Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 240/2022-T
Data da decisão: 2022-10-28  IVA  
Valor do pedido: € 92.206,41
Tema: IVA – Direito à dedução – Requisitos Materiais e Prova da Materialidade das Operações. Ónus da Prova. Arts. 19.º e 20.º do CIVA e 74.º da LGT
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SUMÁRIO

  1. A relação direta e imediata entre as despesas suportadas a montante e as operações tributáveis a jusante que devem ser uma manifestação da atividade económica do sujeito passivo, exigida pelos artigos 19.º e 20.º Código do IVA, para efeitos do exercício do direito à dedução, não tem de se verificar operação a operação, bastando que tais despesas possam ser consideradas despesas gerais que irão originar operações tributáveis no futuro.
  2. Os atos preparatórios e despesas gerais da atividade do sujeito passivo podem ser considerados como fazendo parte da atividade económica do sujeito passivo, podendo o IVA suportado a montante ser deduzido, desde que seja demonstrada a conexão entre tais atos/despesas e a atividade económica desenvolvida pelo sujeito passivo e, bem assim, que as mesmas são necessárias às operações tributáveis relacionadas, cumprindo-se com o plasmado no artigo 168.º da Diretiva IVA.
  3. Nos termos do artigo 74.º da LGT, cabe à Autoridade Tributária e Aduaneira o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação e cabe ao Sujeito Passivo provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros José Poças Falcão, (Presidente), Pedro Saraiva Nércio e Júlio Tormenta (Relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 15-06-2022, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

A… SGPS, doravante “Requerente”, NIPC …, com sede na Rua …, Vila Nova de Gaia, veio, em 06-04-2022, ao abrigo da alínea a) do n.º1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral para efeitos de apreciação do pedido de pronúncia arbitral (“PPA") contra o ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2021 …, no montante de 10.589,30€, emitido no seguimento do indeferimento total do pedido de reembolso de IVA/anulação do crédito de imposto do período 2020.09T, no montante de 92.206,41€ (liquidação n.º …), pretendendo a respetiva declaração de ilegalidade e anulação, bem como o reembolso do montante de imposto indevidamente pago - 10.589,30€ -, acrescido de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”).

A Requerente fundamenta a sua pretensão, em síntese, nos seguintes termos:

  1. A Requerente é um sujeito passivo de IVA, registado, à data dos factos em análise, para o exercício de atividades de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal (CAE 69200). A Requerente foi criada com o objetivo de prestar serviços de análise financeira de possibilidades de investimento a outras empresas do seu grupo empresarial, e também de vir a fazer o acompanhamento das suas participadas através da procura de novas oportunidades de negócios e parcerias e participação nas suas decisões estratégicas – atividade que tem vindo a exercer desde 2017.
  2. De referir que, dado o modelo de negócio adotado pela Requerente, que assenta numa lógica de apoio inicial a novos projetos de investimento com o objetivo de rentabilização no longo prazo, a sua atividade carateriza-se por significativos investimentos iniciais no âmbito da prospeção de mercado (inputs), os quais, dependendo do sucesso e efetivação das operações perspetivadas, podem ou não traduzir-se na possibilidade de faturação dos seus serviços às restantes empresas do grupo (outputs). Os serviços prestados pela Requerente (outputs – operações ativas) são sujeitos a IVA e dele não isentos nos termos do artigo 1.º n.º 1 alínea a) e artigo 4.º n.º 1 do Código do IVA, pelo que a Requerente liquidou IVA, até final de 2021, em todas as faturas emitidas a clientes, a saber:
  • Fatura …/00001, de 05/09/2019, no valor 92.525,00€, acrescido de IVA de 21.280,75€.
  • Fatura …/00001, de 31/12/2020, no valor de 92.525,00€, acrescido de IVA de 21.280,75€.
  • Fatura …/00002, de 31/12/2021, no valor de 4.000,00€, acrescido de IVA de 920,00€.
  • Fatura …/00003, de 31/12/2021, no valor de 12.000,00€, acrescido de IVA de 2.760,00€.
  1. A Requerente deduziu a totalidade do IVA suportado nos inputs da sua atividade, nos termos do artigo 20.º n.º 1 alínea a) do Código do IVA.
  2. Na declaração periódica de IVA do período 2020.09T, a Requerente solicitou o reembolso do crédito de IVA acumulado até essa data, resultante da diferença entre o imposto liquidado e o imposto deduzido, no montante de 92.206,41€.
  3. Na sequência do pedido de reembolso, foi desencadeado um procedimento de inspeção tributário interno, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2020…, relativo ao ano de 2020. De acordo com o RIT[1]desde o início do ano de 2017 até ao período do pedido de reembolso (…), apenas foram realizadas operações ativas sujeitas a este imposto no período de 2019.09T”, defendendo os SIT que “os serviços subjacentes ao crédito de imposto (…) dizem respeito a serviços que o sujeito passivo efetivamente não repercutiu sobre as sociedades participadas, ou sobre qualquer outro cliente, isto é, não deu origem à realização de transmissões de bens e/ou prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas” e deste modo, os mesmos concluem que “terá de apenas considerar-se dedutível o montante de imposto que foi suportado para a realização das prestações de serviços sujeitas a IVA, que no caso em concreto, consubstancia-se na aceitação da dedução de montante idêntico ao imposto liquidado em setembro de 2019, pelo que a correção não deverá ultrapassar o montante do crédito de imposto apurado no final do terceiro trimestre de 2020”.
  4. Assim, entenderam os SIT[2] que o IVA incorrido pela Requerente apenas é dedutível até ao exato montante de IVA liquidado nas faturas emitidas aos seus clientes até 2020.09T.
  5. A Requerente exerceu o seu Direito de audição em sede de procedimento inspetivo defendendo que a posição da AT não tem respaldo na legislação europeia (mais concretamente na Diretiva IVA – Diretiva 2006/112/CE) transposta para o ordenamento jurídico português, nem na jurisprudência europeia (TJUE[3]), o qual não mereceu acolhimento pela AT.
  6. A AT manteve a sua posição vertida no Projeto de RIT, convertendo-o em definitivo, tendo anulado o crédito de imposto existente a 2020.09T no montante de 92.206,41€ (liquidação n.º 35853290), o reembolso de IVA no mesmo montante e emitido a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2021 035307545 (ao abrigo do artigo 87.º do CIVA), referente ao período 2021.12T, no montante de 10.589,30€.
  7. A Requerente  interpôs reclamação graciosa pugnando que os argumentos usados pela AT em sede de IVA em termos de correções técnicas que estão na origem da liquidação de IVA controvertida, assentam em pressupostos de facto e de direito erróneos no que diz respeito ao exercício do direito à dedução em sede de IVA, quer face à legislação vigente a nível nacional e europeu, quer em sede de jurisprudência nacional e europeia assim como em termos doutrinais.
  8. Igualmente em sede de reclamação graciosa, voltou a enfatizar a especificidade do modelo de negócio, nomeadamente, o facto de a sua faturação estar dependente do sucesso e efetivação das operações propostas aos seus clientes, tendo disponibilizado exemplos de contratos de prestação de serviços celebrados nesse âmbito para justificar a situação de crédito de imposto aquando do pedido de reembolso de IVA (2020.09T).
  9. Igualmente em sede de reclamação graciosa, em termos de ónus de prova previsto no artigo 74.º n.º1 da LGT, veio defender que as despesas incorridas a nível das suas operações passivas (inputs) visam a realização de operações tributáveis, competindo à AT, fazer a prova de que estavam verificados os pressupostos legitimadores da sua atuação ao abrigo do artigo 87.º do CIVA, o que a AT não fez, uma vez que a mesma  não pôs em causa que as operações incorridas pela Requerente a montante (inputs) visavam a realização de operações tributáveis. A AT não identificou quais os serviços adquiridos pela Requerente que não reuniam as condições para não serem elegíveis quanto à dedutibilidade de IVA, limitando-se a aceitar duma forma indiferenciada a dedutibilidade do IVA suportado até ao montante do IVA liquidado até à data do pedido de reembolso, ignorando os elementos de prova apresentados pela Requerente e a fundamentar a sua posição quanto ao indeferimento da reclamação graciosa com os mesmos fundamentos vertidos no SIT. O mesmo tipo de argumentos foi usado em sede de petição inicial.
  10. Conclui que, face ao exposto, o ato de liquidação controvertido é ilegal devendo ser anulado, e, consequentemente, ser reembolsada do montante de 92.206,41€ assim como do imposto indevidamente pago acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.   

