos quais deve considerar-se sempre que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), não é admissível alegar-se o mero esquecimento do legislador em adicionar sociedades de capital de risco ao artigo do Código do Imposto do Selo que prevê a isenção de imposto do selo para as operações entre instituições de créditosociedades financeiras e instituições financeira, quando deixou de qualificar sociedades de capital de risco como sociedades financeiras no RGICSF.

 

No Regime Jurídico de Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do Investimento Especializado, não existe qualquer equiparação ou classificação das sociedades de capital de risco ou sociedades gestoras de fundos de capital de risco como instituições financeiras. Caso o legislador pretendesse a referida equiparação ou classificação, tê-lo-ia feito expressamente. Ademais, do disposto no respetivo n.º 1 do artigo 45.º resulta que a atividade desenvolvida pelas sociedades gestoras de fundos de capital de risco nada é semelhante à atividade das instituições de créditosociedades financeirasoutras entidades legalmente equiparadas a sociedades financeiras, e outras instituições financeiras e, como tal, não está abrangida pela na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

Em suma, da letra e do espírito da Lei (Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo) não resulta que as sociedades de capital de risco ou sociedades gestoras de fundos de capital de risco deverão liquidar Imposto do Selo nas comissões cobradas. Não se encontrando verificados os pressupostos da incidência subjetiva no caso em apreço, é de concluir que o Imposto do Selo autoliquidado sobre as comissões de gestão cobradas pela Requerente aos Fundos não era legalmente devido. Estando em causa uma norma de incidência, a mesma está sujeita ao princípio da legalidade consagrado nos artigos 103.º da CRP e 8.º da LGT, que exige que as normas de incidência sejam precisas e com um elevado grau de determinação, não conferindo discricionariedade no julgamento dos conceitos envolvidos. 

 

            Sendo o julgado procedente o PPA, deverá a Requerente ser reembolsada do montante de Imposto de Selo erroneamente autoliquidado, acrescido de juros indemnizatórios (de acordo com o artigo 43.º e artigo 100.º, ambos da LGT, e alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT).

 

 

Posição da Requerida

 

Defesa por exceção:

 

a.     Da inimpugnabilidade da decisão de indeferimento tácito 

 

Não existe uma presunção de indeferimento tácito suscetível de impugnação. O pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 31 de março de 2021 foi objeto de decisão expressa de rejeição liminar por intempestividade a 19 de julho de 2021, tendo a Requerente sido notificada em 8 de agosto de 2021. 

 

Para que a presunção que resulta do artigo 57.º, n.º 5, da LGT operasse, a Requerente teria de ter interposto o PPA dentro do tempo que mediou a data de formação da presunção de indeferimento tácito, ocorrida em 1 de agosto de 2021, e a data em que foi considerada validamente notificada da decisão de rejeição liminar por intempestividade da revisão oficiosa, que ocorreu em 8 de agosto de 2021, o que não aconteceu. Com efeito, o PPA só deu entrada no CAAD em 29 de outubro de 2021. 

 

Comprovada a inexistência da formação da presunção de indeferimento tácito e tendo a revisão oficiosa contestada sido decidida expressamente em momento prévio à apresentação do PPA, considera-se tal decisão tácita inimpugnável, pois esta presunção foi necessariamente substituída pelo indeferimento expresso, sendo este ato o que vigora na ordem jurídica no momento em que a Requerente apresenta o PPA.

 

Verifica-se uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento de mérito da causa, pelo que deve o Tribunal absolver a Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex viartigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

b.     Da incompetência material do objeto do PPA por inidoneidade do meio processual

 

Ainda que o PPA versasse sobre a decisão expressa que rejeitou liminarmente o pedido de revisão oficiosa, sempre o Tribunal Arbitral seria materialmente incompetente, na medida em que, tendo a AT pugnado na decisão do pedido de revisão oficiosa ser este meio intempestivo, encontra-se precludido o direito da sua contestação por via de ação arbitral. Estando em causa um ato administrativo em matéria tributária que não aprecia ou discute a legalidade do ato de liquidação, o mesmo deverá ser objeto de ação administrativa (nos termos previstos na alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT), e não de impugnação judicial (nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT), ou de PPA, enquanto meio alternativo à impugnação judicial.

 

Nestes termos, encontrando-se a sindicância do ato em questão fora do âmbito das matérias suscetíveis de apreciação em sede arbitral, conforme resulta do artigo 2.º do RJAT, o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para conhecer do PPA apresentado pela Requerente, devendo determinar a absolvição da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

c.     Da incompetência material e intempestividade para a impugnação direta dos atos de liquidação

 

Mesmo que se admitisse que o objeto mediato do pedido é constituído pelos atos de autoliquidação identificados no PPA, sempre o Tribunal Arbitral seria materialmente incompetente por a Requerente apenas pedir a anulação de tais atos. O conhecimento direto da legalidade de tais atos pelo presente Tribunal é-lhe vedado face ao disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, sem que tenha existido prévio “recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131° a 133°, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (...)”. Assim sendo, sempre o Tribunal Arbitral deverá determinar a absolvição da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Acresce que tal pedido seria intempestivo, atento o prazo estabelecido no artigo 10.º do RJAT, pelo que o Tribunal não pode dele conhecer e, consequentemente, sempre a Requerida deve ser absolvida da instância – cf. alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

d.     Da inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação 

 

A extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa não determina a extemporaneidade do PPA deduzido na sua sequência, mas a inimpugnabilidade do ato tributário (liquidação). Como resulta pugnado na decisão expressa do pedido de revisão oficiosa, este pedido foi apresentado intempestivamente, na medida em que, em 31 de março de 2021 – data no qual foi submetido – já havia decorrido o prazo de reclamação administrativa de dois anos legalmente previsto no artigo 131.º do CPPT para as autoliquidações (a mais recente ocorreu em 15 de abril de 2017) e mencionado pelo artigo 78.º, n.º 1, primeira parte, da LGT como prazo aplicável para a revisão oficiosa por iniciativa dos contribuintes. 

 

Ademais, in casu, nunca poderia ser aplicado o prazo de quatro anos previsto na segunda parte daquele artigo 78.º, n.º 1 da LGT, na medida em que, no caso vertente, não se está perante um erro imputável aos serviços para efeitos daquela norma. Com efeito, estamos perante autoliquidações de Imposto de Selo, pelo que importa concluir que inexiste erro imputável aos serviços (uma vez que a AT não teve qualquer intervenção na liquidação do imposto). 

 

Desde a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT que a AT só está obrigada a proceder à revisão oficiosa se se verificar que houve um “erro imputável aos serviços” na liquidação (nos termos da parte final do n.º 1 do mesmo artigo), o que neste caso não se verifica. A existir erro, o mesmo nunca poderá ser imputável aos serviços porquanto a AT não teve qualquer intervenção nas autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas. Não estando preenchido este pressuposto específico de que depende a admissibilidade de um pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos (nos termos e para os efeitos da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT), o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 31 de março de 2021 é intempestivo.

 

Sendo o pedido de revisão oficiosa intempestivo, o Tribunal não pode conhecer do pedido arbitral, atenta a sua inimpugnabilidade, pelo que, consequentemente, a Requerida deve ser absolvida da instância – cf. alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Defesa por impugnação:

 

            A Requerente contesta a incidência de Imposto do Selo sobre as comissões de gestão por si cobradas aos fundos de capital de risco por si geridos, porque entende que, enquanto entidade gestora de fundos de capital de risco, não preenche nenhum dos tipos de entidades financeiras previstos na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto de Sele, não se verificando, consequentemente, o elemento subjetivo de incidência.

 

            As sociedades de investimento em capital de risco e os fundos de capital de risco são organismos de investimento alternativo fechados, um subtipo de organismos de investimento coletivo (cf. artigo 2.º, n.º 1, aa), ii) do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, ex vi n.º 5 do artigo 2.º do RJCR). Assim, os mesmos têm como referência o quadro regulatório que decorre do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, e da Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativos.

 

            Nos termos do artigo 9.º do RJCR, as sociedades de capital de risco têm como objeto principal a realização de investimentos em capital de risco e, no desenvolvimento da respetiva atividade, podem realizar, as seguintes operações: investir em instrumentos de capital próprio, bem como em valores mobiliários ou direitos convertíveis, permutáveis ou que confiram o direito à sua aquisição; investir em instrumentos de capital alheio, incluindo empréstimos e créditos, das sociedades em que participem ou em que se proponham participar; investir em instrumentos híbridos das sociedades em que participem ou em que se proponham participar; prestar garantias em benefício das sociedades em que participem ou em que se proponham participar; aplicar os seus excedentes de tesouraria em instrumentos financeiros; realizar as operações financeiras, nomeadamente de cobertura de risco, necessárias ao desenvolvimento da respetiva.

 

            A Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, conjugada com o n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto de Selo, estabelece que estão sujeitas a Imposto do Selo as operações financeiras que se traduzam na cobrança de “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões”, desde que “realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras.”

 

O Código do Imposto de Selo não contém uma definição do conceito de “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”, pelo que é necessário integrar esses conceitos recorrendo aos ramos do direito que regulam a atividade financeira (cf. n.º 2 do artigo 11.º da LGT). Importa nomeadamente ter em conta o quadro regulatório que emana do direito da União Europeia, que modela todo o sistema financeiro europeu e que complementa e se entrecruza com o nacional.

 

A revogação da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º, operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, que até então qualificava as sociedades de capital de risco como sociedades financeiras, não tem a virtude de as desqualificar como instituições financeiras para efeitos de aplicação da norma de incidência. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 319/2002, apenas veio atribuir à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários a competência para a supervisão prudencial das instituições de capital de risco, retirando-as da esfera do Banco de Portugal, na medida que estas deixaram de estar autorizadas a praticar atividades exclusivas de instituições de crédito e sociedades financeiras, e não desqualificá-las como instituições financeiras. Como se retira do próprio preâmbulo do diploma, alinhou-se o regime português de capital de risco com o regime vigente noutros estados da União Europeia, transferindo-se a supervisão das sociedades de capital de risco do Banco de Portugal para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. A extração da ilação genérica e conclusiva de que o legislador terá pretendido, com este diploma legal e com outros que se lhe seguiram, nomeadamente os que promoveram alterações ao texto da Isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, excluir as sociedades de capital de risco do sistema financeiro, num diploma que trata exatamente da supervisão de entidades que operam no sistema financeiro é, salvo melhor opinião, excessiva e contraditória, não podendo em termos literais, teleológicos e sistemáticos proceder.

 

Contrariamente ao que a Requerente afirma, o RGICSF não esgota nem é o único diploma existente no ordenamento jurídico português que elenca, qualifica e densifica, expressamente, as entidades que se enquadram na categoria de instituições de créditosociedades financeiras e instituições financeiras, sendo de relevante utilidade, tendo em conta a questão que se analisa, a chamada à colação de alguns dos instrumentos jurídicos europeus que regulam o sistema financeiro na União Europeia como um todo. 

 

Tendo por referência o caso sub judice, convoca-se para esta sede dois Regulamentos comunitários – o Regulamento (UE) n.º 1092/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 20102 e o Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 – os quais são instrumentos jurídicos obrigatórios em todos os seus elementos, sendo diretamente aplicáveis em todos os Estados-Membros. 

 

Dispõe a alínea a) do artigo 2.º do Regulamento (UE) n.º 1092/2010 que é “«Instituição financeira», qualquer empresa abrangida pela legislação referida no n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento (UE) n.º 1093/2010, do Regulamento (UE) n.º 1094/2010 e do Regulamento (UE) n.º 1095/2010, bem como qualquer outra empresa ou entidade que opere na União cuja atividade principal seja de natureza semelhante”. Sendo a Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativos, umas das legislações abrangidas pelo n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento 1095/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, e sendo as instituições de capital de risco abrangida por esta Diretiva, é evidente que as sociedades de capital de risco e as sociedades gestoras de fundos de capital de risco constituem instituições financeiras para efeitos do Regulamento (UE) n.º 1092/2010.

 

O ponto 26) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 575/2013 estabelece que uma “instituição financeira” é, para o que aqui nos interessa, “uma empresa que não seja uma instituição (…) cuja atividade principal seja (…) o exercício de uma ou mais das atividades enumeradas no anexo I, pontos 2 a 12 e 15, da Diretiva 2013/36/EU (…) e uma sociedade de gestão de ativos (…)”. Sucede que o ponto 19) do mesmo preceito estabelece que uma “sociedade de gestão de ativos” é uma sociedade “na aceção do artigo 2.º, ponto 5), da Diretiva 2002/87/CE ou um GFIA na aceção do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva 2011/61/UE, incluindo, salvo disposição em contrário, entidades de países terceiros que desenvolvam atividades similares e que estejam sujeitas à legislação de um país terceiro que aplique requisitos de supervisão e regulamentação pelo menos equivalentes aos aplicados na União”.

Da conjugação dos pontos 19) e 26) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 575/2013, é forçoso concluir que uma empresa que administre fundos de capital de risco – um GFIA na terminologia europeia – como é o caso da Requerente, é uma instituição financeira. Se compararmos as funções e atividades permitidas às sociedades de capital de risco e às sociedades gestoras de fundos de capital de risco com as atividades elencadas no Anexo I, pontos 2 a 12 e 15, da Diretiva 2013/36/EU, verifica-se facilmente que algumas delas são subsumíveis nos pontos 6, 7, 8 e 11 do referido Anexo.

 

À luz do quadro regulatório que emana do direito da União Europeia, que modela todo o sistema financeiro europeu e que complementa e se entrecruza com o nacional, dúvidas não há sobre o facto de que uma sociedade de capital de risco ou uma sociedade gestora de fundos de capital de risco, como a ora Requerente, continua a subsumir-se numa das entidades financeiras presentes na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo para efeitos de tributação em sede de Imposto do Selo, na categoria de quaisquer outras instituições financeiras.

 

Acresce que também não há dúvidas quanto à manutenção das sociedades de capital de risco na categoria de instituições financeiras (e sociedades financeiras) à luz do RGICSF. Apesar de, por força da revogação à alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, operada Decreto-Lei n.º 319/02 de 28 de dezembro, as sociedades de capital de risco terem sido desclassificadas naquele diploma como sociedades financeiras, tal não significa que as mesmas tenham perdido o seu carácter de instituição financeira. Contrariamente ao entendimento da Requerente, a amplitude e o alcance do que é uma instituição financeira, sob qualquer uma das suas diversas formas, não se esgota no RGICSF.

 

Dispunha-se, à data das autoliquidações contestadas, na subalínea ii) da alínea z) do artigo 2.º-A do RGICSF que “são instituições financeiras, com exceção das instituições de crédito e as empresas de investimento, as sociedades cuja atividade principal consista no exercício de uma ou mais das atividades enumeradas nos pontos 2 a 12 e 15 da lista constante do anexo I à Diretiva n.º 2013/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013”

 

A alínea kk) do mesmo preceito define como “Sociedades financeiras, as empresas, com exceção das instituições de crédito, cuja atividade principal consista em exercer pelo menos uma das atividades permitidas aos bancos, com exceção da receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis do público, incluindo as empresas de investimento e as instituições financeiras referidas na subalínea ii) da alínea z).” 

 

Este dispositivo deve depois ser articulado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, que vem dizer que são sociedades financeiras as “instituições financeiras referidas nas subalíneas ii) e iv) da alínea z) do artigo 2.ºA, nas quais se incluem (…)”. Ora, por força da remissão destas duas alíneas para a subalínea ii) da alínea z) do mesmo artigo, e desta para o conceito de instituição financeira que resulta da aplicação do Anexo I da Diretiva 2013/36/UE, considera-se que o próprio RGISCF continua a incorporar na sua própria definição de sociedade financeira, o conceito legal de instituição financeira resultante daqueles diplomas comunitários. 

 

Ademais, algumas das funções e atividades permitidas às sociedades de capital de risco subsumem-se em, pelo menos, quatro das atividades materialmente financeiras enumeradas no Anexo I da Diretiva (em concreto nos pontos 6, 7, 8 e 11 que se referem, respetivamente, a “concessão de garantias e outros compromissos”“transações efetuadas por conta própria ou por conta de clientes que tenham por objeto qualquer dos seguintes instrumentos (…)”, “Participação em emissões (…)”; e a “Gestão de carteiras”), o que habilita uma sociedade de capital de risco a ser qualificada como instituição financeira, desde que, obviamente, para poderem integrar o sistema financeiro e exercer a sua atividade nos mercados financeiros, disponham de autorização e cumpram os demais requisitos impostos pelas respetivas autoridades de supervisão.

