DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., com o número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ... andar, ...-... Lisboa, doravante “Requerente”, na sequência da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.
É demandada a AT, doravante também designada por “Requerida”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à AT no dia 24 de novembro de 2021.
Pelo Conselho Deontológico do CAAD foi designado árbitro o signatário desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 12 de janeiro de 2022, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, seja declarada a ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente ao ano de 2016, emitida com o n.º 2020 ..., da qual resultou o montante total a pagar de € 41.088,71.
Como fundamento da sua pretensão, o Requerente invoca, sumariamente, que a liquidação em crise é ilegal, porquanto o imóvel por si adquirido a 11 de julho de 2005 deve ser considerado como seu bem próprio e não como bem comum do casal, devendo, por isso, a AT considerar a totalidade do reinvestimento declarado e realizado por si. Não obstante, e ainda que assim a AT não entendesse e considerasse o imóvel como bem comum, sempre deveria considerar o valor reinvestido na sua totalidade e não apenas em metade.
A 1 de fevereiro de 2022 foi proferido despacho tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da AT para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.
A Requerida respondeu, suscitando a exceção de ilegalidade passiva e defendendo a improcedência do pedido. Assim, por um lado e desde logo, referiu que se está perante uma situação de litisconsórcio necessário, em que ambos os cônjuges têm interesse relevante na relação controvertida, devendo, por isso, o pedido de pronúncia arbitral ser proposto por ambos os cônjuges. Por outro lado, veio impugnar os factos controvertidos referindo, em síntese, que a determinação da propriedade do bem resulta diretamente do contrato de compra e venda do qual nenhuma referência consta quanto à proveniência do dinheiro com o qual foi pago o imóvel objeto do reinvestimento, ao contrário do que sucedeu aquando da aquisição do imóvel cujo produto da (posterior) alienação foi reinvestido. Desta forma, conclui a Requerida que, atento o teor da escritura de aquisição do bem objeto do reinvestimento, este tem de se considerar bem comum do casal. Além do mais, sustenta ainda que a escritura pública constitui documento autêntico, pelo que faz prova plena dos factos que nela são atestados, nos termos do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil. Diferentemente, a declaração assinada pelo cônjuge do Requerente mais não é do que um mero escrito particular, que apenas poderia fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor se houvesse sido objeto de reconhecimento notarial, nos termos previsto no n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil (a menos que se verificasse a circunstância prevista no n.º 2, o que não é o caso). A este respeito, conclui a Requerida que não pode ainda deixar de se ter em conta a data em que foi produzida a declaração (21-12-2020), já depois de o Requerente ter sido notificado da liquidação de IRS em crise e não no ato da própria escritura de aquisição, em 09-08-2016.
Na sequência da resposta da AT, o cônjuge do Requerente, Sra. A..., veio requerer a sua intervenção principal espontânea, que foi admitida não tendo havido oposição sobre esta matéria por parte da Requerida.
O Tribunal Arbitral dispensou a inquirição da testemunha indicada pelo Requerente no presente pedido de pronúncia arbitral e a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste (artigos 19.º e 29.º, n.º 2, do RJAT).
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
III. Matéria de Facto
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Matéria de Facto Provada
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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A 11 de julho de 2005, já casado sob o regime de comunhão de adquiridos, o Requerente adquiriu uma fração autónoma (Fração “E”) destinada à sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar, pelo preço de € 270.000,00;
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A referida fração autónoma foi adquirida com recursos próprios do Requerente, com menção de tal circunstância na própria escritura de compra e venda;
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A 19 de maio de 2016, foi aquele imóvel vendido pelo preço de € 625.000,00;
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No dia 9 de agosto de 2016, foi celebrada escritura de compra e venda pelo cônjuge do Requerente, Sr.ª B..., para a aquisição de um imóvel (“Fração T”), pelo preço de € 520.000,00;
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O imóvel adquirido foi destinado à habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar.
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Factos não Provados
Não ficou provado que a aquisição da fração autónoma a 9 de agosto de 2016 (Fração “T”) tenha sido adquirida com dinheiro próprio do Requerente e, consequentemente, deve o referido bem considerar-se como bem comum.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.
Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.
