Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 392/2022-T
Data da decisão: 2022-11-03  IRC  
Valor do pedido: € 4.677,57
Tema: IRC – Regime Simplificado – Comprovação dos Critérios do artigo 86-A do CIRC.
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Sumário

  1. Os efeitos da cessação da aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, nos termos da alínea a) do n.º 6 do artigo 86-A do Código de IRC, ocorre quando deixam de se verificar os critérios elencados nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 86-A, dos quais o critério da alínea a) reportam-se ao período de tributação imediatamente anterior, tendo efeitos no primeiro dia do período de tributação da sua aferição, ou seja, o ano seguinte.
  2. Tendo o Sujeito Passivo cumprido com os critérios elencados nas alíneas do n.º 1 do artigo 86-A, no exercício relativo ao ano de 2018, no exercício do ano seguinte, em 2019 cumpre com os requisitos para poder optar pelo regime simplificado. Se no ano de 2019, ultrapassar os limites impostos pela alínea a) do n.º1 do artigo 86-A, a cessação da aplicação desse regime por força da alínea a) do n.º6 do artigo 86-A produzirá efeitos no primeiro dia do período de tributação, ou seja, em 2020, e não no ano em que é ultrapassado.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. Relatório

As partes: A..., Unipessoal Lda., com o número de identificação fiscal ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., doravante designado de Requerente ou Sujeito Passivo, e AUTORIDADE TRIBUTARIA E ADUANEIRA, doravante designada por Requerida ou AT.

No dia 28-06-2022, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral, aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, e automaticamente notificada a Autoridade Tributaria e Aduaneira no dia 01-07-2022, conforme consta da respetiva ata.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou como arbitro o Exmo. Dr. Paulo Ferreira Alves, que comunicou a sua aceitação, nos termos legalmente previstos.

Em 16-08-2022 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos Artigos 6.º e 7º do Código Deontológico.

Deste modo, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 05-09-2022.

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e anulação do ato de Demonstração de Liquidação de IRC nº 2022 ... de 09 de Maio de 2022 (objeto imediato do PPA), no montante de € 4.677,57 (quatro mil seiscentos e setenta e sete euros e cinquenta e sete cêntimos), bem como a condenação da AT no reembolso deste valor, acrescido de juros indemnizatórios.

A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou em síntese, o seguinte:

  1. A Requerente, no ano de 2020, procedeu à entrega da Declaração Modelo 22 de IRC, no Portal das Finanças, relativa ao período de tributação decorrido de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2019, tendo declarado a opção pelo regime simplificado de tributação, no qual se mostrava enquadrada desde o ano de 2015.
  2. Da referida Declaração, na qual foram declarados os rendimentos do período no valor total de 208.214,06 € e volume de negócios no valor total de 206.037,46 €, resultou imposto a pagar no valor de 595,05 €, que foi autoliquidado e pago pela Requerente.
  3. No dia 07 de Agosto de 2020, a AT, tendo validado a declaração apresentada, elaborou a liquidação nº 2020..., que notificou à Requerente.
  4. Por ofício de 30 de Novembro de 2021 com o nº ..., a AT, por intermédio dos Serviços de Inspeção Tributária (DIT II) da Direção de Finanças de..., notificou a aqui Requerente para “apresentação de contabilidade, outros elementos e esclarecimentos”, instando-a a “no prazo de 10 dias, proceder à retificação da situação,  através da substituição da declaração modelo 22 do exercício de 2019, devendo os respetivos rendimentos ser declarados no quadro 07 da modelo 22 e não no Anexo E e/ou prestar os esclarecimentos tidos por pertinentes…”, uma vez que entendia aquele serviço que esta deixara de reunir os requisitos previstos no artigo 86º-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas para se mostrar enquadrada no regime simplificado.
  5. Apresentou, para tal, diversos argumentos, entre os quais os seguintes:

