Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 750/2021-T
Data da decisão: 2022-09-19  IRC  
Valor do pedido: € 2.012.977,01
Tema: IRC - Autoliquidação. Art. 32º EBF. Excepção de incompetência.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A..., S.A. (anteriormente designada A..., SGPS, S. A.), NIPC ..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 18 de Novembro de 2021, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1, a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações efetuadas pela Lei nº 66- B/2012, de 31 de Dezembro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2012, e ainda do indeferimento do recurso hierárquico n. º ...2020... interposto contra tal acto, pedindo a anulação de ambos por vício de violação de lei, com fundamento nos arts. 2. º, 1, a), e 15. º e segs. do RJAT, e arts. 99º segs. do CPPT, por remissão do art. 137º do CIRC.
  3. Através da anulação parcial do acto tributário, a Requerente e suas sociedades dominadas pretendem desconsiderar do campo 779 do Quadro 07 das respectivas declarações de rendimentos (Modelos 22) do IRC individuais, por referência ao período de tributação de 2012, os encargos que neles foram indevidamente acrescidos no montante total de € 12.192.935,00 – o que, deduzido do lucro tributável inicialmente calculado, € 14.817.690,06, se traduz na correcção do lucro tributável do grupo fiscal B... com um resultado final de € 2.624.755,06, e com um cálculo de IRC liquidado em excesso no valor global de €2.012.977,01.
  4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  5. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 25 de Janeiro de 2022; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Nos termos art.º 17.º do RJAT, foi a AT notificada, em 25 de Janeiro de 2022, para apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 28 de Fevereiro de 2022, na qual, para além de defender-se por excepção, sustenta, essencialmente, que a liquidação não está ferida de ilegalidade, e por isso deve ser mantida na ordem jurídica.
  9. A Requerente foi notificada, por Despacho de 28 de Fevereiro de 2022, para pronunciar-se sobre a matéria de excepção, o que fez em 10 de Março de 2022, juntando ainda alguns documentos.
  10. Por requerimento de 31 de Março de 2022, a Requerente solicitou ainda a junção de novos documentos, tendo a Requerida exercido o correspondente contraditório em requerimento de 26 de Abril de 2022.
  11. Por despacho de 2 de Maio de 2022 foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, concedendo-se às partes a faculdade de apresentarem alegações, o que nenhuma fez, e fixando-se o prazo para a prolação e comunicação da decisão, prazo que foi prorrogado por despacho de 12 de Julho de 2022.
  12. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
  13. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  14. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. À data dos factos, a Requerente era uma gestora de participações sociais, dominante no “grupo fiscal B...”, tributado em IRC de acordo com o RETGS, composto então por:
  1. C..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º ... (“C...”);
  2. D..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º ... (“D...”);
  3. E..., SGPS, S.A. (anteriormente designada F..., SGPS, S.A.), pessoa colectiva n.º..., (“E...”);
  4. G..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º ... (“G...”);
  5. H..., SGPS, S.A. (anteriormente designada I..., SGPS, S.A.), pessoa colectiva, n.º..., (“H...”).
  1. Tanto a Requerente como estas participadas se encontraram, até 31 de Dezembro de 2013, sujeitas ao regime especial então previsto no art. 32º do EBF.
  2. Por isso todas acresceram para efeitos do apuramento do seu lucro tributável em sede de IRC, com referência ao período de tributação de 2012, os encargos financeiros alegadamente suportados com a aquisição de partes de capital, nos montantes elencados na tabela infra:
 

Montantes em Euros

Sociedade

Encargos Financeiros não dedutíveis

Grupo A…

9.475.482

C…

329.271

D…

844.912

E…

220.170

G…

0

I…

1.323.100

TOTAL

12.192.935

 
  1. Todas incluíram esses montantes nas suas declarações de rendimentos, desconsiderando-os como custos fiscais.
  2. E fizeram-no seguindo voluntariamente orientações genéricas expressas pela AT na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, no âmbito de aplicação do artigo 32.º, 2, do EBF.
  3. A primeira declaração de rendimentos “Modelo 22” do IRC do grupo fiscal B..., com referência ao período de tributação de 2012, foi submetida a 9 de Abril de 2013.
  4. Uma declaração de rendimentos “Modelo 22” de substituição do IRC do grupo fiscal B..., com referência ao período de tributação de 2012, foi submetida em 10 de Janeiro de 2014.
  5. A Requerente e as sociedades por ela dominadas vieram a aperceber-se, face à posição assumida pela jurisprudência, da ilegalidade da autoliquidação por elas efectuada, e especificamente de que os encargos financeiros tinham sido erradamente acrescidos no exercício de 2012, por se ter seguido a metodologia indirecta prevista na Circular nº 7/2004, quando poderia ter-se aplicado o método de afectação directa.
  6. Nestes termos e por referência a estes valores (da autoliquidação teria alegadamente resultado IRC em excesso no montante de €2.012.977,01) a Grupo A... solicitou à AT, em 7 de Abril de 2017, a revisão oficiosa do acto tributário de autoliquidação do IRC do período de tributação de 2012, n.º ...2017..., argumentando fundamentalmente que os encargos financeiros suportados não estiveram relacionados com a aquisição de partes sociais, pelo que, fazendo uma aplicação correcta do disposto no artigo 32.º, 2 do EBF, deveria privilegiar-se o método de afetação directa, cabendo apenas um papel subsidiário ao método de afectação indirecta previsto na Circular n.º 7/2004.
  7. Essa revisão oficiosa terminou em indeferimento por decisão da Subdirectora-Geral de Serviços do IRC, comunicada em 7 de Novembro de 2018, e precedida da notificação do projecto de decisão em 10 de Setembro de 2018.
  8. Inconformada, a Requerente interpôs, a 8 de Novembro de 2018, recurso hierárquico contra tal decisão, n.º ...2020...– invocando fundamentalmente que a aplicação do método de afectação indirecta previsto na Circular n.º 7/2004, quando estejam reunidas as condições de aplicação do método de afectação directa, vai contra o espírito neutral da norma do artigo 32.º do EBF (em que a isenção de mais-valias não se cumula com a consideração de gastos com a aquisição das partes sociais por uma SGPS), devendo os encargos suportados com a aquisição de partes sociais ser considerados no apuramento do lucro tributável, sob pena de violação do princípio da tributação pelo rendimento real.
  9. O recurso hierárquico, tendo decorrido na DSIRC, veio a ser indeferido por despacho da Directora Geral dos Impostos, comunicado em 23 de Agosto de 2021 e precedido de notificação para audição prévia, em 7 de Junho de 2021, direito que não foi exercido.
  10. A AT emitiu em 2019 a seguinte demonstração de liquidação de IRC, reportada ao período de 2012:

