Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 64/2022-T
Data da decisão: 2022-12-06  IVA  
Valor do pedido: € 122.181,98
Tema: IVA; regime tributação de combustíveis; declaração periódica de IVA fora de prazo.
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Sumário:

  1. Ao emitir o ato tributário a Requerida não podia ignorar que o sujeito passivo exerce a sua atividade há alguns anos e que a mesma se encontra sujeita a especificidades de regime de IVA evidenciadas em declarações anteriores, ou seja, a sua sujeição ao regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores, previsto no art.º 69.º e seguintes do CIVA.
  2. O facto de o SP entregar a declaração periódica de IVA dois dias depois da data-limite do termo do prazo de pagamento da liquidação oficiosa não dá à Requerida o direito de pura e simplesmente tomar como base tributária o valor total das vendas efetuadas sem fazer distinção entre as sujeitas ao regime geral do IVA e as vendas de combustível líquido sujeitas ao regime especial de margem. 
  3. Em face da manifesta desconformidade com a realidade material e a lei aplicável, cabia à Requerida corrigir situação, ainda que ao longo do procedimento administrativo, com os meios e poderes mais adequados ao seu alcance. Ao partir sem mais para o ato final de liquidação considerando como valor de referência o total da faturação registada no período, a Requerida incorre em manifesta ilegalidade por erro de facto e de direito.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O Tribunal arbitral coletivo, constituído pelos árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Maria do Rosário Anjos (relatora) e Francisco Carvalho Furtado (árbitro vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, acordam no seguinte:

 

 

 

 

I. Relatório

1. No dia 07 de fevereiro de 2022, A...LDA., sociedade comercial por quotas com o número de identificação de pessoa coletiva (NIPC)..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., pertencente ao Serviço de Finanças de ..., (doravante designada por «Requerente»), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, (doravante, abreviadamente designado por RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e anulação dos seguintes atos tributários:

(i) do indeferimento da reclamação graciosa n.º REC 2021..., conforme despacho notificado ao sujeito passivo em 11.11.2021;

(ii) e da liquidação oficiosa de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), emitida pela Administração Tributária em 3 de outubro de 2020, com o n.º 2020..., relativa ao período de 2020-06, no valor de € 122.181,98, sendo este o ato de liquidação de imposto que pretende anular.

A Requerente juntou 9 (nove) documentos, e requereu a produção de prova testemunhal e declarações de parte a prestar pelo gerente.   

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), o Requerente alega a ilegalidade da liquidação oficiosa de IVA, referente ao período de 2020 – 06, «por violação de lei, nomeadamente, por não ter sido aplicado pela Administração Tributária regime do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (doravante IVA) pela margem previsto nos artigos 69.º a 75.º CIVA.»

Formula os seguintes pedidos:

«i) A anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e da liquidação impugnada;

ii) Ser extinta a execução fiscal que corre termos com o número de processo ...2021... pendente no Serviço de Finanças de ...;

iii) E, consequentemente, ser ordenado o levantamento das penhoras efetuadas e, ainda, ordenada a restituição de todos os valores indevidamente cobrados além do valor devido e já liquidado de 7.310,36€;

iv) Acrescido de juros indemnizatórios calculado nos termos legais.»

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 8 de fevereiro de 2022.

           

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, por despacho de 30-03-2022, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 20 de abril de 2022.

 

4. No dia 21 de abril de 2021, foi proferido despacho arbitral para notificação da Requerida para apresentar resposta ao pedido arbitral. A Requerida apresentou a sua Resposta em 26-05-2022 na qual impugnou os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido. Na mesma data juntou aos autos o processo administrativo (PA).

A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, na argumentação constante da decisão de indeferimento da RG e do procedimento de liquidação oficiosa, acrescentando que:

         «Ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) soubesse que se aplicava, no âmbito da atividade exercida pela Requerente, o regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores, a que se referem os artigos 69.º a 75.º do Código do IVA, não dispunha de elementos concretos e detalhados que lhe permitissem apurar o valor tributável e respetivo imposto, nem tinha de os solicitar.»

            Termina pugnando pela legalidade dos atos impugnados e pela consequente improcedência do pedido arbitral.

 

5. No dia 27-05-2022 foi proferido despacho arbitral notificado à Requerente para vir indicar a matéria de facto sobre a qual pretendia a produção de prova testemunhal. Em 07-06-2022, a Requerente indicou a matéria de facto e prescindiu a inquirição da testemunha que havia indicado, mantendo o interesse nas declarações de parte do sócio-gerente da Requerente.

Assim, por despacho arbitral de 14-06-2022 foi agendada a reunião prevista no artigo 18º do RJAT a qual veio a realizar-se em 08-07-2022, conforme consta da ata junta aos autos que se dá por integralmente reproduzida.

Terminada a produção de prova foi fixado prazo para as partes apresentarem alegações escritas e foi indicada como data previsível para a prolação da decisão arbitral, o dia 20-10-2022, sem prejuízo de eventual prorrogação se necessário.

As partes juntaram as suas alegações, respetivamente, em 26-07-2022 e 12-09-2022.  Por despacho de 16-10-2022 foi prorrogado o prazo para prolação da decisão arbitral por dois meses, com a fundamentação e nos termos do disposto no nº1 do artigo 21º do RJAT.

 

7. As partes apresentaram as alegações escritas que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, tendo essencialmente reiterado as posições anteriormente vertidas nos respetivos articulados.

 

II. Saneamento

 

8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.  

