Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 798/2021-T
Data da decisão: 2022-10-31  IRC  
Valor do pedido: € 52.365,52
Tema: IRC – Tributação de rendimentos obtidos por entidades não residentes, sem estabelecimento estável, relativos a imóveis situados em Portugal. Exercício do direito de audição prévia
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SUMÁRIO

I – O não exercício do direito de audição prévia, quando o mesmo se mostre indispensável e fundamental à tomada da decisão constitui a preterição de uma formalidade legal

II – A preterição de uma formalidade legal essencial, constitui fundamento de anulação de uma liquidação de um tributo.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro, Dr. João Marques Pinto (Árbitros-vogais), designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 29 de Novembro de 2021, acorda no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

A...– Organizzazione Non Lucrativa di Utilitá Sociale, NIPC..., com sede social em ..., ..., ... ..., Itália, doravante designada por “Requerente”, veio, nos teros do disposto no artigo 10º do Decreto-lei nº 10/2011 de 20 de Janeiro (doravante RJAT), requerer, em 29 de Novembro de 2021, a constituição do Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), com o número 2021..., no valor de € 52.365,52, sendo € 46.482,04 correspondente ao imposto e € 5.883,48 a titulo de juros compensatórios.

A Requerente pede igualmente a restituição da quantia paga a títulos de juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (AT) doravante identificada dessa forma.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida em 30.11.2021

Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 14.01.2022, foram as partes notificadas dessa designação, não tendo qualquer uma delas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11º nº 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 228º da Lei 66-B/2012 de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 01.02.2022

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido de pronuncia arbitral.

Não foi requerida prova testemunhal.

Depois de notificadas para o efeito em 28.06.2022, as partes apresentaram Alegações, ambas em 06.09.2022.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em face do que vem preceituado nos artigos 2º, nº 1 alínea a) e 10º nº 1, do citado DL 10/2011 de 20 de Janeiro e é competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legitimas e estão representadas (artigos 4º 10º nº 2, do meso diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011 de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

  1. Factos considerados provados:

 

1º - A Requerente é uma associação constituída de acordo com a lei italiana, onde se encontra registada como organização sem fins lucrativos de utilidade social, tendo, por isso, uma actividade de natureza solidária e assistencial com o objectivo de apoiar as populações da Eritreia e da Etiópia, bem como das respectivas comunidades de imigrantes em Itália

 

2º - Em 2018, a Requerente alienou a sua quota de compropriedade, correspondente a 3/10, em um imóvel – prédio urbano sito na freguesia de Santa Maria Maior, Lisboa, Portugal, - pelo valor de € 205.500,00 (duzentos e cinco mil e quinhentos euros).

 

3º - A Requerente está inscrita, em Portugal, como uma entidade não residente, sem estabelecimento estável neste território, e com sede em Itália.

 

4º - A Requerente foi objecto de uma acção de inspeção interna, incidente sobre o ano de 2018, determinada pela Ordem de Serviço com o nº OI2020..., emitida em 9 de Junho de 2020, no âmbito da qual lhe foi fixada, pela AT, uma matéria colectável de € 185.928,19 (cento e oitenta cinco mil novecentos e vinte e oito euros e dezanove centavos).

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5º - A Requerente, bem como os Drs. B... e C..., foram notificados para exercerem o direito de audição prévia sobre o projecto de correcções do relatório de inspecção em 30 de Abril de 2021.

 

6º - A Requerente na sua sede, em ..., Itália através do Ofício..., remetido sobre o registo postal nº RH..., e os referidos advogados no seu escritório, em Lisboa, através do Ofício ..., remetido sobre o registo postal nº RH... .

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7º - As referidas notificações foram recebidas pela Requerente em 10 de Maio de 2012 e pelos advogados acima identificados em 3 de Maio de 2021.

 

8º - A Requerente e os referidos Advogados não exerceram o direito de audição relativamente ao projecto de relatório enviado pela AT.

 

9º - Mais tarde, quer a Requerente, quer os referidos Advogados, foram notificados do Relatório final da Inspecção, a Requerente, à semelhança da anterior notificação, na sua sede, em ..., Itália através do Ofício ..., remetido sobre o registo postal nº RH ... e recebido no dia 25 de Junho de 2021, e os referidos Advogados igualmente no seu escritório, em Lisboa, através do Ofício ..., remetido sobre o registo postal nº RH..., e recebido no dia 21 de Junho de 2021.