IV. Direito
O pedido de pronúncia arbitral a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa do ato de liquidação de IRS, previamente melhor identificado, atinente ao período de 2016.
Para tanto, o Requerente invoca, sumariamente, que o imóvel por si adquirido a 11 de julho de 2005 deve ser considerado como seu bem próprio e não como bem comum do casal, devendo, por isso, a AT considerar a totalidade do reinvestimento declarado e realizado por si. Não obstante, e ainda que assim a AT não entendesse e considerasse o imóvel como bem comum, sempre deveria considerar o valor reinvestido na sua totalidade e não apenas em metade.
Assim, a pretensão do Requerente traduz-se, em síntese, (i) na declaração de ilegalidade do ato de liquidação em causa e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, ii) na anulação da liquidação n.º 2020 ... e sua substituição por liquidação que considere integralmente o valor de reinvestimento declarado pelo Requerente, ou seja, € 625.000,00, e iii) a condenação da AT na restituição ao Requerente do valor que indevidamente pagou (€ 42.003,39), acrescido de juros, contabilizados à taxa de 4%, desde o momento do pagamento indevido (dia 3 de novembro de 2011) até à integral devolução.
Por seu turno, a AT, ora Requerida, impugnando os factos controvertidos, vem argumentar que a determinação da propriedade do bem resulta diretamente do contrato de compra e venda do qual nenhuma referência consta quanto à proveniência do dinheiro com o qual foi pago o imóvel objeto do reinvestimento, ao contrário do que sucedeu aquando da aquisição do imóvel cujo produto da (posterior) alienação foi reinvestido. Desta forma, conclui a Requerida que, atento o teor da escritura de aquisição do bem objeto do reinvestimento, este tem de se considerar bem comum do casal.
Perante o exposto, e entrando na fundamentação de direito da presente decisão arbitral, entende este Tribunal que será pertinente, a título preliminar, aludir ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”)[1] referido pelo Requerente, como forma de esclarecer – ou tentar esclarecer – se o bem adquirido em 2016 pelo Requerente se trata de um bem próprio ou de um bem comum.
Com efeito, a questão fundamental de direito naquele acórdão versava exatamente sobre a natureza do bem (próprio ou comum do casal) em função da não observância do preceituado na alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil, designadamente “(…) saber se o bem imóvel comprado, na constância do casamento com dinheiro que era bem próprio de um dos cônjuges, não comparecendo ele na escritura de compra e venda, mas apenas o seu cônjuge, não constando nesse documento qualquer menção sobre a proveniência do dinheiro reempregado no negócio aquisitivo, o bem adquirido mantinha a natureza de bem próprio, ou se, por força da omissão das menções previstas naquele normativo, deve ser considerado bem comum do casal”.
Perante tal questão, acabou por concluir-se que “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal” (sublinhado nosso).
Importa relembrar que o artigo 1723.º do Código Civil, sob a epígrafe “Bens sub-rogados no lugar de bens próprios”, determina:
“Conservam a qualidade de bens próprios:
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Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca direta;
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O preço dos bens próprios alienados;
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Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.” (sublinhado nosso)
Ora, no caso em apreço, o que se verifica é que na escritura de compra e venda celebrada a 9 de agosto de 2016, figurou apenas a esposa do Requerente como compradora, não tendo sido feita qualquer menção à proveniência do dinheiro usado para a aquisição do imóvel em questão. Além do mais, a declaração emitida pela esposa do Requerente, embora referindo que aquela aquisição se fez com recurso a dinheiro próprio do seu marido, não cumpre com o preceituado no artigo 1723.º do Código Civil, na medida em que não foi assinada pelos dois cônjuges.
De tal forma, o objetivo do Requerente de provar que o imóvel adquirido a 9 de agosto de 2016 constitui seu bem próprio, apenas lograria com o recurso a qualquer outro meio de prova que permitisse atestar tal circunstância. A esse respeito, o Requerente limitou-se a juntar alguns extratos bancários que, todavia, não permitem comprovar a que conta bancária se referem e quem é o seu titular e, nessa medida, não permitem comprovar a proveniência do dinheiro.
