Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 721/2021-T
Data da decisão: 2022-09-19  IRS  
Valor do pedido: € 50.448,25
Tema: IRS – Mais-valias – Conceito de alienação onerosa – Não sujeição – Art. 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Paulo Lourenço, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 18 de janeiro de 2022, decide o seguinte:

 

 

I.RELATÓRIO

A..., contribuinte fiscal nº ... residente na ..., ..., ..., ..., Moçambique, de ora em diante designado por Requerente, solicitou a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do artigo2.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

O Requerente pretende que seja anulado o despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa nº ...2021... e, consequentemente, a liquidação adicional de IRS nº 2021..., do ano de 2019, com fundamento em errónea qualificação dos factos tributários. Em 10 de novembro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT no mesmo dia. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 18 de janeiro de 2022.

No dia 19 de janeiro de 2022, a AT juntou aos autos um requerimento, dando conta da revogação parcial do ato de liquidação e, nesse mesmo dia, foi efetuada a notificação do Requerente, para se pronunciar, querendo.

No dia 31 de janeiro, o Requerente veio manifestar a sua posição, no sentido da manutenção do pedido de pronúncia, tendo em conta a intenção de revogação integral do ato de liquidação do IRS.

Em 14 de fevereiro de 2022, a Requerida apresentou Resposta, juntou o processo administrativo e requereu a dispensa da inquirição da testemunha arrolada.

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Requerente apresentou um requerimento, no qual mantém o interesse na inquirição da testemunha que foi arrolada, por entender que há factos relevantes.

No dia 7 de março de 2022, o tribunal notificou o Requerente para indicar os factos concretos sobre os quais a testemunha deve ser inquirida e, no dia 17 de março de 2022, deu entrada um requerimento com a indicação dos artigos do pedido de pronúncia que contém os factos relevantes para efeitos de inquirição.

Por despacho do dia 18 de março de 2022 foi designado o dia 11 de abril de 2022 para a inquirição da testemunha e, no dia 31 de março de 2022, foi apresentado um requerimento pelas AT, solicitando a indicação de uma nova data para a inquirição da testemunha, tendo em conta que a data anteriormente apresentada coincidia com o período de férias.

Por despacho do dia 1 de abril de 2022, o tribunal arbitral, reconhecendo o lapso, reagendou a inquirição da testemunha para o dia 20 de abril de 2022.

No dia 20 de abril de 2022 foi efetuada a inquirição da testemunha e o tribunal arbitral fixou o dia 31 de maio de 2022 como data-limite para proferir a decisão.

As partes apresentaram as alegações e, no dia 6 de julho de 2022, o tribunal proferiu um despacho de prorrogação do prazo de decisão, o qual, por lapso, não foi inserido antes do final do mês de maio de 2022.

 

 

II.SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRS impugnado, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo e Procedimento Tributário (CPPT).

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).

Não foram identificadas questões prévias a apreciar ou nulidades processuais.

 

 