 

  1. A Requerente apresentou pedidos de informação junto da Direcção de Finanças de ..., a 30 de Julho de 2021 e a 14 de Janeiro de 2022, e um pedido de informação na plataforma e-balcão, a 7 de Março de 2022, acerca da demonstração de liquidação de IRC e do processamento do reembolso do imposto pago em excesso, em resultado do deferimento do pedido de revisão oficiosa relativo ao imposto devido pela G... .
  2. A AT emitiu em 2022 a seguinte demonstração de liquidação de IRC, reportada ao período de 2012, reflectindo já as correcções correspondentes à situação da G...:

 

  1. Era a seguinte a correspondente demonstração de acerto de contas:

 

  1. Em 18 de Novembro de 2021, a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, e com incidência sobre o ónus da prova (art. 74º LGT, art. 342º Código Civil), ficaram por esclarecer cabalmente:

  1. As disparidades entre, por um lado, os factos que a Requerente invoca, com a correspondente quantificação, e, por outro lado, os factos e quantificações constantes das suas declarações periódicas, que se presumem verdadeiras (art. 75º da LGT).
  2. Quais os financiamentos obtidos e correspondentes encargos financeiros que possa comprovar-se não terem sido destinados à aquisição de partes de capital, em cumprimento do estabelecido no art. 17º, 3, b) do CIRC em conjugação com o regime do art. 32º, 2 do EBF, e sob pena de cessar a presunção de veracidade contabilística (art. 75º, 2 da LGT).

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes desde o pedido de revisão oficiosa até aos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e nos documentos posteriormente juntos pela Requerente.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigos 596º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  5. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. A Requerente começa por manifestar a sua indignação pelo facto de, segundo ela, ter sido a mesma pessoa, no âmbito da DSIRC, a decidir a revisão do acto tributário, por um lado, e o recurso hierárquico, por outro lado, o que no seu entender violaria os deveres de justiça e imparcialidade plasmados nos arts. 9º do CPA e 55º da LGT, além de transgredir a proibição de intervenção consagrada no art. 69º, 1, f) do CPA.
  2. Por outro lado, estranha alegações de intempestividade por parte da AT, visto ter apresentado o pedido de revisão oficiosa dentro do prazo de 4 anos após a entrega da declaração de rendimentos, respeitando o estabelecido no art. 78º da LGT – e por sustentar que há até um dever de revisão oficiosa por parte da AT, visto ter ocorrido, no seu entender, um erro imputável aos serviços, consubstanciado nas instruções constantes da Circular nº 7/2004, que apontavam para uma metodologia que veio a ser considerada pela jurisprudência, judicial e arbitral, como ilegal (essencialmente por, através de uma simples fórmula matemática, presumir a existência de encargos financeiros não dedutíveis, sem a inerente concretização das partes de capital alegadamente adquiridas com recurso a financiamento, e sem a concretização da alienação geradora de mais-valias não tributadas).
  3. A Requerente faz notar que, em 2012, quer ela quer as sociedades por si dominadas (incluindo a própria D...) não efectuaram qualquer aquisição de partes de capital a outras entidades, e que o mesmo sucedeu quanto à transmissão onerosa de partes de capital de que fossem titulares (neste segundo caso, com excepção da C...).
  4. O que relevaria para a aplicação do art. 32º, 2 do EBF na redacção dada pelo art. 144º da Lai nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, nos termos do qual apenas poderiam ser fiscalmente desconsiderados os encargos financeiros incorridos com a aquisição de participações sociais objecto de transmissão onerosa em 2012, e somente quando tivessem gerado uma mais-valia ou menos-valia não tributada: o que nem sequer sucedeu no caso da alienação de acções e cessão de créditos por parte da C... .
  5. Assim, no entender da Requerente jamais se poderia chegar, por aplicação da letra do art. 32º, 2 do EBF, na redacção em vigor à época, ao montante de encargos financeiros acrescidos pelo grupo B..., por aplicação da metodologia indirecta prevista no ponto 7 da Circular nº 7/2004.
  6. E muito menos se poderia sustentar a aplicação, sequer, do próprio art. 32º do EBF, por não ter havido, em 2012, mais-valias e menos-valias fiscais por alienação de participações sociais – não podendo, consequentemente, recusar-se a dedutibilidade fiscal de tais encargos no período de 2012.
  7. Sublinhando a Requerente que a fórmula alegadamente contida no ponto 7 da Circular nº 7/2004 se revela particularmente inadaptada à realidades das SGPS, nas quais a actividade é contínua, complexa e dificilmente decomponível em momentos susceptíveis de correspondência exacta, e estática, a presunções e métodos indirectos presos a saldos finais de balanço.
  8. Como o assevera a própria Requerente, “se na fase da contratação já é difícil rastrear o financiamento, mais difícil se torna após a passagem de vários anos de actividade, com dividendos recebidos, mais-valias, juros recebidos e por vezes serviços prestados, resultando num cash inflow que naturalmente abate a dívida obtida, pelo método FIFO e não, obviamente pelo método da origem. [§] E com dívida externa funciona exactamente do mesmo modo: o cash in (qualquer que seja a sua origem) é canalizado para amortizar a dívida que se vence (qualquer que tenha sido a razão subjacente à sua contratação) e que normalmente é a mais antiga.
  9. Daqui decorre que a Requerente sustenta ter acrescido indevidamente montantes totais de € 12.192.935,00, o que, deduzido ao resultado fiscal inicial de € 14.817.690,06, daria um resultado fiscal corrigido de € 2.624.755,06.
  10. A Requerente infere que haveria um IRC liquidado em excesso no valor global de €2.012.977,01, que ela calcula do seguinte modo:
     