“i) A A..., Lda., vinha a ser tributada pelo regime simplificado de tributação, porque foi essa a opção que registou em declaração de alterações, com efeitos desde o dia 01/01/2015;

ii) No exercício de 2019, pela primeira vez desde que optou pela tributação pelo regime simplificado, ultrapassou o limite anual de proveitos de 200.000 Eur.;

iii) Nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 86º-A do CIRC, a opção pelo regime simplificado de tributação depende da seguinte circunstância: “Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;”

iv) Considera-se que a A..., Lda. cumpre todos os demais critérios previstos no n.º1 do artigo 86º-A do CIRC;

v) A AT considera que a A..., Lda. deixou de estar enquadrada no regime simplificado de tributação, com efeitos no dia 01/01/2019, porque nesse exercício económico ultrapassou o limite de proveitos, de 200.000 Eur, previsto na alínea a), n.º1 do mesmo artigo;

vi) Nos termos do n.º6 do artigo 86º-A do CIRC, os efeitos da cessação do regime “reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:” “a) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior;”

vii) Como é possível ver, o n.º6 ao artigo 86º-A remete para o critério da alínea a) do n.º1, do mesmo artigo, ou seja, para a condição: “Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;”

viii) Como se percebe, a referência ao “período de tributação imediatamente anterior” não pode nunca ser retirada da equação e tratando-se do exercício de 2019 o período de tributação imediatamente anterior foi o exercício de 2018;

ix) No exercício de 2018, o montante anual ilíquido dos rendimentos não foi superior a 200.000 Eur.;

x) Seguindo a lógica descrita nos pontos anteriores, o exercício em que a A..., Lda. Apenas  deixou de cumprir com o critério previsto na alínea a), do n.º1, do artigo 86º-A, do CIRC, no  exercício de 2020, já que, efetivamente, no exercício de 2019 o limite de 200.000 Eur. foi ultrapassado.”

  1. Defende a Requerida, que os fundamentos e conclusões do relatório de inspeção tributária, e que são o fundamento único do ato de liquidação de tributo ora impugnado, decorrem de uma incorreta interpretação e aplicação do que se mostra disposto no referido artigo 86º-A do CIRC.
  2. Está aqui, assim, unicamente em causa a consequência da errada interpretação das normas citadas e seu impacto na determinação da matéria coletável do período de tributação de 2019, razão pela qual não se justifica sequer discorrer sobre os factos e valores que lhe estão subjacentes, que não estão aqui controvertidos.
  3. Quando a Requerente optou pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável reunia todos os requisitos previstos no nº 1 do artigo 86º-A do CIRC, incluindo o previsto na alínea a), que exclui do âmbito de aplicação do regime quaisquer sujeitos passivos que não “Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a € 200.000;”.
  4. Tal facto, que não é sequer controvertido e resulta assente no relatório inspetivo, determina a verificação de um requisito (único que está em causa no relatório) que, inequivocamente, está consolidado como sendo um valor numérico relativo a um período temporal (e que in casu se mostra definido no artigo 8º do CIRC) e que, salvo correção ulterior do montante ilíquido de rendimentos obtidos naquele período temporal, é, consequentemente, um requisito imutável.
  5. Se no exercício relativo ao ano de 2018 foram apurados rendimentos inferiores a 200.000,00 €, sem que tenha ocorrido qualquer evento suscetível de alterar tal facto, é imutável o facto de que “no período de tributação imediatamente anterior” ao exercício relativo ao ano de 2019 a Requerente obteve um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a 200.000,00€.
  6. Tal exclui, necessariamente, a aplicação à Requerente do disposto na primeira parte do nº 4 do artigo 86º-A do CIRC antes do dia 01 de Janeiro de 2020, momento em que efetivamente “no período de tributação imediatamente anterior” (2019) esta passou a ter como valor a  apresentar o montante de 206.037,46 € (e só aqui sofrendo alteração o requisito previsto na alínea a) do nº1 do artigo 86º-A do CIRC).
  7. Conclui a Requerente, sustentando: Apenas no dia 01 de Janeiro de 2020 a Requerente, deixou de reunir os requisitos cumulativos previstos no nº1 do artigo 86º-A do CIRC, uma vez que em 2019 atingiu rendimentos anuais ilíquidos superiores a 200.000,00 €.
  8.  O facto de os efeitos da cessação do regime simplificado se reportarem ao 1º dia do período de tributação em que deixe de se verificar algum dos requisitos ali previstos (nº 6 do artigo 86º-A) não permite interpretar tal norma no sentido de que a cessação produz efeitos relativamente ao período de tributação em que se ultrapassa o montante de 200.000,00€, uma vez que tal não está legalmente previsto. As regras de interpretação das leis, nomeadamente das leis tributárias, não permitem a interpretação exemplificada no ponto 10 da Circular 6/2014. O texto da lei é o ponto de partida da interpretação e exerce também uma função de limite, pois não permite considerar pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
  9. A ora Requerente, procedeu ao seu pagamento na data de 27 de Junho de 2022.
  10. Termina a Requerente peticionando a anulação da liquidação de IRC elaborada, e que a Autoridade Tributária e Aduaneira seja condenada a restituir à Requerente o valor de imposto indevidamente pago, no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o dia 27 de Junho de 2022 e até integral pagamento e no pagamento das custas do processo.

