Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 5/2022-T
Data da decisão: 2022-10-13  IRS  
Valor do pedido: € 26.405,82
Tema: IRS - Artigo 52º do CIRS Divergência entre o valor declarado e o valor real.
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SUMÁRIO:

I – Nos termos do disposto no artigo 52.º do Código do IRS, e de acordo com uma interpretação literal e teleologicamente adequada exige que se comece por dar cumprimento ao estatuído no seu n.º 1, recaindo sobre a Requerida o ónus de apresentar as razões objetivas que possam “fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.

II - A AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão apenas com a alegação vaga de terem ocorrido alienações de imóveis, anteriores à data da transmissão da quota, cujo valor nominal reconheceu como correto para efeitos de tributação sobre o património, pelo que igualmente devem ser considerados corretos de acordo com o Balanço da empresa.

III – Reforça este entendimento o facto de o valor da transmissão pelo valor nominal estar rigorosamente conforme com o valor determinado a partir dos documentos contabilísticos e do último balanço, bem assim como do facto reconhecido pela AT de se tratar de uma transmissão por partilho, ou seja, por efeito sucessório.

 

Decisão arbitral

I. RELATÓRIO

 

  1. A..., residente na ... nº ..., ..., ...-... Marinha Grande, contribuinte fiscal nº ..., doravante identificada apenas por “Requerente”, requereu, em 5-01-2022, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante identificado apenas pelas iniciais RJAT), a constituição de TRIBUNAL TRIBUTÁRIO singular, para impugnação da liquidação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) com o nº 2021..., no valor de € 26.405,82 (vinte e seis mil, quatrocentos e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), relativa ao exercício de 2017.

 

  1. No seu pedido a Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IRS e juros relativa ao ano de 2017, alegando em síntese que:

 

  1. A cedência de quotas objeto de inspeção tributária foi processada entre irmãos a título de partilha entre a família e não houve ganhos na sua alienação nem acréscimo de valores, o valor atribuído a esta partilha de bens correspondeu ao valor nominal das quotas detidas na sociedade B..., Lda;
  2. Isto é não houve rendimento (Mais Valias) sujeito a tributação de IRS;
  3. Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 52º do CIRS, cabe à AT fundamentar as razões de facto das quais resulte ou possa resultar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, o que não sucedeu no caso concreto;
  4. Conclui que a AT não fundamentou a razão pela qual não aceita os valores declarados na alienação das participações sociais e justificar a eventual divergência de valores. Assim, requer a anulação da liquidação por vício de forma (falta de fundamentação) e de violação de lei.

 

  1. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante AT). O pedido foi aceite em 05.01.2022 e imediatamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente optou por não designar Árbitro, pelo que, em 25-02-2022, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação da aqui signatária como Árbitro singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT. Desta forma, em face do disposto no nº 8 do artigo 11º do RJAT, tendo decorrido o prazo estabelecido no nº 11 do mesmo artigo, sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal arbitral ficou constituído em 15.03.2022, tendo, nesta mesma data, sido notificada a AT para apresentar a sua resposta e juntar o processo administrativo.

 

  1. A AT apresentou a sua resposta em 20.04.2022., na qual conclui pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Por despacho de 26.04.2022 foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, nomeadamente sobre a matéria de facto a inquirir e forma de inquirição (presencial ou por sistema webex). Ouvidas as partes, foi proferido despacho arbitral em 20.05.2022 a marcar a reunião para o dia 07.06.2022. Nesta data, realizou-se a diligência, a produção de prova testemunhal à qual se seguiu o depoimento de parte do Requerente. Terminada a produção de prova as partes produziram as respetivas alegações orais. Foi fixada a data da prolação da sentença arbitral para 15.09.2022. Por despacho de 14.09.2022 a data para prolação da decisão arbitral foi prorrogada por dois meses, passando para 15.11.2022.