 

            III. Fundamentação Da Decisão

            §1. De Facto

9. Factos ProvadosROVADOS                     

    Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade por quotas, registada com o número de identificação de pessoa coletiva (NIPC)..., com sede na Rua..., ..., ...-... ... .
  2. A Requerente encontra-se inscrita como sujeito passivo de IVA, desde 02-12-1992, com enquadramento no regime normal de periodicidade mensal por opção, para o exercício da atividade principal de “Comércio a retalho de combustível para veículos a motor em estabelecimentos especializados”, CAE 47300, e atividade secundária “Comércio a retalho de combustível para uso doméstico, em estabelecimentos especializados”, CAE 47783.
  3. Face à sua atividade principal, o sujeito passivo não líquido IVA sobre a totalidade da transmissão destes bens mas apenas em relação à margem de comercialização, de acordo com o regime especial de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores foi introduzido pela Lei nº 107-B/2003, de 31 de Dezembro, correspondente aos artigos 69.º a 75.º do CIVA.
  4. A margem sobre a qual incide o IVA é obtida pela comparação entre as vendas, mensais, com o custo de aquisição dessas mesmas vendas, ambos com IVA excluído.
  5. Nos registos de vendas da Requerente existem transações ao abrigo dos “cartões ...”, isto é, vendas efetuadas pelo revendedor em nome do distribuidor, nos termos dos quais embora os abastecimentos sejam feitos nos postos de combustíveis, é o distribuidor (e não o revendedor) que emite a respetiva fatura;
  6.  O combustível que o revendedor forneceu ao abrigo dos cartões frota não é pago diretamente ao Requerente, dando origem à emissão de uma “auto fatura” quinzenal pela B..., sujeita a IVA, sendo o revendedor quem efetua a liquidação deste IVA nos termos gerais;
  7. Nas transações ocorridas ao abrigo dos “descontos de cartões e outras promoções”, o revendedor (Requerente) deixa de receber o valor correspondente ao desconto atribuído com a apresentação do talão/cartão, pratica um preço de venda diminuído pelo valor do desconto por litro;
  8. A liquidação oficiosa, foi emitida nos termos do artigo 88.º do Código do IVA, por falta de entrega da declaração periódica, para o período de tributação 2020-06;
  9. A Requerente foi notificada para apresentar a declaração em falta sob pena de ser emitida liquidação oficiosa nos termos do art.º 88º do CIVA;
  10. A Requerente foi notificada da liquidação oficiosa de IVA em 28-10-2020;
  11. A Requerente submeteu a declaração periódica em falta, com o n.º..., em 2021-02-17 (um dia após o prazo de pagamento voluntário da liquidação oficiosa) na qual apurou imposto a entregar ao Estado, no valor de €7.310,36 que se encontra pago.
  12. Da liquidação oficiosa, efetuada nos termos do art.º 88.º do Código do IVA (CIVA) consta a seguinte fundamentação: «tendo como base o volume de negócios anual, consta que «esta liquidação ficará sem efeito se, até à data-limite indicada para o pagamento, for apresentada a declaração periódica de substituição. Caso a referida declaração de substituição venha a ser apresentada depois dessa data-limite, a liquidação oficiosa converter-se-á em definitiva, pelo que terá de ser paga nos locais de pagamento mencionados, sem prejuízo da compensação prevista no n.º 5 do art.º 88.º do CIVA, a levar em conta por dedução direta ao valor do meio de pagamento a remeter com a declaração em falta. (…) Em 13-09-2020 a Requerente havia sido notificada, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) para, no prazo de 15 dias, apresentar, no Portal das Finanças (E-balcão), exposição alegando o que tiver por conveniente sobre a falta de entrega da declaração periódica indicada no quadro de referências, caso se verifique alguma divergência em relação ao enquadramento ou periodicidade em sede de IVA.

No caso de já ter procedido à entrega dessa mesma declaração, queira considerar esta notificação sem efeito, não se tornando necessária qualquer outra informação. Findo aquele prazo, sem que tenha sido apresentada a declaração periódica em falta ou tenha sido recebido qualquer esclarecimento, estes Serviços procederão à emissão da liquidação oficiosa, nos termos do artigo 88.º do Código do IVA, com base nos elementos de que disponham, designadamente nos indicadores de cálculo abaixo indicados.(…) Liquidação oficiosa a emitir nos termos do art.º 88.º do Código do IVA, por falta de entrega, no prazo legal, da declaração periódica prevista no artigo 41.º do mesmo Código e com base nos elementos disponíveis nestes Serviços, designadamente os valores indicados nas declarações periódicas (DP) eventualmente enviadas para o ano anterior (a), a informação sobre o rácio apurado anualmente (c) para o setor de atividade, o volume anual de negócios declarado (d) na declaração de início/alterações de atividade e o valor do IVA constante das faturas:

e) - Valor do IVA constante das faturas comunicadas à AT no período 122.181,98 €

f) - Valor a pagar 122.181,98€»

  1. A Requerente apresentou reclamação Graciosa sob a qual foi proferida decisão de indeferimento notificado em 2021-11-15, com a fundamentação constante do Processo administrativo, destacando-se o seguinte:

“II.1. Conforme resulta da factualidade coligida no âmbito do projeto de decisão, a liquidação controvertida (Liquidação de IVA n.º 2020 ... de 2020-10-03, relativa ao período de 2020-06) foi emitida oficiosamente pelos Serviços, em virtude de a reclamante não ter submetido a correspondente declaração periódica do IVA (DP IVA), nem no prazo legal, nem depois de ter sido notificada para o efeito.