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 07-04-2022, e subsequentemente notificado à AT.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º n.º 1 e do artigo 11.º n.º 1 alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 27-05-2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 15-06-2022, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.

A Requerida apresentou a sua Resposta/Contestação, com defesa por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”) em 02-09-2022, alegando, em síntese, o seguinte:

  1. A causa material controvertida nos presentes autos prende-se com o indeferimento do pedido de reembolso de IVA do período de 2020.09T no montante de 92.206,41€, decorrente de um ato inspetivo desencadeado na sequência do pedido de reembolso referente ao período 2020.09T credenciado pela Ordem de Serviço (OI) n.º 2020…, tendo igualmente dado origem à liquidação n.º 2021 … nos termos do artigo 87.º do CIVA, em resultado da correção automática da declaração periódica referente ao período 2020.12T, de que resultou falta de entrega do imposto em falta no montante de 10.589,30€.
  2. A Requerente apresentou reclamação graciosa a qual foi indeferida nos seguintes termos: “[…] as despesas só conferem direito à adoção do IVA quando as mesmas são utilizadas para a obtenção de receitas de tributação a jusante, o que não é o caso, porque a ora reclamante opera desde 2011.”
  3. Da análise efetuada em sede inspetiva, com exceção do 3.º trimestre de 2019, a Requerente não efetuou qualquer outra operação ativa sujeita a IVA desde, pelo menos, o início de 2017.
  4.  Por outro lado, a falta de atividade económica sujeita a IVA e dele não isenta conduz à impossibilidade de dedução de imposto, nos termos de previstos no artigo 20.º n.º 1 do CIVA, e, por isso, o imposto suportado pela Requerente não pode conferir o direito à dedução. Adicionalmente o IVA suportado em atos preparatórios que antecedem a fase operativa da empresa só será dedutível, se essas despesas forem utilizadas para a obtenção de receitas de tributação a jusante (através da liquidação de imposto - IVA liquidado).
  5. Ora, no caso controvertido, a única operação ativa (outputs com direito à liquidação de imposto), entre 2017 e setembro de 2020, período em que formalizou o pedido de reembolso de IVA, está titulada pela fatura …/00001, de 05-09-2019 (base tributável: no valor 92.525,00€, acrescido de IVA de 21.280,75€) com um hiato temporal de oito anos relativo ao início de atividade da Requerente.   
  6.   O IVA suportado nas suas operações passivas (inputs) e que a Requerente exerceu o direito à dedução e que está na origem do reembolso pedido, diz respeito, fundamentalmente, a faturas emitidas pela B…, Lda e C…-SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÀRIOS, S.A. datadas de 2019 e 2020, não podem titular atos preparatórios devido ao hiato temporal decorrido relativamente ao início de atividade da Requerente (2011), fundamentando a sua posição em legislação europeia (Tribunal de Justiça da União Europeia-TJUE).
  7. Adicionalmente a Requerida defende que a Requerente não provou que todos os inputs em que incorreu (relativamente aos quais exerceu o direito à dedução de IVA e que estão na base do reembolso de imposto) estão diretamente conexionados com os serviços prestados faturados (dando origem a liquidação de imposto).
  8. Da análise efetuada em sede inspetiva, quer aos elementos de escrita, quer das declarações prestadas, ficou evidente que a Requerente, cuja atividade registada é o “Exercício de Atividades de Contabilidade, Auditoria e Consultoria Fiscal - CAE 69200”, procedeu à dedução do imposto suportado com a aquisição de prestações de serviços sem comprovar a correlação daqueles com a obtenção de rendimentos da sua atividade, estando assim prejudicado o exercício do direito à dedução.
  9. Uma vez que a Requerente não fez a prova da relação direta dos inputs com os outputs, a solução dos SIT (considerar apenas o imposto dedutível até ao montante do imposto liquidado a 2020.09T), respeita o princípio da proporcionalidade e da neutralidade, na medida em que aceita o pedido de reembolso até ao limite do imposto liquidado na única prestação de serviços titulada pela fatura …/00001, de 05-09-2019 à data do pedido de reembolso 2020.09T.
  10. A emissão, desde 2017 a 2021, de apenas quatro faturas a clientes com que detém relações especiais (B…, Lda e C…-SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÀRIOS, S.A.) apenas permite retirar uma de duas conclusões:
    • Ou a Requerente não exerce atividade, o que parece ser o mais verosímil, ou
    • Exercendo-a efetivamente, não líquida imposto nem cumpre as formalidades essenciais previstas nos artigos 7.º, n.º 1, al. b) e 8.º, do CIVA.  