 

10º - Os Drs. B... e C... actuaram como procuradores da Requerente na escritura notarial de alienação do imóvel de que era proprietária em Portugal, tendo essa procuração sido emitida em 12 de Junho de 2017, em Milão, perante o Notário D... .

 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Requerente e no que consta do processo administrativo junto pela AT.

 

 

 

 

 

 

 

2. Matéria de Direito

 

2.1. Fundamentos das posições das Partes

 

1º - A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), de acordo com a versão final do Relatório de Inspecção, fundamentou a decisão de liquidação de IRC, da seguinte forma:

“No âmbito da consulta realizada à Modelo 11 – atos por outorgante”, verificou-se… que por Escritura Publica de compra e venda, lavrada no Cartório Notarial de Lisboa de E..., em 2018-02-21, o sujeito passivo em análise procedeu à alienação de um prédio pelo montante de 685.000,00€, na parte de 3/10”,…..”

“No desenvolvimento das diligencias necessárias (…), foi solicitado, por correio electrónico, no Cartório Notarial de Lisboa de E..., a cópia integral não certificada da escritura de compra e venda lavrada em 2018-02-21 (Escritura 237-A/103) bem como a cópia das procurações anexas. (,,,)”

2º - Face à confirmação que a escritura permitiu, concluiu a AT que:

“…  nos termos no artigo 120º, nº 5, al. B) do Código do IRC, as entidades que não tenham sede nem direcção efetiva em território português, e neste obtenham rendimentos não imputáveis a estabelecimento estável aí situado são obrigados a apresentar a declaração periódica de rendimentos Modelo 22, relativamente a ganhos resultantes da transmissão onerosa de imóveis, até ao último dia útil de 30 dias a contar da data da transmissão.

Face ao disposto no citado artigo, verifica-se que o SP não cumpriu a obrigação declarativa decorrente da alienação do referido prédio.

Tratando-se de “rendimentos obtidos por entidades não residentes, relativos a imóveis situados em território nacional, estão sujeitos a imposto, neste território, por força da alínea a) do nº 3 do artigo 4º do CIRC. O ganho obtido com a alienação onerosa de imóveis, constitui uma mais-valia sujeita a imposto sobre o rendimento, conforme previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 3º do Código do IRC, sendo o seu apuramento efetuado de acordo com o disposto no artigo 43º do Código do IRS, conforme estabelecido no artigo 56º do Código do IRC.”

3º - Emitida a liquidação, a Requerente veio interpor a impugnação em apreciação, pedindo a anulação da liquidação, invocando, para tal, e de uma forma sucessiva, os seguintes fundamentos:

a) Ter-se verificado a preterição de formalidades essenciais que impediram o exercício, pela Requerente, do seu direito de audição prévia, com a consequente violação do princípio da participação na formação da decisão, imposto, pelo RCIPTA, pela Lei Geral Tributária (LGT), pelo Código de Procedimento Administrativo (CPA) e pela própria Constituição da República Portuguesa (CRP).

b) Terem sido violados os artigos 10º nº 1 alínea c) do CIRC, 11 nº 1 alínea b) iii) da Lei 36/2021, 15º nº 1 da Lei nº 66/98 e 23º, nº 1 da Convenção celebrada entre Portugal e Itália para Evitar a Dupla Tributação.

c) A matéria colectável ter sido determinada e fixada, pela AT, de forma errónea, não respeitando as regras aplicáveis, quer do Código do IRC, quer, por remissão este Código, do Código do IRS;

d) Foi, aplicada, à matéria colectável fixada, uma taxa de imposto (IRC) errada

4º - A Requerida contestou os argumentos apresentados pela Requerente, dizendo, sumária e

Nomeadamente que:

  1. A notificação, quer à própria Requerente (enviada directamente para Itália) quer aos Advogados foi correcta; sendo que, no caso dos advogados a procuração emitida para a escritura publica de compra e venda, incluía poderes para entregar declarações fiscais e consequentemente para receber notificações;
  2. A Requerente não podia beneficiar de isenção de IRS conferida pelo respectivo Código porque nunca lhe foi reconhecido o estatuto de pessoa colectiva de utilidade publica, até porque esse estatuto lhe tinha que ser expressamente atribuído pelo Estado português;
  3. A matéria colectável estava correctamente determinada porque a remissão do artigo 56º do Código do IRC para o Código do IRS não era aplicável à situação em apreço;
  4. Da mesma forma, a taxa de imposto aplicada na liquidação era a correcta, porque se tratava de um rendimento obtido por uma entidade não residente sem estabelecimento estável

5º -  Em 21 de Abril de 2022, a Requerente apresentou um requerimento pronunciando-se sobre a contestação apresentada pela Requerida, e acrescentado novos factos ao requerimento inicial, nomeadamente sobre a notificação recebida em Itália e sobre o âmbito da procuração emitida para o acto de compra e venda.

6º - Em resposta a este requerimento, a Requerida, no dia 22.04.2022 contestou o âmbito do mesmo, argumentando que o mesmo se traduzia num alargamento do pedido feito inicialmente.

7º - Por despacho proferido pelo Tribunal em 28.06.2022, foi decidido proceder ao desentranhamento do requerimento da Requerente e fixou-se prazo para as Partes apresentarem alegações

8º - Como foi referido supra, as alegações foram apresentadas por ambas Partes no dia 06.09.2022, tendo as partes reforçado as suas posições, nomeadamente sobre a questão da regularidade das notificações e do estatuto da entidade Requerente.

 

2.2 - Análise das questões suscitadas

1º - Da preterição de formalidades legais

Alegou a Requerente, na sua petição inicial e nas alegações que apresentou no Tribunal, que a liquidação objecto da impugnação deduzida, foi emitida e notificada sem que lhe tivesse sido dado, atempada e devidamente, ou seja, dentro do prazo legalmente fixado, qualquer direito de se manifestar, nomeadamente o de exercer o direito de audição prévia, dessa forma violando a as normas legais em vigor, em especial os artigos 60 e 62º do RCPITA.

Para o efeito, considerou, essencialmente, dois fundamentos, a saber:

Em primeiro lugar, porque a procuração que foi emitida pela Requerente a favor dos Advogados em Portugal e que lhes permitiu representá-la na escritura notarial de compra e venda, não conferia poderes para apresentar declaração fiscal e de receber notificações ou citações, nomeadamente da AT, não podendo os poderes conferidos de apresentar “declarações complementares”, incluir aquela possibilidade.

Em segundo lugar, porque apesar de a Requerente ter sido correctamente notificada, na sua sede social em Itália, do Projecto de Relatório de inspecção para exercer o seu direito de audição prévia, quando recebeu o relatório final da inspecção tributária (RIT), ainda decorria o prazo para o exercício do direito de audição prévia, o que veio impedir, de forma efectiva, o respectivo exercício.

Em conclusão, o entendimento da Requerente é que lhe foi vedado o exercício do direito de audição prévia, o que constituiu uma manifesta preterição de uma formalidade legal e uma violação do princípio da participação, sendo que o facto de a AT alegar que a Requerente foi notificada do RIT em 21.05,2021 não pode levar a considerar que os vícios referidos foram devidamente sanados.

Na resposta apresentada ao requerimento inicial e, num momento subsequente, nas suas alegações, a Requerida contestou este entendimento da Requerente, considerando que a Requerente foi correcta e devidamente notificada do RIT através dos seus Advogados, na medida em os que nos poderes que lhes tinham sido conferidos na procuração emitida, se incluíam também todos os efeitos fiscais que acompanharam o acto de alienação do imóvel propriedade da Requerente, uma vez que tais poderes se subsumiam no âmbito do cumprimento e exercício de “declarações complementares”.

Ou seja, por outras palavras, é convicção da AT, que os Advogados que foram constituídos procuradores estavam igualmente mandatados para entregar as declarações fiscais relativas à venda do imóvel e, consequente para receber notificações e/ou citações da AT, pois estes poderes estariam incluídos na expressão “declarações complementares”.

Vistos os argumentos deduzidos por cada uma das Partes neste primeiro fundamento de imp+ugnação apresentado pela Requerente, cabe ao Tribunal proceder à respectiva apreciação.