II.2. O n.º 1 do artigo 88.º do CIVA prevê o seguinte: “Se a declaração periódica prevista no artigo 41.º não for apresentada, a Direção-Geral dos Impostos, com base nos elementos de que disponha, relativos ao sujeito passivo ou ao respetivo sector de atividade, procede à  liquidação oficiosa do imposto, a qual tem por limite mínimo um valor anual igual a seis ou três vezes a retribuição mínima mensal garantida, respetivamente, para os sujeitos passivos a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 daquele artigo”.

II.3. Conforme consta da notificação remetida à reclamante para efeitos de audição prévia à emissão da liquidação, o elemento que serviu de base à mesma é o valor do IVA constante das faturas comunicadas à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no período de 2020-06, a saber:

€ 122.181,98 (cfr. ficheiros GPS “Notificação AP – DP em falta” e “E-Fatura 2020-06”).

II.4. No entendimento da reclamante, a AT deveria ter tido em consideração, para efeitos de emissão da liquidação controvertida, o facto de a mesma ser sujeita ao regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores, previsto no art.º 69.º e seguintes do CIVA.

II.5. Com efeito, o imposto devido pelas transmissões de combustíveis líquidos efetuadas por revendedores é liquidado com base na margem efetiva de vendas, correspondendo o valor tributável “à diferença, verificada em cada período de tributação, entre o valor das transmissões de combustíveis realizadas, IVA excluído, e o valor de aquisição dos mesmos combustíveis, IVA excluído” (cfr. n.º 1 do art.º 70.º do CIVA).

II.6. Sucede que, contrariamente ao que parece ser o entendimento da reclamante, a AT não dispõe de elementos que lhe permitam proceder ao apuramento da margem efetiva de vendas, não tendo como saber o valor de aquisição dos combustíveis transmitidos no período em análise.

II.7. Acresce que, sem prescindir da fundamentação plasmada no projeto de decisão, cujo teor se reitera integralmente, sempre se diga que, em momento algum, a reclamante juntou aos autos elementos que permitissem apurar ou validar o valor do IVA devido no período em referência.

II.8. Acresce que, diversamente do alegado pela reclamante, não se verifica, in casu, qualquer duplicação de coleta.

II.9. Com efeito, os requisitos da duplicação de coleta são, cumulativamente, os seguintes: a) unicidade dos factos tributários; b) identidade da natureza entre a contribuição ou imposto e oque de novo se exige e c) coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar.

II.10. Ora, in casu, a liquidação controvertida foi emitida em consequência de a reclamante não ter efetuado a autoliquidação de IVA para o período de 2020-06.

II.11. Conforme referido no projeto de decisão, a DP IVA submetida pela reclamante em 2021-02-17 encontra-se liquidada, porém, a produção dos correspondentes efeitos financeiros encontra-se condicionada ao pagamento da liquidação oficiosa.

II.12. Acresce que, a redação vigente da al. b) do n.º 2 do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 229/95, de 11/09, prevê que sempre que o imposto apurado na DP IVA submetida pelo sujeito passivo seja inferior ao da liquidação oficiosa, e logo que esta se mostre paga, será creditada a diferença em conta corrente para efeitos de compensação em imposto que venha a mostrar-se devido.

II.13 Finalmente, quanto à possibilidade de convolação do presente procedimento em revisão do ato tributário, previsto no art.º 78.º da LGT, não se afigura que a mesma seja viável.

II.14. A revisão dos atos tributários é um procedimento que encerra uma garantia administrativa para o contribuinte (al. c) do n.º 1 do art.º 54.º da LGT), encontrando-se regulado no artigo 78.º do mesmo diploma normativo.

II.15. De acordo com o artigo 52.º do CPPT, normativo a que a reclamante faz menção, “[s]e, em caso de erro na forma de procedimento, puderem ser aproveitadas as peças úteis ao apuramento dos factos, será o procedimento oficiosamente convolado na forma adequada”.

II.16. Com efeito, na situação sub judice, a reclamante lançou mão do procedimento de reclamação graciosa, como reação à liquidação oficiosa, sendo este um meio idóneo.

II.17. Sendo a reclamação graciosa o meio próprio para o efeito pretendido pela reclamante (cfr. artigo 68.º e seguintes do CPPT), não há possibilidade de convolação no meio adequado, por inexistência de erro na forma de procedimento apresentado.

III – CONCLUSÃO E PROPOSTA DE DECISÃO

Face ao exposto, atendendo a que a reclamante não apresentou elementos/argumentos suscetíveis de alterar o sentido da decisão projetada, propõe-se sua convolação em definitiva, no sentido do indeferimento do pedido. […]”

 

  • A Requerente não se conformou com o indeferimento da reclamação graciosa, pelo que apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo, contra a liquidação oficiosa de IVA, com o n.º 2020..., referente ao período 2020-06, no valor de €122.181,98, e respetivos juros de mora, liquidação n.º 2020..., no valor de€704,92, emitidas em 2020-10-06, com data-limite de pagamento em 2021-02-15;
  • Com referência a estas liquidações foi instaurada execução fiscal que se encontra em curso com o nº de processo de execução fiscal n.º ...2021... .
  • No dia 7 de fevereiro de 2022, o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

10. Factos não Provados

     Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos relevantes que não se tenham por provados.