Montantes em euros

 

Modelo 22 2012 (RETGS) [*]

Correcções
propostas

Diferenças

Resultado fiscal do grupo

14 817 690,06

2 624 755,06

-12 192 935,00

Prejuízos fiscais deduzidos

104 658,48

104 658,48

0,00

Matéria colectável

14 713 031,58

2 520 096,58

-12 192 935,00

Colecta principal

3 678 257,90

630 024,15

-3 048 233,75

Derrama estadual

608 509,64

608 509,64

0,00

Colecta total

4 286 767,54

1 238 533,79

-3 048 233,75

CDTI

1 718 029,55

1 238 533,79

-479 495,76

Benefícios Fiscais

313 614,21

0,00

-313 614,21

GPI

283 299,87

0,00

-283 299,87

SIFIDE

1 168,34

0,00

-1 168,34

RFAI

29 146,00

0,00

-29 146,00

Pagamentos Especiais por Conta

269 210,82

0,00

-269 210,82

IRC liquidado

1 985 912,96

0,00

-1 985 912,96

Retenções na fonte

6 372 114,98

6 372 114,98

0,00

IRC a recuperar

4 386 202,02

6 372 114,98

1 985 912,96

Derrama municipal (1,5%)

369 829,50

342 765,44

-27 064,05

Tributação autónoma

619 554,88

619 554,88

0,00

Pagamentos adicionais por conta

645 224,32

645 224,32

0,00

Juros compensatórios

0,00

0,00

0,00

IRC a recuperar

4 042 041,97

6 055 018,98

2 012 977,01

             

 