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4º e 10º nº 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

  1. O processo não enferma de nulidades.

 

II. MATÉRIA DE FACTO

10. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente é sujeito passivo de IRS foi objeto de uma ação inspetiva, de âmbito parcial, ordenada pela Ordem de Serviço nº OI2019..., realizada pelos Serviços de Inspeçao Tributária da Direção de Finanças de Leiria, que incidiu sobre o IRS de 2017;
  2. O Reclamante foi notificado do Relatório final, bem assim como para exercer o seu direito de audição, relativamente às correções técnicas propostas;
  3.  As correções ao IRS do ano de 2017 mencionadas no Relatório referem-se à categoria G, decorrem de transmissão de participação social do Reclamante na sociedade comercial por quotas B... Lda.
  4. Transmissão que ocorreu por contrato de cessão de quota celebrado em 14-06-2017, entre o Requerente (alienante) e seu irmão C... (adquirente), pelo valor nominal da quota de €42.086,07;
  5. A cessão da quota entre irmãos ocorreu em resultado de partilha entre a família, pelo valor nominal da quota;
  6. Do teor do Relatório consta o seguinte:

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Em conformidade com o proposto no Relatório de Inspeção resultou a emissão da nota de liquidação de IRS nº 2021..., no montante de € 60.985,03, junta aos autos conjuntamente com a demonstração de acerto de contas nº 2021..., no valor de €56.929,41;
  2. O valor desta liquidação foi pago em 31.08.2021;
  3. O Requerente apresentou reclamação graciosa contra esta liquidação, a qual foi parcialmente deferida;
  4. Em 15 de outubro de 2021 o Requerente foi notificado do indeferimento da Reclamação Graciosa;
  5. Em 04-01-2022 o Requerente apresentou o pedido arbitral.

 

11.Factos não provados:

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

12.Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Todos os factos provados em a) a e), e g) a j) têm suporte documental, quer nos documentos juntos ao pedido arbitral pelo Requerente quer no processo administrativo junto pela AT. Os factos assentes em d) e e) resultam, ainda, provados pelo depoimento de parte e pelo depoimento da testemunha ouvida nos autos, além de se encontrar confirmado pelo teor do Relatório da Inspeção. Toda a matéria factual constante da alínea f) da matéria assente consiste em transcrição direta do conteúdo de parte do Relatório da Inspeção Tributária. O facto constante na alínea K) resulta do sistema de gestão processual (SGP) do CAAD.

Acresce que, relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

 

III. MATÉRIA DE DIREITO

13.A questão essencial a decidir por este Tribunal arbitral é a de saber se a AT estava em condições de poder proceder às correções aritméticas que a conduziram até à liquidação impugnada. Importa, assim, aferir se a AT demonstrou fundamentadamente a existência da alegada divergência.

Dos fundamentos da correcção à matéria colectável apresentados pela Autoridade Tributária (AT) e constantes do Relatório de inspeção, resulta que o valor nominal da quota era, efetivamente, o que foi declarado pelo Requerente, bem assim que a transmissão da quota decorreu no seguimento de uma partilha de família. Portanto, nestes dois temas não se verifica qualquer dissonância ou  divergência entre o que foi declarado pelo Requerente e apurado pela própria Inspeção Tributária.

Chegados aqui, verifica-se que o Relatório da Inspeção, no qual se baseia a liquidação oficiosa de IRS aqui impugnada, após concluir pelo valor nominal da quota (precisamente o mesmo considerado e declarado pela Requerente) refere o seguinte:

 

 

Nada mais se refere no RI a título de fundamentação da liquidação.