 

11. Motivação quanto à Matéria de Facto

 Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

O Tribunal não se pronunciou sobre o demais vertido nos articulados das partes por constituírem afirmações conclusivas e/ou juízos de direito – e que, por isso, não podem ser objeto de uma pronúncia em termos de “provado” ou “não provado” – ou por se tratar de factualidade irrelevante à boa decisão da causa.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja adesão à realidade não foi posta em causa, no acervo probatório carreado para os autos (incluindo o processo administrativo), bem assim como na prova testemunhal produzida e nas declarações de parte produzidas, as quais foram objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

 

 

 

             §2. De Direito

       O thema decidendum: delimitação e apreciação

 

12. A questão jurídico-tributária que emerge do litígio entre as partes consiste em determinar se, considerando a factualidade assente e as regras jurídicas aplicáveis, o indeferimento da Reclamação Graciosa (RG), bem assim como a liquidação impugnada padecem ou não de ilegalidade por violação de lei, concretamente, traduzida na violação do regime do IVA aplicado à situação concreta da Requerente e na alegada duplicação da coleta.

A liquidação oficiosa foi emitida com base no artigo 88º do CIVA, com a fundamentação que consta do Processo Administrativo e que consta da matéria assente.

Por sua vez a Requerente alega como fundamento do pedido arbitral, entre outros, a violação de lei decorrente da inadequada aplicação das regras de determinação da base tributável, atendendo às especificidades do regime de tributação em sede de IVA aplicável à Requerente.

Nesta conformidade, o Tribunal tem de analisar e decidir duas questões, a saber:

1ª. Regime de tributação em IVA aplicável ao caso concreto, considerando as especificidades da atividade da Requerente;

2ª. A questão da ilegalidade dos atos tributários impugnados, ou seja, dos pressupostos de facto e de direito subjacentes à liquidação de imposto subjacente ao indeferimento da Reclamação Graciosa e à liquidação oficiosa impugnada nos autos. 

           

Importa salientar que a matéria a decidir respeita exclusivamente à apreciação da legalidade da liquidação oficiosa de IVA impugnada nos autos e previamente objeto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, considerando a fundamentação nela contida, não relevando fundamentações posteriores. É, pois, com esta precisão que a matéria a decidir tem de ser delimitada, o que vale por dizer que o Tribunal arbitral não tem de analisar outras questões suscitadas pelas partes posteriormente ou que se afigurem irrelevantes do ponto de vista da resposta a dar à questão em apreço: a Liquidação oficiosa impugnada nos presentes autos é ou não ilegal por violação de lei?

 

Cumpre Decidir.

1ª. Quanto ao Regime de tributação aplicável:

 

14. Resulta da matéria de facto assente que o sujeito passivo, por força das especificidades da sua atividade, não procede à liquidação de IVA sobre a totalidade da transmissão dos bens que comercializa (combustíveis líquidos) mas apenas em relação à margem de comercialização. Isso mesmo resultou provado nos autos pelos documentos que integram o processo administrativo (PA), dos documentos juntos com o pedido arbitral, bem assim como da prova produzida em audiência.

 Dito de outro modo, o valor a apurar para efeitos de liquidação de IVA corresponde à diferença entre o preço de venda e o preço de compra. Assim, resulta claro que uma parte da venda de combustíveis não gera IVA, apenas a margem gera o referido imposto. Esta realidade é reconhecida pelas partes e tem enquadramento legal e, aliás, em todas as declarações antecedentes o sujeito passivo nas declarações periódicas entregues procedeu em conformidade com este regime de liquidação. Importa. Assim, analisar o regime jurídico aplicável ao caso concreto em discussão nos presentes autos.

 

Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 88.º do CIVA o seguinte:

“Se a declaração periódica prevista no artigo 41.º não for apresentada, a Direção-Geral dos Impostos, com base nos elementos de que disponha, relativos ao sujeito passivo ou ao respetivo sector de atividade, procede à liquidação oficiosa do imposto, a qual tem por limite mínimo um valor anual igual a seis ou três vezes a retribuição mínima mensal garantida, respetivamente, para os sujeitos passivos a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 daquele artigo”. (sublinhado nosso)

 

Conforme consta da notificação remetida à reclamante para efeitos de audição prévia à emissão da liquidação, o elemento que serviu de base à mesma é o valor total da faturação constante das faturas comunicadas à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no período de 2020-06, donde resultou um valor de imposto liquidado de €122.181,98.

 

15. Ficou provado que a Requerente se encontra, por opção, no regime mensal de tributação em sede de IVA. Resulta, assim, que o sujeito passivo exerce a sua atividade há alguns anos e a mesma se encontra sujeita a especificidades de regime evidenciadas em declarações anteriores, que a Direção-Geral dos Impostos, com base nos elementos de que dispunha, relativos ao sujeito passivo, ao tempo do facto tributário que deu origem à liquidação impugnada, não podia desconhecer. Concretamente, a AT deveria ter tido em consideração, para efeitos de emissão da liquidação controvertida, o facto de a mesma ser sujeita ao regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores, previsto no art.º 69.º e seguintes do CIVA. Vejamos:

 

Dispõe o artigo 69º do CIVA (Subsecção III – Regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores – âmbito de aplicação) que: «O imposto devido pelas transmissões de gasolina, gasóleo e petróleo carburante efetuadas por revendedores é liquidado por estes com base na margem efetiva de vendas.»

Por sua vez o artigo 70º do CIVA, com a epígrafe «Valor Tributável», estabelece que:

 

1 - Para efeitos do disposto no artigo anterior, o valor tributável das transmissões abrangidas pelo presente regime corresponde à diferença, verificada em cada período de tributação, entre o valor das transmissões de combustíveis realizadas, IVA excluído, e o valor de aquisição dos mesmos combustíveis, IVA excluído.

2 - Sobre a margem, apurada nos termos do número anterior, devem os revendedores fazer incidir a respetiva taxa do imposto.

