Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 234/2022-T
Data da decisão: 2022-11-28   
Valor do pedido: € 41.868,64
Tema: IRC – Derrama Municipal sobre rendimentos gerados no estrangeiro
Versão em PDF

Sumário:

I – A Derrama Municipal é um imposto municipal que incide sobre os rendimentos tributáveis e não isentos de IRC, e corresponde à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada Município por sujeitos passivos residentes;

II – O cálculo, o apuramento da derrama, tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada, por isso, o reporte e ligação da Derrama municipal à proporção do rendimento gerado num Município ocorre na medida em que a contabilidade da empresa permita isolar os rendimentos gerados em cada Município;

III – Incindindo a Derrama sobre o lucro tributável sujeito e não isento, permitindo os registos contabilísticos da empresa a destrinça dos rendimentos obtidos no estrangeiro e a efetiva determinação da quota parte do lucro tributável a cada uma das sucursais, por não se tratar de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, estes rendimentos devem ser excluídos da base de incidência para efeitos de cálculo da Derrama Municipal.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

A Requerente, A..., pessoa coletiva n.º ..., com sede na ..., não se tendo conformado com o indeferimento do procedimento de Reclamação Graciosa n.º ..., incidente sobre a autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) respeitante aos períodos de tributação de 2018 e 2019 veio, nos termos da alínea a) do  n.º 1 do artigo 2.º, n.º 2, do artigo 5.º, n.º 1 do artigo 6.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem (RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, pedindo:

  1. que seja declarada a ilegalidade e anulação da decisão administrativa impugnada e, por via disso;
  2. ser parcialmente anulada a liquidação de IRC dos períodos de tributação de 2018 e 2019, no que tange à Derrama Municipal – o que passa pelo reembolso dos montantes indevidamente pagos, de € 15.002,07 e de € 26.866,57, respetivamente, com as respetivas consequências legais;
  3. Condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 61.º do CPPT.

 

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”),

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 6 de abril de 2022.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, a qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo.

 

Em 25 de maio de 2022, as partes foram notificadas da designação do árbitro não tendo arguido qualquer impedimento.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 15 de junho de 2022.

Notificada para o efeito por despacho de 15 de junho de 2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação pedindo, a final, a improcedência do pedido de pronuncia arbitral por não provado, com a consequente absolvição da Requerida.

 

Por despacho de 11 de setembro de 2022, o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para apresentarem alegações escritas, querendo, com carácter sucessivo.

 

A Requerente apresentou as suas alegações a 22 de setembro de 2022, a AT veio informar o Tribunal que o entendimento da Requerida foi expendido em sede de resposta nada tendo a acrescentar, sob pena de incorrer numa repetição do anteriormente escrito.

 

 

II - Objeto dos autos

 

A matéria controvertida nos presentes autos reside em saber se a liquidação da Derrama Municipal incidente sobre o lucro tributável da Requerente, com sede em Portugal, deve ou não incidir sobre os rendimentos de fonte estrangeira.

 

Trata-se, pois, de decidir se os lucros gerados por sucursais residentes fora do território nacional, devem ser excluídos do lucro tributável não contribuindo para a base de cálculo da Derrama Municipal lançada pelo Município.

 

 

II.1 Posição da Requerente

 

A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

 

A Requerente, no âmbito do desenvolvimento da sua atividade, detém sucursais fora do território nacional, nomeadamente em Cabo Verde, Moçambique, Honduras, Senegal, Angola, Suazilândia e Nicarágua. 

Atendendo ao facto de as sucursais não deterem personalidade jurídica autónoma, os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente, com referência aos períodos de tributação de 2018 e 2019, foram considerados para efeitos do apuramento da respetiva matéria coletável do IRC nos aludidos períodos de tributação.

Sucede que, no âmbito de uma revisão interna de procedimentos a Requerente veio a concluir que, com referência aos períodos de tributação de 2018 e 2019, foi cometido um erro ao nível do apuramento dos montantes de Derrama Municipal, tendo sido indevidamente liquidada Derrama Municipal nos montantes, respetivamente, de € 15.002,07 e € 26.866,57, incidente sobre os rendimentos provenientes de fonte estrangeira, considerando que a Derrama Municipal apenas poderá incidir sobre os rendimentos provenientes de fonte nacional.

Entende a Requerente, partindo da redação do n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, que o legislador pretendeu que a Derrama Municipal incidisse sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor e, por inerência, a inadmissibilidade da incidência, quando o sujeito passivo residente em território português, sobre rendimentos de fonte estrangeira.

