Sumário:
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Não está exclusivamente em causa matéria de direito, para efeitos de dispensa de reclamação graciosa prévia do ato de autoliquidação (Artigo 131.º, n.º 3, do CPPT), sempre que se imponha ao Tribunal a apreciação de factos e um pronunciamento sobre os mesmos.
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Instruções transmitidas oralmente por funcionários da AT não integram o conceito de “orientações genéricas” para efeitos de aplicação do Artigo 131.º, n.º 3, do CPPT.
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As orientações genéricas a que faz referência o n.º 3 do Artigo 131.º do CPPT encontram-se previstas no Artigo 68.º-A da LGT, correspondendo a orientações formais constantes de instrumentos normalmente utilizados pela AT para exprimir o seu entendimento sobre a interpretação e aplicação de normas tributárias (e.g. circulares, ofícios, regulamentos, etc.).
DECISÃO ARBITRAL
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Relatório
A..., contribuinte n.º..., com domicílio na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Ourém, adiante abreviadamente designado por «Requerente», veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), no valor de € 1.150.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante abreviadamente designada por “AT” ou por “entidade Requerida”),
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 5 de Janeiro de 2022.
Em 25 de Fevereiro de 2022, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação do Árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 15 de Março de 2022.
A AT apresentou Resposta em 2 de Maio de 2022.
Na sua Resposta a Autoridade Tributária e Aduaneira defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e invocou, a título de exceção, exceção dilatória de falta de constituição de Advogado e a impugnabilidade do ato de autoliquidação.
Por Despacho datado de 20 de Maio de 2022, convidou-se o Requerente a suprir a exceção dilatória de falta de constituição de Advogado (cfr. artigo 6.º, n.º 1, do CPPT, aplicável ex vi da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e, ainda, a pronunciar-se sobre a alegada impugnabilidade do ato de autoliquidação também invocada pela Requerida a título de exceção.
Em 8 de Junho de 2022, veio o Requerente apresentar resposta ao supra referido Despacho, através da qual procedeu à constituição de Advogado e pugnou pela improcedência da exceção de impugnabilidade do auto de liquidação.
Por Despacho de 27 de Julho de 2022, o Tribunal Arbitral procedeu à dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, convidando as Partes a apresentar as alegações escritas no prazo de 20 dias e notificando o Requerente para proceder ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente.
Por Despacho de 28 de Julho de 2022, tendo-se verificado que a entidade Requerida não procedeu à junção da cópia do processo administrativo conforme lhe havia sido solicitado por Despacho datado de 18 de Março, requereu-se à AT, para, no prazo de 10 dias, vir juntar a referida cópia, com todos os elementos do processo administrativo, entre os quais a liquidação e os elementos do procedimento de leilão da viatura em causa.
Em 16 de Agosto de 2022, o Requerente apresentou alegações em tendo igualmente nesta data apresentado o comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente.
Entretanto, por Despacho de 2 de Setembro de 2022, e em face dos Despachos anteriormente proferidos pelo Tribunal e correndo, ainda, então, o prazo para a apresentação do processo administrativo e das eventuais alegações por parte da entidade Requerida, determinou-se a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para prolação da decisão, ao abrigo do disposto no Artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, passando, assim, o mesmo para o dia 15 de Novembro de 2022.
Em 6 de Setembro de 2022, a AT veio juntar o processo administrativo.
Em 16 de Setembro de 2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou as suas alegações, referindo que “para não incorrer numa desnecessária repetição do constante da Resposta apresentada e, porque esta se mantém perfeitamente atual, dá a Requerida aquela como reproduzida.”.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, 5.º, n.º 2, 6.º, 10.º e 11.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
As Partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos legais aplicáveis.
O processo não enferma de qualquer nulidade.
Conforme atrás referido foi invocado pela AT, na sua Resposta, a título de exceção, falta de constituição de Advogado e a inimpugnabilidade do ato de autoliquidação.
No que concerne à falta de constituição de Advogado, invocando o Requerente que é Advogado e que advoga em causa própria (em conformidade com o Artigo 66.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados), deixou a respetiva exceção de ter pertinência.
Mantém-se, contudo, a necessidade de apreciação da alegada inimpugnabilidade do ato de autoliquidação, porquanto a mesma poderá comportar a absolvição da instância.
Ora, nos termos do disposto no Artigo 608.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – “CPC”, aplicável ex vi Artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a pronúncia deve conhecer “em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”.
Neste âmbito, dispõe o artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – “CPTA” (aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT) que a competência e o âmbito da jurisdição são de “ordem pública, e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, pelo que se impõe a apreciação, em primeiro lugar, da questão prévia suscitada pela Requerida, referente à alegada inimpugnabilidade do ato de autoliquidação.
Da Exceção de Inimpugnabilidade do Ato de AutoLiquidação controvertido
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Dos Argumentos da AT
Invocou, pois, a AT na sua Resposta que o ato de liquidação aqui em apreço não é suscetível de impugnação direta (quer judicial, quer arbitral), pelo facto de o mesmo configurar um ato de autoliquidação de imposto.