Portanto, não será possível a este Tribunal concluir que o bem imóvel em questão (em que se terá reinvestido o valor proveniente do imóvel alienado em maio de 2016 – esse sim, bem próprio do Requerente) se trata de um bem próprio do Requerente. A este respeito, poderá então concluir-se que o bem deveria considerar-se um bem comum do casal, na esteira do artigo 1724.º do Código Civil. Com efeito, farão parte da comunhão “os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei” (cf. alínea b) do artigo 1724.º do Código Civil).
Não obstante o previamente exposto, entende este Tribunal que, para a decisão que ora importa proferir, será irrelevante a consideração do bem como próprio ou comum. Diversamente – e conforme de seguida melhor se argumentará – o que será relevante é aferir se estão preenchidos, no caso, todos os pressupostos para a exclusão da tributação, previstos no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, designadamente se o imóvel alienado constituía habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar, se o imóvel adquirido (objeto do reinvestimento) se destinou à habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar e se o reinvestimento foi realizado no prazo legal.
Saliente-se que a questão que agora cumpre apreciar identifica-se com uma das questões decididas no Processo n.º 84/2012-T, em que se tratou de saber “(…) se a mera consideração parcial e proporcional do incremento patrimonial, ou seja, do reinvestimento realizado pelos Requerentes, em virtude do imóvel alienado, destinado a habitação própria e permanente dos Requerentes ter sido adquirido pelo cônjuge marido no estado civil de solteiro (…) constitui violação do disposto no artigo 10.º, n.ºs 5 e 6 do CIRS”.
Por esse motivo, e por se sufragar do entendimento ali vertido, entende-se pertinente aludir ao referido em tal decisão.
Vejamos,
Na mencionada decisão, começa por referir-se: “Como regra geral, os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de bens imóveis são rendimentos tributáveis em sede de IRS, enquadráveis na categoria G de rendimentos, enquanto incrementos patrimoniais. Porém, o ganho (vulgo, mais-valia) decorrente da transmissão de imóvel que constitua habitação própria permanente do sujeito passivo poderá ser excluída de tributação, caso o valor de realização seja reinvestido na aquisição de nova habitação própria permanente”.
Naquele caso, a AT entendeu – como, aliás, no caso concreto que cumpre a este Tribunal decidir – que seria de aplicar um critério restritivo na determinação do valor de reinvestimento a excluir de tributação, “(…) considerando que o imóvel alienado era propriedade do cônjuge marido e fora constituído no estado civil de solteiro e que o direito de propriedade sobre o prédio adquirido foi constituído no estado de casado, em regime de comunhão de adquiridos, em contitularidade com a sua mulher, apenas, considerou como reinvestimento o valor imputável à sua quota-parte (50%) (…)”.
Nesta senda, considerou-se naquela decisão que os critérios utilizados pela AT “(…) não encontram qualquer suporte legal no disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do CIRS. São critérios restritivos e desproporcionais e, enquanto tal, afiguram-se ilegais”.
Para alcançar tal conclusão, argumentou aquele tribunal arbitral: “A não tributação das mais-valias imobiliárias provenientes da alienação de imóvel afeto a habitação própria permanente quando as mesmas sejam reinvestidas em bens com igual finalidade, é uma solução consagrada no nosso ordenamento jurídico à semelhança de outros, desde logo para proteção da família (…) Apenas relevam as circunstâncias consagradas na lei como pressuposto para a exclusão da tributação. Assim, se o imóvel alienado se destinava a habitação própria e permanente do sujeito passivo e do seu agregado familiar e se o valor de realização apurado foi reinvestido na aquisição de imóvel para o mesmo fim, no prazo legal, então deve aplicar-se a exclusão de tributação prevista”.