Assim sendo, cai completamente por terra, por falta de qualquer apoio literal, teleológico e sistemático, a afirmação da Requerente de que à luz do RGICSF as sociedades de capital de risco não podem ser consideradas instituições financeiras. Pelo contrário, são instituições financeiras, podendo até ser consideradas e continuar a manter o seu “antigo” estatuto de sociedades financeiras, por força da sua subsunção legal nesta categoria, conforme expressamente determinam a alínea kk) do artigo 2.º-A e a alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º, ambos do RGICSF. Pelo que, da articulação dos critérios normativos e interpretativos fornecidos por estes diplomas, nomeadamente da expressa remissão do RGICSF para a Diretiva 2013/36/UE e desta para o Regulamento (UE) 575/2013, é forçoso concluir que as sociedades de capital de risco são instituições financeiras.

 

Em relação ao pedido de juros indemnizatórios, a Requerida conclui que os mesmos não são devidos à luz do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT. O pedido de juros indemnizatórios da Requerente não se encontra correto face ao disposto na norma legal em causa e jurisprudência acima referida, pois tendo o pedido de revisão sido apresentado a 31 de julho de 2021, o prazo de um ano completa-se a 31 de fevereiro de 2022 (cf. artigo 279.º do Código Civil). Não tendo aquele prazo ainda ocorrido, não se pode senão concluir que não são devidos quaisquer juros indemnizatórios, devendo o pedido da Requerente ser julgado improcedente.

 

 

Resposta da Requerente quanto à matéria de exceção 

 

a.     Da inimpugnabilidade da decisão de indeferimento tácito 

 

O objeto real do PPA são os atos de autoliquidação, pelo que o indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa não apresenta qualquer alteração ao objeto, causa de pedir ou pedido, nem determina a incompetência do Tribunal Arbitral. 

 

Ainda que se considere que se verifica uma exceção dilatória, deverá o Tribunal Arbitral providenciar pelo suprimento da referida exceção ao abrigo do n.º 3 do artigo 278.º do CPC e nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do CPC, aplicáveis ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Assim, deverá esta exceção ser sanada por se considerar que estamos perante o mesmo objeto real do pedido, em ambas as situações de indeferimento tácito ou expresso – as autoliquidações de Imposto do Selo. 

 

b.     Da incompetência material do objeto do PPA por inidoneidade do meio processual

 

A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT – independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito. A Requerente requereu a apreciação da legalidade das autoliquidações de Imposto de Selo em apreço, pelo que a impugnação judicial e o pedido de pronúncia arbitral constituem meios adequados e idóneos. Assim, o Tribunal Arbitral é competente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

            

Acresce que a ação administrativa nunca seria o meio processual adequado ao caso concreto dos autos, na medida em que a Requerida, apesar de rejeitar liminarmente o pedido de revisão oficiosa, pronunciou-se sobre a questão de mérito.

 

c.     Da incompetência material e intempestividade para a impugnação direta dos atos de liquidação, e impugnabilidade dos atos de autoliquidação

 

As autoliquidações foram efetuadas pela Requerente com base o entendimento da AT divulgado na Informação Vinculativa n.º 4416, que mereceu Despacho concordante da Direção de Serviços de IMT em 21-08-2013, no qual se pode ler o seguinte:

 

“a) É inequívoco que as comissões de gestão dos FCR pagas às SCR preenchem os requisitos de natureza objectiva e subjectiva para a sujeição ao imposto do selo com enquadramento na Verba 17.3.4 da TGIS – outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, porquanto as actividades de gestão de fundos qualificam-se como actividades financeiras, segundo a CAE REV3, enquanto actividades auxiliares de serviços financeiros e são realizadas por outras instituições financeiras; 

 

b) O espírito da norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.° do CIS, tal como foi fixado pelo n.º 2 do artigo 37.° da Lei n.º 30-C/2000, mantém-se válido, mesmo após as alterações redaccionais registadas e, por conseguinte, a isenção nela prevista não abrange as comissões de gestão pagas pelos FCR as SCR; 

 

c) Os FCR são objecto de um regime jurídico próprio constante do DecretoLei n.º 375/2007, beneficiam igualmente de um regime fiscal específico estabelecido no artigo 24.° do EBF em matéria de impostos sobre o rendimento, pelo que só com recurso a analogia - proibida pelo artigo 10.° do EBF - as comissões pagas as entidades gestoras, a titulo de remunerações pelas funções de administração e gestão, poderiam abrigar-se na isenção prevista no artigo 4.° do Decreto-Lei n.º 20/86, de 13 de Fevereiro, para as operações sobre certificados representativos de unidades de participação emitidos por fundos de investimento mobiliários".”

 

2.1. Conclui-se, assim, que as sociedades de capital de risco devem ser qualificadas como instituições financeiras; as comissões cobradas pelas sociedades de capital de risco, enquanto remuneração pela administração/gestão do fundo, são serviços financeiros nos termos e para os efeitos da verba 17.3.4 da TGIS; 

 

A isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.° do CIS, tal como foi fixado pelo n.º 2 do artigo 37.° da Lei n.º 30-C/2000, não abrange as comissões de gestão pagas pelos FCR as SCR; o pagamento do imposto do selo nas operações descritas constituirá encargo do Fundo […], cabendo a sua liquidação e entrega nos cofres do Estado ao ora consulente conforme dispõe a alínea b), n.º 1, do artigo 2.º do CIS.”

 

As Informações Vinculativas n.ºs 17925, 17743 e 17644 constituem outros exemplos, mais recentes, daquele que é o entendimento da Autoridade Tributária relativamente à questão em apreço. Assim, o erro de direito nas autoliquidações de Imposto do Selo em apreço é imputável à AT, por ser esse o entendimento preconizado pela própria perante os contribuintes e sujeitos passivo do Imposto. 

 

É evidente que o erro em questão é imputável aos serviços, dado que o n.º 2 do artigo 266.º da CRP e o artigo 55. ° da LGT estabelecem a obrigação genérica da AT atuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer a ilegalidade da liquidação será imputável à própria AT. A revisão dos atos tributários constitui uma concretização do dever jurídico de revogação de atos ilegais, pelo que a AT deve assim proceder nas situações em que ocorra erro nas liquidações do qual resulte um valor de imposto superior ao legalmente devido.

 

Estão preenchidos os requisitos da revisão oficiosa dos atos tributários, iniciada para além do prazo de reclamação administrativa: 1) Que o pedido seja formulado no prazo de quatro anos contados a partir do ato cuja revisão se solicita ou a todo o tempo quando o tributo não se encontre pago; 2) Que exista erro imputável aos serviços; e 3) Que a revisão oficiosa seja da iniciativa do particular ou se realize oficiosamente pela AT. Assim sendo, deve o Tribunal apreciar e pronunciar-se sobre a questão de mérito. 

 

 

Resposta da Requerida relativamente às Informações Vinculativas 

 

Na sequência do requerimento apresentado pela Requerente em 19 de setembro de 2022, a Requerida defendeu que a Informação Vinculativa n.º 4416 não deverá ser relevada pelo Tribunal Arbitral por três razões. 

 

Em primeiro lugar, conforme consta dos artigos 10.º, n.º 2, alíneas c) e d) do RJAT, e artigo 108.º, n.ºs 1 e 3 do CPPT, do pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a exposição das questões de facto e de direito objeto do referido pedido de pronúncia arbitral, os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir. No PPA apresentado pela Requerente, não há qualquer referência à Informação Vinculativa n.º 4416, como legalmente exigido. No requerimento de resposta às exceções invocadas pela Requerida, a Requerida alegou ex novo que entregou as liquidações e os valores decorrentes das mesmas preconizando e seguindo o entendimento da Autoridade Tributária, e invocou informações vinculativas cronologicamente posteriores aos atos de autoliquidação em causa, não tendo sequer invocado a Informação Vinculativa n.º 4416. Sendo a exigência de alegação dos factos em determinado momento processual fixada por lei, o facto aditado após a apresentação do PPA, por não ser superveniente, não pode ser aditado à factualidade ali constante de tal articulado, não podendo ser relevado pelo Tribunal a quo. Alega ainda a Requerida que a Requerente não juntou prova de que as liquidações por si efetuadas em 2017 tiveram efetivamente por base o entendimento da AT vertido naquela específica informação vinculativa de 2013. O princípio da preclusão traduz-se na imposição de uma atuação leal entre as partes, de uma conduta transparente desde o início, que habilite cada uma delas a agir e a reagir de boa-fé. Também por este motivo convocou a Requerida o princípio da igualdade das partes, nos termos em que está previsto no artigo 16.º do RJAT, para se peticionar pela não valoração por este Tribunal do facto aditado pela Requerente em fase posterior ao seu pedido arbitral.

 

Em segundo lugar, a Requerida argumentou que está em causa uma Informação Vinculativa e não uma orientação genérica. Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22 de março de 2018 (processo n.º 07228/13), a Informação Vinculativa só produz, enquanto promessa administrativa e por força da regulamentação especial a que está sujeita, efeitos interpartes (cf. artigo 68.º da LGT, atual artigo 68.º-A desta lei), pelo que não há ilegalidade das liquidações de imposto desconformes com aquela. Assim, não pode a Requerente, com suporte numa Informação Vinculativa, justificar que a promoção das autoliquidações em causa se deveu a erro que possa imputar aos serviços da AT. 

 

Em terceiro lugar, argumenta a Requerida que a emissão de uma Informação Vinculativa só é vinculativa para a AT, conforme decorre do n.º 14 do artigo 68.º da LGT, que estipula que “a administração em relação ao objeto do pedido, não pode posteriormente proceder em sentido diverso da informação prestada, salvo em cumprimento de decisão judicial”, sendo o contribuinte que a solicitou completamente livre de aceitar ou não o entendimento que dela resultou. De uma Informação Vinculativa não resultam quaisquer obrigações para o contribuinte, seja a obrigação de pagar imposto, sejam obrigações acessórias ou instrumentais desta. Também por este motivo a Informação Vinculativa nº 4416, de 21-08-2013, prestada a contribuinte diverso da Requerente, não pode ter sustentado os atos de autoliquidação impugnados.

 

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído. 

 

O PPA é tempestivo porquanto foi apresentado no prazo referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

É admitida a cumulação de pedidos, face ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, nos termos do qual a mesma deverá ser admitida sempre que “a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

 

A Requerente tem personalidade e capacidade tributárias, sendo a parte legítima do presente PPA, na qualidade de entidade credora de comissões (sujeito passivo) e titular do interesse económico, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea b), 3.º, n.º 3, alínea s), do Código do Imposto de Selo e dos artigos 15.º, 16.º e 18.º da LGT, e encontra-se regularmente representada. A Requerida goza de personalidade e capacidade tributárias, tem legitimidade e encontra-se regularmente representada (cf. artigos 4.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O processo não enferma de nulidades. A Requerida suscitou exceções dilatórias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, que serão apreciadas após apreciada a matéria de facto.

 

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§3.1. Factos provados

 

Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a.     A Requerente é uma sociedade gestora de fundos de capital de risco, regularmente constituída em Portugal, tendo como atividade gerir fundos de capital de risco (cf. alegado no artigo 28.º do PPA e não contestado pela Requerida).

 

b.     No âmbito dessa atividade de gestão, a Requerente cobra periodicamente aos referidos fundos uma comissão de gestão (cf. alegado no artigo 29.º do PPA e não contestado pela Requerida). 

 

c.     Entre 4 e 15 de abril de 2017, a Requerente recebeu comissões de gestão dos Fundos, no montante total de € 4.612.701,78 (cf. documentos 1 a 21 juntos ao PPA, e alegado no artigo 31.º do PPA, não contestado pela Requerida).

 

d.     A Requerente procedeu à autoliquidação do Imposto do Selo sobre este valor, à taxa de 4% (cf. Verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo), no montante total de € 184.508,07:

 

(cf. documentos n.ºs 1 a 21 juntos ao PPA).

 

e.     Em 31 de março de 2021, por entender que a Verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo não é aplicável às sociedades de capital de risco ou às sociedades gestoras de fundos de capital de risco, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos referentes à autoliquidação de Imposto do Selo do mês de abril de 2017, solicitando o reembolso de € 184.508,07 (cf. documento n.º 22 junto ao PPA).

 

f.      Em 19 de julho de 2021, este pedido de revisão oficiosa foi expressamente indeferido, por Despacho do Chefe de Divisão da Unidade dos Grandes Contribuintes da AT, no qual se pode ler:

 

 

(cf. decisão de indeferimento junto ao processo administrativo).

 

g.     Este despacho concordou com o parecer da coordenadora da referida Divisão, no qual se pode ler:

 

(cf. decisão de indeferimento junto ao processo administrativo).

 

h.     Na parte relevante da informação do técnico responsável subjacente a este parecer, pode ler-se:

 

 

                                                                       

 

(cf. decisão de indeferimento junto ao processo administrativo).

 

i.      Este ato de indeferimento expresso foi notificado à Requerente em 8 de agosto de 2021 (cf. documento 1 junto à Resposta, e alegado pela Requerida no artigo 13.º da Resposta, não contestado pela Requerente).

 

j.      Em 29 de outubro de 2021, a Requerente apresentou o PPA que deu origem ao presente processo arbitral, contra o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que, segundo a Requerente, se teria formado em 1 de agosto de 2021 nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT (cf. alegado pela Requerente no artigo 6.º do PPA).

 

 

 

§3.2. Factos não provados

 

            Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.

 

 

§3.3. Fundamentação da matéria de facto

 

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

 

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

 

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.               

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

§4.1. Questões Decidendas

 

O PPA tem por objeto imediato a apreciação da legalidade do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que a Requerente apresentou em 31 de março de 2021, ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, e por objeto mediato a apreciação da legalidade das autoliquidações de Imposto de Selo referentes ao mês de abril de 2017.

 

Tendo a Requerida suscitado exceções dilatórias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal apreciará primeiramente tais questões e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência das mesmas, os vícios alegados pela Requerente suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação do referido ato de indeferimento e das referidas autoliquidações (cf. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).

 

Tendo em consideração a posição das partes, a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:

 

A)   Exceções dilatórias:

 

a.     Inimpugnabilidade da decisão de indeferimento tácito; 

 

b.     Inidoneidade do meio processual; 

 

c.     Intempestividade da impugnação direta dos atos de liquidação;

 

d.     Inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação por extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa.

 

B)   Da ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas, por as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco não se encontrarem sujeitas a Imposto de Selo.

 

C)   Da inconstitucionalidade das Verbas 17.3. e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo, quando interpretadas no sentido de que as comissões cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco estão sujeitas a Imposto de Selo.

 

D)   Do reembolso do imposto indevidamente liquidado e dos juros indemnizatórios.

 

 

 

§4.2. Da inimpugnabilidade da decisão de indeferimento tácito

 

No PPA que apresentou em 29 de outubro de 2021, a Requerente contesta a legalidade do ato de indeferimento tácito que, segundo a Requerente, se teria formado em 1 de agosto de 2021, nos termos do artigo 57.º, n.º 1 e 5, da LGT, relativamente ao pedido de revisão oficiosa que apresentou em 31 de março de 2021. Cumpre ao Tribunal Arbitral determinar se o referido ato de indeferimento tácito se formou efetivamente em 1 de agosto de 2021.

 

Ora, tendo o pedido de revisão oficiosa sido objeto de decisão expressa de indeferimento em 19 de julho de 2021 (ou seja, dentro do prazo de quatro meses referido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT), conclui-se que, no caso sub judice, não se formou um ato de indeferimento tácito em 1 de agosto de 2021, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, relativamente ao pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 31 de março de 2021. 

 

De facto, não ocorre indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo sujeito passivo, nos termos do artigo 57.º, n.º 5, da LGT, quando a AT profere decisão expressa de indeferimento no prazo de quatro meses referido no n.º 1 do mesmo preceito. Para este efeito, não é relevante que a mesma decisão só tenha sido notificada à Requerente em 8 de agosto de 2021. Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de outubro de 1990, processo n.º 022933, o seguinte: “Carece de objecto o recurso de acto tácito de indeferimento, quando se mostre ter havido acto expresso, proferido no prazo legal, independentemente de ter sido notificado ao interessado.”