  1. A isso acresceria, em consequência, um direito ao reporte de créditos fiscais para dedução futura do grupo, no montante global de € 1.062.320,79, assim calculados:
    1. € 479.495,76, relativos ao Crédito de Imposto por Dupla Tributação Internacional (“CDTI”);
    2. € 283.299,87, referentes a benefícios fiscais de Grandes Projectos de Investimento (“GPI”);
    3. € 29.146,00, relativos ao Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”);
    4. € 1.168,34, relativos ao Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE”);
    5. € 269.210,82, referentes a Pagamentos Especiais por Conta.
  2. Para além do reembolso do IRC pago em excesso, a Requerente reclama juros indemnizatórios nos termos do art. 43º, 1 da LGT, assente na alegação de que houve erro imputável aos serviços, consubstanciado na Circular nº 7/2004.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Para lá da defesa por excepção, de que trataremos adiante, a Requerida impugna o pedido da Requerente reiterando as razões de facto e de direito que sustentam as decisões de indeferimento dos procedimentos de Revisão Oficiosa e de Recurso Hierárquico.
  2. Quanto à Circular nº 7/2004, sustenta que a sua orientação continua válida, para resolver situações em que sejam inviáveis métodos directos; e que a demonstração da inviabilidade desses métodos não pode caber à AT em situações de autoliquidação, nas quais o acto tributário é produzido pelo próprio sujeito passivo.
  3. Prosseguindo neste entendimento, a AT alega que a Requerente não aduziu elementos probatórios que permitissem realizar a imputação directa dos encargos resultantes de financiamentos associados à aquisição de participações sociais, pelo que ficou por fazer a comprovação de que os gastos acrescidos ao resultado líquido do período de tributação não o deveriam ter sido.
  4. Haveria, pois, um problema de prova, e de ónus da prova: atacar o disposto na Circular nº 7/2004 sem apresentar, nos termos do art. 17º, 3, b) do CIRC, uma contabilidade susceptível de esclarecer se os requisitos do art. 32º, 2 do EBF estão preenchidos, seria tentar furtar-se às imposições contabilísticas que justificam o regime especial de benefícios que se aplicava às mais-valias e menos-valias obtidas pelas SGPS.
  5. Ora, alega a Requerida, a Requerente nunca chega a fazer prova de que a aplicação do chamado método directo ou de identificação específica conduziria a outros resultados do que aqueles que foram alcançados.
  6. A Requerida insiste que a Circular nº 7/2004 jamais afastou a análise casuística: apenas forneceu uma alternativa quando essa análise casuística se revelasse inexequível. E evidente não poderia sobrepor-se à lei, nem, mais especificamente, afastar o disposto no art. 17º, 3, b) do CIRC.
  7. Alega ainda a Requerida que a Circular nº 7/2004 jamais pretendeu converter-se numa nova norma de incidência, o que violaria a legalidade tributária: apenas forneceu um método legítimo de preenchimento dos requisitos do art. 32º, 2 do EBF, a par com outros métodos igualmente legítimos (desde que exequíveis).
  8. Ora, insiste a Requerida, dado que houve uma autoliquidação, cabe à Requerente demonstrar os factos que alicerçam a sua pretensão de que houve imposto pago em excesso – ou, mais especificamente, porque é que apresenta factos e valores diversos dos constantes das declarações periódicas, que, nos termos do art. 74º da LGT, gozam da presunção de veracidade.
  9. Mais ainda, competia à Requerente identificar especificadamente os financiamentos obtidos e os correspondentes encargos financeiros, para prova de que estes não se destinaram à aquisição de partes de capital, visto que tal dever resulta da conjugação do art. 17º, 3, b) do CIRC em conjugação com o regime do art. 32º, 2 do EBF.
  10. Lembrando ainda a Requerida que, na ausência de suporte contabilístico adequado, cessa, nos termos do art. 75º, 2 da LGT, a presunção de veracidade da contabilidade.
  11. Como a AT não teve qualquer intervenção na autoliquidação, nem qualquer interferência nos valores apurados através de alguma acção inspectiva, infere a Requerida que, na falta de comprovação directa dos factos, que cabe à Requerente, não se vislumbra qualquer erro – no sentido de disparidade entre o que foi liquidado e o que devia ter sido legalmente liquidado, e menos ainda se vislumbra qualquer erro cometido pela AT, ou a ela imputável.
  12. A Requerida demonstra ainda que a revisão oficiosa e o recurso hierárquico não foram decididos pela mesma pessoa, a primeira foi-o pela Directora de Serviços do IRC, o segundo foi-o pela Directora Geral dos Impostos.
  13. E conclui pela improcedência do pedido de juros indemnizatórios, fazendo ainda notar que, a serem devidos, apenas o seriam um ano após a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa, nos termos do art. 43º, 3, c) da LGT.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. Sobre a Defesa por Excepção

 

IV.A.1. Posição da Requerida

 

  1. Na sua Resposta, a Requerida começa por defender-se apresentando uma excepção dilatória, cuja procedência levaria à absolvição da instância: a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral para reconhecer “o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 2.012.977,01”.
  2. A Requerida recapitula os dados e cálculos apresentados pela Requerente para chegar àquele valor de € 2.012.977,01, que assentam expressamente em operações de quantificação que implicam a análise da declaração de rendimentos modelo 22 de substituição do IRC do grupo fiscal B..., com alterações decorrentes da execução de decisões arbitrais e de decisões de procedimentos administrativos – um conjunto de variáveis cujo conhecimento extravasa a competência estabelecida, para os tribunais arbitrais, pelo art. 2º, 1 do RJAT e pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi art. 4º do RJAT.
  3. Mesmo na mais ampla enumeração de competências dos tribunais arbitrais não caberia, no entender da Requerida, a apreciação do pedido de reconhecimento do direito ao reembolso do imposto de acordo com o valor de € 2.012.977,01 quantificado pela Requerente, bem como do direito a juros indemnizatórios, liquidados sobre esse montante – inexistindo qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT, ainda que constituíssem consequência, a nível de execução de julgados, da declaração de ilegalidade de atos de liquidação.
  4. Como resulta da formulação do art. 24º, 1 do RJAT, ao impor um dever à AT, é a esta, e só a esta, que compete concretizar a execução dos julgados arbitrais, sem excluir o processo de execução de julgados previsto no art. 146º do CPPT e nos arts. 173º e seguintes do CPTA (extensivo às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da AT, ou a requerimento do particular – cfr. art. 172º CPA); não cabendo aos tribunais arbitrais definir os termos em que devem ser executados os julgados anulatórios que os próprios tribunais arbitrais profiram.
  5. Além disso, os tribunais arbitrais não têm competência para processos de execução de julgados – até porque se dissolvem na sequência da decisão arbitral, nos termos do art. 23º do RJAT.
  6. De forma sucinta, dir-se-á que aos tribunais arbitrais cabe a apreciação da legalidade da liquidação, mas é à AT que cabe a quantificação das consequências.
  7. Aliás, mesmo que a excepção não procedesse, o tribunal não disporia de elementos para condenar a Requerida na quantia peticionada – tendo quando muito de determinar uma anulação parcial da liquidação e remeter o cálculo dos montantes a restituir para a sede da execução da sentença.
  8. O dever de execução do julgado arbitral, o qual se caracteriza como um contencioso de controlo da legalidade de actos da administração tributária conexionados com a liquidação de tributos, abrange, de acordo com o disposto no artigo 24º, 1, a) e b) do RJAT, a prática de novo acto de liquidação expurgado do vicio que constituiu fundamento da decisão de anulação proferida pelo tribunal arbitral, bem como o pagamento de juros indemnizatórios e o pagamento de indemnizações por garantia indevida, e não qualquer outro tipo de condenação, em consonância com o âmbito da competência dos tribunais arbitrais previsto no artigo 2.º, 1, do RJAT.
  9. No caso, tratar-se-ia da concretização de uma liquidação dirigida a um grupo societário que agrega várias sociedades, sendo que o RETGS determina a elaboração de documentos de correcção que têm em consideração os resultados das sociedades dominadas e da sociedade dominante, por forma a gerar a respectiva liquidação do imposto do grupo, o que envolve operações de quantificação complexas, totalmente fora do alcance do tribunal arbitral.