Com efeito, no entendimento da AT, estando em causa um ato de autoliquidação de IVA, deveria o Requerente ter procedido a uma reclamação graciosa prévia, em conformidade com o disposto no Artigo do 131.º, n.º 1, do CPPT.
Invoca a AT, por seu turno, que não há, no caso em apreço, lugar à aplicação do n.º 3 do referido preceito legal (dispensa de reclamação prévia), por considerar que “nos autos não estamos perante uma questão exclusivamente de direito, uma vez que o entendimento do Requerente decorre do facto que alega de que a aquisição do veículo por parte da B..., LDA, teria alegadamente sido feita com exclusão do direito à dedução, sendo este facto que sustenta a sua conclusão de direito de que à transmissão do veículo deveria ter sido aplicada a isenção da al. 32) do art.º 9.º do CIVA”.
Para reforçar o seu entendimento, a AT carreou para o presente processo a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul (Acórdão de 07-12-2021, proferido no processo n.º 2220/16.7BELRS), nos termos do qual “A reclamação graciosa constitui pressuposto da impugnação judicial em caso de erro na autoliquidação, excepto quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária”.
Em face do exposto, a AT requer que seja julgada procedente a exceção de inimpugnabilidade do ato de autoliquidação de IVA em apreço, com a sua consequente absolvição da instância.
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Dos Argumentos do Requerente
Confrontado com a exceção invocada pela AT, veio o Requerente apresentar resposta, nos termos da qual pugnou pela improcedência da mesma.
Invoca, por um lado, o Requerente que “só procedeu à autoliquidação de IVA por exigência do serviço de finanças que tramitou o leilão eletrónico dos autos”.
No sentido de demonstrar a supra referida “exigência do serviço de finanças”, o Requerente procedeu à junção aos autos de diversos emails trocados com o Serviço de Finanças de Vila de Franca de Xira ... relativamente ao pagamento do veículo objeto do leilão.
Da referida correspondência eletrónica consta um email de 13 de Outubro de 2021, através do qual o Requerente contesta uma alegada informação do serviço de finanças, transmitida telefonicamente, de acordo com a qual se impunha a liquidação de IVA, pelo Requerente, sobre o valor de aquisição.
Mais refere o Requerente, na sua resposta à exceção, que “foi informado que não seria autorizado a proceder ao levantamento da viatura que lhe foi adjudicada caso não procedesse ao [sic] autoliquidação de IVA aqui objeto de impugnação”.
Por outro lado, invoca, igualmente, o Requerente que “estamos, de facto, perante uma questão exclusivamente de direito, uma vez que o veículo dos autos (i) é uma viatura de turismo e (ii) havia sido adquirido por parte da sociedade B... LDA. com exclusão do direito à dedução, factos que, além de a Requerida não os ter impugnado na sua Contestação, constam do processo administrativo que a Requerida protestou juntar aos autos”.
Em suma, alega o Requerente que, no caso em apreço, e à luz do disposto no Artigo 131.º, n.º 3, do CPPT, a reclamação graciosa não se revela como pressuposto prévio do pedido arbitral, por considerar que (i) está exclusivamente em causa matéria de direito e que (ii) a autoliquidação foi efetuada por imposição da AT, pugnando pela improcedência da exceção invocada pela Requerida.
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Decisão
Importa, pois, analisar se, conforme invoca a Requerida, à luz do disposto no Artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, o pedido arbitral deveria ter sido precedido de reclamação graciosa, por estar em causa um ato de autoliquidação de imposto.
Dispõe o supra referido preceito legal o seguinte:
“Artigo 131.º
Impugnação em caso de autoliquidação
1 – Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração.
2 – (Revogado.)
3 – Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1.”
Cumpre, antes de mais, avaliar se estamos, no caso sub judice, perante uma autoliquidação, para efeitos de aplicação do sobredito Artigo 131.º, n.º 1, do CPPT.
De acordo com os elementos juntos ao presente processo, não restam dúvidas de que o imposto aqui controvertido, no valor de € 1.500, foi autoliquidado pelo próprio Requerente, no dia 21 de Outubro de 2021, através de Modelo P2.
Por seu turno, o Requerente não contesta este facto, reconhecendo, inclusivamente, que “procedeu à autoliquidação de IVA” (cfr. Artigo 6.º da resposta à exceção).
Pelo que deverá concluir-se que estamos perante uma autoliquidação, verificando-se, à partida, os pressupostos previstos no Artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, para que o pedido arbitral tenha de ser necessariamente precedido de reclamação graciosa.
Sucede que o n.º 3 do sobredito preceito legal prevê que haverá dispensa da referida reclamação graciosa prévia, admitindo-se a impugnação direta do ato de autoliquidação, caso se verifiquem os seguintes pressupostos cumulativos:
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quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito; e
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a autoliquidação tenha sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT.
No que diz respeito ao primeiro pressuposto, impõe-se determinar se a questão aqui em apreço se restringe à apreciação de matéria de direito ou se implica, igualmente, a análise de matéria de facto.