 

Não se formando o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, o mesmo nunca chegou a existir na ordem jurídica, não podendo constituir o objeto imediato de pedido de pronúncia arbitral. É assim manifesto que, quando apresentou o PPA em 29 de Outubro de 2021, a Requerente deveria ter contestado a legalidade da decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que lhe foi notificada em 8 de agosto de 2021. Interessa notar que, mesmo que o ato de indeferimento tácito se tivesse formado antes de ser proferida uma decisão expressa de indeferimento (o que não ocorreu no caso em análise), sempre aquele teria deixado de vigorar na ordem jurídica, por lhe ter sobrevindo ato expresso, e que sempre deveria a Requerente ter reagido contra a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa em causa, proferida a 19 de julho de 2021 e notificada em 8 de agosto de 2021.

 

Quando o sujeito passivo apresenta um pedido de pronúncia arbitral contra um ato que não existe na ordem jurídica, verifica-se uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, a impossibilidade originária da lide, por falta de objeto (reconhecida no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 30 de setembro de 2021, processo n.º 00948/21.9BEBRG), que é de conhecimento oficioso e suscetível de determinar a absolvição da instância, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), e 576.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de janeiro de 2020, processo n.º 1363/19.0T8LSB.L.1-7).

 

Do exposto supra resulta que, tendo a Requerente apresentado o PPA contra um ato que não existia na ordem jurídica à data em que o PPA foi apresentado (29 de outubro de 2021), verifica-se a impossibilidade originária da lide, por falta de objeto, que constitui uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que é suscetível de determinar a absolvição da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), e 576.º, n.º 2, do CPC (aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Verificando-se uma exceção dilatória, cabe ao Tribunal Arbitral averiguar se a mesma poderá ser suprida nos termos dos artigos 278.º, n.º 3, e 6.º, n.º 2, do CPC (aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

No artigo 278.º, n.º 3, do CPC, pode ler-se o seguinte: “As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.” O artigo 6.º, n.º 2, do CPC dispõe que: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

 

No caso sub judice, para suprir a exceção dilatória de impossibilidade originária da lide, por falta de objeto, nos termos dos artigos 278.º, n.º 3, e 6.º, n.º 2, do CPC, o Tribunal Arbitral tem de ficcionar que o PPA apresentado pela Requerente em 29 de outubro de 2021 tem como objeto imediato a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, que foi proferida em 19 de julho de 2021 e notificada em 8 de agosto de 2021, e assim o determina, considerando que o PPA é também tempestivo em relação a esta decisão expressa de indeferimento (nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), e tendo em conta o princípio pro actione contido no artigo 7.º do CPTA, “que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excesso de formalismo” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de 29 de janeiro de 2014, processo n.º 01233/13).

 

Nestes termos, a primeira exceção suscitada pela Requerida tem-se por sanada pelo Tribunal nos termos dos artigos 278.º, n.º 3, e 6.º, n.º 2, do CPC.

 

 

§4.3. Da inidoneidade do meio processual

 

As partes contendem relativamente à questão de saber se o pedido de pronúncia arbitral constitui o meio processual adequado e idóneo para reagir contra o ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente.

 

Da leitura conjugada dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, resulta que a impugnação judicial e pedido de pronúncia arbitral constituem meios processuais adequados e idóneos para sindicar a legalidade de “atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de tributação”. Em consequência, os Tribunais Arbitrais Tributários são competentes para conhecer e decidir da legalidade destes atos. Nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT, a ação administrativa é o meio idóneo para impugnar a legalidade de “atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de tributação”. Assim, os Tribunais Arbitrais Tributários não são competentes para conhecer e decidir da legalidade destes atos.

 

Sendo certo que a competência dos Tribunais Arbitrais Tributários depende do meio processual adequado a satisfazer a pretensão do contribuinte, a verdade é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não é uniforme relativamente à interpretação das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT (cf. observado no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15 de janeiro de 2018, processo n.º 00207/15.6BEMDL), e esta falta de uniformidade jurisprudencial encontra-se refletida na posição das partes do presente processo arbitral. 

 

Analisada a jurisprudência que versa sobre a questão em apreço, conclui-se que existem duas grandes linhas jurisprudenciais: uma que assenta na análise do teor do ato contestado e determina o meio idóneo (impugnação judicial vs ação administrativa) para impugnar o mesmo consoante o ato contestado aprecie a legalidade de um ato tributário; outra que defende que a impugnação judicial constitui o meio processual adequado para discutir a legalidade de atos tributários (tal como reconhecido na recente Decisão Arbitral proferida no processo n.º 678/2021-T a 6 de outubro de 2022).

 

Porém, no caso sub judice, ambas as linhas jurisprudenciais determinam que o PPA constitui meio idóneo para sindicar a legalidade da decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente. 

 

Senão vejamos.

 

O teor do ato tributário sindicado

 

A Requerida observa que, na decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa em apreço, “foi rejeitada a apreciação da legalidade daqueles atos tributários de liquidação postos em crise com fundamento em intempestividade do meio apresentado para a sua impugnação” (cf. artigo 27.º da Resposta), e que, assim sendo, “estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial” (cf. artigo 28.º da Resposta).

 

A posição da Requerida parece encontrar suporte na linha jurisprudencial segundo a qual, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, a impugnação judicial (e o pedido de pronúncia arbitral) não é o meio próprio para reagir contra os atos de indeferimento que não comportem uma apreciação da legalidade de atos tributários, devendo, em relação a tais atos, o contribuinte socorrer-se da ação administrativa. De acordo com esta interpretação das disposições referidas, o meio processual adequado para reagir contra um ato de indeferimento depende do conteúdo do mesmo ato de indeferimento, conforme resulta claro dos Acórdão mencionados em seguida.

 

No processo n.º 0148/12.9BESNT 0674/18, no âmbito do qual o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão em 14 de outubro de 2020, estava em causa uma impugnação judicial de uma decisão de indeferimento de recurso hierárquico com exclusivo fundamento na intempestividade da apresentação do recurso hierárquico, não tendo a decisão de indeferimento apreciado a legalidade do ato de liquidação contestado. Citando Lopes de Sousa, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que a impugnação judicial só constitui o meio processual adequado quando o ato a impugnar contiver efetivamente uma apreciação da legalidade de um ato de liquidação. Se, pelo contrário, a AT não chegar a apreciar a legalidade do ato de liquidação, por intempestividade, o meio processual adequado é a ação administrativa. A este respeito, concluiu o Douto Tribunal:

 

“A utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (acção administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA) depende do conteúdo do ato impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/acção administrativa especial.”

 

No mesmo sentido: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de abril de 2010, processo n.º 01020/09; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de maio de 2014, processo n.º 01263/13; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15 de janeiro de 2018, processo n.º 00207/15.6BEMDL; Decisão Arbitral de 4 de setembro de 2015, processo n.º 112/2015-T; Decisão Arbitral de 15 de fevereiro de 2017, processo n.º 254/2016-T; Decisão Arbitral de 3 de julho de 2019, processo n.º 48/2019-T; Decisão Arbitral de 30 de agosto de 2022, processo n.º 81/2022-T.

 

No âmbito desta orientação jurisprudencial, o Supremo Tribunal Administrativo apreciou também as circunstâncias em que se deve considerar que um ato de indeferimento apreciou a legalidade de um ato tributário. 

 

No Acórdão de 14 de maio de 2015, processo n.º 01958/13, o Supremo Tribunal Administrativo admitiu que um despacho de indeferimento por intempestividade, exarado em concordância com a fundamentação contida numa proposta de indeferimento que analisa a legalidade do ato tributário, comporta ele mesmo a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, podendo o sujeito passivo socorre-se da impugnação judicial nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT. 

 

No Acórdão de 7 de janeiro de 2016, processo n.º 01412/15, o Supremo Tribunal Administrativo concluiu que o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa em análise apreciou a legalidade do ato tributário visto que “a simples leitura da decisão permite verificar que a Administração Tributária foi muito mais além da análise da tempestividade da apresentação daquele pedido de revisão, passando, detalhadamente a analisar não só os prazos em que, segundo as circunstâncias tal pedido poderia ter sido tempestivamente apresentado mas, ainda, indicando a razão pela qual entendia não poder a revisão ser levada a cabo oficiosamente pela Administração Tributária e porque não podia ser aplicada a convenção invocada pela aqui recorrente para evitar a dupla tributação.”

 

No Acórdão de 4 de dezembro de 2019, processo n.º 0959/12.5BEAVR, o Supremo Tribunal Administrativo também considerou a impugnação judicial como o meio processual adequado in casu por a informação que serviu de suporte à decisão do pedido de revisão oficiosa se ter pronunciado expressamente sobre a conformidade do ato tributário com a lei, incluindo uma conclusão quanto à sua legalidade. No mesmo sentido: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 5 de novembro de 2015, processo n.º 06246/12; Decisão Arbitral de 6 de outubro de 2022, processo n.º 678/2021-T. 

 

Desta jurisprudência resulta que, mesmos nos casos em que a AT tenha decidido pelo indeferimento liminar por intempestividade, é necessário atentar ao conteúdo da informação que suporta a decisão de indeferimento e averiguar se nela é contida uma apreciação da legalidade do ato tributário. 

 

No caso sub judice, tal como resulta da matéria de facto assente, a AT indeferiu liminarmente o pedido de revisão oficiosa da Requerente por intempestividade, tendo, contudo, a informação do técnico responsável subjacente a esta decisão analisado a legalidade dos atos de autoliquidação de Imposto de Selo efetuados pela Requerente (cf. respetivos parágrafos 49 a 76 da informação subjacente à decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de 19 de julho de 2021). 

 

Conclui-se, assim, que, atentando ao teor da decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, o pedido de pronúncia arbitral (enquanto alternativa à impugnação judicial) constitui um meio idóneo para reagir contra a mesma, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, e que o presente Tribunal é materialmente competente para decidir o mesmo.

 

 

 

O meio processual adequado para discutir a legalidade de atos tributários

 

A Requerente defende que A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT – independentemente do teor da decisão da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito”. (cf. artigo 24.º do requerimento que apresentou em resposta às exceções suscitadas pela Requerida). 

 

Esta posição encontra respaldo no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de novembro de 2020, processo n.º 0608/13.4BEALM 0245/18, em cujo sumário se pode ler:

 

“II - O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar.


III - Por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.”

 

A mesma posição foi adotada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR, no qual se pode ler:

 

“A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).


Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.


Assim, se na sequência do indeferimento do meio gracioso, o interessado pedir ao tribunal que aprecie a legalidade da liquidação e que, em consequência, a anule (total ou parcialmente), o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa.


Daí que se tenha vindo a afirmar que nestas situações, em que o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (a decisão administrativa) e um mediato (a legalidade da liquidação).”

 

Regressando ao caso sub judice: na medida em que, com a apresentação do PPA, a Requerente pretende a declaração de ilegalidade e anulação de atos de autoliquidação de Imposto de Selo, conclui-se que, também à luz desta linha jurisprudencial, o pedido de pronúncia arbitral (enquanto alternativa à impugnação judicial) constituiu um meio adequado e idóneo para reagir contra o ato de indeferimento expresso ora impugnado, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, e que o presente Tribunal é materialmente competente para decidir o mesmo.

 

Conclusão

 

Do exposto supra resulta que, quer se adote a linha jurisprudencial a que a Requerida faz referência (centrada no teor do ato tributário sindicado), quer se adote a linha jurisprudencial invocada pela Requerente (nos termos da qual a impugnação judicial e o pedido de pronúncia arbitral constituem meios processuais adequados para discutir a legalidade de atos tributários), o PPA apresentado pela Requerente constitui um meio idóneo para reagir contra a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa em apreço, e que o presente Tribunal é materialmente competente para decidir o mesmo. 

 

Assim sendo, improcede a exceção de incompetência material do Tribunal por inidoneidade do meio processual. 

 

 

§4.4. Da intempestividade da impugnação direta dos atos de liquidação

 

No PPA que apresentou em 29 de outubro de 2021, a Requerente pretende a declaração de ilegalidade e anulação (i) do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que a Requerente apresentou em 31 de março de 2021, o qual, segundo a Requerente, se terá formado em 1 de agosto de 2021, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, e (ii) das autoliquidações de Imposto de Selo que constituem o objeto do referido pedido de revisão oficiosa. Assim, o objeto imediato do PPA é o referido ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, e o objeto mediato do PPA são as referidas autoliquidações de Imposto de Selo. 

 

Tal como referido supra, dado que o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa não se chegou a formar, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, o Tribunal decidiu pelo suprimento da exceção dilatória de impossibilidade originária da lide, por falta de objeto, nos termos dos artigos 278.º, n.º 3, e 6.º, n.º 2, do CPC, considerando que o PPA apresentado pela Requerente em 29 de outubro de 2021 tem como objeto imediato a decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de19 de julho de 2021, e como objeto mediato as autoliquidações de Imposto de Selo em apreço.

 

Esta distinção entre objeto imediato e objeto mediato do PPA é essencial para efeitos de determinar a competência do presente Tribunal Arbitral Tributário, na medida em que os Tribunais Arbitrais Tributários são competentes para apreciar a legalidade de atos de indeferimento (expresso ou tácito) de pedidos de revisão oficiosa apresentados nos termos do artigo 78.º da LGT (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), mas não são competentes para apreciar diretamente a legalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT (cf. artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/20211, de 22 de março).

 

No caso em apreço, não está em causa a impugnação direta de atos de autoliquidação de Imposto de Selo, pelo que improcede também esta exceção suscitada pela Requerida.

 

 

§4.5. Da inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação por extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa

 

Nos termos do artigo 78.º da LGT, a revisão dos atos tributários é permitida em prazos e com fundamentos diversos. In casu, cumpre salientar que a tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 31 de março de 2021, relativamente às autoliquidações que efetuou em abril de 2017, terá de ser apreciada à luz do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que, aquando da apresentação do pedido de revisão oficiosa pela Requerente, já tinham passado mais de três anos a contar dos referidos atos de autoliquidação (relevante para efeitos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT), e que não se trata de uma situação de duplicação de coleta (relevante para efeitos do n.º 6 do artigo 78.º da LGT).

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, relativamente aos atos de autoliquidação em causa (efetuados em abril de 2017), a revisão do ato tributário poderia ser efetuada (a) por iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (dois anos, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do CPPT), com base em qualquer ilegalidade, ou (b) por iniciativa da Administração Tributária, com fundamento em “erro imputável aos serviços”, no prazo de 4 anos após as referidas autoliquidações de Imposto de Selo. 

 

Relativamente a erros nas autoliquidações efetuadas até 30 de março de 2016 (inclusive), os mesmos eram considerados imputáveis aos serviços, sendo aplicável o prazo de quatro anos referido no artigo 78.º, n.º 1, da LGT. Esta imputação aos serviços de erros nas autoliquidações constava no n.º 2 do artigo 78.º da LGT (revogado pelo artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março), no qual se podia ler: “Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação.” Este regime foi objeto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de fevereiro de 2021, processo n.º 02683/14.5BELRS 0181/18, e do Acórdão do Tribunal Administrativo Sul de 24 de fevereiro de 2022, processo n.º 663/13.7BELRS, entre outros.

 

Após a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT (com efeitos a partir de 31 de março de 2016), os erros nas autoliquidações deixaram de ser considerados imputáveis aos serviços para efeitos de determinação do prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT. O prazo de quatro anos referido nesta disposição passou a ser aplicável apenas quando o sujeito passivo alegue e prove que efetivamente ocorreu um erro nas autoliquidações de imposto que seja imputável aos serviços. Tal como referido na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 678/2021-T, a 6 de outubro de 2022, a “revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT simplesmente removeu a regra de inversão do ónus probatório de que beneficiavam os atos de autoliquidação, que passam, assim, a estar sujeitos às regras gerais (v. artigos 74.º, n.º 1 da LGT e 342.º, n.º 1 do Código Civil)”. Também neste sentido, as Decisões Arbitral proferidas nos processos n.ºs 468/2019-T (27 de fevereiro de 2020); 88/2021-T (2 de fevereiro de 2021); 9/2021-T (13 de setembro de 2021).