 

IV.A.2. Posição da Requerente

 

  1. Em resposta apresentada em 10 de Março de 2022, a Requerente sustenta a improcedência da excepção, começando por argumentar que se trata de reconhecer que o processo arbitral é um meio contencioso de plena jurisdição, e não apenas de anulação – no sentido de que não se esgota na sindicância a legalidade, antes se espraia para a efectiva reconstituição da situação tributária em litígio, repondo a situação hipotética que existiria se a ilegalidade que determinou a anulação não se tivesse verificado, e com isso assegurando a tutela judicial efectiva dos direitos do contribuinte: o que nomeadamente se traduz na possibilidade de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, ou no reembolso da prestação tributária paga em excesso.
  2. No entender da Requerente, estariam, pois, ao alcance do tribunal arbitral poderes de invalidação do acto impugnado que abrangeriam a prática de actos jurídicos e de operações materiais necessários à efectiva reconstituição da situação hipotética, expurgada da ilegalidade e de todos os efeitos que contrariem essa reconstituição.
  3. Ora, alega, no caso vertente o que está em causa é tão-só a restituição de um montante de imposto pago em excesso – sendo que, alega, o que pode obter-se por execução do julgado anulatório pode obter-se igualmente por declaração do efeito consequente da anulação em processo no qual se discuta a legalidade do acto impugnado, ficando logo definida a situação tributária resultante da anulação.
  4. Estranha ainda a Requerente que a AT se escude numa defesa por excepção, sem sequer invocar a incorrecção do montante de reembolso peticionado, ou sem invocar uma esfera de discricionariedade técnica em seu favor.
  5. Na situação concreta, a Requerente contesta que se trate de uma questão de cálculo complexo, ou dependente da execução de decisões arbitrais e de decisões de procedimentos administrativos, sustentando ao invés que a liquidação assenta em demonstrações emitidas pela própria AT – sendo que a única pendência se refere a uma desconsideração de encargos financeiros indevidamente acrescidos na esfera de uma das sociedades do grupo.
  6. E contesta também que se pretenda, com o pedido arbitral, solicitar a execução de qualquer decisão administrativa ou arbitral.
  7. Quanto ao facto de os valores invocados não estarem reflectidos nas declarações de rendimentos submetidas para 2012, a Requerente explica que esses valores resultam da conjugação de um conjunto de valores que foram sucedendo ao longo do tempo e que originaram várias correcções ao resultado fiscal do grupo, e que vão de declarações de substituição, a decisões arbitrais, a correcções promovidas no âmbito de procedimentos inspectivos, de revisões oficiosas, de recursos hierárquicos, de ajustamentos correlativos em notas de liquidação.
  8. A Requerente sustenta que todos esses valores estão espelhados na demonstração de liquidação de IRC datada de 29 de Abril de 2019, mas de imediato ressalva que há correcções que não estão reflectidas nessa demonstração, nomeadamente a situação da G... (pontos 32 e seguintes do requerimento de 10 de Março de 2022).
  9. E acaba por reconhecer que não dispõe de uma demonstração de liquidação de IRC apurada pela AT que agregue todas as correcções, mas atribui a responsabilidade por isso exclusivamente à própria AT, documentando-o com os pedidos de informação não-respondidos (pontos 35 e seguintes do requerimento de 10 de Março de 2022).
  10. Conclui que, ao contrário do alegado pela AT no ponto 37 da sua resposta, o resultado fiscal do grupo fiscal B... é “simples e linear”.

 

IV.A.3. Junção de documentos e contraditório

 