Assim:

  1. Quanto ao âmbito da procuração:

Como se referiu acima, entendeu a AT que no âmbito da procuração se incluiam também poderes para os mandatários procederem à entrega da declaração fiscal relativa à venda, com mais-valia, do imóvel sito em Portugal, e que tal resultava da inclusão, nesse mandato, da expressão “declarações complementares”.

Ora, como o seu nome claramente indica, esta expressão, tem uma natureza especifica e constitui a reprodução de uma linguagem usada pelo legislador, em especial, no Código do Registo Predial (cf. artigo 43º do respectivo Código), relativa a obrigações e formalidades complementares de actos sujeitos a registo predial, tendo, por isso, um âmbito de aplicação muito técnico, específico e, por via disso, restrito.

Não podendo, por isso, considerar-se que os Advogados em questão tinham poderes para, na situação em apreço, representar a Requerente na entrega da declaração Modelo 22 relativa ao ganho obtido na venda e, muito menos, poderes para receberem, em seu nome e representação qualquer tipo de notificação e/ou citação da AT.

Conclui-se, assim, neste ponto em particular, que a Requerente não se deve considerar validamente notificada na pessoa dos Advogados que a representaram no acto de venda do imóvel de que era proprietária em território nacional.

 

  1. Quanto à notificação da Requerente na sua sede em Itália e ao exercício do direito de audição prévia

Contudo, a AT considera ainda que a Requerente foi validamente notificada, porque a notificação enviada para a sua sede em Itália foi-lhe entregue, como o comprova o número de registo do correio atribuído, pelo que a Requerente teve oportunidade de exercer, directamente e não apenas através dos seus Advogados, o seu direito de audição prévia.

É um facto devidamente comprovado que a notificação com o projecto do relatório de inspecção tributária (PRIT) foi entregue à Requerente no dia 10.05.2021, tendo sido fixado, nessa notificação, o prazo de 15 dias para ser exercido o direito de audição prévia, prazo esse que terminaria, assim, no dia 25.05.2021.

Ora, como muito bem salienta a Requerente nas suas alegações, dado que a notificação foi efectuada para um país estrangeiro, terá que ser aplicável o prazo de dilação de 15 dias previsto no artigo 88º nº 1 alínea b) do CPA, bem como, e a acrescer, o prazo adicional de 30 dias fixado no nº 4 do mesmo preceito.

Assim, e sendo pacifico, para a melhor jurisprudência, a aplicabilidade destes preceitos ao tipo de situações em apreço, parece inquestionável que o prazo de exercício do direito de audição prévia pela Requerente, apenas começou a decorrer depois de passados os 45 dias de dilação previstos, levando a que terminasse somente no dia 09.07.2021.

Ora, como o Relatório Final de Inspecção (RIT) foi comprovadamente notificado à Impugnante no dia 25.06.2021, fácil é de concluir que o procedimento de inspecção, mais concretamente, o prazo para o exercício do direito de audição prévia, nessa data, ainda não tinha terminado.

Deve assim, no entendimento do Tribunal, colher o argumento da Requerente de que, apesar de lhe ter sido notificado o projecto do relatório de inspecção, o facto de o relatório final ter sido concluído e enviado, ainda no decurso do prazo de exercício do direito de audição relativamente ao projecto, tal deverá equivaler a não ter sido conferida a possibilidade do exercício desta faculdade.

Posto isto, levanta-se a questão de saber se o exercício do direito de audição seria, na presente situação, dispensável, isto é, se, no âmbito do princípio do aproveitamento dos actos administrativos, poderia ter sido dispensável, o exercício do direito de audição.

Para responder a esta questão, deve atentar-se, brevemente, à natureza e relevância deste princípio.

Para além da sua consagração constitucional – artigo 267º nº 5 da CRP – o mesmo vem expressamente previsto, quer no CPA (artigo 8º), quer na própria LGT (artigo 60º).