3 - Na determinação do valor das transmissões, não são tomadas em consideração as entregas de combustíveis efetuadas por conta do distribuidor.»

 

Ora, como se vê, resulta da lei que o imposto devido pelas transmissões de combustíveis líquidos efetuadas por revendedores é liquidado com base na margem efetiva de vendas, correspondendo o valor tributável “à diferença, verificada em cada período de tributação, entre o valor das transmissões de combustíveis realizadas, IVA excluído, e o valor de aquisição dos mesmos combustíveis, IVA excluído” (cfr. n.º 1 do art.º 70.º do CIVA).

 

2ª - Quanto à apreciação da legalidade dos atos tributários impugnados

16. Da análise destes dispositivos legais resulta, clara e inequivocamente, que no caso concreto da liquidação oficiosa impugnada a determinação do valor base para liquidação do IVA nunca poderia ser o valor total de faturação registada no período em causa.

Assim, a liquidação oficiosa de IVA, produzida ao abrigo do artigo 88º do CIVA, não podia ter o valor total de faturação como como valor de referência para liquidação do imposto. Acresce que, como a própria AT admite na sua resposta e nas alegações juntas aos autos a liquidação oficiosa foi emitida em resultado da falta de apresentação da declaração periódica de IVA por parte da Requerente e tem como base um valor estimado com base em métodos indiretos.

Ora, não se vislumbra quais possam ter sido os métodos subjacentes à determinação da base tributável, porquanto os mesmos não resultam evidenciados na fundamentação da liquidação.

Pelo contrário, resulta evidente que a AT não aplicou qualquer método indireto ou presuntivo para determinar a base tributável, mas sim considerou como tal o volume total de faturação emitida pela Requerente no período em causa (2020/06). 

A base tributável que foi tida em conta pela AT corresponde ao valor total das vendas efetuadas não fazendo distinção entre as vendas sujeitas ao regime geral do IVA e as vendas de combustível líquido sujeitas ao regime especial da margem. E não se alegue que a AT não tinha forma de saber determinar a margem, pois bastaria analisar algumas declarações de períodos anteriores para encontrar uma margem aplicável.

A liquidação oficiosa de IVA objeto do presente processo é impugnada quanto à forma da determinação da matéria coletável em sede de liquidação oficiosa. Só releva, como já se disse os pressupostos que lhe estão subjacentes.

Assim, por tudo o que vem exposto, não resta dúvida que a liquidação impugnada enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto, que constitui vício de violação de lei, que impõe a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

17.  Quanto à decisão de indeferimento da RG, que manteve a liquidação reclamada, importa referir que atendendo da sua fundamentação resulta que o apuramento do IVA em falta referente ao período 2020/06 não foi efetuado de acordo com o disposto no artigo 69º e 70º do CIVA. Isso mesmo é reconhecido pela AT quando afirma objetivamente que «contrariamente ao que parece ser o entendimento da reclamante, a AT não dispõe de elementos que lhe permitam proceder ao apuramento da margem efetiva de vendas, não tendo como saber o valor de aquisição dos combustíveis transmitidos no período em análise.»

Pois bem, não é verdade. Como vimos, bastaria analisar o histórico das declarações de IVA anteriores e socorrer-se da aplicação de métodos indiretos previstos na lei para encontrar uma fórmula mais justa e equilibrada, compatível com os registos precedentes do sujeito passivo.

Mas, segundo a AT há, ainda, um outro argumento que resulta do facto da Requerente não ter procedido à entrega da declaração periódica no prazo devido, nem no prazo fixado para pagamento da liquidação oficiosa (15-02-2021). Alega a AT que a Requerente, por ter procedido à entrega da declaração de regularização do IVA dois dias depois do limite do prazo para pagamento da liquidação oficiosa (ou seja, em 17-02-2021), perdeu qualquer possibilidade de reverter a liquidação oficiosa, que se tornou definitiva, restando o posterior acerto de contas através do crédito em conta corrente.

  Sendo certo que a entrega ocorreu já depois da data-limite para pagamento da liquidação oficiosa, é evidente que a AT estava ainda em tempo de repor a verdade material, aplicando as coimas legalmente devidas. Preferiu não o fazer e manter uma liquidação claramente violadora do regime jurídico aplicável ao caso concreto da Requerente. Sendo certo que, sempre que se trate de um sujeito passivo cujo regime de tributação em sede de IVA esteja sujeito a condições especiais ou diferenciadas maior deve ser o rigor na aplicação das normas legalmente previstas.

Nesta conformidade, também não colhe o argumento da AT quando alega que «…em momento algum, a reclamante juntou aos autos elementos que permitissem apurar ou validar o valor do IVA devido no período em referência».

O argumento não faz sentido. A AT ao emitir a liquidação oficiosa está vinculada à lei e à aplicação dos métodos de determinação da matéria coletável adequados. Ao proceder à emissão da liquidação oficiosa nos termos do previsto no artigo 88º do CIVA, a AT bem sabia que tinha de aplicar os métodos indiretos adequados a encontrar um valor base para tributação aproximado ao que resultaria se dispusesse de elementos contabilísticos fornecidos pela Requerente. De resto, tinha sempre a possibilidade de se orientar pelas declarações anteriores apresentadas pelo sujeito passivo. Em face da manifesta desconformidade com a realidade material e a lei, cabia à Requerida corrigir a situação com os meios e poderes de investigação ao seu alcance. O que lhe estava vedado era partir sem mais para o ato final de liquidação considerando como valor de referência o total da faturação registado no período, com a consequente ilegalidade por erro de facto e de direito.