A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:

  1. No seguimento de elementos declarados pela Requerente na IES, os serviços da inspeção da Direção de Finanças de ... solicitaram diversos elementos, ao abrigo da OI2021..., tendo concluído que a Requerente deixara de reunir os requisitos previstos no artigo 86º-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, mais precisamente o requisito enumerado na alínea a) do nº 1, para se mostrar enquadrada no regime simplificado no período de tributação de 2019.
  2. Para delimitar a matéria em análise, importa ter presente que a opção pelo regime simplificado tem de obedecer às condições cumulativas previstas no nº 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC, como já referido, de entre as quais se destaca a obrigatoriedade de no período de tributação imediatamente anterior:  - não obter um montante anual ilíquido de rendimentos superior a € 200.000,00; e, - não apurar um total do balanço superior a € 500.000,00.
  3. Dado que o volume de negócios declarado pelo sujeito passivo até ao período de 2018 foi inferior a 200.000,00 €, foi legítima a opção pelo regime simplificado, sempre que a Requerente assim o entendeu.
  4. Para o efeito, o nº 4 do artigo 86º-A do Código do IRC determina que o regime simplificado cessa quando deixar de se verificar pelo menos um dos seus requisitos ou o sujeito passivo renuncie à sua aplicação.
  5. No caso da Requerente, verificou-se que no ano de 2019 deixou de se verificar um dos requisitos, por terem sido declarados rendimentos de 208.214,06 €, portanto, superior a 200.000,00 €.
  6. Importa, ainda, ter presente que o n.º 6 do artigo 86.º-A do Código do IRC estabelece que os efeitos da cessação do regime simplificado de determinação da matéria coletável se reportam ao 1.º dia do período de tributação em que deixe de se verificar algum dos requisitos obrigatórios, o que no caso em análise ocorreu no dia 01.01.2019.
  7. Certo é que, no caso em apreço, a matéria coletável declarada resultou da aplicação dos coeficientes previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 86.º-B do CIRC, que regula a determinação da matéria coletável no regime simplificado de tributação.
  8. No entanto, como se demonstrou, a Requerente não poderia determinar a sua matéria coletável nesses termos. Ao invés, a matéria coletável deve resultar da aplicação do regime geral, em conformidade com as regras gerais do Código do IRC, constantes dos artigos 17.º e seguintes.
  9. Assim, tomou-se como base os valores declarados na Demonstração de Resultados constante da IES do ano de 2019, os quais são coerentes com a contabilidade da Requerente, conforme balancete após apuramento de Resultados disponibilizado aos serviços de inspeção.
  10. Em face de todo o exposto propõe-se a manutenção das correções efetuadas, que resultam na íntegra da alteração do regime de tributação em IRC, mais precisamente da alteração do regime simplificado para o regime geral.
  11. Tal como resulta do entendimento da AT, o nº 6 do artigo 86.º-A do Código do IRC estabelece que os efeitos da cessação do regime simplificado de determinação da matéria coletável se reportam ao 1.º dia do período de tributação em que deixe de se verificar algum dos requisitos obrigatórios, o que no caso em análise ocorreu no dia 01.01.2019. 
  12. Por esse motivo, a AT procedeu ao reenquadramento da Requerente no Regime Geral, de forma oficiosa.
  13. Termina a Requerente, peticionando dever ser julgado improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.

Em 06-10-2022 foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações.