 

No caso sub judice, o erro nas autoliquidações de Imposto de Selo efetuadas pela Requerente em abril de 2017 não se presume imputável aos serviços nos termos do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, já que esta disposição não se encontrava em vigor em abril de 2017. Assim sendo, interessa apurar se o erro nas referidas autoliquidações deverá ser imputado aos serviços para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. 

 

            A este propósito, observou Lopes de Sousa, “sendo o contribuinte quem faz a autoliquidação, o que é normal é que os erros lhe sejam imputáveis a ele próprio, que a fez, e não à administração tributária, que não a fez. Apenas se entrevê a possibilidade de erros na autoliquidação serem imputáveis à administração tributária nos casos em que esta procedeu a correção ou em que o contribuinte incorreu em erros, segundo instruções, gerais ou especiais, que aquela lhe forneceu.”[1]

 

A Requerente invoca que o erro que ocorreu nas autoliquidações de Imposto de Selo que efetuou em abril de 2017 é imputável aos serviços visto que, ao efetuar as mesmas, seguiu o entendimento preconizado pela AT perante os contribuintes, fazendo referência às Informações Vinculativas n.ºs 4416 (com Despacho concordante da Direção de Serviços de IMT em 21-08-2013), 17743 (com Despacho concordante da Diretora-Geral da Autoridade Tributária em 15-04-2021), 17925 (com Despacho concordante da Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 15-04-2021), e 17644 (com Despacho concordante da Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 18-04-2021). 

 

As Informações Vinculativas n.ºs 17743, 17925 e 17644 foram primeiramente referidas no requerimento apresentado pela Requerente, em 2 de março de 2022, em resposta às exceções suscitadas pela Requerida. Tendo concluído que estas Informações Vinculativas não se encontravam disponíveis online (como deveriam nos termos do n.º 17 do artigo 68.º da LGT), o Tribunal notificou a Requerente para juntar cópia das mesmas aos autos. No requerimento apresentado pela Requerente em 19 de setembro de 2022, a Requerente juntou as Informações Vinculativas n.ºs 17743, 17925 e 17644 e transcreveu parcialmente a Informação Vinculativa n.º 4416. A Requerida opõe-se à valoração, pelo Tribunal, desta última Informação Vinculativa.

 

Tendo a Requerida tido oportunidade de se pronunciar sobre todas a Informações Vinculativas referidas (como efetivamente o fez), incluindo a Informação Vinculativa n.º 4416, e de exercer o seu direito ao contraditório em relação também a esta última Informação Vinculativa, e não se vislumbrando qualquer indício que a Requerente tenha agido de má-fé, o Tribunal considera que a valoração da Informação Vinculativa n.º 4416 não infringe os princípios do contraditório ou da igualdade das partes contidos no artigo 16.º, alíneas a) e b), do RJAT.

Interessa também salientar que a AT, com a emissão de uma Informação Vinculativa, não fica obrigada ao seu cumprimento em relação a todas as situações que se lhe colocam dentro do objeto dessa mesma orientação, mas apenas em relação ao caso em concreto objeto do pedido (cf. artigo 68.º, n.º 14, da LGT). Este regime difere do regime das orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de natureza idêntica, que, nos termos do artigo 68º-A, n.º 1, da LGT, vinculam a AT ao seu cumprimento em relação a todas as situações que se lhe colocam dentro do objeto dessas mesmas orientações. 

 

Todavia, o facto de as informações vinculativas só produzirem efeitos inter-partes não significa que as mesmas sejam desprovidas de relevância jurídica em relação a terceiros, nomeadamente, para efeitos de excluir a culpa dos sujeitos passivos que atuaram em conformidade com a interpretação de preceitos legais veiculada em Informações Vinculativas. Neste sentido, pode ler-se no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de março de 2018, processo n.º 07228/13:

 

“Embora uma informação vinculativa só produza, enquanto promessa administrativa e por força da regulamentação especial a que está sujeita, efeitos inter-partes (artigos 68.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária e 57.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) pode e deve ser excluída a culpa de um sujeito passivo, terceiro àquela relação, quando este actue em conformidade com a interpretação e orientações veiculadas pela Administração Tributária nessa mesma informação.”

 

Temos que esta interpretação será a mais adequada à luz do princípio da proteção da confiança legítima, que decorre do princípio da segurança jurídica e da ideia do Estado de Direito Democrático (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de junho de 2003, processo n.º 01188/02, e de 30 de abril de 2003, recurso n.º 47275/02).

 

As Informações Vinculativas (que devem ser publicadas online nos termos do n.º 17 do artigo 68.º da LGT) são suscetíveis de gerar nos sujeitos passivos, terceiros em relação às mesmas, uma expetativa legítima de que, no futuro, em casos idênticos, a AT irá proceder a uma interpretação e aplicação da lei conforme ao sentido interpretativo nelas expresso. Até porque, ao abrigo do princípio constitucional da igualdade, a AT está “obrigada a proceder de modo coincidente com a conduta que, eventualmente, já tivesse anteriormente adoptado, desde que em presença de casos iguais no plano objectivo.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de abril de 2001, processo n.º 046609). De facto, não é expectável que a AT publicite uma interpretação da lei numa Informação Vinculativa e, sem qualquer aviso prévio, adote uma interpretação contrária da mesma lei em casos concretos idênticos subsequentes. 

 

Admitir que a AT afaste a sua responsabilidade por erro em autoliquidações realizadas por sujeitos passivos em conformidade com uma Informação Vinculativa por si emitida seria admitir que a AT frustre legítimas e fundadas expectativas por si criadas, o que por sua vez seria contrário ao princípio da boa-fé. No Acórdão de 28 de novembro de 2000, recurso n.º 42055, o Supremo Tribunal Administrativo salientou que a boa-fé administrativa implica a criação de um clima de confiança e de previsibilidade nas relações com os particulares, adotando comportamentos consequentes e não contraditórios.

 

Conclui-se, assim, que o erro em autoliquidações realizadas por sujeitos passivos em conformidade com uma Informação Vinculativa poderá, em certas circunstâncias, ser imputado aos serviços para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. 

 

Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de março de 2018, processo n.º 07228/13, cumpre salientar que, para este Tribunal Arbitral considerar que o erro nas autoliquidações de Imposto de Selo em apreço é imputável aos serviços para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é necessário que a Requerente demonstre (i) que teve conhecimento do teor de uma Informação Vinculativa prestada pela AT a terceiros, (ii) que alterou a sua atuação em conformidade com o entendimento que nessa Informação Vinculativa foi vertido pela AT, e que (ii) efetuou as autoliquidações de Imposto de Selo em apreço devido à confiança que votou àquele mesmo entendimento. Em tais circunstâncias, temos que não seria de fazer qualquer juízo de censura à Requerente.

Das Informações Vinculativas referidas pela Requerente, apenas uma precede as autoliquidações de Imposto de Selo contestadas (abril de 2017): a Informação Vinculativa n.º 4416, de 21-08-2013, referente a fundos de capital de risco (parcialmente transcrita supra). Desta Informação Vinculativa é razoável retirar-se a indicação de que as comissões de gestão cobradas a fundos de capital de risco se encontram sujeitas a Imposto do Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo. 

 

Considerando a obrigatoriedade da publicação das Informações Vinculativas por meios electrónicos decorrente do n.º 17 do artigo 68.º da LGT, o Tribunal considera que a Requerente, em momento anterior a abril de 2017, teve conhecimento do teor de uma Informação Vinculativa suscetível de ser interpretada no sentido de que as comissões de gestão por si cobradas se encontravam sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo, que alterou a sua atuação em conformidade com o entendimento que naquela Informação Vinculativa foi vertido pela AT, e que efetuou as autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas devido à confiança que votou àquele mesmo entendimento.

 

À face do exposto, conclui-se que a Requerente satisfez o ónus que sobre si impendia de demonstrar factos constitutivos de que as autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas derivaram de erro imputável aos serviços. Por essa razão, conclui-se que, no caso sub judice, é aplicável o prazo alargado de quatro anos referido no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, e que o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente é tempestivo.

 

Improcedendo todas as exceções dilatórias suscitadas pela Requerida, e não existindo outro obstáculo a que se conheça do mérito da causa, importa considerar a legalidade do ato expresso de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, enquanto objeto imediato do PPA, e das autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas, enquanto objeto mediato do PPA.

 

 

 

§4.6. Da ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas, por as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco não se encontrarem sujeitas a Imposto de Selo

 

A legalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas depende da interpretação das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo, na redação em vigor em abril de 2017, mais especificamente, de saber se, a essa data, as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco se encontravam sujeitas a Imposto de Selo. 

 

Neste contexto, interessa não confundir sociedades de capital de risco (reguladas nos artigos 6.º a 13.º do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de março)[2] com fundos de capital de risco e respetivas sociedades gestoras (regulados nos artigos 15.º a 43.º, e 45.º a 57.º, do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de março). A Requerente constitui uma sociedade gestora de fundos de capital de risco, e não uma sociedade de capital de risco. 

 

Na redação em vigor à data dos factos (abril de 2017), as Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto de Selo dispunham o seguinte:

 

“17.3 - Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras - sobre o valor cobrado: 

 

17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões …… 4%”

 

A Requerente e a Requerida contendem quanto à questão de saber se a Requerente, enquanto sociedade gestora de fundos de capital de risco, constitui uma sociedade financeira, uma entidade legalmente equiparada a sociedade financeira, ou uma instituição financeira, para efeitos da Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo. 

 

O Tribunal Arbitral não tem conhecimento de Acórdãos dos Tribunais Superiores ou de Decisões de Tribunais Arbitrais relativamente à qualificação de sociedades gestoras de fundos de capital de risco como um dos tipos de entidades elencadas na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo, ou quanto à sujeição a Imposto de Selo das comissões cobradas por estas sociedades a fundos de capital de risco nos termos da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

A Requerente parece assentar a sua argumentação na linha de jurisprudência arbitral relativa a comissões de gestão cobradas por sociedades de capital de risco, que importa considerar. 

 

Jurisprudência arbitral relativa a comissões de gestão cobradas por sociedades de capital de risco

 

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 226/2018-T (13 de dezembro de 2018), o Tribunal concluiu que as comissões cobradas por sociedades de capital de risco a fundos de capital de risco não estão sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, por as referidas sociedades não constituírem “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras” para efeitos da Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Apesar de reconhecer a existência de instituições financeiras e sociedades financeiras para além do âmbito de aplicação do RGICSF, o Tribunal entendeu que as sociedades de capital de risco não se inserem nestas categorias para os efeitos da Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo, com os seguintes fundamentos:

 

i.      O n.º 1 do artigo 2.º do regime jurídico próprio das sociedades de capital de risco (Lei n.º 18/2015, de 4 de março) dispõe que estas sociedades “não são intermediários financeiros”

 

ii.    A qualificação como “instituições financeiras” não resulta do objeto social que lhes é legalmente fixado no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 18/2015, de 4 de março.

 

iii.  A Lei de Branqueamento de Capitais (Lei n.º 25/2008, de 5 de junho), que abrange sociedades de capital de risco enquanto “entidades financeiras”, não regula atividade financeira.

 

iv.   As sociedades de capital de risco estiveram expressamente consagradas na alínea h) do artigo 6.º do RGICSF como sociedades financeiras, mas essa qualificação foi expressamente revogada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, que criou o diploma disciplinador da constituição e atividade das sociedades de capital de risco (hoje regulado pela já referida Lei n.º 18/2015, de 4 de março), sendo indiscutível que o legislador pretendeu de forma expressa retirar as sociedades de capital de risco do âmbito do RGICSF. 

 

v.     Estando em causa uma norma de incidência, cuja aplicação exige cautelas especiais, face ao princípio constitucional da legalidade previsto no artigo 103.º da CRP, está vedado o recurso à analogia (cf. artigo 11.º, n.º 4, da LGT).

 

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 399/2019-T (25 de novembro de 2019), o Tribunal também decidiu que as comissões cobradas por sociedades de capital de risco a fundos de capital de risco não estão sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Nesta Decisão, o Tribunal considerou que “o artigo 6º do RGICSF, que é a norma por excelência a que o intérprete deve recorrer neste caso concreto, por força do nº 2 do artigo 11º da LGT, não resulta que as SCR estejam abrangidas na definição de sociedades financeiras ou de outras entidades a que se refere a verba 17.3. da TGIS, nomeadamente outras instituições financeiras.” Assim, concluiu o Tribunal que “não é possível, face à redacção da verba 17.3 da TGIS, onde se estabelece a incidência subjectiva do imposto aqui em causa, concluir-se que as SCR estão sujeitas ao imposto do selo da verba 17.3.4 da TGIS”. A alínea f) do n.º 1 do artigo 10.º do Código dos Valores Mobiliários e a alínea h) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei 26/2008, de 5 de julho, foram considerados pelo Tribunal não terem a virtualidade de lograr integrar as sociedades de capital de risco na definição de uma das entidades sujeitas ao Imposto do Selo incluídas na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 791/2019-T (10 de maio de 2021), relativa a comissões de gestão cobradas entre março e setembro de 2017, o Tribunal seguiu o entendimento expresso nas Decisões Arbitrais n.ºs 226/2018-T (13 de dezembro de 2018) e 399/2019-T (25 de novembro de 2019), notando que não “restam dúvidas face às normas na redacção em vigor à data dos factos, que na qualidade de SCR, não cabia no conceito de sociedade financeira, e que como tal, não estava abrangida, relativamente às operações que praticasse, incluindo a cobrança de comissões de gestão pela norma de incidência de IS prevista na verba 17.3.4 da TGIS.”

 

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 757/2020-T (27 de setembro de 2021), relativo a comissões de gestão cobradas entre 2018 e 2020, o Tribunal também concluiu que as sociedades de capital de risco não se caracterizam como instituições financeiras para efeitos da norma de incidência subjetiva contida na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Para este efeito, o Tribunal fez as seguintes observações:

 

i.      As sociedades de capital de risco, que constituíam uma das espécies de sociedades financeiras segundo o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea h), do RGICSF, na sua redação originária, perderam esse qualificativo por efeito da revogação dessa disposição, operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, que alterou o regime jurídico das sociedades de capitais de risco, que então constava do Decreto-Lei n.º 433/91, de 7 de novembro. Com o novo Decreto-Lei, as sociedades de capital de risco passam a estar unicamente sujeitas a registo junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

 

ii.    Tendo havido um claro propósito legislativo de excluir as sociedades de capital de risco do conceito de sociedades financeiras - o que se encontra explicado pelo seu próprio objeto social e a proibição da prática de atividades exclusivas das instituições de crédito - não faz qualquer sentido, no plano da hermenêutica jurídica, que se pretenda qualificar essas mesmas entidades como sociedades financeiras com base numa interpretação analógica a partir de elementos interpretativos que provêm de outros lugares do sistema. 

 

iii.  Estando em causa a incidência subjetiva do Imposto do Selo em função da qualificação do sujeito passivo como sociedade financeira, é patente que não é possível caracterizar como sociedade financeira uma instituição que deixou de ser considerada como tal pelo RJICSF, com base num mero argumento de analogia com uma outra entidade que continua a ser tida pelo RJICSF como uma sociedade financeira.

 

iv.   O disposto na alínea f) do n.º 1 artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários (que considera as sociedades de capital de risco como “outras instituições financeiras”) e na alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º da Lei n.º 26/2008, de 5 de julho, que aprovou a Lei de Branqueamento de Capitais (que trata as sociedades de capital de risco como “entidades financeiras”) não permite concluir de que as sociedades de capital de risco devem ser consideradas como instituições financeiras para efeito de incidência de Imposto do Selo.

 

Da jurisprudência arbitral relativa a sociedades de capital de risco resulta de forma unânime que, por força do artigo 11.º, n.º 2, da LGT, a classificação das mesmas como sociedades financeiras, entidades legalmente equiparadas a sociedades financeiras, ou instituições financeiras, para efeitos das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, depende essencialmente da classificação contida no artigo 6.º do RGICSF, na redação em vigor à data da cobrança das comissões de gestão pelas sociedades de capital de risco. Segundo esta orientação jurisprudencial, após a alteração do RGICSF pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, as sociedades de capital de risco deixaram de constituir sociedades financeiras para efeitos do RGICSF e, consequentemente, para efeitos das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

Não obstante o exercício da atividade de investimento das sociedades de capital de risco e das sociedades gestoras de fundos de capital de risco ser regulado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de março (cf. respectivo artigo 1.º, alíneas a) e b)), a verdade é que, em abril de 2017 (quando a Requerente cobrou as comissões de gestão que deram origem às autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas), as sociedades gestoras de fundos de investimento continuavam a ser consideradas como sociedades financeiras no artigo 6.º do RGICSF.[3] De facto, o Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, apenas revogou a alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF relativa a sociedades de capital de risco (cf. respetivo artigo 51.º, alínea a)). A classificação das sociedades gestoras de fundos de investimento como sociedades financeiras no artigo 6.º do RGICSF apenas foi revogada pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de Setembro (cf. respetivo artigo 2.º), ou seja, depois da Requerente ter cobrado as comissões de gestão que deram origem às autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas.