 

18. Acresce que, ficou provado que a Requerente juntou a declaração de regularização do IVA, tendo apurado o valor de €7.310,36. Esta entrega ocorreu dois dias depois da data-limite para pagamento da liquidação oficiosa, mas ocorreu muito em tempo de permitir a reparação da situação e a reposição da verdade material.

Quanto à não entrega de «elementos que permitissem apurar ou validar o valor do IVA devido», dir-se-á que, se persistiam dúvidas sobre os valores declarados em sede de regularização, era obrigação da AT solicitar à Requerente os elementos que entendesse necessários ou desencadear ação inspetiva se necessário. Certo é que esta questão não é relevante para a decisão a proferir nestes autos, nos quais está apenas em causa conhecer da (i)legalidade da liquidação oficiosa impugnada.

Ainda em favor da pretensão da Requerente é de realçar que a AT, como bem resulta do processo administrativo, reconhece que a declaração de IVA submetida pela reclamante em 2021-02-17 foi liquidada, porém, considera que a produção dos correspondentes efeitos financeiros se encontra condicionada ao pagamento da liquidação oficiosa. Ora, não podemos subscrever tal argumento, o que seria equivalente a privar o sujeito passivo de repor a verdade material a todo o tempo enquanto o imposto não se encontrar pago e, claro, no prazo da reclamação graciosa, através desta ou da possibilidade de revisão do ato prevista no artigo 78º da LGT.

Outro entendimento, seria equivalente a negar à Requerente uma importante garantia de defesa, concebida, justamente, para aqueles casos em que persistem erros, lapsos, inexatidões ou injustiça grave e notória.

Aliás, na RG apresentada a Requerente formula o seu pedido, alternativamente, solicitando a convolação da RG em revisão do ato tributário nos termos do artigo 78º, o que veio a ser indeferido pela AT, com o seguinte fundamento: «Finalmente, quanto à possibilidade de convolação do presente procedimento em revisão do ato tributário, previsto no art.º 78.º da LGT, não se afigura que a mesma seja viável.»

De forma meramente conclusiva e infundamentada a AT decidiu que o artigo 78º da LGT não era aplicável, o que de todo se afigura razoável, face a natureza de garantia de defesa do referido normativo legal e à sua inserção na LGT, logo aplicável a qualquer relação jurídica de imposto, desde que se cumpram os seus pressupostos. Cumpre acrescentar que, a violação objetiva e inequívoca do disposto no artigo 78º, consubstancia também uma violação de lei, vício invalidante conducente à anulação do ato.

 

Mas, alega a AT que «a redação vigente da al. b) do n.º 2 do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 229/95, de 11/09, prevê que sempre que o imposto apurado na DP IVA submetida pelo sujeito passivo seja inferior ao da liquidação oficiosa, e logo que esta se mostre paga, será creditada a diferença em conta corrente para efeitos de compensação em imposto que venha a mostrar-se devido.»

Também esta alegação não pode proceder como resulta dos considerandos que a seguir se enunciam. Dispõe o artigo 88.º do Código do IVA que:

“1 - Se a declaração periódica prevista no artigo 41.º não for apresentada, a Direcção-Geral dos Impostos, com base nos elementos de que disponha, relativos ao sujeito passivo ou ao respectivo sector de actividade, procede à liquidação oficiosa do imposto (…).

2 - O imposto liquidado nos termos do número anterior deve ser pago nos locais de cobrança legalmente autorizados, no prazo mencionado na notificação, efectuada nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual não pode ser inferior a 90 dias contados a partir da data da notificação.

3 - Na falta de pagamento no prazo referido no número anterior, é extraída pela Direcção-Geral dos Impostos certidão de dívida, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 88.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

4 - A liquidação referida no n.º 1 fica sem efeito nos seguintes casos:

a) Se o sujeito passivo, dentro do prazo referido no n.º 2, apresentar a declaração em falta, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber;

b) Se a liquidação vier a ser corrigida com base nos elementos recolhidos em procedimento de inspecção tributária ou outros ao dispor dos serviços;

c) Se for declarada a cessação oficiosa referida no n.º 2 do artigo 34.º e a liquidação disser respeito ao período decorrido desde o momento em que a cessação deveria ter ocorrido.

5 - Se o imposto apurado nos termos do n.º 1 ou constante de certidão de dívida a que se refere o n.º 3 tiver sido pago, a respetiva importância é tomada em conta no pagamento das liquidações previstas nas alíneas a) e b) do número anterior.

6 - Relativamente à diferença que resultar da compensação prevista no número anterior, é extraída certidão de dívida nos termos do n.º 6 do artigo 27.º ou creditada a importância correspondente se essa diferença for a favor do sujeito passivo”.

 

            Face a este normativo legal, extrai-se do confronto entre o disposto nos nº1, 3 e alíneas a) e b) (com destaque para a parte final desta última alínea) do nº4 que, independentemente do cumprimento ou não do prazo limite para pagamento da liquidação oficiosa, esta pode sempre ser corrigida pela AT com base nos elementos informativos ou outros que venham a estar carreados nos autos.

Dito de outro modo, a declaração entregue pela Requerente, embora dois dias depois do limite do prazo de pagamento da liquidação oficiosa, devia ter sido considerada pela AT, a partir da qual devia ter procedido à correção da liquidação. É justamente para situações como a da Requerente que a alínea b) do nº 4 do artigo 88º do CIVA prevê a possibilidade de correção, a qual pode ocorrer, obviamente, para além do prazo previsto no nº 1 do mesmo dispositivo legal.