 

  1. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos  4.º e 10.º, n.º 2, RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

  1. Matéria De Facto
  1. Factos provados

Consideram-se provados factos relevantes para a decisão da causa:

  1. A Requerente, em 20-07-2020, procedeu à entrega da Declaração Modelo 22 de IRC, no Portal das Finanças, relativa ao período de tributação decorrido de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2019, tendo declarado a opção pelo regime simplificado de tributação, no qual se mostrava enquadrada desde o ano de 2015, conforme documento 1 junto do ppa;
  2. Da referida Declaração, na qual foram declarados os rendimentos do período no valor total de 208.214,06 € e volume de negócios no valor total de 206.037,46 €,  resultou imposto a pagar no valor de 595,05 €, que foi autoliquidado e pago pela Requerente, conforme documento 2 junto do ppa;
  3. No dia 07 de Agosto de 2020, foi emitida a liquidação nº 2020 ..., notificada à Requerente, cf documento 2 junto do ppa;
  4. Por ofício de 30 de Novembro de 2021 com o nº..., a AT, por intermédio dos Serviços de Inspeção Tributária (DIT II) da Direção de Finanças de   ..., notificou a aqui Requerente para “apresentação de contabilidade, outros elementos e esclarecimentos”, instando-a a “no prazo de 10 dias, proceder à retificação da situação, conforme Processo Administrativo, cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”);
  5. A Requerente respondeu a notificação da AT, cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”);
  6. A Requerida, por meio dos serviços da inspeção da Direção de Finanças de..., deram inicio ao processo de inspeção tributaria com o n.º OI2021..., relativa ao exercício de 2019, cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”);
  7. A Requerente exerceu o seu direito de Audição, cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”);
  8. A Requerente foi notificada do ato de liquidação de Liquidação Adicional de IRC nº 2022 ... de 09.05.2022, referente ao período de Tributação: 2019, no valor de 4.677,57€, cf documento 1 junto do ppa;
  9. A ora Requerente, procedeu ao seu pagamento do imposto na data de 27 de Junho de 2022, cf documento 9 do ppa.
  1. Factos não provados

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, a), e e), RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica dos documentos juntos aos autos.

  1. Questões a decidir

Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:

  1. Declaração de ilegalidade e anulação do ato de Liquidação de IRC nº 2022 ... de 09 de Maio de 2022 (objeto imediato do PPA), no montante de € 4.677,57;
  2. Condenação da AT no reembolso deste valor, acrescido de juros indemnizatórios, e no pagamento das custas do processo.

 

  1. Matéria De Direito

No caso vertente, suscita-se ao Tribunal a apreciação sobre o enquadramento da Requerente no regimente simplificado de tributação no exercício económico do ano de 2019, pelo cumprimento dos critérios estabelecidos no artigo 86-A do CIRC, designadamente o requisito previsto na alínea a) do nº 1, com a consequente declaração de ilegalidade e anulação do ato de Liquidação de IRC nº 2022 ... de 09 de Maio de 2022 (objeto imediato do PPA), no montante de € 4.677,57.

Ora, vejamos então se assiste razão à Requerente.

Dos factos assentes resulta que a Requerente optou pelo regime simplificado de determinação de matéria coletável no ano de 2019, pois no exercício relativo ao ano de 2018 foram apurados rendimentos inferiores a 200.000,00 €, e no ano de 2019 declarou rendimentos no valor total de 208.214,06 € e volume de negócios no valor total de 206.037,46 €.

Deste modo alegou a Requerente que quanto ao exercício relativo de 2019 foi ultrapassado o limite de 200.000,00€, pelo que os efeitos da cessação do regime simplificado ocorreria após 01 de Janeiro de 2020.

A Requerida, por seu turno entendeu que a Requerente ao ultrapassar no ano de 2019 o limite de 200.000,00€ de rendimentos ilíquidos, deixou de verificar-se o requisito previsto na alínea a) do n.1 do artigo 86-A do CIRC, quanto ao período fiscal de 2019 cessando assim no período de tributação do ano de 2019 o seu enquadramento no regime simplificado, aplicando-se nesse período desde 1 de janeiro de 2019 o regime de contabilidade organizada.