Permitindo os registos contabilísticos da Requerente a clara destrinça dos rendimentos de fonte estrangeira, e a efetiva determinação da quota parte do lucro tributável imputável a cada uma das sucursais não residentes, nos períodos de tributação de 2018 e 2019, a Derrama Municipal dos períodos de tributação de 2018 e 2019 deveria apenas ter incidido sobre o lucro tributável obtido em território nacional, desconsiderando-se o rendimento da Requerente gerado no estrangeiro.

Em consequência, a Requerente apresentou a competente reclamação graciosa contra as autoliquidações, porque em seu entender Derrama Municipal apenas poderá incidir sobre os rendimentos provenientes de fonte estrangeira de IRC.

Reclamação que foi indeferida pela AT.

II.2 Posição da Requerida

 

Notificada para responder, a AT fê-lo como sumariamente se descreve:

A AT sustenta que, a Derrama Municipal prevista na Lei nº 73/2013, de 3 de setembro (Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais - RFALEI), o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais introduzida pela Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, visa financiar os municípios pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respetivos municípios, de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.)

Ao abrigo do disposto no art.º 18, n.º 1, na Lei nº 73/2013, de 3 de setembro, a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), correspondendo à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município, por sujeitos passivos residentes em território português, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.

Defende a AT que, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação. Pelo que, não podemos inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

          Vem ainda a AT, argumentar no sentido de que a Derrama é um imposto dependente e acessório na medida em que carece de autonomia e depende do imposto principal (IRC).

          Na verdade, não obstante constituir uma receita dos municípios, a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola ( o que é o caso) e ainda sobre o lucro tributável das entidades não residentes com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da Derrama possui a mesma origem que o IRC[1], apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal.

O apuramento da derrama que acolhe alguns elementos do IRC, ao nível de incidência e sujeitos passivos, é, contudo, omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável, respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, pelo que tem de se fazer apelo às normas do CIRC.

A coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos, mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama, por conseguinte, os lucros de proveniência estrangeira não foram afastados da base de incidência.

Prevendo-se no n.º 2 do acima mencionado normativo a exceção, nos termos da qual, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a € 50 000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

Ou seja, esta exceção de repartição de derrama municipal por diversos municípios apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superior a € 50.000.

Já o apuramento do lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, faz-se nos termos do CIRC, abrangendo a tributação a totalidade dos rendimentos, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e dos obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos.

Esse mesmo lucro integra componentes de várias naturezas e resulta de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e os devidos ajustamentos positivos e/ou negativos, efetuados nos termos do CIRC.

 

III - Saneamento

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir Decisão

 

IV - Matéria de facto

 

IV.1. Factos provados

 

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima com sede em Portugal.
  2. A Requerente, no âmbito do desenvolvimento da sua atividade, detém sucursais fora do território nacional, nomeadamente em Cabo Verde, Moçambique, Honduras, Senegal, Angola, Suazilândia e Nicarágua (não impugnado)
  3. Em 26 de Junho de 2019, a Requerente procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos (Modelo 22) do IRC, com referência ao período de tributação de 2018, identificada com o código declaração n.º ... .(Cfr. Documento n.º 2)
  4. Em 29 de Julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos (Modelo 22) do IRC, com referência ao período de tributação de 2019, identificada com o código ... . (Cfr. Documento n.º 3)
  5. Os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente, com referência aos períodos de tributação de 2018 e 2019, foram considerados para efeitos do apuramento da respetiva matéria coletável do IRC nos aludidos períodos de tributação.  (cfr. PA e facto não impugnado)
  6. Os rendimentos obtidos pela Requerente, incluindo os provenientes de sucursais situadas fora do território nacional, foram considerados para efeitos de apuramento da respetiva matéria coletável do IRC nos períodos de tributação. (cfr. PA e facto não impugnado)
  7. E o resultado líquido do exercício da Requerente foi sujeito a tributação de acordo com as regras do IRC, sobre rendimentos obtidos em Portugal e rendimentos obtidos através de sucursais em outras jurisdições. (cfr. PA e facto não impugnado)
  8. Os rendimentos obtidos pela Requerente no estrangeiro foram sujeitos a Derrama Municipal nos termos detalhados infra:

 

 

Período de tributação de 2018

Período de tributação de 2019

 