Assim, conclui-se que deste normativo não resulta a conclusão pretendida pela AT.

Por outro lado, como bem refere Jesuíno Alcântara Martins [1], na obra citada pela AT na sua resposta:

 “[a] liquidação oficiosa tem carácter provisório e fica sem efeito se o sujeito passivo proceder à entrega da declaração em falta e ao pagamento do imposto e dos juros compensatórios respetivos no prazo de 90 dias, sem prejuízo da aplicação das penalidades que ao caso couberem. (…)

Esta forma de tributação destina-se a ser levada a cabo sem que haja previamente a necessária recolha de elementos, que possam fundamentá-la corretamente, pelo que se prevê ainda a possibilidade de proceder à sua correção, com base nos elementos que possam vir a ser recolhidos e apurados em resultado de um procedimento de inspeção tributária ou através de outros meios. Se esta correção for efetuada nos prazos de cobrança fica sem efeito a liquidação oficiosa. (…) (Sublinhados nossos).

E acrescenta ainda o mesmo Autor:

“Por fim, sublinha-se que, dado o carácter relativamente precário em que assenta a tributação oficiosa, esta se destina essencialmente a ter um efeito persuasivo no sentido de levar os sujeitos passivos a entregar as declarações em falta”.

 

Como resulta evidente da transcrição que antecede, o entendimento da AT não encontra respaldo nesta Doutrina. Pelo contrário, resulta outrossim, no reforço do entendimento que temos vindo a expor e que confere sustentação à pretensão da Requerente. A natureza precária da liquidação oficiosa impõe que, dentro do prazo de pagamento nela estabelecido ou depois deste prazo, aquela seja corrigida de modo a repor a verdade material. Esta correção pode ocorrer com base nos elementos recolhidos pelos Serviços da AT, por procedimento inspetivo ou por qualquer outro meio como, por exemplo, a apresentação da declaração em falta.

 Como bem salienta o Autor citado, “esta liquidação oficiosa tem um efeito «persuasivo» no sentido de levar os sujeitos passivos a entregar as declarações em falta, dentro do prazo previsto no nº1 ou depois deste (acrescenta-se), de modo a alcançar o verdadeiro desiderato da norma legal: a regular apresentação das declarações de modo a proceder à regular e adequada determinação do imposto devido.”

 

Em suma, à luz da doutrina invocada não encontramos acolhimento para a argumentação da AT.

 

Por fim, se analisarmos com pormenor a Jurisprudência vertida no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 26-02-2002, no processo n.º 4469/00, igualmente invocada pela AT, não encontramos acolhimento possível para a atuação da AT que conduziu à liquidação impugnada e bem assim ao indeferimento da RG. No referido Acórdão entende o TCAS que “embora no nosso ordenamento jurídico-tributário vigore o princípio da declaração, a liquidação nem sempre se faz com base na declaração apresentada pelo contribuinte, designadamente quando o contribuinte a não apresente oportunamente, caso em que se permite à AT proceder à liquidação oficiosamente, com base nos elementos de que disponha (cfr. o art. 76.º do CPT e, no que respeita ao IVA, os arts. 28.º, n.º 1, alínea c), 40.º e 83, n.º 1, do respectivo código), sem prejuízo da liquidação ser dada sem efeito se o sujeito passivo apresentar declaração de substituição até à data-limite fixada para o respectivo pagamento (cfr. art. 83.º, n.º 4, alínea a), do CIVA)”.

Pois bem, a jurisprudência em causa refere-se exclusivamente à hipótese prevista na alínea a) do nº 4 do artigo 88º. Não se refere ao disposto na alínea b) do artigo 88º do CIVA, no qual se prevê a possibilidade de correção da liquidação oficiosa para além do prazo referido na alínea anterior, se esta vier a ser corrigida posteriormente com base nos elementos recolhidos em procedimento de inspeção tributária ou outros ao dispor dos serviços.

 

Quanto à jurisprudência do citado Acórdão do TCAS, no Acórdão de 14-01-2021, no processo n.º 1565/07.1BELSB, também invocado pela AT, dir-se-á que a factualidade de base tem uma diferença essencial face à do caso que agora está em apreciação. Segundo o TCAS, «nos termos do art. 88.º do CIVA, ante a notificação da liquidação oficiosa, o sujeito passivo dispõe de um prazo de 90 dias para expressar a sua discordância quanto ao teor da liquidação oficiosa efectuada pela Administração Tributária e para a eliminar pura e simplesmente da ordem jurídica mediante a entrega das declarações que omitira com referência aos períodos ali considerados. Prevendo a lei este instrumento administrativo expedito, eficaz e eficiente para o sujeito passivo destruir a liquidação levada a cabo pela Administração Tributária, compreende-se que lhe denegue a possibilidade de prosseguir o mesmo objectivo através de outros meios ou instrumentos impugnatórios, como a reclamação graciosa ou a impugnação judicial. Como se compreende igualmente que, ante a inércia do sujeito passivo, a liquidação oficiosa se converta em definitiva decorrido que seja o prazo para apresentação da declaração em falta…»

 

Ora, no caso que nos ocupa há uma diferença significativa: a Requerente entregou a sua declaração 2 dias depois da data-limite para pagamento da liquidação oficiosa, logo muito antes dos 90 dias mencionados no artigo 88º do CIVA. Por outro lado, apresentou RG depois de ter sido desconsiderada a apresentação da declaração para regularização do imposto. Não se vê, pois, que a jurisprudência invocada se adeque ao caso agora em análise, porquanto as circunstâncias de facto subjacentes são outras, diferentes das que resultam provadas nos presentes autos.