 

Neste contexto, cumpre notar que a designação “sociedades gestoras de fundos de investimento” constava na versão originária do artigo 6.º do RGICSF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, e que, a essa data, estava já em vigor o Decreto-Lei n.º 187/91, de 17 de maio (que criou os fundos de investimento de capital de risco como um novo tipo de fundos de investimento mobiliário com o traço característico de o seu património ser preferencialmente composto por quotas de capital e ações e obrigações não admitidas à cotação em bolsa de valores).[4] Este diploma remetia expressamente para o Decreto-Lei n.º 299-C/88, de 4 de julho, que estabelecia o quadro geral dos fundos de investimento mobiliários e imobiliários, abertos e fechados, e das respetivas sociedades gestoras (cf. artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 187/91, de 17 de maio). Não restam assim dúvidas de que o termo “sociedades gestoras de fundos de investimento” no artigo 6.º do RGICSF deve ser interpretado como incluindo não só as sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário e as sociedades gestoras de fundos de investimento imobiliário, mas também as sociedades gestoras de fundos de investimento de capital de risco.

 

Conclui-se, assim, que (1) não será de transpor para as sociedades gestoras de fundos de capital de risco a conclusão contida na jurisprudência relativa às sociedades de capital de risco supra referida (segundo a qual, deixando as sociedades de capital de risco de constituir sociedades financeiras para efeitos do artigo 6.º do RGICSF, deixam as mesmas sociedades de estar sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo), e que (2) em abril de 2017, as sociedades gestoras de fundos de investimento de capital de risco constituíam sociedades financeiras para efeitos do artigo 6.º do RGICSF.

 

Transpondo a tese central da jurisprudência relativa às sociedades de capital de risco supra referida para as sociedades gestoras de fundos de capital de risco, a conclusão lógica é a de que, em abril de 2017, as sociedades gestoras de fundos de capital de risco constituíam sociedades financeiras para efeitos do artigo 6.º do RGICSF e que as comissões de gestão por elas cobradas estavam sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo. 

 

Mas existem outros argumentos, talvez de natureza menos formalista, que suportam a conclusão de que as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco (em abril de 2017) se encontram sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, e que interessa analisar.

 

A atividade das sociedades gestoras de fundos de capital de risco

 

Nos termos do Regime Jurídico do Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do Investimento Especializado (na redação originária, em vigor em abril de 2017), as sociedades gestoras de fundos de capital de risco têm como objeto principal a gestão de organismos de investimento em capital de risco e de organismos de investimento alternativo especializado, e a gestão dos fundos previstos em legislação da União Europeia cujo investimento abranja os ativos elegíveis para organismos de investimento coletivo em valores mobiliários e organismos de investimento em capital de risco (cf. respetivo artigo 45.º, n.º 1). Nos termos conjugados dos artigos 45.º, n.º 3, e 66.º do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro (na versão em vigor em 2017), a atividade das sociedades gestoras de fundos de capital de risco têm o seguinte âmbito:

 

“1 - No exercício das funções respeitantes à gestão de organismo de investimento coletivo, compete à entidade gestora:

a) Gerir o investimento, praticando os atos e operações necessários à boa concretização da política de investimento, em especial:

i) A gestão do património, incluindo a seleção, aquisição e alienação dos ativos, cumprindo as formalidades necessárias para a sua válida e regular transmissão e o exercício dos direitos relacionados com os mesmos; e

ii) A gestão do risco associado ao investimento, incluindo a sua identificação, avaliação e acompanhamento.

b) Administrar o organismo de investimento coletivo, em especial:

i) Prestar os serviços jurídicos e de contabilidade necessários à gestão dos organismos de investimento coletivo, sem prejuízo da legislação específica aplicável a estas atividades;

ii) Esclarecer e analisar as questões e reclamações dos participantes;

iii) Avaliar a carteira e determinar o valor das unidades de participação e emitir declarações fiscais;

iv) Cumprir e controlar a observância das normas aplicáveis, dos documentos constitutivos dos organismos de investimento coletivo e dos contratos celebrados no âmbito da atividade dos mesmos;

v) Proceder ao registo dos participantes, caso aplicável;

vi) Distribuir rendimentos;

vii) Emitir, resgatar ou reembolsar unidades de participação;

viii) Efetuar os procedimentos de liquidação e compensação, incluindo o envio de certificados;

ix) Registar e conservar os documentos.

c) Comercializar as unidades de participação dos organismos de investimento coletivo sob gestão.

2 - No exercício das funções respeitantes à gestão de organismo de investimento alternativo, à entidade gestora compete ainda, no que respeita aos ativos deste, nomeadamente:

a) Prestar os serviços necessários ao cumprimento das suas obrigações fiduciárias;

b) Administrar imóveis, gerir instalações e controlar e supervisionar o desenvolvimento dos projetos objeto de promoção imobiliária nas suas respetivas fases;

c) Prestar outros serviços relacionados com a gestão do organismo de investimento alternativo e ativos, incluindo sociedades, em que tenha investido por conta do organismo de investimento alternativo.

3 - A entidade gestora só pode ser autorizada a prestar as atividades previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 e no n.º 2 se estiver autorizada para o exercício da atividade referida na alínea a) do n.º 1.” 

 

Tendo em consideração a atividade das sociedades gestoras de fundos de capital de risco descrita supra, resulta claro as mesmas constituem instituições financeiras para efeitos do RGICSF e do Direito da União Europeia. Da sub-alínea ii) da alínea z) do artigo 2.º-A do RGICSF (na redação em vigor em abril de 2017), que remete para o Anexo I da Diretiva 2013/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento), resulta que constituem instituições financeiras as entidades que realizem, a título principal, transações por conta de clientes que tenham por objeto valores mobiliários (n.º 7, alínea e), do referido Anexo), que giram carteiras (n.º 11 do referido Anexo), ou que sejam responsáveis pela administração de valores mobiliários (n.º 12 do referido Anexo). Estas entidades são também classificadas como instituições financeiras, por remissão para o referido Anexo I da Diretiva 2013/36/UE, para efeitos do Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho 26 de junho de 2013 (relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento), conforme resulta do respetivo artigo 4.º, n.º 1, ponto 26). Pode-se, assim, concluir, como argumenta a Requerida, que tanto o RGICSF como o Direito da União Europeia são congruentes quanto à classificação das sociedades gestoras de fundos de capital de risco como instituições financeiras.

 

A classificação de entidades gestoras de fundos como instituições financeiras tendo em conta a atividade por elas desenvolvida, à luz do direito nacional e do Direito da União Europeia, é preponderante na jurisprudência arbitral relativa à interpretação das Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo no que toca às comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo, jurisprudência essa que é unânime no sentido de que tais comissões se encontram sujeitas a Imposto de Selo (cf. Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 742/2021-T, de 11 de março de 2022; 741/2021-T, de 20 de maio de 2022; 68/2022-T, de 11 de julho de 2022; 9/2022-T, de 15 de setembro de 2022; 107/2022-T, de 2 de novembro de 2022). Nestes processos, os Tribunais Arbitrais recusaram uma interpretação das Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo exclusivamente baseada na classificação formal contida no artigo 6.º do RGICSF, fazendo referência à atividade desenvolvida pelas sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo.

 

A prevalência da atividade desenvolvida sob a classificação formal contida no artigo 6.º do RGICSF é ainda mais acentuada no que diz respeito à classificação das sociedades gestoras de fundos de pensões como instituições financeiraspara efeitos da Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Isto porque as sociedades gestoras de fundos de pensões foram, desde a versão originária do RGICSF (aprovado em 1992), formalmente excluídas do conceito de sociedades financeiras (cf. artigo 6.º, n.º 3, do RGICSF). Não obstante esta exclusão, a jurisprudência arbitral é unânime no sentido de que as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de pensões encontram-se sujeitas a Imposto de Selo, nos termos da Verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, visto que as referidas sociedades realizam operações materialmente financeiras e, por esse motivo, se integram no conceito lato de instituições financeirascontido na Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

Este entendimento encontra-se espelhado nas Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 348/2016-T (2 de maio de 2017); 633/2016-T (19 de maio de 2017); 667/2016-T (20 de junho de 2017); 9/2017-T (30 de agosto de 2017); 303/2017-T (10 de novembro de 2017); 279/2017-T (30 de novembro de 2017); 441/2017-T (20 de dezembro de 2017); 183/2017-T (18 de janeiro de 2018); 352/2017-T (5 de fevereiro de 2018); 527/2017-T (20 de abril de 2018); 123/2018-T (24 de setembro de 2018); e 224/2018-T (19 de janeiro de 2019). Nestas Decisões Arbitrais é claro que os Tribunais consideraram que o elenco de sociedades financeiras contido no artigo 6.º do RGICSF não exclui que as sociedades gestoras de fundos de pensões possam ser consideradas como instituições financeiras noutros contextos e para outros efeitos. Na Decisão proferida no processo n.º 527/2017-T (20 de abril de 2018) pode ler-se:

 

“A formulação utilizada na verba 17.3. da TGIS abrange não apenas as “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas”, mas também “quaisquer outras instituições financeiras”. A referência às instituições de crédito e sociedades financeiras pode entender-se como pretendendo abranger as espécies de instituições financeiras cujo processo de estabelecimento e exercício de atividade se encontra especialmente regulado no RGICSF. A menção feita a quaisquer outras instituições financeiras tem o sentido inequívoco de abranger outros tipos de instituições dessa natureza que constituam objeto de legislação especial e, por isso, se não encontrem enquadradas no regime geral do sistema financeiro.

 

Nesse sentido, não assume qualquer relevo a restrição constante do artigo 6.º, n.º 3, do RGICSF quando exclui do conceito de sociedades financeiras as empresas de seguros e as sociedades gestoras de fundos de pensões. Como resulta do segmento inicial do preceito, essa exclusão releva apenas para os efeitos do regime previsto nesse diploma, o que significa que as empresas de seguros e as sociedades gestoras de fundos de pensões, ainda que possam ser entendidas como sociedades financeiras, não estão sujeitas à regulamentação específica decorrente do Regime Geral aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92. Essa constitui, no entanto, uma mera opção do legislador que, como ressalta da exposição de motivos do diploma preambular, pretendeu proceder à reforma do sistema financeiro nacional, mediante a transposição de diversas diretivas comunitárias, remetendo para um regime próprio o sector dos seguros e dos fundos de pensões.

 

No que se refere aos fundos de pensões e às sociedades gestoras de fundos de pensões, a sua constituição e funcionamento encontra-se especialmente prevista no Decreto-Lei n.º 12/2006, de 20 de janeiro, que pretendeu transpor para o direito interno a Diretiva n.º 2003/41/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de junho, relativa às atividades e à supervisão das instituições de realização de planos de pensões profissionais. 

 

A lei caracteriza as sociedades constituídas exclusivamente para a gestão de fundos de pensões como sociedades gestoras à quais compete a prática de todos os atos e operações necessários ou convenientes à boa administração e gestão do fundo (artigos 32.º, 1, e 33.º) e a sua atividade é supervisionada pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), que, como entidade administrativa independente, tem por missão assegurar o regular funcionamento do mercado segurador e dos fundos de pensões (artigos 36.º e 37.º do Decreto-Lei n.º 1/2015, de 6 de janeiro). 

 

Em todo o caso, é evidente, no quadro legislativo comunitário, que as instituições de realização de planos de pensões são instituições financeiras e intervêm no mercado de serviços financeiros, havendo de considerar-se integradas no conceito amplo de sociedades financeiras (considerandos 1, 2 e 4 da Diretiva n.º 2003/41/CE). 

 

Por todo o exposto, e face à amplitude da norma de incidência fiscal, não tem cabimento afirmar que estão apenas abrangidas pela verba 17.3.4 as comissões cobradas por serviços financeiros prestados pelas entidades às quais se aplique o RGICSF. A norma abrange os serviços financeiros de quaisquer instituições financeiras, independentemente do regime legal que regula o exercício da respectiva atividade, pelo que não pode deixar de ser aplicada às comissões que remuneram os serviços das sociedades gestoras de fundos de pensões.”

 

Esta orientação jurisprudencial suporta o argumento subscrito pela Requerida, segundo o qual, para efeitos da classificação das entidades referidas na Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo, é também relevante considerar a atividade do sujeito passivo. Ora, tal como referido supra, tendo em consideração a atividade das sociedades gestoras de fundos de capital de risco descrita no artigo 45.º do Regime Jurídico do Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do Investimento Especializado, resulta claro que as mesmas constituem instituições financeiras para efeitos do RGICSF e do Direito da União Europeia. Assim sendo, as comissões de gestão cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco encontram-se também com este fundamento sujeitas a Imposto de Selo, nos termos das Verbas 17.3. e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

A mesma conclusão é extraída quando se reconstitui o pensamento do legislador aquando da introdução na legislação do Imposto do Selo dos conceitos posteriormente integrados nas Verbas 17.3. e 17.3.4 na Tabela Geral do Imposto do Selo.

Reconstituição do pensamento legislativo

 

A jurisprudência arbitral supra referida assenta essencialmente na norma interpretativa contida no n.º 2 do artigo 11.º da LGT, sendo consensual o entendimento de que os conceitos de instituição de créditosociedade financeiraoutras entidades a ela legalmente equiparadas e instituição financeira contidos na norma de incidência subjetiva constante da Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo devem ser interpretados à luz do Direito Financeiro, uma vez que as normas fiscais não contêm a definição destes conceitos, que são próprios daquele outro ramo de direito (cf. Decisões Arbitrais nos processos n.ºs 667/2016-T, de 20 de junho de 2017; 303/2017-T, de 10 de novembro de 2017; 352/2017-T, de 5 de fevereiro de 2018; 226/2018-T, de 13 de dezembro de 2018; 68/2022-T, de 11 de julho de 2022; 9/2022-T, de 15 de setembro de 2022). 

 

Quanto ao Direito Financeiro relevante o efeito, os Tribunais Arbitrais centraram a sua análise no disposto no RGICSF (enquanto legislação de carácter geral) e nos diplomas especiais aplicáveis a sociedades de capital de risco (Lei n.º 18/2015, de 4 de março, que aprovou o Regime Jurídico do Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do Investimento Especializado), a organismos de investimento coletivo e respetivas sociedades gestoras (Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que aprovou o Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo), ou a fundos de pensões e respetivas sociedades gestoras (Decreto-Lei n.º 12/2006, de 24 de fevereiro, que regulou a constituição e o funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões, até à sua revogação e substituição pela Lei n.º 27/2020, de 23 de julho), assumindo que o legislador teria pretendido sujeitar ou excluir de Imposto de Selo as comissões cobradas por estas entidades (ao abrigo das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo) ao incluir ou excluir as mesmas do elenco de entidades contido no artigo 6.º do RGICSF, ou ao descrever as atividades e transações admitidas a sociedades gestoras nas referidas legislações especiais.

 

O RGICSF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, sofreu 61 alterações até à data (a mais recente, resultante da Lei n.º 23-A/2022, de 9 de dezembro). Tal como referido supra, as sociedades de capital de risco, inicialmente formalmente classificadas como sociedades financeiras (cf. alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF), deixaram de o ser com a aprovação do Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro. Por sua vez, as sociedades gestoras de fundos de investimento, também inicialmente formalmente classificadas como sociedades financeiras (cf. alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF), deixaram de o ser com a aprovação do Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro.

 

Será razoável concluir que, com estas alterações, a intenção do legislador for excluir primeiro as sociedades de capital e risco, e depois as sociedades gestoras de fundos de investimento, do âmbito de incidência do Imposto de Selo (i.e., das Verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo), sem haver qualquer indicação nesse sentido no preâmbulo dos referidos diplomas? 