Dispõe este último preceito, no seu nº 1, o seguinte:

1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d)(*) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção; 

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

O direito dos contribuintes a participarem nas decisões da administração que lhes digam, directamente respeito, é um dos mais relevantes direitos em matéria tributária, transcendendo em muito, como diz o Professo Diogo Leite de Campos nos seus comentários à Lei Geral Tributária Anotada (páginas 614 e seguintes), “…a sua função no procedimento, porque revela toda uma concepção do papel que os contribuintes têm no procedimento. Como sujeitos de direitos e obrigações, cuja titularidade deriva directamente da lei, bem como na concepção da relação jurídica tributária como assente no princípio da igualdade entre ambos os sujeitos da relação. Por outro lado este direito de participação traduz também a função do procedimento tributário na determinação da verdade material, e a subordinação de ambos os sujeitos do procedimento ao interesse final de determinação da verdade e da aplicação da lei fiscal de forma justa e equitativa, assim se garantindo a eficácia do principio da igualdade entre todos os contribuintes, que é essencial no modernos estado social.” (sublinhado nosso).

No mesmo sentido, vem o Dr. Lima Guerreiro, igualmente na sua Lei Geral Tributária Anotada considerar que “(…) o meio adequado de participação dos contribuintes na formação das decisões da administração que lhes digam respeito (…) é o direito de audição que a administração tributária não pode unilateralmente, sem norma habilitadora nem acordo do contribuinte, substituir por outras formas de participação mesmo quando assegurem o mesmo objectivo”.

É assim pacifico e unânime, na melhor Doutrina, a importância e a relevância que assume o direito de audição prévia, como forma de garantir a participação dos sujeitos passivos na formação das decisões que lhes digam directamente respeito.

No mesmo sentido, inclina-se a melhor Jurisprudencia sendo disso exemplo, os Acordãos citados pela Requerente nos artigos 17º a 19º da sua petição inicial, onde se inclui o proferido pelo CAAD no Processo 540/2018-T.

Tendo, desta forma, em consideração, a relevância dada, pelo legislador, ao exercício deste direito, quais as consequências decorrentes para o processo em análise, de o sujeito passivo não ter podido exercer, antes da decisão final da AT, esse mesmo direito.

Não exercício esse que, como vimos, lhe não foi imputável.

Tratando-se, no entendimento do Tribunal, neste caso, a matéria constante do relatório de inspecção, de enorme relevância para a decisão, parece-nos que outra não poderá ser a consequência do que a anulação da liquidação efectuada na sequência do processo de inspecção.

Dito de outro modo, a intervenção da Requerente nesta fase do processo poderia, dadas as inúmeras questões que o processo de inspecção suscita na sua esfera, ter influenciado a decisão final da AT, pelo que, tendo-lhe sido vedada essa possibilidade, a consequência terá que ser, de forma inequívoca, para o Tribunal, a anulação da liquidação conforme, aliás, pedido formulado pela Requerente.

Não deverá, ainda, e no entendimento do Tribunal, ser aplicável, à presente situação, o “principio do aproveitamento do acto administrativo”.

Na verdade, a este propósito deve atentar-se à seguinte doutrina que emana da decisão proferida pelo TCAS no âmbito do processo 960/11.6 BELRS de 09.17.2020:

“IV - A preterição do direito de audição, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada.” (sublinhado nosso).

Como já se indicou supra, dada a natureza das questões suscitadas pelo relatório de inspecção que deu origem à liquidação objecto de impugnação, parece pacifica a enorme importância que a intervenção do sujeito passivo poderia ter tido na formação da decisão proferida pela Requerida no final do procedimento inspectivo.

Pelo que, em face do exposto, outra não poderia ser a decisão deste Tribunal do que a anulação da liquidação em questão por preterição de uma formalidade legal que, no seu entendimento, se considera essencial à formação do acto tributário de liquidação do tributo.

Em face do reconhecimento da preterição desta formalidade essencial e da correspondente anulação da liquidação de IRC em apreciação, o Tribunal considera injustificada e desnecessária, por inutilidade, a análise das restantes questões suscitadas pela Requerente.

 

3. Decisão

Tendo o Tribunal considerado que se verifica a preterição de uma formalidade essencial, decide-se:

  • Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios, referente ao ano de 2018, com o número 2021 ..., no valor de € 52.365,52, sendo € 46.482,04 correspondente ao imposto e € 5.883,48 a título de juros compensatórios

 

4. Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 52.365,52 (cinquenta e dois milhões trezentos e sessenta e cinco mil euros e cinquenta e dois cêntimos), que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

4. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, que fica a cargo da Requerida.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 31 de Outubro de 2022

 

O Tribunal Singular

 

 

 

João Marques Pinto