  1. Por requerimento de 31 de Março de 2022, a Requerente juntou a nota de liquidação e a demonstração de acerto de contas, actualizando a situação do grupo B.., reflectindo a correcção referente à G... .
  2. Chamada a exercer o contraditório a propósito desta junção de documentos, a Requerida, por requerimento de 26 de Abril de 2022, insiste que a documentação apresentada pela Requerente não comprova a sua pretensão, demonstrando, ao invés, que os cálculos em que faz assentar o pedido de reembolso do imposto pago em excesso extravasam a competência de um tribunal arbitral, na medida em que convocam a análise de declarações de rendimentos modelo 22 de substituição, tanto do grupo como das empresas individuais, alterações decorrentes de decisões administrativas e arbitrais.
  3. Fica provado, segundo a Requerida, que estamos perante uma liquidação dirigida a um grupo societário que agrega várias sociedades, sendo que o RETGS determina a elaboração de documentos de correção que têm em consideração os resultados das sociedades dominadas e da sociedade dominante, por forma a gerar a respetiva liquidação do imposto do grupo, o que envolve operações de quantificação complexas que implicam a análise de elementos pela AT, entidade competente para determinar o concreto montante do imposto a liquidar, sendo que o tribunal arbitral não dispõe de elementos que lhe permitam condenar a Requerida na quantia peticionada.
  4. Com efeito, insiste a Requerida, mesmo admitindo-se como bom o cálculo proposto pela Requerente, baseado na declaração de rendimentos ("Modelo 22") de substituição do IRC do grupo fiscal B..., submetida em 10 de Janeiro de 2014 (Documento n.º 22 junto ao PPA), e contendo as alterações decorrentes
    1. das decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.º 776/2014-T (Documento n.º 23 junto ao PPA) e n.º 473/2015-T (Documento n.º 24 junto ao PPA),
    2. das correcções promovidas no âmbito do procedimento de inspecção tributária efectuada na esfera do grupo fiscal B... ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI 2016... (Documento n.º 25 junto ao PPA),
    3. da decisão final do Recurso Hierárquico proferida no âmbito do Processo n.º ...2015... (Documento n.º 2 junto ao PPA),
    4. de um ajustamento correlativo (Documento n.º 26 junto ao PPA), e
    5. da decisão final do Pedido de Revisão Oficiosa proferida no âmbito do Processo n.º ...2016... (Documento n.º 3 junto ao PPA).
  5. Ainda assim não estaríamos na posse de todos os elementos que habilitariam a realização de uma liquidação com segurança.
  6. Com efeito, nota a Requerida, na própria Demonstração de Liquidação de IRC n.º 2021 ... aparecem mencionados outros procedimentos administrativos para além daqueles que a Requerente identificou, como este: “Fica notificado(a) da liquidação de IRC relativa ao ano a que respeitam os rendimentos acima identificados - conforme nota demonstrativa - resultante da execução da decisão proferida no processo de Reclamação Graciosa com o n.... 2017...”.
  7. E na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022 ... aparecem a referência ao estorno da liquidação n.º 2021 ..., ao acerto da liquidação n.º 2021 ..., à liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... e à regularização parcial de doc. anterior, nota n.º 2017 ... – tudo elementos a acrescerem à complexidade do cálculo da liquidação.

 

IV.B. Procedência da excepção

 