País de origem dos rendimentos

Lucro  tributável /

Matéria colectável para 

efeitos do

IRC

Taxa média de Derrama

Municipal aplicável

Derrama Municipal suportada

Lucro  tributável /

Matéria colectável para 

efeitos do

IRC

Taxa média de Derrama

Municipal aplicável

Derrama Municipal suportada

Portugal

1 003 893,68

1,16%

11 601,94

984 800,47

1,25%

12 330,72

Subtotal (A)

1 003 893,68

-

11 601,94

984 800,47

-

12 330,72

Cabo Verde

49 656,19

1,16%

573,87

(33 889,77)

1,25%

(424,34)

Moçambique

251 406,83

2 905,49

401 751,62

5 030,35

Honduras

889 802,91

10 283,40

1 539 441,07

19 275,40

Senegal

24 854,66

287,24

12 729,17

159,38

Angola

82 379,14

952,05

49 168,39

615,64

Suazilândia

-

-

147 935,31

1 852,30

Nicarágua

-

-

28 578,41

357,83

Subtotal (B)

1 298 099,73

-

15 002,07

2 145 714,20

-

26 866,57

Total ([A] + [B])

2 301 993,41

1,16%

26 604,01

3 130 514,67

1,25%

39 197,29

               

 

  1. Em sequência de uma revisão interna de procedimentos aos anos de 2018 e 2019 a Requerente verificou que a derrama também incidiu sobre os rendimentos provenientes de fonte estrangeira, nos montantes de € 15.002,07 e € 26.866,57, respetivamente (não contestado)
  2. A Requerente apresentou Reclamação Graciosa contra as autoliquidações de IRC com referência aos períodos de 2018 e 2019.(cfr. PA)
  3. Reclamação Graciosa que tramitou na Direção de Finanças de Braga sob n.º ...2021... foi expressamente indeferida. (cfr. PA)

 

IV.2 Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto não contestados pelas partes.

 

 

V  - Do Direito

 

Nos termos da Lei das Finanças Locais a Derrama Municipal é um imposto acessório relativamente ao IRC, cujo sujeito ativo é o Município, que incide sobre o lucro tributável das empresas sujeitas a IRC e dele não isentas, com sede em Portugal que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (bem como os não residentes que possuam um estabelecimento estável em território português).

 

O lucro Tributável sobre o qual incide a Derrama é o que resultar das regras de determinação para efeitos de IRC, pelo que na quantificação do mesmo se terá de considerar as disposições contidas nos artigos 17º e seguintes do CIRC.

 

Os sucessivos regimes da lei das finanças locais até à entrada em vigor da Lei n.º 73/2013, de 15 de janeiro, estabeleciam que a coleta ou o lucro tributável sobre o qual recai a percentagem de Derrama é a proporção correspondente aos rendimentos gerado na área de residência do município.

 

Nesta linha, o n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2012 estabelece que :Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.

 

Referindo o n.º 2 do aludido artigo que “Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.”

 

       Fazendo um excurso legislativo (pelos tempos mais próximos) importa ter presente que com a Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, a derrama passou a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta de IRC, perdendo assim a natureza de imposto extraordinário para passar a ser um adicional, ou seja, a Derrama é desde então um imposto autónomo em relação ao IRC.[2]  

 

Como explica Saldanha Sanches a relação da Derrama com o IRC “(…) cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos.(…)[3]

 

       Na solução legal a Derrama Municipal assenta numa lógica comutativa de que a Derrama apurada por uma sociedade comercial deve ser ‘distribuída’ por tantos Municípios quanto aqueles em que a sociedade atua no território nacional, ou seja, em conformidade com a ‘fonte’ dos rendimentos, o que se impõe atentos os princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos públicos.

 

Há uma imputação do lucro tributável aos diversos municípios em que a sociedade a ela sujeita desenvolve a sua atividade, já que tal determinação da proporção do rendimento relativo à área geográfica onde ele é gerado tem a ver com a referida titularidade ativa do tributo, pelo que obviamente deverá atender à atividade desenvolvida pelo respetivo sujeito passivo em cada circunscrição sobre que incidirá a referida derrama municipal.

 

Nada naquela lei se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.

 

            No entanto, a questão sub judice nos presentes autos já foi objeto de escrutínio por tribunais judiciais e arbitrais, cujo entendimento, partindo da lógica comutativa que subjaz à Derrama tem sido no sentido de que os rendimentos gerados no estrangeiro, não sendo gerados na área geográfica do município em causa, não devem estar sujeitos à Derrama.