Ora, a mera alegação do facto de ter havido alienações de imóveis anteriores à alienação da quota social não basta para fundamentar qualquer divergência quanto ao valor atribuído à transmissão da quota. O âmbito da inspeção realizada não permite, nesta sede, inspecionar os negócios de transmissão de imóveis anteriormente realizados, tanto mais que a lei prevê mecanismo próprio para o efeito no âmbito da tributação do património. A AT podia, se tinha dúvidas, ter atuado no sentido de apurar o real valor das alienações ocorridas, e promover as correções que entendesse, mas em sede e ao abrigo das disposições legais previstas no âmbito da tributação do património, mas inexplicavelmente não o fez.

Dito isto, tudo o que se alcança ter sido apurado no âmbito do processo inspetivo em apreciação nestes autos é que o valor nominal da quota transmitida foi devidamente calculado, determinado de acordo com os dados contabilísticos da empresa expressos no último Balanço. E nesta sede nenhuma dissonância foi determinada pela Inspeção, como bem resulta do Relatório fundamentador. Razão pela qual não se encontra devidamente fundamentada a alegada discrepância.

 

14. Ora o que está em causa nos presentes autos é aferir se as correções operadas quanto ao valor da transmissão da quota social se encontram fundamentadas, uma vez que que o RI aceita que o valor nominal da quota é o que consta da contabilidade e coincide, efetivamente, com o valor da cessão. Admite ainda o Relatório de Inspeção que esta cessão se efetuou para partilha de bens em família, isto é, por via sucessória. Sendo assim, não se vislumbra qualquer divergência de valor face ao que resulta da análise contabilística. Da análise do Relatório da Inspeção Tributária, resulta que a AT não alegou nem demonstrou que a alienação da quota tenha ocorrido por outro valor diferente do valor nominal. Contudo, de forma indireta faz menção a partir de um facto anterior à alienação e partilha da quota. Não demonstrou, contudo, ter atuado no sentido de corrigir as alienações dos imóveis, promovendo a determinação do valor de mercado (se entendia que este não correspondia ao valor da transação) sendo certo que recolheu todos os impostos resultantes das referidas transações, considerando o valor patrimonial tributário efetivamente superior ao valor da escritura. Não se pode admitir que por via de correção ao valor declarado e comprovado da transmissão da quota se permitisse fazer outras correções, nomeadamente do valor patrimonial de referência das transações dos imóveis, contornando os procedimentos legalmente previstos para a tributação do património.

Certo é que a liquidação resultou de um ato de correção e fixação da matéria coletável, praticado ao abrigo do disposto no artigo 52º do CIRS, e nos termos deste normativo, a correção é possível em caso de fundada divergência entre o valor declarado e o valor real da transação. Será que o que consta do relatório da inspeção tributária preenche os pressupostos legais para a AT proceder à correção do valor declarado? 

 

15. Conforme é entendimento comum e reconhecido pela Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores e arbitral, a lei não define nem limita os factos em que a AT se pode basear para considerar fundadamente que possa haver divergência entre o valor declarado e o valor real da transação, desde que resultem evidenciadas divergências quanto ao valor declarado e o que resulta dos elementos contabilísticos do sujeito passivo. Certo é que não subsiste dúvida de que o valor deve ser apurado com base no último balanço. É sabido que o balanço e a demonstração de resultados são os documentos de síntese que melhor refletem a situação da empresa, e, por consequência, o valor das respetivas participações sociais. No caso dos autos, acresce que a não aceitação dos valores das escrituras de venda dos imóveis que antecederam a cessão da quota, não pode ser relevante para efeitos de aplicação do artigo 52º do CIRS, porquanto estes negócios anteriormente verificados foram aceites como corretos em sede de tributação do património, sem que a AT tivesse suscitado os procedimentos próprios de fiscalização dos valores de transação sobre os quais, parece agora ter dúvidas.

Assim, quanto à fundamentação relevante para a correção do valor da cessão da quota, a única em discussão nestes autos, há que concluir pela manifesta insuficiência e incongruência dos fundamentos alegados, o que equivale a falta de fundamentação. E, por outro lado, a exigência de fundamentação é uma exigência dos atos tributários em geral e uma imposição constitucional (art. 268º da CRP) e legal (art. 77º da LGT), pelo que a sua violação consubstancia vício de forma invalidante da liquidação do imposto.