  1. Julgamos procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral para reconhecer o direito ao “reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 2.012.977,01”, tal como peticionado no PPA.
  2. E, procedendo essa excepção dilatória, isso conduzirá à absolvição da instância – arts. 278º, 1, a), 576º, 2 e 577º, a) do CPC, e art. 89º, 2 e 4, a) do CPTA.
  3. Com efeito, o apuramento de todos os elementos que habilitariam a realização de uma liquidação com segurança, no caso vertente, extravasa manifestamente das competências de um tribunal arbitral.
  4. Aos tribunais arbitrais, por força da conjugação do disposto no art. 2º do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi art. 4.º do RJAT, compete, numa enumeração largamente consensual,
    1. a apreciação directa de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de:
      1. actos de liquidação de tributos cuja administração seja cometida à AT,
      2. actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta de tributos cuja administração seja cometida à AT, desde que tenham sido precedidos de recurso à via administrativa prévia necessária, prevista nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT,
      3. actos de fixação da matéria tributável sem recurso a métodos indirectos, quando não dêem origem à liquidação de qualquer tributo,
      4. actos de determinação da matéria tributável sem recurso a métodos indirectos,
      5. actos de fixação de valores patrimoniais, para efeitos de imposto, cuja administração seja cometida à AT,
      6. actos de liquidação de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente sobre exportação de mercadorias,
      7. pretensões relativas a imposições à exportação instituídas no âmbito da política agrícola comum (PAC) ou no âmbito de regimes específicos aplicáveis a determinadas mercadorias resultantes da transformação de produtos agrícolas,
      8. actos de liquidação de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), impostos especiais sobre o consumo (IEC's) e outros impostos indiretos sobre mercadorias que não sejam sujeitas a direitos de importação.
    2. a apreciação de actos de segundo ou de terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de actos daqueles tipos, designadamente decisões de reclamações graciosas e recursos hierárquicos (nos termos do art. 10º, 1, a) do RJAT).
  5. Não compete aos tribunais arbitrais envolverem-se nos procedimentos de cálculo de que dependerá uma liquidação segura e justa que corresponda ao efeito cumulativo de regularizações totais e parciais resultantes de declarações de rendimentos, originais ou substitutivas (no ambiente do RETGS, com incidências suplementares em matéria de Crédito de Imposto por Dupla Tributação Internacional, de Benefícios Fiscais de Grandes Projectos de Investimento, de Regime Fiscal de Apoio ao Investimento, de Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial, de Pagamentos Especiais por Conta), de acertos de liquidações, de liquidações de juros compensatórios, de estornos de liquidações, de ajustamentos correlativos, de execução de decisões finais de pedidos de revisão oficiosa, de execução de decisões finais de recursos hierárquicos, de execução de anteriores julgados arbitrais, de correcções promovidas no âmbito de inspecções tributárias, e de respostas, ou faltas de respostas, a pedidos de informação.
  6. Os tribunais arbitrais não dispõem, nem de meios, nem de poderes, para se substituírem à AT nessas tarefas de interacção com os contribuintes – sendo, aliás, que algumas dessas tarefas estão cometidas em exclusivo à AT, e só um tribunal tributário disporá de competência genérica, e poderes, para interferir nelas.
  7. Ora, no caso, a enumeração supra de elementos que interferem na liquidação em apreço verifica-se plenamente, num contexto de aplicação do RETGS que evidencia grande complexidade e grande dificuldade em sedimentar-se num consenso quantificado entre a AT e os contribuintes – sendo que legitimamente se instala a dúvida acerca do rigor e da definitividade dos cálculos em que assentam as pretensões da Requerente, razão pela qual se deu por não-provada a conexão entre, por um lado, os valores adiantados pela Requerente no PPA e nas subsequentes peças processuais, e, por outro lado, os valores constantes das duas declarações de rendimentos referidas a 2012 e apresentadas pelo grupo encabeçado pela Requerente.
  8. Acrescente-se, aliás, que, por razões idênticas, se entendeu que a Requerente não fez prova cabal dos erros da autoliquidação, que se limita a atribuir à Circular 7/2004, sem indicar, como lhe competia, qual o caminho que ela seguiu para, em alternativa ao método proposto nessa Circular, expurgar tais “erros” sem deixar de dar cumprimento ao estabelecido no art. 32º, 2 do EBF, em conjugação com o art. 17º, 3, b) do CIRC.
  9. Mas não cabe a este Tribunal pronunciar-se, no mérito, quanto às consequências do que ficou provado ou não-provado – pois isso é incompatível com a própria procedência da excepção.
  10. O que fica claro é que a opção de seguir-se, e depois deixar de se seguir, a metodologia proposta pela Circular 7/2004, está longe de ser o único, ou quiçá o principal, problema que dificulta a liquidação rigorosa dos rendimentos sujeitos a IRC correspondentes ao exercício de 2012 – pelo que, mesmo que tivesse sido demonstrada a invocada ilegalidade do método proposto pela Circular nº 7/2004, o que se afigura no mínimo discutível, o conhecimento dessa ilegalidade, que está ao alcance de um Tribunal Arbitral, não resolveria o problema da liquidação, e não permitiria satisfazer a pretensão da Requerente.
  11. Esta circunstância fica particularmente bem ilustrada em algumas inconsistências em que incorre a Requerente: veja-se que, na sua resposta à matéria de excepção suscitada pela AT, começa por asseverar que "não subsiste qualquer complexidade na determinação do peticionado reembolso", e que "não se pretende com o presente pedido arbitral solicitar a execução de qualquer decisão administrativa ou arbitral", mas logo no ponto 28 dessa mesma resposta volta a elencar, entre outras, duas decisões arbitrais como fundamentos para os valores que reclama, e adiante já admite que "tais valores resultam da conjugação de um conjunto de factores que foram sucedendo ao longo do tempo e que originaram várias correcções ao resultado fiscal do grupo de sociedades, por referência ao período de tributação de 2012".
  12. Por outro lado, a Requerente assaca à AT a responsabilidade exclusiva do facto de não poder dispor de uma demonstração de liquidação de IRC que agregue todas as correcções efectuadas; mas isso equivale a confessar que essa liquidação não existe, e que o que peticiona deste Tribunal é que entre nessa área proibida - contradizendo-se ao asseverar que, contra o que a AT afirmou na sua resposta, o "resultado fiscal" do Grupo de sociedades "se afigura assaz simples e linear".
  13. Mais ainda, as últimas peças processuais apresentadas pelas partes chegam a indiciar que há litígios já solucionados entre a Requerida e a Requerente que têm relevo para a liquidação, e somente tardam a ser executados – caso em que uma decisão deste Tribunal, se fosse competente, interferiria nesse domínio de uma pura execução em curso.
  14. Em suma: a apreciação do pedido de reconhecimento do direito ao reembolso do imposto de acordo com o valor de € 2.012.977,01 quantificado pela Requerente, bem como do direito a juros indemnizatórios, liquidados sobre esse montante, extravasa abertamente das competências deste Tribunal, ao qual está vedado que compita com a AT na quantificação das consequências de todas as variáveis de que depende a liquidação – e, com ela, a pretensão da Requerente.
  15. Como estabeleceu lapidarmente a decisão proferida no processo n.º 17/2012-T: “O recorte constitucional dos tribunais arbitrais, a sua natureza facultativa (para o legislador e para as partes), a circunstância de não serem tribunais comuns, nem dotados de competência residual, torna particularmente relevante a demarcação ratione materiae. Na ausência de norma atributiva de competência haverá de concluir-se, sem mais, pela procedência da excepção”.
  16. Verifica-se, portanto, uma excepção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, seguindo-se a absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576º, 2 e 577º, a) do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.
  17. Procedendo essa excepção, e tendo em atenção a formulação do nº 1  do art. 278º do CPC, este Tribunal tem o dever estrito de se abster do conhecimento do pedido – de todo o pedido e de qualquer parte do pedido –,para não interferir no direito, que a Requerente tem, de propor outra acção sobre o mesmo objecto (art. 279º, 1 do CPC), agora no tribunal competente, tribunal ao qual caberá decidir do mérito do pedido, na sua integralidade e em qualquer das suas facetas, e ex novo, ou seja, sem truncagens prejudiciais resultantes de tomadas de posição por parte de um Tribunal que se limitou a reconhecer a sua incompetência.
  18. Situação que fica reforçada pela circunstância de, reconhecendo-se a incompetência absoluta do Tribunal Arbitral, ficar aberto o caminho para uma jurisdição diferente, a dos Tribunais Administrativos e Fiscais – um caminho que, vedando qualquer remessa, não deve ser perturbado por tomadas de posição do presente Tribunal.