 

Não será antes de atender aos conceitos de instituição de créditosociedade financeiraoutras entidades a ela legalmente equiparadas ou instituição financeira contidos na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo à luz do Direito Financeiro em vigor quando os mesmos foram introduzidos na legislação do Imposto do Selo? Não terá sido com tais conceitos em mente que o legislador delimitou a norma de incidência que resulta das Verbas 17.3 e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo?

Regula a constituição e o funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões

Regula a constituição e o funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões

Regula a constituição e o funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões

 

 Tal como referido na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 441/2017-T, de 20 de dezembro de 2017, os “conceitos jurídicos, no âmbito do direito fiscal e fora dele, quando não são explicitamente definidos na lei, têm de ser definidos por via jurisprudencial e doutrinal e, mesmo quando são fornecidas definições legais, as normas definidoras carecem de interpretação, com todas as normas jurídicas.” Neste contexto, interessa relembrar os princípios orientadores na determinação do sentido das normas tributárias. A interpretação da lei fiscal rege-se pelo no artigo 11.º da LGT, que prevê o seguinte:

 

1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis. 

 

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei. 

 

3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários. 

 

Ao referir as “regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”, o n.º 1 do artigo 11.º da LGT remete-nos para o artigo 9.º do Código Civil, que dispõe o seguinte:

 

“1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

 

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

No sumário do Acórdão do Douto Supremo Tribunal Administrativo de 29 de novembro de 2011, processo n.º 0701/10, pode ler-se:


“I - Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correcta aplicação a um caso concreto.


II - A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente.


III - O primeiro são as palavras em que a lei se expressa (elemento literal); os outros a que seguidamente se recorre, constituem os elementos, geralmente, denominados lógicos (histórico, racional e teleológico).


IV - O elemento literal, também apelidado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação.
A letra da lei tem duas funções: a negativa (ou de exclusão) e positiva (ou de selecção). A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.


V - Mas além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica. Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada]; b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).”

 

No intuito de reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta as circunstâncias em que a Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo foi elaborada e assumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, importa atentar aos conceitos de instituição de créditosociedade financeiraoutras entidades a ela legalmente equiparadas e instituição financeira quando os mesmos foram introduzidos na legislação do Imposto do Selo.

 

A Lei n.º 39.º-B/94, de 27 de dezembro, alterou o artigo 120.º-A da Tabela Geral do Imposto de Selo aprovada pelo Decreto n.º 21916, de 28 de novembro de 1932, sujeitando a Imposto de Selo, enquanto “operações financeiras”, as “Operações a seguir enumeradas realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas”, designadamente todas as comissões cobradas por estas entidades. Com a aprovação do atual Código de Imposto do Selo e da atual Tabela Geral do Imposto do Selo pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro[5] (com entrada em vigor em 1 de janeiro de 2000), o referido artigo 120-A foi substituído pela Verba 17.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo, também relativa a “operações financeiras”, sujeitando a Imposto de Selo as “Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”, designadamente, “comissões e contraprestações por serviços financeiros” (Verba 17.2.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo). Da leitura de ambos os preceitos, conclui-se que o âmbito da norma de incidência subjetiva em análise foi alargado pela Lei n.º 150/99, passando a incluir “quaisquer outras instituições financeiras”. Por último, cumpre notar que a norma de incidência subjetiva contida na Verba 17.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo na redação em vigor em 2017 (“Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”) corresponde à norma de incidência subjetiva contida na Verba 17.2 da redação original da Tabela Geral do Imposto do Selo aprovada pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro.

 

Mas mais relevante, para a reconstituição do pensamento legislativo, é salientar que, em 1994, quando o legislador introduziu os conceitos de instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades a elas legalmente equiparadas para efeitos de delimitar a incidência subjetiva do Imposto de Selo relativamente a operações financeiras, já estava em vigor (1) o RGICSF (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro), que classificava as sociedades gestoras de fundos de investimento como sociedades financeiras (cf. alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF), e (2) o Decreto-Lei n.º 187/91, de 17 de maio, que criou os fundos de investimento de capital de risco como um novo tipo de fundos de investimento mobiliário. 

 

Assim, não restam dúvidas de que, quando o legislador introduziu os termos sociedades financeiras e outras entidades a elas legalmente equiparadas no artigo 120.º-A da anterior Tabela Geral do Imposto de Selo para definir as comissões sujeitas a Imposto de Selo (com a aprovação da Lei n.º 39.º-B/94, de 27 de dezembro), o legislador tinha em mente que o elenco de sociedades financeiras contido no artigo 6.º do RGICSF incluía sociedades gestoras de fundos de investimento, nomeadamente, sociedades gestoras de fundos de investimento de capital de risco.

 

Nestes termos, é claro que também a reconstituição o pensamento legislativo tendo em conta as circunstâncias em que a Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo foi elaborada sustenta a conclusão de que as comissões cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco se encontram sujeitas a Imposto de Selo ao abrigo das Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

 

 

 

Conclusão

 

Do exposto supra resulta que o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e as autoliquidações de Imposto de Selo objeto do PPA não são ilegais. Isto porque, em abril de 2017, as sociedades gestoras de fundos de capital de risco deveriam ser classificadas como sociedades financeiras ou instituições financeiras para efeitos das Verbas 17.3. e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, (1) quer se siga a linha interpretativa das Decisões Arbitrais relativas às sociedades de capital de risco invocada pela Requerente, segundo a qual as comissões de gestão apenas estão sujeitas a Imposto de Selo se forem cobradas por uma sociedade financeira para efeitos do artigo 6.º do RGICSF (tal como referido supra, em abril de 2017, as sociedades gestoras de fundos de capital de risco cabiam no conceito de sociedade financeira para efeitos do artigo 6.º do RGICSF), (2) quer se considere a atividade das sociedades gestoras de fundos de capital de risco para classificar as mesmas como instituições financeiras para efeitos do RGICSF e do Direito da União Europeia, (3) quer se considere o pensamento legislativo apurado face às circunstâncias em que a Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo foi elaborada, nomeadamente, o facto de o elenco de sociedades financeiras contido no artigo 6.º do RGICSF incluir sociedades gestoras de fundos de investimento quando o legislador introduziu os termos sociedades financeiras e outras entidades a elas legalmente equiparadas na legislação que historicamente deu origem à Verba 17.3. da Tabela Geral do Imposto do Selo (na redação em vigor em abril de 2017).

 

 

§4.7. Da inconstitucionalidade das Verbas 17.3. e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo, quando interpretadas no sentido de que as comissões cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco estão sujeitas a Imposto de Selo

 

Não se vê fundamento para considerar a interpretação das Verbas 17.3. e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo segundo a qual as comissões cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco estão sujeitas a Imposto de Selo como inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade fiscal, da igualdade ou da segurança jurídica. Os conceitos de sociedade financeira e de instituição financeira não se apresentam como insuficientemente definidos, na medida em que têm suporte textual explícito na legislação específica do sector financeiro, nomeadamente, no RGICSF e no Direito da União Europeia supra referido, antes carecendo de interpretação, como todos os conceitos jurídicos.

 

Todavia, na medida em que a Requerente faz alusão ao princípio constitucional da legalidade consagrado no artigo 103.º da CRP, interessa atentar à relevância do mesmo na interpretação de normas fiscal. A este propósito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 868/2018, de 11 de março de 2020:

 

“não podemos deixar de ter presente que «a função garantística da reserva de lei postula uma densificação normativa progressiva para a qual contribuem Parlamento, Governo, Administração e Tribunais», o que é tanto mais relevante quanto certo é que, conforme vem este Tribunal, de resto, afirmando, «[a] previsibilidade e calculabilidade do imposto, tendo em conta a complexidade dos ordenamentos tributários atuais e a coexistência da legalidade com princípios materiais, não deve ser entendida necessariamente como um cálculo antecipado do imposto pelo contribuinte leigo a partir da lei do Parlamento (…)» (Ana Paula Dourado e Paulo Marques, in Miranda, J./Medeiros R., Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 203). Para dar resposta adequada à questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos importa, pois, perceber se e em que medida o juiz se encontra vinculado, por força do princípio da legalidade fiscal, a observar especiais regras interpretativas que excluam, designadamente, a possibilidade de corrigir interpretativamente uma norma determinante do quantum do imposto a pagar.

 

12. De modo a compreender o sentido e alcance da norma sobre interpretação aplicada no acórdão recorrido, importa começar por atentar nas disposições do Código Civil invocadas pelo Tribunal a quo e, em especial, esclarecer o conceito de interpretação corretiva que o mesmo mobilizou para caraterizar o resultado da interpretação do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC em concreto alcançado.

 

O artigo 9.º do Código Civil – inserido no Título I da sua Parte Geral, dedicado às leis, sua interpretação e aplicação – prescreve o seguinte:

 

Artigo 9.º

(Interpretação da lei)

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Através deste conjunto de disposições, foram incorporados no nosso Código Civil os principais postulados da chamada teoria tradicional da interpretação jurídica.

 

Sabendo-se que a interpretação consiste na determinação do sentido jurídico-normativo de uma certa proposição ou enunciado, em ordem a obter deste um critério para a resolução do caso concreto, do artigo 9.º do Código Civil extrai-se, em primeira linha, que tal atividade deverá orientar-se pela tentativa de compreensão global do texto legal, a reconstituir através da convocação, tanto do elemento literal ou gramatical, como dos elementos histórico, lógico-sistemático e racional ou teleológico.

 

Na génese das normas sobre interpretação da lei constantes do artigo 9.º do Código Civil encontra-se, pois, a ideia de que o texto legal se não se cinge à letra, mas antes dá corpo a um pensamento legislativo expressão que acolhe tanto a mens legislatoris, como a mens legis. Isto é, o reconhecimento de que as “frases jurídicas” não podem ser encaradas pelo intérprete como simples locuções, em condições de poderem bastar-se com a mera compreensão gramatical do seu enunciado, mas são antes verdadeiras elocuções, dotadas de um conteúdo proposicional ou prescritivo próprio, que, ao mesmo tempo que confere à interpretação jurídica a sua reconhecida singularidade, confronta permanentemente o intérprete com a complexa tarefa de alcançar a regra apta a solucionar o caso concreto através da ponderação do conjunto daqueles elementos.

 

Sem conceder que a interpretação jurídica possa restringir-se a uma leitura enunciativa do conteúdo da fonte interpretanda, o Código Civil acolheu claramente a preponderância da letra da lei não apenas como ponto de partida da interpretação, mas também como critério decisivo de exclusão ou de limite intransponível das possibilidades de interpretação — trata-se da designada dimensão ou função negativa da letra da lei, que o n.º 2 do artigo 9.º consagra —, conferindo simultaneamente primazia ao sentido interpretativo mais condizente com o significado mais usual das expressões constitutivas do texto interpretando.

 

Nesta última aceção — correspondente à dimensão positiva do texto da lei e concretizada na presunção de que «o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cf. o n.º 3 do artigo 9.º - v., também, Andrade, Manuel, “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis” in Ferrara, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª Ed., Arménio Amado Editora, Coimbra, 1963, pp. 64-65) —, a letra afirma-se como principal critério de seleção dos sentidos possíveis da interpretação; isto é, «se a lei admitir várias interpretações, mas uma delas corresponder ao sentido natural dos seus termos, ao passo que as outras assentam sobre um entendimento bastante mais forçado, é a primeira que o jurista deve como regra preferir» (tal como esclareceu Antunes Varela, no discurso de apresentação do Código Civil, dirigido à Assembleia Nacional em 26 de novembro de 1966 – in Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 43, p. 765, disponível em http://debates.parlamento.pt).

 

A par desta dupla função atribuída ao elemento literal, o Código Civil não deixou de vincular o intérprete a uma segunda presunção, a ter em conta na fixação do sentido e alcance da lei: a de que o legislador, presumidamente racional, sabedor e sensato, «consagrou as soluções mais acertadas» (artigo 9.º, n.º 3). Deste modo, o Código Civil abriu caminho à ponderação da teleologia da norma e do respetivo contexto sistemático, tomado a partir da unidade do sistema jurídico (cf. o n.º 1 do artigo 9.º) na respetiva congruência axiológica; viabilizou a adoção de interpretações atualistas, ainda que sem deixar de atender às circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada; e, por último, ao exigir apenas um mínimo de correspondência verbal, concedeu ao intérprete as mais amplas possibilidades de interpretação, que a preponderância do elemento literal, na sua função negativa, consente ou tolera.

 

Por ser aquele que mais diretamente releva para o problema de constitucionalidade que integra o objeto do recurso, detenhamo-nos um pouco mais sobre este último aspeto.

 

13. Admitindo-se, sempre no quadro da teoria tradicional da interpretação da lei, que é possível estabelecer uma distinção entre a exigência de que a interpretação se confine ao sentido literal possível da fonte interpretanda e a exigência de que a interpretação encontre na letra da lei uma alusão ou um mínimo de correspondência verbal, impõe-se recordar que a primeira atribui à letra da lei uma função delimitadora significativamente mais acentuada.

 

Assim, segundo Karl Larenz, o «sentido literal a extrair do uso linguístico geral ou, sempre que ele exista, do uso linguístico especial da lei ou do uso linguístico geral, serve à interpretação, antes de mais, como uma primeira orientação, assinalando, por outro lado, enquanto sentido literal possível (…) o limite da interpretação propriamente dita.» (Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p.457). Além desse limite dado ao intérprete pelo uso linguístico mais imediato ou usual das palavras da lei, começaria o «desenvolvimento do Direito», o qual, «conduzido metodicamente para além deste limite, mas ainda no quadro do plano originário, da teleologia da lei em si, é preenchimento de lacunas, desenvolvimento do Direito imanente à lei (…).» (ibid., p. 520).

 

Diversamente, ao traçar o limite da interpretação no sentido, ainda que imperfeitamente expresso, que encontre na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, o legislador português optou por alargar as possibilidades de interpretação a todos os sentidos que, embora menos comuns ou imediatos, não sejam excluídos pelo teor verbal da lei interpretanda. As opções consagradas no Código, reveladoras do estado da arte ao tempo em que a lei foi elaborada, não ocultam o cuidado de conceder aos intérpretes a necessária margem para adotar as soluções tidas por metodologicamente mais adequadas, preocupação esta, aliás, expressamente assumida pelos autores do projeto: segundo explicou Antunes Varela ao apresentar o Código, este pretendeu ser «prudente e comedido»; assim, «a nova lei limitou-se a recolher uns tantos princípios que considerou aquisições definitivas da ciência jurídica, sem curar grandemente da sua origem doutrinária. Em tudo o mais, no dizer do Doutor Andrade, houve o propósito de deixar o “campo livre para a atividade da doutrina, em problema de tanta complexidade e transcendência que perigoso seria tentar solucioná-lo de uma vez para sempre.”» (v. o discurso de apresentação, citado supra, p. 766).

 

Já no que respeita aos resultados da interpretação, a teoria tradicional tendia a distinguir apenas as interpretações declarativa, enunciativa, extensiva e restritiva, admitindo a interpretação ab-rogante somente em caso de insuperável antinomia entre o preceito interpretado e uma outra regra de direito positivo (v., v.g., Castro Mendes, João, Introdução ao Estudo do Direito, Danúbio Ed., Lisboa, 1984, pp. 252-255; Ferrara, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, cit., pp. 147-154).

 

Só com a reconfiguração do valor da letra da lei – à qual passa a atribuir-se um valor heurístico ou indiciário e já não normativo (cf. Heck, Philipp, Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1947, pp.129 e seguintes) – se torna possível pensar em resultados como a interpretação corretiva. Tal como refere Castanheira Neves, «[c]om a acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros tipos de grande relevo prático, e que têm de comum o aceitarem já a preterição do texto a favor do cumprimento efetivo da intenção prático-normativa da norma. É o que se verifica com a interpretação corretiva, inicialmente proposta pela «jurisprudência dos interesses» e depois geralmente aceite (…).» (Castanheira Neves, A., Digesta – Escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 367-368).

 

O Código Civil português não contém, todavia, qualquer definição de interpretação corretiva, nem tão-pouco proporciona, a partir do regime de interpretação da lei que estabelece no seu artigo 9.º, uma resposta consensual à questão de saber se um tal resultado interpretativo pode ser admitido no ordenamento jurídico português. Tudo depende, conforme se verá de seguida, daquilo que vier a entender-se por interpretação corretiva.