 A fundamentação exigível a um ato tributário é aquela que funcionalmente é necessária para que o mesmo não seja encarado como fruto de mero arbítrio da Administração, em consequência de não serem apreensíveis os motivos de facto e de direito em que assenta.

 

16. Ora, da análise do teor do Relatório de Inspeção, resulta que a motivação é insuficiente e incongruente, mas poder-se-ia dizer que, ainda assim resulta compreensível por um destinatário médio, a motivação que determinou o recurso ao estabelecido no artigo 52º do CIRS. Esta conclusão leva-nos a conhecer do segundo vício alegado pelo Requerente, por violação de lei quanto aos pressupostos de facto e de direito subjacentes à aplicação deste normativo. Seguindo o disposto no artigo 124º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e porque, na verdade, o vício de violação de lei alegado pelo Requerente conducente à anulação do ato não permitirá a renovação do ato tributário, entende o Tribunal que se impõe, também, conhecer se se verifica ou não violação dos pressupostos de facto e de direito subjacentes ao ato de liquidação.

 

17. Vejamos, pois, se à luz do disposto no artigo 52.º do CIRS persiste ilegalidade do ato tributário impugnado por vício de violação de lei, fundada na errónea interpretação e aplicação do mencionado preceito.

Assim recortada a questão verifica-se que a mesma já foi objeto de apreciação na Decisão arbitral proferida no processo n.º 812/2019-T. Não havendo razões para divergirmos da jurisprudência constante desta Decisão arbitral, da qual se extrai o seguinte:

«O artigo 52.º do CIRS, sob a epígrafe «Divergência de Valores», dispunha à data dos factos o seguinte:

1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 -  (…)

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.»

               

Na mencionada Decisão arbitral pode ler-se o seguinte, quanto ao sentido e alcance deste normativo legal:

“Afigura-se evidente que a norma em apreço se subdivide em duas partes distintas:

Uma primeira parte de alcance geral e, como tal, aplicável a todas as situações geradoras de mais-valias, e que subordina a AT ao proceder à determinação do valor de realização - é este o valor que está em causa no preceito - à consideração fundada de que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão (n.º 1 do artigo 52.º do CIRC). Exige claramente o legislador que só se passe à segunda parte da norma se cumpridos os requisitos e procedimentos aí fixados e que exigem da Requerida que apresente as razões objetivas que possam “fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.

“Preenchido ou satisfeito este primeiro requisito impõe o legislador que se passe então à segunda parte, vertida nos n.ºs 2 e 3, onde se consagra uma presunção objetiva, instrumental, de preço de venda para ações, outros valores mobiliários e quotas.

“Repete-se, resulta claramente da letra e razão de ser do preceito que as regras dos n.ºs 2 e 3 hão de aplicar-se caso a AT demonstre, em primeiro lugar, ou pelo menos se estabeleça uma dúvida fundada, que o preço de realização declarado não corresponde ao preço real da transmissão. André Salgado de Matos, in Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, com revisão de Rodrigo Queiroz e Melo, ed. Instituto Superior de Gestão, 1999, em anotação a este artigo refere o seguinte (pp. 323): O n.º 1 exige que a DGCI considere fundadamente que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão. Ou seja, não basta que o valor declarado seja inverosímil, improvável ou pouco usual, tem que existir prova de que não é o valor real. E tem também, salvo nos casos dos n.ºs 2 e 3, que existir prova de qual é o valor real.»