 

IV.C. Questões de conhecimento prejudicado.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a) Declarar a incompetência deste Tribunal em razão da matéria;

 

b) Julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo;

 

c) Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €2.012.977,01 (dois milhões, doze mil, novecentos e setenta e sete euros e um cêntimo), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 26.316.00 (vinte e seis mil, trezentos e dezasseis euros) a cargo da Requerente, Grupo A..., S.A. (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 19 de Setembro de 2022

 

Os Árbitros

Fernando Araújo

 

Henrique Nogueira Nunes

(vencido conforme declaração em anexo)

 

 

Maria Manuela do Nascimento Roseiro

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Voto vencido por discordar do entendimento do Tribunal de que procedendo a excepção para reconhecer o direito da Requerente ao “reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 2.012.977,01” como peticionado no PPA, tal tenha como consequência necessária o não conhecimento dos restantes pedidos – para, supostamente, não interferir no direito que a Requerente tem de propor outra acção sobre o mesmo objecto.

 

A Requerente formula vários pedidos ao Tribunal, designadamente e a título principal, que o Tribunal decrete a:

 

1) Ilegalidade e anulada a decisão administrativa impugnada;

2) Anulação parcial da liquidação em causa nos autos, relativa ao período de tributação de 2012, com as consequências legais;

3) O reconhecimento do direito ao reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 2.012.977,01.

 

Por seu turno a própria AT, embora defendendo a procedência da excepção de incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido arbitral, vem admitir que caso o Tribunal decida apreciar o pedido arbitral e julgá-lo procedente, deverá determinar a anulação parcial da liquidação e a restituição do montante que vier a ser apurado em sede de execução de sentença, porquanto não dispõe de elementos que lhe permitam condenar na quantia peticionada.

 

Ora, entendo que como decidido no processo arbitral n.º 413/2019-T a procedência da excepção invocada quanto ao pedido descrito, in casu, no ponto 3) supra, não dita a incompetência do Tribunal Arbitral de apreciar e decidir os pedidos descritos nos pontos 1) e 2) supra, para referir os pedidos principais.

 

A competência dos Tribunais Arbitrais Tributários que funcionam no CAAD restringe-se, para o que aqui interessa, à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (cfr. art.º 2.º, n.º 1 do RJAT).

 

Mesmo relativamente à impugnação de actos praticados no âmbito de procedimentos tributários, a competência destes tribunais arbitrais restringe-se à actividade conexionada com actos de liquidação de tributos, ficando de fora da sua competência, como é sabido, a apreciação de actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação.

 

O contencioso tributário (onde se insere o arbitral) é um contencioso de mera anulação visando a apreciação, sequencialmente, dos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e dos vícios arguidos que conduzam à sua anulação – art.º 124, n.º 1 do CPPT, ou seja, a impugnação judicial (e nesta sede a arbitral) visa a anulação de actos, é este o seu objecto, até por razões de optimização da tutela jurisdicional dos administrados.

 

Neste sentido, entendo que embora se verifique a excepção invocada pela Requerida da incompetência do Tribunal quanto ao pedido de a condenar a ver à Requerente reconhecido “o direito ao reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 2.012.977,01”, tal não impossibilita o Tribunal de apreciar e decidir quanto aos restantes pedidos por esta formulados, designadamente os dois iniciais conforme o PPA. Assim o justifica o princípio do aproveitamento do processo.

 

Como bem decidiu o STA, no processo proferido sob o n.º 0242/09, de 08-07-2009, e citando-o:

“No que se refere à impossibilidade de cumulação de pedidos de anulação das liquidações de imposto com pedido de anulação do acto de reversão, cumpre dizer que, se fosse esse o caso, dever-se-ia determinar não o indeferimento liminar da petição mas o prosseguimento do processo para conhecimento da ilegalidade da liquidação, por ser esse pedido compatível com a forma de processo utilizada [cfr. o artigo 193.º, n.º 4 do CPC; neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e Comentado, vol. II, 5.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2007, p. 116 (nota 17 ao art. 165.º do CPPT) e o Acórdão deste Tribunal de 11 de Fevereiro de 2008 (rec. 875/08)].”.

 

Com efeito, nestes casos, em que há uma cumulação ilegal de pedidos não derivada de incompatibilidade substancial, tem vindo a entender-se uniformemente que o processo deverá prosseguir apenas em relação ao pedido para que a forma processual é adequada ou o tribunal é competente.

Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos:

— da SCT do STA:

— de 11-2-2009, processo n.° 875/08; de 8-7-2009, processo n.9 242/09; de 24-3-2010, processo n.º 956/09. — da SCA do STA.

No mesmo sentido, podem ver-se também:

- ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, volume E, páginas 390-391;

- LOPES CARDOSO, Código de Processo Civil Anotado, página 160; e

- ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil Anotado, 10.° edição, página 356, citando CASTRO MENDES e PAULO CUNHA.

 

Ora, face à natureza do contencioso arbitral dúvidas não há que o Tribunal não tem competência para apreciar o 3.º pedido formulado pela Requerente, mas tem plena competência para apreciar da pretensa ilegalidade da correcção tributária em causa nos autos, dispondo de todos os elementos no processo para o fazer.

 

Convocando o disposto no n.º 8 do artigo 4.º do CPTA, de aplicação subsidiária ao RJAT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c):

“8 - Quando algum dos pedidos cumulados não pertença ao âmbito da competência dos tribunais administrativos, há lugar à absolvição da instância relativamente a esse pedido.”.

 

Assim, pelo exposto, teria decidido pela prossecução do processo para a apreciação dos restantes pedidos formulados pela Requerente no seu PPA.

Henrique Nogueira Nunes