 

  1. Por conseguinte, estando em causa a invocação de um direito – direito à dedução do imposto, e fundamentando a AT a sua não dedutibilidade nos termos da lei, cabe ao sujeito passivo, ora Requerente, o ónus da prova dos factos por si invocados – dedução do imposto em cumprimento dos requisitos legais, ao abrigo do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, fundamentando a sua posição com jurisprudência do TCAS[4] (artigos 34 a 37 da Resposta).
  2. Assim, sendo objetivo da Requerente o exercício de prestações de serviço de análise financeira junto de duas empresas participadas – D… COMERCIO DE UTILIDADES (“D…”) e E… DISTRIBUIÇÂO DE MOÇAMBIQUE, S. A.(“E…”), celebrou contratos de prestação de serviços intitulados de “CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ANÁLISE FINANCEIRA”, datados de 02-01-2017. Até 2021, não há qualquer fatura emitida às duas sociedades, afigurando-se que a Requerente desde 2017 não exerce atividade para a qual está registada para efeitos fiscais. Nada foi esclarecido pela Requerente quanto a este aspeto. As únicas faturas emitidas (quatro) desde 2017 a 2021 são à sociedade B…, Lda (sociedade não participada) não pertencente ao grupo empresarial a que a Requerente pertence.
  3. Tendo em conta a factualidade descrita acima, defende que há uma ausência de elementos probatórios por parte da Requerente que justifiquem que os inputs incorridos (aquisição de serviços) tenham uma relação direta com os outputs (prestação de serviços).
  4. Conclui a Requerida, sustentando que a Requerente não demonstrou que a aquisição desses serviços se destina à prossecução da sua atividade. Destacando-se aqui novamente que este requisito é essencial ao direito à dedução, pois só confere direito à dedução o imposto suportado em operações com vista à realização da atividade.
  5. Conclui pela improcedência do pedido arbitral, com as devidas consequências legais.

No dia 07-09-2022, foi proferido despacho no sentido de dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, à luz do disposto no artigo 16.º alínea c) do RJAT e do princípio da prática de atos inúteis, tendo em conta que se trata de um processo não passível de uma definição de trâmites processuais específicos e da não existência de exceções ou questões prévias a apreciar e decidir. As Partes foram notificadas para apresentarem, em simultâneo, alegações escritas finais tendo o Tribunal indicado a data previsível para prolação da decisão arbitral, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente pela Requerente até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).

A Requerente apresentou as suas alegações em 27-09-2022, reafirmando, no essencial, as posições assumidas nos respetivos articulados.

A Requerida, tendo sido notificada das alegações apresentadas pela Requerente, apresentou um requerimento ao Tribunal, em 28-09-2022, no qual defendeu que o articulado apresentado pela Requerente, não é um articulado de alegações, mas sim uma resposta à Contestação, através da qual a Requerente adianta (e perspetiva) outros argumentos relativamente aos quais não foi facultada à Requerida a hipótese de defesa. Adicionalmente, a Requerida defende que, ao abrigo do artigo 423.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, e do artigo 10.º n.º 2 alínea j) do RJAT, o documento apresentado em anexo às alegações da Requerente deve ser desentranhado por ser extemporâneo e não ser imprescindível para a descoberta da verdade material. Caso não seja esse o entendimento do Tribunal, a Requerida requereu um prazo de 10 dias, para se pronunciar sobre o conteúdo de tal documento.

Por despacho de 05-10-2022, notificado às partes em 06-10-2022, o Tribunal decidiu pelo indeferimento da junção aos autos do documento em anexo às alegações da Requerente, determinando o seu desentranhamento dos autos. Relativamente às alegações apresentadas pela Requerente, o Tribunal decidiu que tomará em conta as mesmas na parte em que constituam acervo argumentativo e conclusões, de facto e de direito da discussão da causa e das provas apresentadas admitidas.

 

  1. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar da legalidade de atos de liquidação de IVA e juros compensatórios, nos termos do artigo 2.º n.º 1 alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º n.º 1 alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º n.º 1 alínea a), do CPPT, contado da data de notificação de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente com vista à anulação da liquidação em epígrafe, fixada em 6 de janeiro de 2022, tendo a presente ação sido proposta em 06 de abril de 2022.

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Matéria De Facto

 

§3.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:

  1. A Requerente é uma Sociedade Anónima, residente em território nacional, registada para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) desde 26-08-2011, estando enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral para efeitos de IVA e no regime geral de tributação para IRC, para o exercício de atividade económica com o CAE 69200- ACTIVIDADES CONTABILIDADE e AUDITORIA e CONSULTORIA FISCAL - cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).
  2. A Requerente apresentou dois (2) contratos sob o nome de “Contrato de Prestação de Serviços de Análise Financeira” celebrados com a D… Comercio de Utilidades, Ltda (doravante designada “D…”), sociedade de direito brasileiro, datado 02-01-2017, e a E… Distribuição de Moçambique, S.A. (doravante designada “E…”) (sociedade de direito moçambicano), datado de 02-01-2017. Da leitura do clausulado dos contratos infere-se, nomeadamente, que as duas sociedades, brasileira e moçambicana, são participadas da Requerente. Os contratos têm por objeto a “Análise Financeira de possibilidades de investimento e oportunidades de negócio” e de “Gestão Executiva”. Os contratos são válidos por 10 anos, com renovação automática por iguais períodos, salvo disposição em contrário por escrito de qualquer uma das partes. Quanto à remuneração a auferir pela Requerente sob a forma de honorários, a mesma é calculada através de uma percentagem de 2% do retorno líquido após payback dos investimentos efetuado pelas participadas, em resultado dos serviços prestados pela Requerente e a faturação desses honorários serão faturados só após as participadas apresentarem resultados líquidos positivos nas contas anuais aprovadas.
  3. Entre 2017 e 2020, inclusive, a Requerente não faturou honorários às suas participadas D… e E…, não constando nos autos quaisquer faturas a titular prestação de serviços efetuados pela Requerente às duas participadas acima mencionadas.
  4. Referente ao 3.º trimestre de 2020 (2020.03T), a Requerente apurou na declaração de IVA um montante de IVA a recuperar de 92.206,41€[5], tendo solicitado o reembolso do mesmo, - cf. RIT.
  5. Com o objetivo de análise dos pressupostos do pedido de reembolso, foi realizado um procedimento inspetivo interno ao Requerente, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2020… emitida a 9 de novembro de 2020 – cf. RIT.
  6. A Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção pelo ofício n.º 2021S…, de 12-01-2021, contendo a proposta de correções aritméticas no montante de 92.206,41€ de IVA correspondendo aquele montante à anulação do crédito de imposto apurado na declaração periódica referente ao período de 2020.09T, do indeferimento do pedido de reembolso acompanhado da correção a ser efetuada pela Requerente na declaração periódica referente ao período 2020.09T através do preenchimento  no campo 41 – Regularizações a Favor do Estado da referida declaração periódica de imposto no montante de 92.206,41€. A AT fundamentou a anulação do crédito de imposto e consequente indeferimento do reembolso solicitado ao abrigo do disposto no artigo 19.º do CIVA, onde está plasmado o exercício do direito à dedução, e do artigo 20.º do CIVA, que estabelece as condições/requisitos para o exercício do direito à dedução, ou seja, “só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas”. Ora, segundo a AT, a Requerente desde 2017 até 2020.09T, período em que pediu o reembolso no montante de 92.206,41€, deduziu todo o imposto (IVA) suportado nas suas operações passivas (inputs) relacionadas com aquisição de serviços e os mesmos não foram repercutidos sobre as sociedades participadas pela Requerente ou sobre qualquer cliente. A única operação ativa efetuada pela Requerente no período compreendido entre 2017 e 2020.09T, foi efetuada em 2019.09T pela prestação de serviços de consultoria à sociedade B…, LDA com o NIF …, titulada pela fatura n.º A/… de 05-09-2019 no valor de 92.525€ a que acresceu IVA no montante de 21.280,75€, pelo que, segundo a AT, a Requerente não exerceu qualquer atividade económica no período compreendido entre 2017 e 2020.09T, com exceção do período 2019.09T– cf. RIT.
  7. A Requerente exerceu o direito de audição prévia em sede de procedimento inspetivo, cf. DOC. 6 anexo à PI, manifestando a não concordância com as correções propostas, uma vez que as operações subjacentes ao imposto deduzido reúnem requisitos subjetivos, objetivos, formais e temporais para o exercício do direito à dedução de IVA, cf. análise desenvolvida artigo 9.º do exercício do direito de audição prévia e que se dá por inteiramente reproduzida quanto ao seu teor, e, que sob pena de violação do princípio da neutralidade, o IVA suportado deve ser dedutível. A AT contra-alegou invocando quer jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS)[6] ao abrigo da qual, o IVA suportado a montante na aquisição de bens e serviços só é dedutível (de acordo com o artigo 20.º n.º1 do CIVA) se esses bens e serviços forem pertinentes e utilizados a jusante nas atividades económicas dos sujeitos passivos, quer jurisprudência europeia (TJUE) ao abrigo da qual a atividade económica exercida pelos sujeitos passivos é composta por uma série de atos consecutivos, onde se incluem os atos preparatórios, que antecedem a fase operativa da atividade desenvolvida pelos sujeitos passivos, pelo que o IVA suportado com esses atos preparatórios conferem o direito à dedução desde que haja uma relação direta entre a aquisição desses bens e serviços (operações passivas/inputs) com a atividade económica desenvolvida pelos sujeitos passivos sob a forma de bens e serviços (operações ativas/outputs), o que no caso controvertido não aconteceu.
  8. A Requerente submeteu uma declaração de substituição de IVA referente ao 3.º trimestre de 2020, 2020.09T, onde declarou um crédito de imposto a reportar no montante de 92.206,41€ e cancelando o pedido de reembolso para o período seguinte 2020.12T, cf. DOC.3 anexo ao Direito de Audição Prévia.
  9. Após exercício do direito de audição pela Requerente, a AT emitiu o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), mantendo as correções propostas na sua totalidade constantes no projeto de relatório de inspeção, cf. RIT e um documento de correção (n.º …), DOC. 2 anexo à PI, a anular o crédito de imposto a nível da conta corrente de IVA.
  10. A Requerente foi notificada através da liquidação adicional n.º …, de 24-3-2021 da anulação do crédito de imposto a reportar para o período seguinte no montante de 92.206,41€, cf. DOC.2 anexo à PI.  
  11. A Requerente foi notificada através da liquidação adicional n.º 2021 …, de 24-02-2021, no montante de 10.589,30€, de imposto a pagar referente ao período 2020.12T resultante da anulação do crédito de imposto a reportar no montante de 92.206,41€, cf. DOC.2 anexo à PI e cf. DOC. 1 anexo à reclamação graciosa.
  12. O imposto no montante de 10.589,30€ foi pago em tempo, cf. DOC. 9 anexo à PI.
  13. Em 05-04-2021, a AT foi notificada do indeferimento do pedido de reembolso de imposto efetuado pela Requerente, cf. DOC. 2 anexo à reclamação graciosa
  14. A Requerente emitiu ente 2019 e 2020 à C…, Lda as seguintes faturas com a seguinte descrição “20016- Serviços de consultoria”:
    • Fatura …/00001, de 05-09-2019, no valor de 92.525€, acrescido de IVA (liquidado) no montante de 21.280,75€, totalizando 113.805,75€
    • Fatura …/00001, de 31/12/2020, no valor de 92.525€, acrescido de IVA (liquidado) no montante de 21.280,75€, totalizando 113.805,75€
  15. Relativamente ao período 2019-2020, só foram emitidas as faturas mencionadas no considerando acima, não constando nos autos mais faturas referentes ao período 2019-2020.
  16. Conforme é referido no RIT, os principais fornecedores da Requerente em termos de serviços de consultoria, de advocacia, de assessoria imobiliária, contabilidade, fiscalidade, tesouraria, tecnologias de informação, recursos humanos, planeamento e controlo, são, fundamentalmente, os seguintes fornecedores:
    • C…; NIF: …
    •  D…-SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS; S.A., NIF: …
  17. No seguimento do indeferimento total do pedido de reembolso de IVA reportado a 2020.2019T no montante de 92.206,41€ resultante da anulação do crédito de imposto reportado à mesma data e no mesmo montante, a Requerente relativamente ao último trimestre de 2020, 2020.12T, foi notificada de uma liquidação adicional de IVA (liquidação n.º 2021 …, de 2021-02-04) no montante de 10.589,30€, tendo sido pago o mesmo em tempo.
  18. A Requerente apresentou reclamação graciosa (n.º …) ao abrigo da qual solicita a anulação da liquidação de IVA[7] no montante de 92.206,41€ (anulação de crédito de imposto), a anulação da liquidação de IVA no montante de 10.589,30€ e consequente restituição do respetivo imposto pago acrescido de juros indemnizatórios por erro imputável aos serviços, arguindo que a correção do IVA levada a cabo pela AT, através da anulação do crédito de imposto (IVA) no montante de 92.206,41€, deu origem à liquidação controvertida (liquidação n.º 2021 …) a qual assenta em pressupostos de facto e de direito erróneos no que concerne ao direito à dedução de IVA incorrido no âmbito da sua atividade tributável, com base nos seguintes fundamentos:
  • explicou, detalhadamente, o seu modelo de negócio, nomeadamente o facto de a sua faturação estar dependente do sucesso e efetivação das operações propostas aos seus clientes, e disponibilizou exemplos de contratos de prestação de serviços celebrados nesse âmbito (atrás juntos como Documento 4), justificando assim a circunstância de se encontrar, à data dos factos, numa situação de crédito de IVA (esclarecimentos que, de resto, os SIT nunca solicitaram no decorrer do procedimento inspetivo);
  • demonstrou, à luz da jurisprudência comunitária e nacional, que o IVA incorrido para a realização de operações tributáveis (que, como não é posto em causa pelos SIT, são as únicas que a Requerente desenvolve) confere direito à dedução imediatamente e independentemente daquele que venha a ser o resultado dessas despesas e do período temporal que medeie entre a sua realização e as operações tributáveis (subsistindo, mesmo que, por motivos alheios à vontade do sujeito passivo, tais operações nunca venham a realizar-se); e