Logo, em conclusão, não se pode sufragar a conclusão da AT segundo a qual «ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) soubesse que se aplicava, no âmbito da atividade exercida pela Requerente, o regime de tributação dos combustíveis líquidos aplicável aos revendedores, a que se referem os artigos 69.º a 75.º do Código do IVA, não dispunha de elementos concretos e detalhados que lhe permitissem apurar o valor tributável e respetivo imposto, nem tinha de os solicitar.»

Ficou provado que a AT tinha ao seu dispor, pelo menos, as declarações anteriores das quais podia inferir os valores médios adequados à aplicação do disposto nos artigos 69º a 75º do CIVA e bem sabia que ao considerar como referência o valor da faturação total do período, o resultado da liquidação oficiosa de imposto seria irreal, desconforme com a atividade exercida pela Requerente e que o valor de IVA liquidado seria desconforme à realidade.

Por outro lado, ainda que fora do prazo, o certo é em 17.02.2021 foi submetida pelo sujeito passivo a declaração periódica de IVA em falta (Liquidação nº ...) na qual foi apurado um valor de imposto a pagar de 7.310,36€, que pagou. Se dúvidas existissem, como base nos princípios da cooperação e boa-fé, teria sempre a AT a obrigação de notificação o sujeito passivo para apresentar a documentação necessária para confirmar os montantes declarados e os cálculos subjacentes, o que não pode é ignorar e manter uma liquidação oficiosa ilegal, que teve por base o valor total de faturação com violação do regime legal aplicável constante do disposto nos artigos 69º e 70º do CIVA.

*

Nesta conformidade, a liquidação oficiosa de IVA e o indeferimento da reclamação graciosa afiguram-se ilegais, padecem de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, impondo-se a sua anulação.

Como consequência da anulação deve ser reposta a situação que existiria se não tivesse sido praticada a liquidação ilegal, o que, naturalmente, conduz à necessária extinção das execuções fiscais em curso com origem nas liquidações anuladas e restituição dos valores indevidamente pagos. Todavia, para além das consequências que resultam dos poderes anulatórios da presente sentença, está vedado este tribunal ordenar a extinção da execução fiscal, bem como o levantamento das penhoras.  

Pelo exposto, procede o pedido de pronúncia arbitral, também quanto a esta questão, sendo de anular as liquidações de IVA e respetivas liquidações de juros compensatórios que são impugnadas.

 

 

Quanto ao pedido de restituição e juros Indemnizatórios

 

No pedido formulado pela Requerente esta pretende, ainda, «a restituição de todos os valores indevidamente cobrados além do valor devido e já liquidado de €7.310,36, acrescido de juros indemnizatórios calculado nos termos legais.»

O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece que a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estatuir que é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Ora, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação da liquidação impugnada e da decisão de indeferimento da sobredita reclamação graciosa, há lugar ao reembolso das prestações tributárias que indevidamente tenham sido suportadas pela Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se aqueles atos tributários não tivessem sido praticados nos termos em que foram. Cabe à AT em sede de execução da decisão arbitral repor a situação que existiria não fosse a liquidação oficiosa agora anulada.

Retornando ao caso concreto, a verdade é que a Requerente não juntou aos autos comprovativo de ter pagado quaisquer valores em concreto, pelo que o tribunal arbitral não pode condenar na restituição por não se encontrar devidamente provado qualquer pagamento, exceto do de €7.310,36.

Destarte, será em sede de execução de sentença arbitral que o acerto de valores deve ser processado, pois como já se disse a reposição da situação que existiria se os atos tributários anulados não tivessem ocorrido é uma consequência da própria sentença de anulação.

Assim, pelas mesmas razões, caso em execução de sentença se apure algum valor a ser reembolsado a Requerente terá direito a juros indemnizatórios, pois, como estatui o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No caso concreto, tais juros indemnizatórios são calculados, à taxa legal supletiva (cf. artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e a Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril), desde a data do indeferimento da RG até à data do processamento da respetiva nota de crédito. Com efeito, antes da apreciação da RG não existe erro imputável à AT, já que a liquidação oficiosa foi emitida porque a Requerente não apresentou a declaração periódica em tempo. Logo o erro só pode ser imputável à AT depois desta ter tido a oportunidade de apreciar a Liquidação oficiosa em sede de RG e ter mantido a mesma, desconsiderando a declaração entretanto apresentada pela Requerente.

*

            A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução supra exposta.

 

IV. Decisão

            Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, determinar:

  1. A anulação da liquidação de IVA nº 2020..., correspondente ao mês de junho de 2020 no montante global de 122.181,98€ (cento e vinte e dois mil, cento e oitenta e um euros e noventa e oito cêntimos), bem assim como o ato de indeferimento da reclamação graciosa, com as legais consequências, incluindo a restituição dos valores que tenham sido indevidamente pagos pela Requerente acrescidos de juros indemnizatórios, a determinar em execução de sentença.
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

 

V. Valor do Processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 122.181,98 (cento e vinte e dois mil, cento e oitenta e um euros e noventa e oito cêntimos).

 

VI. Custas

Em conformidade com o acima decidido e nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em €3.060,00 (três mil e sessenta euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

 

Lisboa, 6 de dezembro de 2022.

 

 

A Presidente do Tribunal Arbitral,

 

(Fernanda Maças)

 

 

 

A Árbitro vogal,

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos -relatora)

 

 

O Árbitro vogal,

 

(Francisco Carvalho Furtado)

 



[1] Cfr.: Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Coordenação e Organização de Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos; 2014; p. 485.