De acordo com a análise do pedido arbitral, é possível concluir que está em causa determinar se a aquisição de um veículo por parte do Requerente, no âmbito de um leilão da AT, se encontra sujeita a IVA, invocando o Requerente que, sendo um veículo ligeiro de passageiros que não conferiu direito à dedução por parte do anterior proprietário, tal sujeição não se impõe.
Assim, da referida análise preliminar da questão materialmente controvertida no presente processo, conclui este Tribunal, em linha com o que defendeu a AT, que a mesma não se reconduz exclusivamente a matéria de direito, tendo em consideração que se impõe igualmente, para efeitos de decisão sobre o direito a que se arroga o Requerente, a verificação de pressupostos factuais.
Com efeito, pese embora o Requerente invoque não existirem dúvidas quanto aos factos de que depende o seu direito – designadamente de que está em causa um veículo ligeiro que não confere direito à dedução do imposto (o que implicaria que a aquisição do mesmo pelo Requerente não estaria sujeita a IVA) – a verdade é que caberia sempre a este Tribunal a apreciação desses mesmos factos para deles extrair a necessária conclusão de direito.
E a verdade é que a questão de facto que o Requerente considera provada não é isenta de disputa, tendo em consideração que, de acordo com a Resposta da Requerida, o Requerente “não prova que aquele [anterior proprietário do veículo] não tenha deduzido o imposto, nem que não tenha como actividade (ainda que secundária) a locação de veículos, etc.” e “nem sequer prova que o veículo em questão se trate de um veículo ligeiro de passageiros”.
Pelo que, em face do exposto, caberia sempre a este Tribunal a apreciação dos referidos factos e um pronunciamento sobre os mesmos.
Assim, não restam dúvidas de que, no âmbito do presente processo arbitral, não está exclusivamente em causa matéria de direito, mas também matéria de facto, não se considerando, desde logo, verificado o primeiro pressuposto de que depende a dispensa da reclamação prévia.
Mas ainda que se considerasse estar aqui exclusivamente em causa matéria de direito - o que, conforme observarmos, não sucede no presente caso -, sempre se teria de concluir que a autoliquidação aqui em apreço não foi efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT.
Com efeito, contrariamente ao que invoca o Requerente, instruções transmitidas telefonicamente por funcionários da AT – conforme decorre dos emails trocados entre as Partes - não integram o conceito de “orientações genéricas” para efeitos de aplicação do Artigo 131.º, n.º 3, do CPPT.
De facto, o referido conceito encontra-se expressamente previsto no Artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária, dispondo o respetivo n.º 1 que as orientações genéricas constam de “circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias”.
Corroborando esta tese, de que as orientações em causa no Artigo 131.º, n.º 3, do CPPT, correspondem àquelas previstas no Artigo 68.º-A da LGT, segue a jurisprudência dos nossos Tribunais judiciais superiores, quando refere que a exigência de orientações genéricas da AT para efeitos de dispensa da reclamação graciosa prévia “justifica-se porque, nesta hipótese, a AT já se pronunciou previamente sobre a questão suscitada e encontra-se vinculada pelas orientações (cfr. art. 68.º, n.º 4, da LGT), motivo porque seria inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa, que teria de ser indeferida.” (Cfr Ac do STA 860/10 de 12.10.2011).
Resulta, assim, evidente que as orientações genéricas a que faz referência o n.º 3 do Artigo 131.º do CPPT são orientações formais constantes de instrumentos normalmente utilizados pela AT para exprimir o seu entendimento sobre a interpretação e aplicação de normas tributárias (e.g. circulares, ofícios, regulamentos, etc.).
Pelo que se considera, também, não preenchido este segundo pressuposto de dispensa de reclamação prévia.
Não restam, assim, dúvidas a este Tribunal de que deveria o Requerente, para efeitos de impugnação judicial ou arbitral, ter procedido, previamente, à apresentação de reclamação graciosa da autoliquidação de IVA em apreço, no prazo de dois anos a contar da mesma – prazo este que ainda corre aos dias de hoje, podendo o Requerente ainda lançar mão de tal mecanismo.
Pelo que, não o tendo feito, afigura-se o presente pedido arbitral ilegítimo, por violação do disposto no Artigo do 131.º, n.º 1, do CPPT, aplicável ex vi o artigo 29.º n.º 1 do RJAT.
Em face de todo o exposto, julga este Tribunal procedente a exceção invocada pela Requerida, absolvendo-a da instância, e ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação da questão materialmente controvertida.
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Decisão
Nestes termos, decide este Tribunal arbitral o seguinte:
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julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação de IVA em apreço e, consequentemente, absolver a entidade Requerida da instância;
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Condenar o Requerente no pagamento das custas do presente processo.
Valor da ação
Fixa-se o valor da causa em € 1.150 (mil cento e cinquenta Euros), correspondente ao valor total do ato de autoliquidação em apreço, nos termos do disposto nos Artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas
Custas pelo Requerente, no valor de € 306 (trezentos e seis euros), nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e do Artigo 4.º e da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de Outubro de 2022
Pedro Saraiva Nércio