 

14. À questão de saber se é possível — ou exigível até —, à luz do Código Civil, proceder a uma interpretação corretiva da lei — no caso, da lei fiscal —, sem afrontar a Constituição, pode responder-se de modo assinalavelmente diferente consoante a caraterização desse resultado interpretativo que em definitivo se adote, bem como da posição que se perfilhe quanto à função negativa do sentido literal da lei. Ainda que em termos simplificados, é possível identificar duas perspetivas que claramente se opõem na resposta ao problema.

 

Mais próxima da proposta metodológica que esteve na génese do conceito, é a perspetiva segundo a qual é corretiva a interpretação que sacrifica o elemento literal da lei, com vista à realização, no caso concreto, do sentido normativo e prático da prescrição. Assim, a interpretação corretiva não implica, necessariamente, que à lei seja atribuído, em resultado do processo hermenêutico, um sentido que se afirme substancialmente praeter ou contra legem. Pelo contrário, em linha com a proposta de Philipp Heck e da Jurisprudência dos Interesses, reafirma-se a importância da obediência à lei, mas pugna-se por uma obediência pensante ou inteligente, reconhecendo-se que, perante as especificidades do caso concreto, pode impor-se ao intérprete a necessidade de atribuir aos comandos legais um sentido que não encontra no seu teor verbal evidente respaldo. É o que sucede – seguindo o exemplo da vida corrente com que Heck ilustra o seu raciocínio – com o oficial de artilharia que recebe ordem de ataque ao inimigo: sempre que este perceba que o alvo já se encontra tomado pelo seu próprio exército ou pelas tropas aliadas, não pode deixar de corrigir o comando recebido em conformidade (Heck, Philipp, op. cit., p. 209). De igual modo, quando uma regra prescreve que «é proibida a entrada a cães» pode tornar-se evidente que a lei não pretendeu proibir a entrada de cães guias, mas quis inequivocamente que a proibição abrangesse a entrada de iguanas de estimação.

 

Por se tratar de uma correção evidentemente razoável e necessária para tornar efetivo, na prática, o verdadeiro sentido da norma, este é um resultado geralmente aceite (ainda que por vezes mereça a designação de interpretação teleológica ou de interpretação extensiva ou restritiva – v., v.g., Galvão Telles, Inocêncio, Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 11.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 252-256 e Engisch, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, 5.ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1979, p.120). Assim, por exemplo, reconhecia Karl Larenz que, «[à] luz da atual conceção sobre a competência dos tribunais para o desenvolvimento do Direito, não pode haver dúvidas sobre a sua legitimidade, em princípio, para fazerem uma correção, teleologicamente fundamentada, da lei. Não obstante, para isso pressupõe-se que o fim da lei está claramente averiguado e que, sem a correção, esse fim não seria atingido numa parte dos casos e não seria possível evitar uma grave contradição de valoração ou uma clara injustiça.» (op. cit., p. 569).

 

Entre nós, João Baptista Machado — cuja definição de interpretação corretiva é citada na decisão recorrida — defende que este resultado é admitido pelo n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, desde que «do texto “falhado” se colha pelo menos indiretamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 19.º Reimpr., Almedina, Coimbra, 2011, p. 189), sendo certo que «[o] intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador.» (ibidem, p.186). Nesta aceção, a interpretação corretiva visa realizar a intenção normativa e prática da lei, mas não pressupõe, necessariamente, a transposição do limite literal (mais amplo) da interpretação, pelo que poderá haver correção sempre que o resultado interpretativo corresponda a um sentido que ainda acha no texto legal algum reflexo.

 

A esta perspetiva opõe-se, claramente, a conceção segundo a qual é corretiva a interpretação que desobedece, não apenas à letra, como também ao espírito da lei. Assim, por exemplo, segundo Miguel Teixeira de Sousa, «(…) na interpretação corretiva (…) a letra e o espírito da lei são ambos desconsiderados, dado que essa interpretação implica que a lei deixa de ser aplicada a um caso que ela abrange (quer na letra e no espírito, quer, pelo menos, no espírito).» (Teixeira de Sousa, Miguel, Introdução ao Direito, 5.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2018, p. 382; no mesmo sentido, v. Oliveira Ascensão, José, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição refundida, Almedina, Coimbra, 2005, p. 425).

 

Nesta aceção, não é possível adotar uma interpretação corretiva sem desobedecer à lei, o que, equivalendo ao desenvolvimento judicial do direito contra legem, se defronta, desde logo, com a proibição constante do n.º 2 do artigo 8.º do Código Civil — segundo o qual «[o] dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.» (assim, Oliveira Ascensão, José, op. cit., p.426) — e, mais relevantemente ainda, com a que resulta da própria ordem político-constitucional, fundada no princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2.º da Constituição) e, enquanto refrações deste, nos princípios da legitimação democrática do poder legislativo (artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 1, e 10.º), da separação dos poderes do Estado (artigo 111.º) e, em última instância, da vinculação à lei da função jurisdicional (artigo 203.º).

 

Estando em causa uma interpretação contra legem, a admissibilidade de um tal resultado é, por isso, em regra excluída, ainda que se trate da interpretação do direito infraconstitucional em conformidade com a Constituição (v. Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 1226-1227) ou da interpretação do direito interno em conformidade com o Direito da União Europeia (v., v.g. o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de agosto de 2018, David Smith, Proc. C-122/17, §40).

 

15. Expostas as duas conceções mais divergentes de interpretação corretiva, uma primeira conclusão resulta desde já evidente: não é pelo mero facto de assim se designar (ou vir designada) que a interpretação corretiva da lei se converterá direta, necessária e automaticamente num procedimento ou resultado hermenêutico proscrito pela Constituição — desde logo pelo princípio do Estado de Direito democrático, nas suas já referidas dimensões, e, no caso de se tratar da interpretação da lei  fiscal, ainda (ou especialmente) pelo princípio da legalidade fiscal, consagrado no n.º 2 do artigo 103.º da Lei Fundamental.

 

Por razões neste momento já facilmente intuíveis, a compatibilidade da interpretação corretiva da lei fiscal com a Constituição será tanto mais equacionável, quanto mais sintonizada se relevar com a primeira das conceções a que se aludiu supra; inversamente, será tanto mais contestável quanto mais se aproxime da segunda.

 

Ora, analisada a decisão recorrida, sem dificuldade se verifica que o conceito de interpretação corretiva mobilizado pelo Tribunal a quo corresponde à primeira e menos problemática das aceções identificadas supra (ponto 14).

 

É o que decorre, desde logo, do facto de o Tribunal recorrido ter considerado ser admissível, ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do Código Civil, atribuir à norma interpretanda um resultado interpretativo com essa designação. De resto, segmento algum da decisão recorrida indicia a intenção de o tribunal atribuir ao n.° 2 do artigo 90.° do CIRC um sentido que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Pelo contrário: conforme resulta daquela decisão, o tribunal começou por afirmar, inequivocamente, que o «desiderato» da mesma seria, «não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de ser possível utilizar a dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis».

 

Findo o processo interpretativo seguido, concluiu o mesmo Tribunal que, «tendo em conta a compreensão racional, histórica e sistemática da norma em questão, torna-se forçoso interpretar corretivamente a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referência que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da coleta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria coletável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não aos montantes apurados a título de tributações autónomas, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redação textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.»

 

Deste trecho da decisão recorrida é possível inferir, com segurança, que, da perspetiva do Tribunal a quo, o resultado alcançado não só constitui inequivocamente uma interpretação secundum legem, plenamente obediente à sua ratio, como é até o sentido que mais naturalmente decorreria do respetivo teor verbal não fora a circunstância de o regime de tributações autónomas ter sido introduzido no Código do IRC. Trata-se, pois, ainda da perspetiva do tribunal, de um sentido compaginável com a letra da lei, ainda que merecendo esta correção em virtude da modificação de contexto que resultou daquela alteração do Código do IRC.

 

Sendo esta a perspetiva em que o Tribunal arbitral expressou ter encarado a interpretação corretiva a que submeteu o n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, inexistem fundadas razões para pensar que outra aceção, diferente daquela, possa ter sido, na realidade, implicitamente adotada na decisão recorrida. A solução adotada pelo Tribunal recorrido não contrasta, aliás, com os resultados interpretativos alcançados por uma parte significativa da jurisprudência.

 

Não havendo qualquer evidência que leve a infirmar que a interpretação que o Tribunal arbitral designa como corretiva encontra na lei um mínimo de correspondência verbal e obedece às regras gerais de interpretação jurídica, resta verificar se, por força do princípio da legalidade fiscal, se impunha ao tribunal a quo a observância de especiais regras interpretativas, designadamente que afastassem a possibilidade de atribuir à norma interpretanda um sentido de que resulte o aumento do quantum de imposto a pagar. É o que se discutirá nos pontos seguintes.

 

16. Do princípio da legalidade fiscal, consagrado no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição, decorre, desde logo para o legislador, um importante limite à liberdade de conformação da lei fiscal, sobretudo quando – como sucede no caso dos autos – está em causa a regulação dos pressupostos determinantes do quantum do imposto a suportar. É desses pressupostos que depende, na prática, a maior ou menor previsibilidade da carga fiscal a suportar por cada cidadão ou pessoa coletiva em cada ano ou exercício (v., a este respeito, entre outros, os Acórdãos n.º 756/95, 252/2005, 695/2014 e 211/2017).

 

Assim, tem este Tribunal constantemente entendido, como se reafirmou no Acórdão n.º 127/2004, que:

 

«Por natureza, atenta a sua função constitucionalmente definida, o legislador tributário goza, em princípio, de discricionariedade normativo-constitutiva quanto à eleição dos factos reveladores de capacidade contributiva que podem ser elevados à categoria de factos tributários, bem como à definição dos elementos que concorrem para se definir a matéria coletável. Mas, como não poderá deixar de ser, com obediência aos parâmetros constitucionais, já acima apontados.

 

Um destes parâmetros, que é postulado pelos princípios do Estado de Direito e da segurança jurídica que lhe é inerente, é o princípio da determinabilidade. Ao hipotisar os pressupostos de facto/jurídicos da tributação –ao desenhar o tipo ou o Tatbestand tributário - depara-se, na verdade, o legislador com o problema da previsibilidade dos efeitos jurídicos amputadores da riqueza ou do rendimento dos contribuintes. É neste terreno que se põe, então, a questão da amplitude constitucionalmente admissível dos conceitos usados na definição dos elementos essenciais dos impostos, confrontando-se aqui duas pretensões de sentido oposto.

De um lado, a exigência de que a previsão dos factos tributários seja feita de forma «suficientemente pormenorizada», de modo que os contribuintes possam ter algumas certezas quanto à extensão da sua riqueza ou rendimento que sairá afetada pela tributação (cfr. J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª edição, Coimbra, 1972, pp. 309 e segs.) ou que a lei «leve a disciplina dos referidos elementos essenciais, ou seja, a disciplina essencial de cada imposto, tão longe quanto lhe seja possível» (cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 138), de modo que a obrigação de imposto seja o mais certa possível por parte dos contribuintes. É a solução que é reclamada pelo princípio da segurança jurídica dos contribuintes. Segundo esta perspetiva, a incidência (como os demais elementos essenciais) deve ser definida por conceitos cujo sentido seja o mais unívoco possível.

 

Mas, do outro lado, o princípio da igualdade tributária reclama que os conceitos tenham a abertura ou plasticidade semântica suficiente para poder abarcar as realidades que expressam a capacidade tributária elegida, os níveis de riqueza ou de rendimento tributando, e que esse objetivo possa ser realizado não só no plano abstrato da previsão dos tipos tributários, mas também no plano da sua aplicação concreta, em que se situam o combate à evasão fiscal e a praticabilidade do sistema. (…)

 

Se não será sempre indispensável que a norma legal fiscal forneça ao contribuinte a possibilidade de cálculo exato, sem margem para quaisquer dúvidas ou flutuações, do seu encargo fiscal, é, porém, de exigir que “a norma que constitui a base do dever de imposto seja suficientemente determinada no seu conteúdo, objeto, sentido e extensão de modo que o encargo fiscal seja medível e, em certa medida, previsível e calculável para o cidadão” (cfr. J. Casalta Nabais, O dever fundamental…, cit., p. 356, citando esta fórmula do Tribunal Constitucional Federal alemão, embora criticando ainda a sua insuficiência, e salientando que o princípio da determinabilidade deve “ser entendido com alguma moderação e realismo de modo a compatibilizá-lo com o princípio da praticabilidade”).»

 

Para além do grau de vinculação a que sujeita o legislador fiscal, não pode deixar de reconhecer-se, como supra se referiu já, que o princípio condiciona igualmente a Administração e os Tribunais enquanto agentes da necessária densificação normativa, sem a qual se verá debilitada a função garantística do princípio da tipicidade fiscal. Assim, como afirma Pedro Soares Martínez, pode entender-se que «(…) a Constituição rodeou de particulares cautelas todas estas matérias – incidência, garantias dos contribuintes, liquidação e cobrança. Ora essas cautelas têm de refletir-se no plano da interpretação das normas respetivas. Até por paralelismo com o entendimento comum quanto aos efeitos da legalidade penal no plano da interpretação das normas. (…)» (in Direito Fiscal, 9.ª Ed. (Reimpr.), Almedina, Coimbra, 1997, p. 244).

 

17. O legislador português optou por tomar posição quanto a esta questão, estabelecendo, no artigo 11.º da Lei Geral Tributária, que a determinação do sentido das normas fiscais e a qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam devem obedecer às regras gerais da interpretação jurídica.

 

Assim, o legislador rejeitou, desde logo, as teses segundo as quais a autonomia e a pretensa especialidade do ordenamento jurídico-fiscal demandariam uma metodologia própria pressuposto de que partiram as doutrinas da interpretação funcional e da interpretação económica (sobre estas, v. Vasques, Sérgio, Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 361-362). Foram igualmente rejeitadas todas as propostas no sentido de a interpretação jurídica das normas de direito fiscal ser posta ao serviço da prossecução de finalidades específicas – tais como a máxima proteção do direito de propriedade e do contribuinte contra o Estado (que justificariam, v.g., a adoção de critérios do tipo odiosa restrigenda e in dubio contra fiscum); ou, inversamente, a máxima salvaguarda do interesse público na arrecadação de receitas ou na prevenção e repressão da elisão fiscal (que fundamentariam a adoção de critérios do tipo in dubio pro fisco ou a absolutização da substância económica dos factos tributários).

 

Do mesmo modo, foi deliberada a opção de afastar o princípio da interpretação literal da lei fiscal. Na base da defesa deste princípio, como nota Soares Martínez, encontra-se a ideia de «que tais normas [as normas ficais] só admitem uma interpretação literal, não devendo aceitar-se quanto a elas a interpretação extensiva, por motivos de segurança jurídica, e pela dificuldade de fixar onde termina a interpretação extensiva, e onde começa a aplicação analógica, que o princípio da legalidade veda quanto a estas matérias pelo mesmo princípio abrangidas.» (Soares Martínez, op. cit., p. 130; no mesmo sentido, v. Pessoa Jorge, Fernando, Curso de Direito Fiscal, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1964, pp. 117-121).

 

Esta posição, pode dizer-se, foi deste sempre minoritária na doutrina, que rapidamente admitiu não «brigar contra os princípios da legalidade e da segurança jurídica a tarefa hermenêutica tendente a ajustar a letra da lei ao seu espírito» (Xavier, Alberto, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1974, p.173). É, pois, largamente dominante a orientação segundo a qual,  mesmo em matéria de incidência, taxas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes (cf. o artigo 103.º, n.º 2, da Constituição), a interpretação do direito fiscal obedece, e deve obedecer, aos cânones gerais da interpretação (v. Pamplona Côrte-Real, Carlos, “A interpretação extensiva como processo de reprimir a fraude à lei no direito fiscal português”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 152, ago.-set. de 1971, pp.71-72; Cardoso da Costa, José Manuel, Curso de Direito Fiscal, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 1972, p. 199; Leite Campos, Diogo/Rodrigues, Benjamim/Lopes de Sousa, Jorge, Lei Geral Tributária – Anotada e comentada, 4.ª Ed., Encontro da Escrita, Lisboa, 2012, p. 120; Casalta Nabais, José, Direito Fiscal, 8.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2015, p. 205; Ana Paula Dourado, Direito Fiscal – Lições, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 247; Vasques, Sérgio, op. cit., p. 363 e segs.).