 

  • relembrou, relativamente ao ónus da prova de que as despesas incorridas visam a realização de operações tributáveis, que, conforme jurisprudência assente, quando a liquidação adicional de IVA tem por fundamento o não reconhecimento de deduções declaradas pelo contribuinte, compete à Autoridade Tributária fazer a prova de que estão verificados os pressupostos legitimadores da sua atuação constantes do artigo 87.º do CIVA, sendo que os SIT não colocaram em causa que as despesas incorridas visassem a realização de operações tributáveis, pois, se assim fosse, teriam que ter identificado, de entre os serviços adquiridos pela Requerente, quais aqueles cuja dedutibilidade do IVA não era aceite, em vez de se limitar a aceitar a dedutibilidade indiferenciada do IVA até ao montante do imposto liquidado pela Requerente à data da inspeção, independentemente da natureza e finalidade das despesas abrangidas nesse montante. “
  1. A Requerente foi notificada, em 29 de novembro de 2021, para exercer, no prazo de quinze dias, o direito de audição prévia quanto ao projeto de indeferimento da reclamação graciosa, não tendo exercido o mesmo e tendo, assim, a reclamação graciosa sido indeferida.
  2. Inconformada com os atos tributários de IVA acima identificados, a Requerente apresentou no CAAD, em 06-04-2021, pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação n.º …, no montante de 92.206,41€, e n.º 2021 …, no montante de 10.589,30€, a restituição do imposto pago indevidamente no montante de 10.589,30€ e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios por erro imputável aos serviços.

 

§3.2. Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

§3.3. Fundamentação da matéria de facto

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal.

 

 

 

  1. Matéria de Direito

 

§4.1. Delimitação das questões a decidir:

Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:

  1. Ilegalidade do ato de liquidação de IVA n.º …, de 24-03-2021, no montante de 92.206,41€, por desconsiderar, com alegado erro nos pressupostos de facto e de direito, a dedução do imposto incorrido pela Requerente, inscrito na declaração periódica referente ao terceiro trimestre do ano 2020 (v. artigos 19.º, 20.º, n.º 1 Código do IVA, 55.º e 74.º da LGT);
  2. Ilegalidade do ato de liquidação de IVA n.º 2021 …, no montante de 10.589,30€, decorrente da desconsideração por parte da AT, por alegado erro nos pressupostos de facto e de direito, do crédito de imposto no montante de 92.206,41€ inscrito pela Requerente na declaração periódica de IVA referente ao período de 2020.09T e consequente restituição do imposto pago indevidamente;
  3. Direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

§4.2. Sobre a ilegalidade da desconsideração das deduções do IVA com fundamento na violação dos artigos 19º, 20º do CIVA (liquidação adicional n.º …, de 24-03-2021, no montante de 92.206,41€)

Atendendo à posição das partes, suscita-se ao Tribunal a apreciação da alegada não dedutibilidade do IVA, ao abrigo do disposto nos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA.

A Requerida entendeu que os requisitos legais constantes dos artigos 19º, 20º do CIVA não foram cumpridos relativamente ao montante do crédito de imposto de 92.206,41€, pela simples razão que entre 2011 (a Requerente está inscrita desde 26-08-2011 para efeitos de IVA, cf. RIT) e o terceiro trimestre de 2020 (data em que foi pedido o reembolso de IVA no montante de 92.206,41€), a única operação ativa desenvolvida pela Requerente está titulada pela fatura …/00001, de 05-09-2019, em que liquidou IVA no montante de 21.280,75€. Adicionalmente, a propósito de atos preparatórios, a Requerida chama à colação jurisprudência europeia (TJUE) invocando o Processo C-280/10 em que nas conclusões do advogado-geral PEDRO CRUZ VILLALÓN os atos preparatórios são aqueles que são “adotados com o objetivo de ser exercida uma atividade sujeita a IVA”, mas, em que “ainda não existe uma liquidação do imposto que permita ao sujeito passivo deduzir o IVA suportado”; por outro lado, no acórdão de 11-07-1991 referente ao processo C-97/90 entende-se que “as atividades preparatórias, como a aquisição de meios de exploração, devem ser consideradas atividades económicas na acepção desse artigo” complementando a sua análise do que se deve entender como atos preparatórios, invocando o acórdão de 19-02-1996 referente ao processo C-110/90, em que o TJUE considerou que “as primeiras despesas de investimento efectuadas tendo em vista a formação de uma empresa sejam consideradas actividades económicas” sendo que “(…)  [M]esmo as primeiras despesas de investimento efectuadas para a formação de uma empresa podem ser consideradas actividades económicas”. Tendo em conta o que a jurisprudência europeia, através do TJUE, entende por atos preparatórios, a Requerida sustenta que os mesmos têm a ver com atos prévios praticados no início de uma atividade económica e que se reputam necessários ao desenvolvimento, ao exercício e à futura prestação de serviços por um sujeito passivo aos seus clientes. Mais invoca que, no caso controvertido, o valor do IVA cujo reembolso é solicitado diz respeito a despesas que não serviram para dotar a Requerente como apta para uma futura prestação de serviços, defendendo que, quando foi emitida a fatura …/0001, em 2019, a Requerente já se encontrava dotada de todos os meios técnicos e humanos para prestar aqueles serviços de consultoria. Por outro lado, sustenta que, mesmo no início de atividade da Requerente, relativamente aos custos suportados a titulo de atos preparatórios, a Requerente teria que comprovar a intenção de exercer uma atividade económica ”confirmada por elementos objetivos”, cf. Acórdão do TJUE no processo C-42/2019, o que a Requerente não logrou comprovar pelo menos desde 2017 até ao pedido de reembolso do imposto, 2019.09T. Para a Requerida, a Requerente não provou que todos os “inputs” em que incorreu, e que estão na origem do pedido de reembolso, estejam diretamente conexionados com a prestação de serviços faturados. Assim, atendendo ao princípio da proporcionalidade e da neutralidade presentes no IVA, do total do imposto suportado, o mesmo só é dedutível na exata proporção do montante de IVA liquidado constante na fatura …/00001, de 05-09-2019, levando à desconsideração do montante de IVA suportado de 92.206,41€, uma vez que as despesas que deram origem ao reconhecimento de crédito de imposto, não têm relação direta com o serviço prestado à B… titulado pela referida fatura …/00001 e que mesmo relativamente à adquirente de serviços – B… - a Requerente não conseguiu fazer a relação direta das despesas necessárias para a prestação de serviços efetuada à B…. Reforça a sua posição com base no RIT: o “contribuinte, ao explicar a atividade da empresa, apenas menciona de forma genérica, o acompanhamento das sociedades participadas e a análise de possibilidades de investimentos, ou seja, não faz alusão a qualquer prestação de serviços sujeita a imposto e dela não isenta.” O facto de a Requerente ter emitido, no período entre 2017 e 2021, quatro faturas (identificadas no artigo 10.º da PI[8]), das quais três se reportam a períodos posteriores a 2020.09T (período em que pediu o reembolso de imposto) e todas elas têm como adquirente de serviços de consultoria uma entidade que é seu fornecedor de serviços e nenhuma participada sua, impõe uma de duas conclusões:

  • Ou a Requerente não exerce a atividade correspondente ao seu CAE e limita-se a gerir participações sociais de acordo com o regime jurídico das SGPS, ou
  • Exerce a atividade constante do seu CAE, mas não liquida imposto, nem cumpre as formalidade essenciais previstas no CIVA, violando os artigos 7.º n.º 1 alínea b) e 8.º, ambos do CIVA.

Adicionalmente, em termos de ónus da prova, a Requerida defende que a Requerente não cumpriu com o ónus da prova como lhe competia ao abrigo do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, socorrendo-se de jurisprudência do TCAS[9] . Mais invoca que os contratos celebrados com as suas participadas D… e E… - com o propósito de exercer uma atividade económica de prestação de serviços nas áreas definidas no seu CAE -, deram apenas origem à fatura …/0001, datada de 05-09-2019, cujo adquirente se serviços foi a B…, Lda, não tendo a Requerente prestado qualquer esclarecimento adicional.

Defende ainda a Requerida que, de acordo com o artigo 20.º n.º1 do CIVA, só há direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos ou utilizados pelo sujeito passivo para a transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas, implicando isso, que tenha de haver uma relação direta e imediata com as operações sujeitas a imposto a jusante. Mais alega a Requerida que, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, do Código do IVA, o imposto suportado nas operações passivas só pode ser deduzido, contanto que o mesmo se concretize na aquisição de bens e serviços que se destinem à realização de operações tributáveis ativas, isto é, os bens e serviços (a jusante) deverão estar diretamente relacionados com o exercício da atividade do sujeito passivo. Em termos do caso concreto controvertido, alega a Requerida que só relativamente aos serviços de consultoria constantes na fatura …/00001 é que se permite fazer a conexão entre os serviços obtidos a montante e os serviços prestados a jusante, razão pela qual entende não estarem reunidos os pressupostos para a dedução de IVA nos restantes serviços adquiridos a montante pela Requerente.

Vejamos

O que está em causa no caso controvertido é saber quais os requisitos materiais para efeitos do exercício do direito à dedução de IVA. Como se sabe, o princípio da neutralidade em termos de IVA, é um princípio fundamental e basilar neste imposto.

Estabelece o artigo 168.º da Diretiva IVA[10], naquilo que é relevante para o caso controvertido, que:

Artigo 168.º

Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

  1. O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

o qual foi transposto, em parte, pelo artigo 20.º n.º1 alínea a) do CIVA

“Artigo 20.º

Operações que conferem o direito à dedução

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

podendo concluir-se que o sujeito passivo pode deduzir o IVA suportado no Estado-membro em que se encontra estabelecido nas transmissões de bens e prestações de serviços relativos às suas operações passivas (aquisição de bens e serviços) desde que “os bens e/ou serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…)”. É, pois, preciso que haja um nexo causal entre o input e o output tributado para que o IVA suportado a montante (inputs) seja dedutível em conformidade com o princípio da neutralidade a nível de IVA, existindo abundante jurisprudência europeia a defender esta causalidade. No entanto, levanta-se a questão de se saber se estamos perante um requisito material absoluto, isto é, se o direito à dedução pode ser limitado ou não?

            Ora, conforme invocou a Requerente, a jurisprudência europeia já veio afirmar que não, defendendo que é admitido o direito à dedução, mesmo não havendo uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante, desde que os gastos suportados a montante façam parte das despesas gerais do sujeito passivo. De facto, entre a jurisprudência europeia mencionada pela Requerente, importa citar o acórdão SVEDA UAB, de 22 de outubro de 2015, C-126/14 ECLI:EU:C:2015:712, n.º 28, nos termos do qual: “o Tribunal de Justiça também admitiu um direito a dedução do IVA a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando as despesas incorridas fazem parte das despesas gerais desse sujeito passivo e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo sujeito passivo. Estas despesas têm, com efeito, uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo (v., neste sentido, acórdãos Investrand, C‑435/05, EU:C:2007:87, n.° 24, e SKF, C‑29/08, EU:C:2009:665, n.° 58).“. Por outro lado, importa aferir-se se, para efeitos de dedução do IVA suportado, é necessária uma relação direta e imediata com uma determinada operação a jusante. A resposta também é negativa, existindo doutrina e jurisprudência arbitral nesse sentido, isto é, no sentido de não ter de se estabelecer para cada operação a montante, uma relação direta e imediata com uma operação tributável a jusante, conforme a Requerente destaca nos artigos 33.º e 34.º da PI.