III.FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

  1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

  1. O Requerente tem residência fiscal em Maputo, Moçambique, estando devidamente enquadrado como não residente fiscal em Portugal.
  2. No dia 01 de abril de 2011, o Requerente e a sua então mulher adquiriram pelo preço de € 200.000,00 (duzentos mil euros), o prédio urbano, correspondente a um terreno para construção, sito na ..., Rua ..., ..., ..., na freguesia da ..., concelho da Amadora, descrito na ... Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º ..., da freguesia da ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo ..., conforme cópia de escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Lisboa de B... .
  3. No referido prédio foi construído pelo Requerente e pela sua então mulher um imóvel, tendo o mesmo sido inscrito na matriz como prédio novo, através da declaração Mod. 1 de IMI n.º ..., apresentada a 28/06/2016, o qual deu origem ao atual artigo matricial n.º ... da freguesia da ... .
  4. Na sequência da avaliação patrimonial efetuada pela AT foi atribuído ao imóvel o valor patrimonial tributário de € 390.210,00 (trezentos e noventa mil duzentos e dez euros).
  5. O imóvel construído destinou-se à habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar.
  6. No dia 24 de outubro de 2017, o casamento do Requerente e de C..., foi dissolvido por divórcio.
  7. Na sequência do divórcio a casa de morada de família, que correspondia ao imóvel supra identificado, foi atribuída à cônjuge mulher.
  8. O Requerente e a sua ex-mulher acordaram em proceder à venda do imóvel, devendo o produto da venda, após amortização dos empréstimos bancários contraídos para aquisição do terreno e respetiva construção, ser entregue a esta última na sua totalidade.
  9. No dia 30 de agosto de 2019, o Requerente e C..., já no estado de divorciados, procederam à alienação do imóvel supra identificado, pelo preço de € 900.000,00 (novecentos mil euros).
  10. Em conformidade com o acordo celebrado no dia 28 de setembro de 2017, o produto da venda do imóvel, após a liquidação dos empréstimos, foi entregue na totalidade à ex-mulher do Requerente, C... .
  11. No dia 30 de junho de 2020, o Requerente entregou a sua Declaração de IRS Modelo 3, referente aos rendimentos por si obtidos no ano fiscal de 2019, declaração essa a que foi atribuído o n.º ...2019..., e que deu origem à liquidação n.º 2020..., que apurou imposto apagar no montante de € 140.560,12 (cento e quarenta mil quinhentos e sessenta e doze cêntimos).
  12. O Requerente, por não se conformar com a liquidação efetuada, apresentou, no dia 1 de setembro de 2020, uma reclamação graciosa, a que corresponde o nº ...2020... .
  13. Por despacho de 5 de janeiro de 2021, proferido por delegação de competências da Subdiretora-Geral da área dos Impostos sobre o Rendimento, foi parcialmente revogado o ato contestado, tendo sido entendido aplicar o disposto no nº 2 do artigo 43º do CIRS ao saldo de mais-valias imobiliárias auferidas pelo Requerente no ano de 2019, mantendo-se a tributação autónoma à taxa especial de 28%.
  14. Através do ofício nº..., de 5 de março de 2021, a AT notificou o Requerente da sua intenção de indeferir parcialmente a reclamação graciosa e, no dia 31 de março de 2021, foi apresentada a resposta no âmbito do Direito de audição.
  15. A liquidação em causa veio a ser parcialmente revogada, na sequência do exercício do Direito de audição, que determinou que fosse efetuada uma nova liquidação, a que corresponde o n.º 2021-..., na qual foi apurado imposto a pagar no montante de € 50.448,25 (cinquenta mil quatrocentos e quarenta e oito euros e vinte e cinco cêntimos).
  16. Não se conformando com a referida liquidação de IRS, o Requerente apresentou no CAAD, em 10 de novembro de 2021, o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.         FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão não foram identificados outros factos que devam ser levados em consideração.

 

IV.MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

No que se refere aos factos provados, a convicção do árbitro fundou-se nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais e na análise crítica da prova documental junta aos autos.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA QUESTÃO DECIDENDA

 

A questão que importa apreciar diz respeito ao conceito de alienação onerosa, mais concretamente, pretende saber-se se a atribuição, a um dos comproprietários de um imóvel, da totalidade do produto da venda preenche ou não o conceito de alienação onerosa para efeitos de sujeição a IRS da correspondente mais-valia.

 

VI.QUADRO LEGAL

A matéria em discussão nos autos é regida pelo disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS que dispõe o seguinte:

“1 – Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

  1. Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

 

A Requerida que vigorando entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos (regime supletivo de bens desde 1967/06/01), tal regime assenta em que os bens trazidos para o casamento pelos cônjuges, ou posteriormente por eles adquiridos a título gratuito por doação ou sucessão, mantêm-se na propriedade exclusiva do cônjuge que os trouxe ou recebeu (artigos 1722 e 1723 do Código Civil (CC)), integrando-se no património comum do casal os bens resultantes do produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (artigo 1724 CC).

 

A venda efetuada a terceiro de um bem comum determina que cada um dos comproprietários recebe a sua quota-parte na comunhão, havendo lugar à tributação das mais-valias no caso de não sido efetuado o reinvestimento.

O Requerente, por seu lado, entende que não há lugar ao pagamento de imposto, uma vez que a totalidade do produto da venda foi entregue ao ex-cônjuge, não tendo sido gerada na sua esfera jurídica qualquer mais-valia.

Importa, em primeiro lugar, procurar determinar com precisão o conceito de alienação, face ao sistema jurídico português.

É pacificamente aceite pela doutrina que os contratos de alienação atualmente existentes no direito civil português são o contrato de compra e venda, o contrato de troca e o contrato de doação.

De acordo com o disposto no artigo 874º do Código Civil, a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou de um direito, mediante um preço.