 

Rejeitar a cogência da interpretação literal da lei fiscal, não significa, contudo, prescindir da reafirmação da função negativa da letra da lei, como limite da interpretação. Significa apenas que, também neste domínio, o limite pode traçar-se sobre o sentido literal possível, a que se aludiu supra (n.º 12), ou sobre o mínimo de correspondência verbal, exigido pelo n.º 2 do artigo 9.° do Código Civil.

 

Para alguns autores, a circunstância de estarem em causa matérias sob reserva de lei justifica que as possibilidades de interpretação não excedam o mais estrito confim traçado pelo texto legal. Parece ser essa, por exemplo, a posição perfilhada por Ana Paula Dourado, quando afirma: «Do princípio da legalidade fiscal na vertente da reserva de lei competencial e do princípio da tipicidade ou da determinação legal resulta uma proibição tendencial da analogia – ou “interpretação proibida”, a qual ocorre quando o “fundamento e critério jurídico da decisão ultrapassam o sentido possível do texto”. (…) A interpretação da lei fiscal tem como limite o sentido possível das palavras no contexto em que são utilizadas (tendo em conta os elementos sintático e semântico).» (op. cit., p. 249 – no mesmo sentido, v. Leite Campos, Diogo/Rodrigues, Benjamim/Lopes de Sousa, Jorge, op. cit., p. 120).

 

Já outros autores (assim, por exemplo, Vasques, Sérgio, op. cit, p. 364) têm por admissíveis, no âmbito da aplicação da lei fiscal, todos os resultados interpretativos que se situem nos confins do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

 

Menos comum é a aceitação da possibilidade de, por via da interpretação, vir a considerar abrangido pela norma fiscal um caso que no seu texto não encontra expressão, ainda que imperfeita. Na doutrina, tal possibilidade foi admitida por Cardoso da Costa, com apelo à ideia de obediência inteligente à lei, quando afirmou «que a interpretação extensiva não leva ainda a aplicar as normas, que dela são objeto, fora daquele quadro de situações que o legislador teve em vista ao editá-las: trata-se apenas de extrair do pensamento legislativo – do espírito da lei – todas as consequências que este comporta e foram por ele desejadas, inclusive aquelas que porventura não encontrem expressão no sentido literal da norma.» Apesar de não deixar de reconhecer os riscos apresentados por uma tal proposta ¾ desde logo por não ser fácil a distinção entre interpretação extensiva e aplicação analógica ¾, o mesmo autor considera, todavia, isenta de qualquer dúvida a possibilidade de proceder a uma interpretação da lei fiscal «que se contenha dentro dos limites da teoria da alusão» (v. Cardoso da Costa, José Manuel, Curso de Direito Fiscal,  cit., pp. 206-209; e em termos próximos, Menezes Leitão, Luís M., Estudos de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 42-43).

 

O problema tal como enunciado por Castanheira Neves a respeito do princípio da legalidade criminal está precisamente no pressuposto de que é possível autonomizar um limite gramatical, amplo que seja, da interpretação jurídica: «o teor verbal das leis, considerado na perspetiva da problemática da interpretação jurídica, não tem significação diferente da que lhe determina essa interpretação. E sendo essa significação, ou a sua determinação, um resultado da interpretação (…) não pode obter-se antes ou fora do próprio processo concreto da interpretação.» (v. Digesta…, vol. 1.º, cit., pp. 447-448 e passim). 

 

A regra interpretanda no caso dos autos (em especial se nos ativermos ao teor verbal do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC) é, deste problema, bem ilustrativa. De que modo logrará o intérprete traçar a partir do texto «ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções…» um limite que não seja também já o resultado da interpretação desse texto e dos diversos preceitos para os quais este remete?

 

18. Seja como for, defluem do princípio da legalidade fiscal, conforme referido supra, exigências de determinabilidade e previsibilidade, que se traduzem, para o Estado, num dever de densificação normativa progressiva da lei fiscal. Tal dever — é certo também — não recai apenas sobre o legislador, antes se devendo reconhecer o relevante papel desempenhado pelos tribunais na apreciação dos casos concretos em face dos quais se desenvolve e recorta o preciso sentido das normas fiscais, em benefício da previsibilidade e estabilidade que através do princípio da legalidade se pretende proteger. A relevância dos cânones e dos limites que ao intérprete —  seja este o juiz, a administração tributária ou, até, o próprio legislador — cabe observar não está, por isso, em causa. Todavia, é igualmente certo que esses cânones tanto mais concorrerão para a previsibilidade, segurança e igualdade na aplicação do direito quanto mais lograrem ser claros e prestáveis na prática.

 

Na verdade, e uma vez satisfeitas as exigências mínimas de determinabilidade que cingem a liberdade de conformação do legislador, não há como não admitir que as leis que versam sobre a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes carecem irremediavelmente, como todas as leis, de interpretação e que esta nunca pode gerar uma confiança absoluta na previsibilidade dos seus resultados. Tal como nota Oliveira Ascensão, «esta insegurança relativa é fatal» (O Direito, cit., p. 391) —  e é também, por contraditório que possa parecer, a mais sólida garantia de segurança a que se pode aspirar.

 

Com efeito, do mesmo modo que se revelou votada ao insucesso a aspiração a criar uma lei unívoca, assim também rapidamente se concluiu que a imposição de cânones interpretativos excessivamente estritos não reforça, antes debilita, as garantias de previsibilidade e certeza associadas ao princípio da legalidade. Isso mesmo é elucidativamente sintetizado por Arthur Kaufmann nos termos seguintes: «Forma, abstração, generalização, conceptualização são absolutamente indispensáveis para a constituição do direito, pois de outro modo não poderia haver igualdade de tratamento e não haveria, portanto, justiça. Mas se no processo de criação do direito não fossem ponderadas também as particularidades e especificidades das relações da vida em constante mudança, então a justiça obtida de forma puramente dedutiva a partir da norma legal seria um mecanismo rígido de “eterno retorno do mesmo”, uma “justiça” de autómatos ou computadores, uma justiça inumana. (…)» (Filosofia do Direito, 4.ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010, pp.181 e seguintes).

 

Neste contexto, a verdadeira segurança reside na inteligibilidade e prestabilidade de todos meios disponíveis para assegurar que o processo interpretativo seja racionalmente ordenado à obtenção dos resultados materialmente mais adequados —  e logo, mais facilmente apreensíveis por qualquer pessoa dotada de mediana inteligência e sentido de justiça.

 

Como tal, do mesmo modo que se entende que o princípio da legalidade não exige ao legislador que configure as normas fiscais de modo a possibilitar um cálculo exato e antecipado dos impostos a pagar, também não pode — nem é desejável — que dele se extraiam para o intérprete mais constrangimentos metodológicos do que aqueles que, em cada momento, se têm como válidos e aptos a suportar a interpretação da lei fiscal.

 

Conforme se torna neste momento particularmente claro, a interpretação corretiva da lei fiscal não é, em si mesma ou em toda a sua extensão, necessária e automaticamente incompatível com o princípio da legalidade tributária. Independentemente de qual deva ser o exato recorte do domínio correspondente às modalidades de interpretação corretiva vedadas pelo princípio da legalidade fiscal, ou do preciso ponto em que a sua fronteira deva ser em definitivo traçada, é inequívoco que a violação de tal princípio não ocorrerá nas hipóteses em que a interpretação corretiva da lei tenha servido apenas para afastar ou excluir o sentido que mais imediatamente decorreria da relevância gramatical do enunciado em benefício daquele que, apesar de corresponder a uma utilização menos imediata dos elementos linguísticos em causa, o texto da lei não exclui de forma categórica ou inequívoca. 

 

Posto é que, como seguidamente se verá, tanto ao contribuinte como à administração fiscal seja assegurada a possibilidade de, com base na convicção jurídica que formaram sobre o sentido da lei, o disputarem perante um tribunal, para que este aprecie e decida, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhe cabe e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas (cf. os Acórdãos n.os 395/2017 e 49/2020), qual o resultado interpretativo que deve prevalecer em função da diretiva hermenêutica selecionada e, por isso, subjacente ao seu processo de evidenciação.

 

Assim, ainda que se entendesse que o princípio da legalidade fiscal vincula o intérprete, em qualquer circunstância, a manter-se aquém do limite interpretativo traçado pelo mínimo de correspondência verbal, não mereceria censura, à luz do princípio da legalidade fiscal consagrado no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição, a interpretação dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do Código Civil no sentido propugnado pela decisão recorrida, que constitui o objeto do presente recurso.

 

19. A conclusão de que a norma sobre interpretação, extraída pelo Tribunal recorrido do artigo 9.º do Código Civil, não é incompatível com o princípio da legalidade tributária permite antecipar o resultado da sua confrontação com os demais princípios paramétricos invocados pelo recorrente.

 

Se a interpretação corretiva da lei não implicar — como não implica de modo necessário — a criação de um critério normativo de resolução do conflito verdadeiramente inovador, sem o mínimo de adesão, ainda que imperfeita ou incompleta, ao texto interpretando, não se vê como possa ser afrontada a proibição da retroatividade fiscal (artigo 103.º, n.º 3, da Constituição), a qual, constituindo, ela própria, uma refração do princípio da legalidade fiscal, justamente supõe que a norma tributária disponha para o passado, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia (cf. Acórdão n.º 85/2013).

 

Do mesmo modo, também não se vê como possa configurar-se uma violação do princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1, da Constituição), sobretudo se se tiver em conta que, no domínio em que nos situamos, tal princípio é concretizado tanto através da subordinação exclusiva dos tribunais à lei (artigo 203.º), como da reserva da função jurisdicional (artigo 202.º, n.os 1 e 2).

 

Entendida a referência à lei, que consta do artigo 203.º da Constituição, não como uma alusão ao «direito criado por lei», mas como uma «referência desenvolvida ao Direito» — é essa, de resto, a conceção hoje dominante (Miranda, J./Medeiros R., Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, cit., p. 238 e ss.) —, mais facilmente se compreenderá ainda que subordinação exclusiva à lei e reserva da função jurisdicional convirjam, na verdade, num único e mesmo sentido: se a «iurisdictio ou função de “dizer o direito” — de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais — compete constitucionalmente aos tribunais» (Acórdão n.º 267/2017), a subordinação destes à lei — rectius, exclusivamente à lei — constitui o pressuposto e a garantia de que tal função será exercida pelo poder jurisdicional, designadamente no âmbito da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e da dirimição de conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202.º, n.º 2), com independência relativamente aos demais poderes do Estado.

 

Ora, competindo exclusivamente aos tribunais o exercício da função jurisdicional (a iurisdictio) e nesta obviamente se incluindo a tarefa de interpretar a lei aplicável, segundo os cânones hermenêuticos em cada momento tidos por mais adequados, bem se vê que não ocorre qualquer violação do princípio da separação de poderes — antes a sua reafirmação ou reforço — sempre que é aquele o poder do Estado a eleger, de entre todos os sentidos possíveis que o texto, ainda que defeituosamente, comporta, aquele que em definitivo deverá fornecer a solução normativa do caso sub judice.

 

A tentativa de radicalização do problema de constitucionalidade através da aproximação do tema da interpretação corretiva da lei à questão suscitada pelas normas legais interpretativas, para que apontam certas das conclusões apresentadas pela recorrente, não só se revela, por isso, destituída de fundamento, como, se em alguma direção aponta, é justamente na inversa. 

 

Não estando em causa a atribuição ao preceito interpretando de um sentido que se afirme substancialmente praeter ou contra legem, pode mesmo dizer-se que a norma sindicada, quando confrontada com as normas legais interpretativas objeto de apreciação nos Acórdãos n.º 267/2017 e 395/2017, mais não representa do que a outra face da mesma moeda: enquanto naqueles arestos se tratou de censurar o legislador fiscal pelo facto de, através da edição de uma norma interpretativa, ter limitado, mediante a escolha de uma delas, as múltiplas declarações do direito de que determinada lei anterior era passível (Acórdão n.º 267/2017), ou por tê-lo feito fora do âmbito de uma controvérsia jurisprudencial acerca do sentido da norma interpretada (Acórdão n.º  395/2017), no presente caso trata-se de reafirmar que essa tarefa cabe, por definição, aos tribunais, aos quais a Constituição atribui a autoridade para, «através de decisões juridicamente fundamentadas e no termo de um processo de partes com igualdade de armas» (Acórdão n.º  395/2017), corrigir, sendo caso disso, a letra da lei, sempre que tal correção não signifique mais do que uma obediência pensante ou inteligente à norma.”

 

Ora, a interpretação das Verbas 17.3. e 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo segundo a qual as comissões cobradas por sociedades gestoras de fundos de capital de risco se encontravam sujeitas a Imposto de Selo em abril de 2017 encontra correspondência verbal no texto das ditas Verbas e nas normas do Direito Financeiro relevantes, não constituindo nem uma interpretação ab-rogante, corretiva ou extensiva, nem uma interpretação analógica, ao invés obedecendo às regras gerais de interpretação jurídica contidas no artigo 11.º da LGT e no artigo 9.º do Código Civil. Assim sendo, não vislumbra o Tribunal em que medida poderá a mesma ser inconstitucional, por incompatível com o princípio da legalidade fiscal.

 

Nestes termos, julga-se o PPA totalmente improcedente.

 

 

§4.8. Do reembolso do imposto indevidamente liquidado e dos juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente liquidado acrescido de juros indemnizatórios. Todavia, sendo o PPA julgado totalmente improcedente, não há lugar a qualquer reembolso por parte da Requerida nem a pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

V.  DECISÃO

 

Com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a)    Julgar improcedentes as exceções dilatórias invocadas pela Requerida;

 

b)    Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, rejeitando a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das autoliquidações de Imposto de Selo impugnados.

 

 

VI.  VALOR DO PROCESSO

 

            De harmonia com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 184.508,07, conforme indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.

 

 

VII. CUSTAS 

 

            Fixa-se as custas arbitrais no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerente, em conformidade com a Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, e os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 10 de janeiro de 2023

 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

Presidente

Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha

 

 

 

 

 

 

Vogal

Prof.ª Doutora Eva Dias Costa

 

 

 

Vogal

Dra. Marisa Almeida Araújo

 

 

 

 

 

 



[1] V. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, Lisboa 2011, p. 412.

[2] O Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado sofreu várias alterações desde a sua aprovação em 2015. Em abril de 2017, quando foram efetuadas as autoliquidações de Imposto de Selo impugnadas, estava ainda em vigor a sua versão originária, pelo que é esta a versão considerada para efeitos de análise da questão decidenda.

 

A Lei n.º 18/2015, de 4 de março, revogou o Decreto-Lei n.º 375/2007, de 8 de novembro (que regulava o exercício da atividade de investimento em capital de risco através de sociedades de capital de risco, de fundos de capital de risco ou de investidores em capital de risco), que por sua vez tinha revogado o Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, que alterou o regime jurídico das sociedades de capital de risco e de fomento empresarial, constante do Decreto-Lei n.º 433/91, de 7 de novembro, e o regime jurídico dos fundos de investimento de capital de risco, constante do Decreto-Lei n.º 58/99, de 2 de março. Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 319/2002, o regime das sociedades de capital de risco constava de diploma diferente do regime dos fundos de investimento de capital de risco e respetivas sociedades gestoras.

[3] Em abril de 2017, estava em vigor a redação do RGICSF dada pelo Decreto-Lei n.º 20/2016, de 20 de abril.

[4] O Decreto-Lei n.º 187/91, de 17 de maio, foi revogado pelo Decreto-lei n.º 58/99, de 2 de março, que também regulava os fundos de investimento de capital de risco e respetivas sociedades gestoras. O regime das sociedades de capital de risco constava em diploma próprio, o Decreto-Lei n.º 433/91, de 7 de novembro. Apenas em 2002, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, é que os regimes das sociedades de capital de risco e dos fundos de investimento de capital de risco (e respetivas sociedades gestoras) passaram a constar do mesmo diploma legal.

[5] A Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, revogou o Regulamento do Imposto do Selo aprovado pelo Decreto n.º 12 700, de 20 de novembro de 1926, e a Tabela Geral do Imposto do Selo aprovada pelo Decreto n.º 21 916, de 28 de novembro de 1932.