Iniciamos pela análise do regime fiscal aplicável, transcrevendo-o parcialmente:

“Artigo 86.º-A(*)

Âmbito de aplicação

1 - Podem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, os sujeitos passivos residentes, não isentos nem sujeitos a um regime especial de tributação, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e que verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:

  1. Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;

(…)

6 - Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:

a) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior;

b) Seja comunicada a renúncia à aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, nos termos e prazos previstos na alínea b) do n.º 3.” (nosso negrito e sublinhado)”

Do anteriormente exposto, a questão em causa prende-se unicamente com a interpretação das normas citadas e a sua aplicação na determinação da matéria coletável no período de tributação do ano de 2019.

Quanto aos princípios gerais de interpretação da Lei, encontra-se estabelecido no artigo 9.º do Código Civil (CC) o seguinte:

“Artigo 9.º

Interpretação da lei

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

E  dispõe o art.º 11.º da Lei Geral Tributária, que a interpretação de normas fiscais obedece aos seguintes cânones:

“Artigo 11.º

Interpretação

1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.

3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4 - As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica.”

É consabido, que na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1 do CC, proíbe expressamente interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), o que só impedirá que se adotem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto». (   )

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

Quanto ao elemento objetivo, no que diz respeito às normas hermenêuticas devemos recorrer, por remissão do art.º 11.º, n.º 1 da LGT, ao previsto no Código Civil, designadamente para o que aqui interessa ao disposto no art.º 9.º, n.º 1 do C.C.

Assim a letra da lei assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, não poder “ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”[1].Também como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito”[2].

Ora, tendo presente o referente legal basilar em matéria de interpretação da norma jurídica e cotejados os diversos diplomas legais passíveis de aqui serem chamados à colação como sejam, desde logo, CIRC, não se vislumbra normativo que isolada ou conjugadamente, permita trilhar o caminho e sobretudo, a solução interpretativa a que a Requerida alude.

Isto porque, na verdade não se deteta em qualquer um dos compêndios legais vindos de referir, a existência de qualquer norma ou regra que admita uma interpretação como aquela que flui da posição veiculada pela Requerida, isto é, o legislador não efetuou qualquer menção que permita concluir que a cessação da aplicação do regime simplificado cessa no mesmo período fiscal em que o Sujeito passivo ultrapassa o limite dos 200.000€ de rendimentos.

Ora, inexistindo normativo que consinta extrair esse entendimento, pelo menos a partir da letra da lei, mais exígua fica a hipótese e interpretação sustentada pela Requerida.

Mas se é certo que da letra da norma não se colhe tal regime, importa tentar que a letra da lei constitui o ponto de partida da interpretação da norma, devendo esta servir de referente ao intérprete para com base nela poder “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”.

Assim, partir-se-á do texto da lei para densificar o espírito da lei, o pensamento, o sentido, que o texto da norma ou normas pretendem manifestar.

Sucedendo, no entanto, que em tal exercício, o intérprete está balizado pelos limites de interpretação definidos pelo artigo 9º do C. Civil, isto é, pela letra da lei, na medida em que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”;

Que o mesmo desagua em afirmar que, de entre os vários sentidos possíveis que a consideração de todos os elementos de interpretação possam sugerir ao intérprete (ou que resultem de aspetos puramente subjetivos do mesmo intérprete), não poderão ser considerados aqueles que não tenham na letra da lei alguma correspondência, ainda que mínima ou remota.

Sendo para mais igualmente pacífico que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador […] soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, razão pela qual na tarefa interpretativa caberá ao intérprete eleger o sentido e significado das normas interpretadas que mais ou melhor se aproximem do natural sentido e significado dessas mesmas normas objeto de interpretação.

É, assim, à luz destes normativos, que a questão será apreciada.

Vejamos, o legislador estabeleceu como um dos critérios na alínea a) do n.º 1 do artigo 86-A, o seguinte:“ Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;

Este critério, não merece qualquer dúvida na sua interpretação, ao vincular a opção ao regime simplificado ao cumprimento de um critério, claro, expresso da seguinte forma pelo Legislador “no período de tributação imediatamente anterior”, referindo-se à obtenção do montante no período de tributação anterior, ao ano anterior, o que nos presente autos, corresponderá ao período de tributação do ano de 2018.

Seria aliás incompreensível que para exprimir o seu pensamento legislativo num determinado sentido, o legislador tivesse recorrido a uma redação que mobiliza expressões que têm um sentido “comum” diferente daquele que efetivamente pretendia transmitir.