O contrato de doação, por seu, vem previsto no artigo 940º, nº 1 do mesmo diploma legal, que estipula que a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

O contrato de troca, por seu lado, sem previsão específica no Código Civil, encontra o seu recorte decalcado no contrato de compra e venda e consiste na atribuição recíproca entre os contraentes de coisas presumivelmente de idêntico valor, adquirindo e perdendo cada um deles a propriedade sobre elas.

Os contratos de alienação supra definidos podem revestir caráter oneroso ou gratuito, consoante se verifique ou não a existência atribuições patrimoniais nos dois sentidos, ou seja, uma das partes cede uma parte do seu património e recebe uma contrapartida de idêntico valor da outra parte.

Tendo presente as definições acima mencionadas, apenas o contrato de compra e venda e o contrato de troca ou permuta revestem a natureza de contratos onerosos, já que o contrato de doação apenas revela atribuições patrimoniais num único sentido.

No caso concreto em apreço, o imóvel foi objeto de uma compra e venda, contrato que, como se referiu, se insere na categoria dos contratos de alienação efetuados a título oneroso.

Acontece, porém, que o produto da venda foi integralmente entregue ao outro comproprietário, não tendo o Requerente recebido qualquer importância a esse título.

Nesta conformidade, na sequência da partilha efetuada, o imóvel foi adjudicado ao ex-cônjuge do Requerente, tendo este renunciado expressamente ao recebimento das tornas a que tinha efetivamente direito.

A jurisprudência tem vindo a entender que a operação de partilha do património conjugal em caso de divórcio, que se traduza na adjudicação a um dos ex-cônjuges do imóvel e na renúncia do outro ex-cônjuge ao direito a receber as tornas, não constitui alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis para efeitos da alínea a) do nº 1 do artigo 10º do CIRS, não havendo por isso sujeição a imposto.

Na verdade, como bem se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de fevereiro de 2020, “…se o legislador pretendesse mesmo incluir no conceito de alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis da alínea a) do nº 1 do artigo 10º a partilha desses bens não poderia prescindir-se de o fazer, logo ali. Porque a questão da natureza jurídica da partilha é muito controversa na doutrina, mas tem prevalecido o entendimento de que, ao menos a partilha hereditária, tem um caráter marcadamente declarativo, limitando-se a determinar ou a materializar os bens que compõem o quinhão hereditário e não um caráter constitutivo ou translativo, pois a aquisição hereditária não decorre de recíprocas alienações e aquisições entre os co-partilhantes (Cit. Radindranath Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 2ª edição 1990, págs 358 a 359; sobre a natureza declarativa da partilha hereditária na jurisdição comum ver, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de fevereiro de 2014, no processo nº 9088/05.7TBMTS.P1.S1; na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, pode ver-se o acórdão de 7 de março de 2018, no processo nº 917/17)”.

E não deve olvidar-se, continua o mesmo acórdão, que “nos termos da lei civil, o divórcio tem os mesmos efeitos jurídicos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei – artigo 1788º do Código Civil”.

Finalmente, conclui o referido acórdão, “…se quisermos assegurar-nos de que no conceito de alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis da alínea a) do nº 1 do artigo 10º não vai incluído, por princípio, o fenómeno de natureza económica que vulgarmente se designa por partilha, bastará atentar na alínea seguinte, onde precisamente o legislador sentiu necessidade de estender o conceito de alienação onerosa de valores mobiliários de forma a incluir aí expressamente o valor atribuído em resultado da partilha correspondente”.

Posto isto, não cabendo a partilha e a adjudicação que lhe está subjacente no conceito de alienação onerosa previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do Código do IRS, forçoso será concluir pela não sujeição do Requerente a IRS, tendo em conta que não recebeu qualquer contrapartida da venda do imóvel.

Não se encontrando preenchida a norma de incidência prevista no artigo 10º. Fica prejudicada a análise da restante argumentação aduzida.

 

VII.DECISÃO

De harmonia com o supra exposto, decide o árbitro deste Tribunal Arbitral em julgar a ação procedente, com as legais consequências.

 

 

VIII.VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 50.448,25 correspondente ao valor da liquidação de IRS impugnada, incluindo juros compensatórios – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

IX.CUSTAS

Custas no montante de € 2.142,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de setembro de 2022

 

O árbitro

 

Paulo Lourenço