 

Neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo n.ºs 03652/15.3 BESNT de 13-01-2021 e 0255/17.1 BESNT de 10-11-2022, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

 

            Também o tribunal arbitral junto do CAAD se pronunciou sobre o tema da liquidação da Derrama sobre os rendimentos gerados no estrangeiro nos processos n.ºs 270/2021-T e 554/2021-T, consultáveis em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/.

 

            Decisões que se seguirão de muito perto dada a coincidência da matéria analisada e o acerto da subsunção jurídica da mesma.

 

Partindo do pressuposto incontestável que o valor da derrama municipal tem por base a proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, o acórdão do STJ no âmbito do processo, 03652/15.3 BESNT, de forma cristalina esclarece que: “(…)Como emana do antes exposto e, destacadamente, das premissas acima expressas, o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada. (…)

Assente neste raciocínio o Tribunal acrescenta o seguinte:

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade a derrama podia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro dos Municípios, já os os impostos, visam, desde logo, “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e devem respeitar “os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material” (Artigo 5.º da Lei Geral Tributária (LGT).), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.)”.

(Sublinhado nosso).

E conclui o referido Acórdão que,  sendo certo que o Código de IRC estabelece quanto às pessoas coletivas a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do nº 1, do artigo 4º, do CIRC, não nos permite, (..) retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta concreta, figura tributária.”

Neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).

            Atendendo a que, nos presentes autos, se pede ao Tribunal que afira da legalidade da sujeição a Derrama aos rendimentos gerados por parte das sucursais da Requerente residentes no estrangeiro, considerando que a Requerente fez, de forma clara, a destrinça dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira, de resto não contestada pela AT, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, devem ser retirados da base de incidência,

 

Assim, acolhendo este Tribunal a fundamentação clara e assertiva das decisões dos tribunais acima mencionados, não se vislumbram razões, de facto e de direito, para se afastar do entendimento jurisprudencial consolidado na nossa ordem jurídica.

 

            Face a tudo quando acima fica dito, entende o Tribunal que o ato tributário de liquidação da Derrama Municipal respeitante aos exercícios de 2018 e 2019, sobre o montante do lucro tributável gerado nas sucursais da Requerente no estrangeiro enferma de erro de direito gerador da sua anulabilidade e, consequentemente, as liquidações de Derrama Municipal são ilegais, sendo igualmente ilegal o despacho de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa, devendo anular-se a liquidação da derrama que incidiu sobre os aludidos rendimentos.

 

VI - Dos Juros indemnizatórios

 

Dispõe o artigo 43.º da LGT:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – (…)

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

(...)

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

Nos termos desta alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, independentemente de a ilegalidade ser ou não imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, há direito da Requerente a juros, em caso de procedência do pedido que determine a ilegalidade da liquidação.

 

Igualmente, segundo jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo, considera-se verificada a existência de erro imputável aos serviços, sempre que se verificar a procedência da reclamação graciosa ou impugnação judicial do ato de liquidação.

 

Tendo ficado demonstrada a errada aplicação da norma de incidência que justifica a anulação da liquidação impugnada, deve reconhecer-se o direito do Requerente a juros indemnizatórios à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, desde a data do efetivo pagamento do montante indevidamente liquidado até à data do processamento da respetiva nota de crédito, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 61.º do CPPT.

 

VII - Decisão

 

Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se, julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral e, em consequência:

  1. Declarar a anulação da decisão administrativa impugnada;
  2. Declarar a anulação parcial da autoliquidação de IRC dos períodos de tributação de 2018 e 2019, no que tange à Derrama Municipal na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total dos rendimentos obtidos no estrangeiro, e em consequência
  3. Condenar a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, nos montantes de € 15.002,07 e de € 26.866,57;
  4. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais.

 

  1. Valor do processo:

 

Fixa-se em € 41.868,64 (quarenta e um mil oitocentos e sessenta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos) nos termos do disposto nos artigos 315.º do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT bem assim como do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  1. Custas:

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 Notifique-se.

 

 Lisboa, 28 de novembro de 2022

 

O Árbitro Singular

 

Cristina Coisinha

 



[1] Artigo 17.º do CIRC

[2] Acórdão do STA de 02-02-2011, Proc. 0909/10, consultável em www.dgsi.pt

[3] “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os Munícipios” Fiscalidade, n.º 38,2009, p.137