 

18. Em consonância com tudo o que se expôs quanto ao primeiro vício alegado (falta de fundamentação) adere-se à interpretação exposta na supracitada Decisão arbitral, ou seja, sempre que seja suscitada a questão da divergência de valores nele tratada, numa operação suscetível de gerar mais-valias, a primeira questão a resolver é a que coloca o n.º 1, isto é, fundamentar que existe, ou indiciar fundadamente que existe, uma não coincidência entre o valor declarado e o valor real da alienação. E para tal não basta a mera alegação da ocorrência de vendas de imóveis por valores inferiores ao valor de mercado, em período antecedente ao da própria cessão da quota. Por um lado, porque a AT nunca havia questionado as referidas transmissões de vendas, pelos meios e no tempo próprio, não podendo vir usar esse argumento a posteriori. Por outro lado, a alegação da divergência é negada pela análise dos documentos contabilísticos da empresa, como bem resulta do RI onde se reconhece que o valor nominal corresponde ao da cessão da quota e que esta se realizou por via sucessória, em sede de partilha de bens de família.

No entendimento deste Tribunal, considera-se que no caso dos presentes autos não existe base jurídica suficiente para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão da quota. Caberia à Requerida promover em sede própria e em obediência ao princípio da legalidade, todas as diligências que considerasse adequadas para confirmação da divergência apontada, o que não logrou fazer.

Por último, impõe-se reconhecer que o disposto no nº 3 ao apontar para a presunção de que o valor correto (não existindo outro) há de ser o que corresponde ao do último balanço, acaba por favorecer a tese da Requerente.

Na verdade, a AT nada fez para pôr em causa os valores de realização das alegadas vendas de imóveis, que aceitou como adequadas em sede de tributação do património. E, assim sendo, os valores constantes do Balanço são os corretos e o valor nominal pelo qual se transmitiu a quota foi o correto e, aliás, encontra-se corroborado quer pelo RI quer pelo facto das alienações dos imóveis não terem sido alvo de correção em sede de tributação do património. Um negócio não pode ser juridicamente aceitável em sede de tributação de um imposto sobre o património e não o ser para efeitos de determinação do imposto sobre o rendimento subsequente.

 

19. Conclui-se, pois, pela verificação da ilegalidade da liquidação impugnada, por vício de violação de lei fundado na errónea interpretação e aplicação do artigo 52.º do Código do IRS, por não verificação dos pressupostos de facto e de direito subjacentes.

Da documentação constante dos autos e atendendo à fundamentação que presidiu às liquidações ora impugnadas, considera-se que a AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

 

Seguindo, ainda, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 812/2019-T, não há dúvida que “caberia à Requerida promover as diligências que considerasse adequadas para confirmação da divergência apontada.» Tal não sucedeu, como resulta de tudo o que se deixa exposto.

 

Termos em que se julga procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação da liquidação de IRS impugnada nos autos.

 

 20. Questões prejudicadas

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vício atrás referido, o que assegura uma efetiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados.

Na verdade, como está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios, no artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), julgado procedente um vício que obste à renovação do ato impugnado, não há necessidade de se apreciar os outros que lhe sejam imputados.

Por isso, julgado procedente o pedido com fundamento num vício que impede a renovação do ato impugnado com o mesmo sentido, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados, sejam formais e procedimentais, seja também de violação da lei.

 

 

21. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios

 Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. No caso, o erro que afeta a legalidade do ato tributário é de considerar imputável à Requerida, que o praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do ato parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do correspondente pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

IV. DECISÃO

Termos em que se decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. Anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2021 ... no valor de € 26.405,82 (vinte e seis mil, quatrocentos e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), relativa ao exercício de 2017;
  2. Condenar a Administração Tributária no pagamento do imposto indevidamente pago e respetivos juros indemnizatórios, contados nos termos legais, bem assim como no pagamento das custas judiciais.

 

V- VALOR DA CAUSA

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 26.405,82 (vinte e seis mil, quatrocentos e cinco euros e oitenta e dois cêntimos) nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI. CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, a cargo da parte vencida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 13 de outubro de 2022

 

O Tribunal arbitral,

 

 

                  

Maria do Rosário Anjos

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.