Outro aspeto a ter em conta é o momento em que pode ser exercido o direito à dedução de IVA, ou seja, se o IVA suportado a montante só pode ser dedutível quando houver operações tributáveis a jusante. A resposta dada pela jurisprudência europeia é negativa, conforme referido pela Requerente no artigo 36.º da PI e que leva a ter que se responder igualmente à questão de se saber se os atos preparatórios são considerados como uma atividade económica na aceção do plasmado no artigo 9.º da Diretiva IVA. A resposta dada, mais uma vez, pela jurisprudência europeia é positiva, conforme a Requerente refere nos artigos 37.º a 42.º da PI, e como tal, o IVA suportado nesses atos preparatórios, é dedutível. Refira-se que, também a nível da jurisprudência nacional, já se entendeu que “a lei  não faz depender o exercício do direito de dedução de qualquer prazo para a realização das operações tributáveis a contar da data em que foi suportado o imposto a montante “ e que “ Decorre das circunstâncias do caso dos autos que a recorrente adquiriu os bens e os serviços de investimento em causa com a intenção de exercer uma atividade económica e agiu, por conseguinte, enquanto sujeito passivo ainda que não possa invocar operações tributáveis efetuadas a jusante deve, de modo a garantir a neutralidade da carga fiscal, ter a possibilidade de tomar em consideração as operações sub judice no montante da dedução do IVA, a fim de se desonerar do custo do IVA ligado às operações de investimento efectuadas para o fim das operações e tendo em vista a atividade da recorrida” (Acórdão do TCAN, proferido em 14/2/2008 no processo n.º 308/01). Também o TCAS, através de acórdãos recentes, 2020 e 2021 - em que a AT negou o direito à dedução de IVA a um contribuinte por este não ter apresentado operações tributáveis -, manteve a orientação do TCAN, conforme a Requerente refere nos artigos 45.º a 48.º da PI.

Tendo em conta o acima descrito, o exercício do direito à dedução é essencial ao funcionamento do imposto para garantir a neutralidade, isto é, pretende-se que os sujeitos passivos não vejam os seus produtos e atividades onerados através da via fiscal. Por outro lado, o IVA suportado no âmbito da atividade económica deve ser dedutível, podendo ser imediatamente deduzido, quer quando está relacionado duma forma direta e imediata com as suas operações tributáveis quer, na falta desta relação, quando o sujeito passivo realize operações passivas (inputs) que possam ser consideradas despesas gerais que estão conexionadas com a sua atividade e que vão originar operações tributáveis como consequência da realização das atividades previstas no seu CAE. Assim, os atos preparatórios deverão ser enquadrados na atividade económica do sujeito passivo e como tal o IVA suportado pode ser deduzido.

Ora transpondo o referido entendimento para o caso controvertido, a Requerente é uma sociedade anónima, que está registada com o CAE 69200 - ACTIVIDADES de CONTABILIDADE, AUDITORIA e CONSULTORIA FISCAL. A não aceitação de crédito de imposto por parte da AT, e do correspondente indeferimento do reembolso no montante de 92.206,41€, fundamentou-se na alegada inexistência de operações ativas no período de 2017 a 2020.09T, com exceção do período de 2019.09T em que foi emitida a fatura …/00001 à B…, de 05-09-2019, na qual foi liquidado IVA no montante de 21.280,75€, relativamente a serviços de consultoria.

Resulta do RIT que a Requerente apresentou faturas de 2019 e 2020 emitidas pelos seus fornecedores mais relevantes, dos quais se destacavam a B… e a C…, cujo IVA foi deduzido pela Requerente. Os SIT concluíram que as faturas dos fornecedores da Requerente cumpriam os requisitos formais plasmados no artigo 36.º do CIVA, pelo que, do ponto de vista formal, pode concluir-se que estavam reunidos os requisitos para o exercício do direito à dedução do IVA por parte da Requerente.

 Tendo em conta o CAE da Requerente, que diz respeito a serviços de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal, a natureza dos serviços adquiridos aos seus fornecedores, nomeadamente, a B… e a C… (conforme reconhecido no RIT), e, bem assim, a jurisprudência europeia e nacional mencionada supra e referida pela Requerente na PI, os serviços adquiridos aos seus fornecedores devem ser entendidos como serviços preparatórios e entrar no conceito de despesas gerais necessárias à atividade económica da Requerente que irá originar operações tributáveis no futuro. Saliente-se que ficou provado que a Requerente efetuou uma operação tributável em 2019, com a emissão da fatura …/00001, de 05-09-2019. Por seu turno, em 2020, a Requerente emitiu mais uma fatura (fatura …/0001, de 31-12-2020), o que indicia a existência de mais operações tributáveis, para além de 2019.

  Também ficou provado que a Requerente celebrou contratos de prestação de serviços de análise financeira com as suas participadas D… e E…, os quais contemplam uma remuneração do tipo success fee, que não permite determinar o momento em que o prestador de serviços irá receber a sua remuneração. Assim, conforme jurisprudência recente do TCAS e europeia mencionada pela Requerente nos artigos 45.º e 46.º da PI, não colhe a posição defendida pela AT de não permitir o sujeito passivo deduzir o IVA suportado aquando da aquisição de bens e serviços a montante devido à inexistência de operações tributáveis a jusante.

Refira-se, por seu turno, a respeito do desconhecimento manifestado pela Requerida, no artigo 44.º da Resposta, em relação aos contratos celebrados entre a Requerente e as suas participadas, que poderia a Requerida ter, ao abrigo do princípio do inquisitório, aprofundado este aspeto em termos de prova, recorrendo à Cooperação Internacional/Procedimento Amigável entre Administrações Tributárias de Portugal, Brasil e Moçambique.

A verdade é que, conforme acima se referiu, a AT, através dos SIT, teve oportunidade de verificar a existência ou não da prestação de serviços à Requerente por parte dos seus fornecedores, em especial, da B… e a C…, ao abrigo do princípio do inquisitório, com o objetivo da descoberta da verdade material. Poderia ter ido mais longe em sede inspetiva, no sentido de apurar se os serviços prestados pelos fornecedores da Requerente existiram, através de recolha de prova junto desses fornecedores ao abrigo do RCPITA. De facto, conforme resulta da abundante jurisprudência europeia e nacional sobre o exercício do direito à dedução, o fundamento da não existência de operações tributáveis a jusante não é por si só fundamento para negar o exercício do direito à dedução de IVA, pondo em causa o princípio da neutralidade. Com efeito, verifica-se, nestes casos, a necessidade de se averiguar se os serviços prestados a montante existiram, se os mesmos têm conexão com a atividade económica do sujeito passivo e se há intenção do sujeito passivo de realizar operações tributáveis no futuro – verificação este que compete à AT, através da recolha de prova de elementos objetivos que permitam concluir se estão reunidos os pressupostos para a dedução do IVA, o que não se verificou no caso em apreço.

Atendendo ao acima exposto e à fundamentação em termos de jurisprudência europeia e nacional, este Tribunal acompanha a posição da Requerente no sentido de considerar ilegal, quer a anulação do crédito de imposto no montante de 92.206,41€, quer o indeferimento do pedido de reembolso de imposto no montante supra solicitado pela Requerente.