Motivo pelo qual o artigo 86-A no seu n.º 6 alínea a), estabelece 6 - Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:a)Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior;

Também esta norma não suscita qualquer dúvida, a verificação do cumprimento dos requisitos estabelecidos no seu n.º 1, designadamente para o presente caso, o da alínea a), ocorre apenas no decorrer do período de tributação seguinte, ou seja, no ano seguinte, já a decorrer um novo período de tributação, produzindo efeitos nesse novo período, e não retroativamente ao ano anterior.

Com efeito, o sujeito passivo manteve o regime simplificado no ano de 2019, porque cumpriu com os requisitos do n.º1 do artigo 86-A, relativamente ao período fiscal do ano de 2018, e, portanto, em 2019 cumpre com os requisitos elencados nesse normativo, podendo optar nesse ano por esse regime.

Caso não tenha sido essa a intenção do legislador, de vincular a cessação do regime simplificado, ao momento em que o sujeito passivo ultrapasse o montante anual ilíquido de rendimentos dos 200.000,00€, no período fiscal em execução, tê-lo-ia dito expressamente, feito constar essa menção, contudo não o fez e estabeleceu vários critérios ao longo do artigo 86-A, que vinculam o enquadramento do regime simplificado de tributação ao período de tributação imediatamente anterior e não ao período de tributação em execução.

Por conseguinte, a Requerente manteve-se enquadrada no regime simplificado de tributação no ano de 2019, em cumprimento dos requisitos previstos do n.1 do artigo 86-A do CIRC, em concreto na alínea a) porquanto no período de tributação imediatamente anterior, ano de 2018,  a Requerente não excedeu o montante anual ilíquido de rendimentos de 200.000€.

E, portanto, o facto de ultrapassar no ano de 2019 o limite de 200.000€ estabelecido na  alínea a) do n.1 do artigo 86-A do CIRC, não permite afastar a aplicação do regime simplificado de tributação com efeitos a 01/01/2019.

Perante o anteriormente exposto, concluiu o Tribunal que a Requerente reúne todos os requisitos  estabelecidos no artigo 86-A do CIRC, incluindo o da alínea a), que lhe permitem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável para o ano de 2019.

Pelos fundamentos expostos procede a pretensão da Requerente.

 

ii) Reembolso de valor pago acrescido de juros indemnizatórios

A Requerente pagou as quantias liquidadas e pugna pelo seu reembolso, que considera indevidamente pagas a que deve acrescer os correspondentes juros indemnizatórios.

Em linha com o definido pela lei e seguido pela jurisprudência, deve ser apurado pela Requerida, em execução de julgados, qual o montante concreto a anular e que deve ser devolvido ao Requerente, pois recai sobre a AT o dever de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade — cf. artigo 24.º, 1, b), RJAT, e artigo 100.º, LGT.

Determina o artigo 24.º, 5, RJAT, que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT - em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT -, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação identificado, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente tenha pagado indevidamente, desde 27 de Junho de 2022, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

  1. Decisão

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral, decretando-se a ilegalidade e consequente anulação do ato tributário impugnado;
  2. Condenar a Requerida na restituição da prestação tributaria paga em excesso;
  3. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados, à taxa legal em vigor, sobre a quantia indevidamente paga, desde o seu pagamento, 27 de Junho de 2022, e até efetivo e integral pagamento, tudo conforme o disposto n.ºs 2.º a 5.ºdo art.º 61.º do CPPT, à taxa legal apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.º do art.º 43.º da LGT.

Valor Do Processo E Custas

Fixa-se o valor do processo em € 4.677,57 (quatro mil seiscentos e setenta e sete euros e cinquenta e sete cêntimos) atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor da liquidação de imposto impugnada, e em conformidade fixam-se as custas, no respetivo montante de € 612,00, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. – n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.ºs 5.º, n.º, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).

 

Notifique-se.

Lisboa, 03 de Novembro de 2022

O Arbitro

Paulo Renato Ferreira Alves

 

 

 



[1] In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Baptista Machado, Almedina, 2ª reimpressão, Almedina, 9º Reimpressão,1996, pp. 189 ss.

[2] In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 9º Ed., Almedina, Lisboa, 1995, p. 382