Por outro lado, em termos de ónus da prova, acompanha-se a posição defendida pela Requerente, no sentido em que a AT não logrou provar, ao abrigo do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, que os serviços adquiridos por aquela, que estão na origem da existência do crédito de imposto, não têm conexão com a atividade desenvolvida pela Requerente de acordo com o seu CAE. Repare-se que, se na data da apresentação da declaração referente ao período 2019.09T, só tinha havido uma operação tributável titulada pela fatura …/00001, datada de 05-09-2019, tornava-se extremamente pertinente saber se os serviços adquiridos anteriormente pela Requerente podiam enquadrar-se como despesas gerais necessárias ao desenvolvimento das atividades previstas no seu CAE. A AT apenas constatou - conforme referido no RIT no ponto III.1 Enquadramento do sujeito passivo(SP) e Início do Procedimento - que “[para aferir da legitimidade do pedido de reembolso, foram solicitados ao sujeito passivo(SP) através do ofício n.º 2020S… de 24-11-2020, diversos elementos tais como cópias de faturas de fornecedores e comprovativos do seu pagamento, extratos contabilísticos, balancetes e também a explicitação da atividade da empresa e das razões que originaram o crédito de imposto, bem como a justificação da inexistência de operações ativas na maioria dos períodos desde 2017. O SP remeteu no cumprimento do solicitado pelos serviços, cópias dos documentos indicados na notificação e explicou que a atividade da empresa consistia na ”análise de possibilidades de investimento, acompanhamento das participadas procurando novos negócios e participando nas decisões estratégicas, procura de parcerias”]. Do exposto, a AT não concluiu se as operações a montante (inputs) levadas a cabo pela Requerente eram enquadráveis no conceito de despesas elegíveis para a consideração de despesas de investimento ou atos preparatórios levados a cabo pela Requerente necessárias à sua atividade. De facto, a AT deveria ter provado que as referidas despesas não cabiam no conceito de despesas de investimento/atos preparatórios necessários à atividade da Requerente. Em termos de ónus da prova, plasmado no referido n.º 1 do artigo 74.º da LGT, cabia à AT provar que as referidas despesas ocorridas não tinham uma ligação direta e imediata com a atividade constante no CAE, e, consequentemente, dar origem à realização de um direito constitutivo que lhe cabe do ponto legal através de uma liquidação adicional de imposto, por não estarem reunidos os pressupostos para a dedutibilidade do imposto suportado a montante. Deste modo, este Tribunal acompanha a fundamentação da Requerente plasmada nos artigos 52.º a 62.º da PI.

  Pelos fundamentos expostos, procede a pretensão da Requerente de se considerar ilegal a liquidação de IVA n.º … ao abrigo do qual foi feita a correção do crédito de imposto no montante de 92.206,41€, negando-se o crédito de imposto e reembolso de imposto no referido montante de 92.206,41€.

 

§4.3. Ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2021 … no montante de 10.589,30€ e restituição de quantia paga em excesso

Como se refere na decisão da matéria de facto, considerou-se provado que a Requerente pagou a quantia de 10.589,30€, resultante da liquidação n.º 2021 …, de 24-02-2021.

A Requerente pede a restituição do imposto indevidamente suportado, no montante de 10.589,30€, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, contados desde a data da entrega da declaração periódica de IVA referente ao período 2020.12T até à restituição do imposto pago em excesso com referência a este ano.

De harmonia com o disposto no artigo 24.º alínea b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

4.3.1 Restituição do imposto indevidamente pago

 

Resulta da prova produzida que a Requerente, não tendo direito ao reporte de imposto no montante de 92.206,42€ referente ao período de 2019.09T, no período de 2020.12T pagou imposto no montante de 10.589,30€. Caso não tivesse sido anulado o crédito de imposto existente a 2019.09T no montante de 92.206,42€, no período referente a 2020.12T, poderia ter utilizado o montante de imposto a reportar, e consequentemente tendo em atenção a informação constante do ato de liquidação n.º 2021 …, não havia lugar a imposto a pagar no montante de 10.589,30€.  

Assim, na sequência da liquidação n.º 2021 … (cf. DOC. 2 anexo à PI), a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia de 10.589,30€, que pagou indevidamente, sendo a respetiva liquidação ilegal.

 

4.3.2 Juros indemnizatórios

 

No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, o mesmo é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”

 

Assim, uma vez que a liquidação n.º 2021 … é ilegal por erro quanto aos pressupostos de facto e direito derivados da anulação do crédito de imposto, houve erro imputável aos serviços, conforme exposto acima, havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.

Do exposto acima, o pedido de pronúncia arbitral é procedente.

  1. Decisão

De harmonia com o exposto, acordam os Árbitros, neste Tribunal Arbitral, em:

  1. Anular o ato de liquidação de IVA n.º …, de 24-03-2021, no valor de 92.206,41€;
  2. Anular o ato de liquidação de IVA n.º 2021 …, de 24-02-2021, no montante 10.589,30€, devendo ser restituído à Requerente o montante de imposto indevidamente pago de 10.589.30€;
  3. Julgar procedente o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, de acordo com o artigo 43.º da LGT.
  1. Valor do Processo

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 92.206,41€.

  1. Custas Arbitrais

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2.754,00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, cabendo à Requerida suportar a totalidade das custas.

Notifique-se.

Lisboa, 28 de Outubro de 2022

Os Árbitros,

 

José Poças Falcão

 

 

Pedro Saraiva Nércio

 

Júlio Tormenta, Relator



[1] RIT- Relatório de Inspeção Tributária

[2] SIT – Serviços de Inspeção Tributária

[3] TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia

[4] TCAS - Tribunal Central Administrativo Sul

[5] O montante de crédito de imposto (IVA) apurado de 92.206,41€ é composto pela soma das parcelas de IVA a recuperar de 87.498,30€ e 4.708,11, relativas, respetivamente, ao período compreendido entre 2018.03T e 2020.09T e respeitante a 2017, cf. RIT fls 3/6.

[6] Acórdão de 8/1/2015 no processo 8185/14.

[7] A Requerente na petição apresentada referente à Reclamação graciosa refere a liquidação n.º 2021 … no montante de 92.206,41€. Ora, a liquidação n.º 2021 … refere-se ao período 2021.12T no montante de 10.589,30€ o qual foi pago pela Requerente (Reclamante) e relativamente ao qual pretende a restituição acompanha de juros indemnizatórios. O montante de 92.206,41€ está suportada na liquidação adicional n.º …, cf. DOC. 2 anexo à Reclamação Graciosa, em que foi anulado o excesso a reportar existente à data de 2020.09T na conta corrente da Requerente (Reclamante) derivado da correção levada a cabo pela AT (SIT).

 

[8] PI- Petição Inicial

[9] Acórdão n.º 372/10.9BELLE, de 29-04-2021

[10] Diretiva IVA - DIRETIVA 2006/112/CE DO CONSELHO de 28 de novembro de 2006 relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado publicado no JO L 347 de 11.12.2006, disponivel em https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG%3A2006L0112%3A20100115%3APT%3APDF