Aludindo às finalidades do IRS, argumentou ainda aquele tribunal: “(…) o legislador optou por consagrar a solução de considerar como unidade fiscal em sede de IRS a família ou o agregado familiar e não o indivíduo. Esta opção levou-o a desconsiderar, em absoluto, o tipo de regime de bens adotado pelos cônjuges (…) Esta opção pela tributação do agregado familiar, evidenciada pelo disposto no artigo 13º, nº 2 do CIRS, tem consequências importantes em toda a configuração do imposto. A este propósito, refere Casalta Nabais que «aquela proibição de discriminação desfavorável a contribuintes casados é uma ideia concretizada, aliás, em termos bastante precisos, no artigo 6º da Lei Geral Tributária, em cujo nº 3 especificamente se prescreve: “ a tributação respeita a família e reconhece a solidariedade e os encargos familiares, devendo orientar-se no sentido de que o conjunto dos rendimentos do agregado familiar não esteja sujeito a impostos superiores aos que resultariam da tributação autónoma das pessoas que os constituem (…) Acresce que, a finalidade extrafiscal do disposto nos nºs. 5 e 6 do artigo 10º do CIRS é claramente a de promover o reinvestimento na aquisição, construção ou melhoramento de imóvel afeto à habitação própria e permanente do agregado familiar, sem fazer qualquer alusão a casamento, tipo de regime de casamento ou qualquer outra condição. Se o legislador não estabelece tal distinção, não está o aplicador da norma habilitado a fazê-la.” (sublinhado nosso).
Nesta senda, conclui-se naquela decisão que “(…) a lei não contém qualquer exigência quanto à titularidade única do imóvel afeto a habitação própria permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, pelo que a AT parte de uma premissa errada: a de que, para que esta norma de exclusão de incidência da tributação seja aplicável na íntegra, o valor de realização terá de ser aplicado numa habitação própria e permanente de que o sujeito passivo venha a ser único e exclusivo proprietário. Nem a letra da lei nem a sua «ratio legis» nos permitem concluir que exista algum outro requisito para aplicação da exclusão de tributação, para além dos que se encontram enunciados no nº 5 do artigo 10º CIRS” (sublinhado nosso).
Por fim, alude-se aquela decisão ao parecer do Provedor de Justiça, proferido exatamente a propósito de questão semelhante à que ora cumpre apreciar: “A este propósito, é de realçar a recente recomendação do Senhor Provedor de Justiça, com o nº 18/A/2012 (proc. nº R – 5515/10), em apreciação de caso idêntico ao dos presentes autos. Na recomendação emanada afirma o Senhor Provedor de Justiça o seguinte: «Temos, assim, por indubitável que a omissão legal de qualquer referência à titularidade do imóvel que constitui habitação própria e permanente do sujeito passivo e respetivo agregado familiar está em absoluta consonância com os princípios fundamentais do ordenamento jurídico fiscal, no que respeita à proteção do direito à habitação das famílias (…) deste modo, e salvo melhor opinião, que nada autoriza o intérprete (administração fiscal, no caso) a estabelecer, por recurso às normas interpretativas comuns (…) como pressuposto para exclusão integral da incidência da tributação dos ganhos obtidos, que a propriedade do imóvel alienado houvesse de pertencer a ambos os membros do casal, não se vendo aliás como possa, tão-pouco, «ficcionar» «um reinvestimento na aquisição da propriedade do novo imóvel com uma percentagem correspondente a 50%»”.
No caso agora em apreciação, não se discute que o valor reinvestido pelo Requerente foi de € 580.000,00. O que se discute é, por um lado, a consideração de apenas metade desse montante como valor passível de ser reinvestido.
Ora, tendo em conta a argumentação apresentada na citada decisão arbitral, referente ao Processo n.º 84/2012-T – a qual corroboramos – deve entender-se que, no caso agora em apreciação, estão também verificados os pressupostos para aplicar a exclusão de tributação previstos no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, porquanto i) o imóvel alienado constituía habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar, ii) o imóvel adquirido foi destinado a habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar e iii) o referido montante de reinvestimento (€ 580.000,00) foi realizado dentro do prazo legal exigido.
Por tudo quanto fica exposto, e novamente corroborando a argumentação apresentada no aludido Processo n.º 84/2012-T, entende-se que, não fazendo o legislador qualquer referência à possibilidade de aplicação do critério de limitação do valor de reinvestimento utilizado pela Requerida, deverá a liquidação de IRS em apreço ser julgada parcialmente ilegal, na parte que restringe o valor do reinvestimento a apenas metade do montante reinvestido (i.e., € 260.000,00), em obediência ao princípio da legalidade consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
Quanto à questão da consideração das despesas como valor de reinvestimento, entende-se que tal não deve ser apreciado neste pedido, pois as mesmas respeitam a períodos posteriores (2017 a 2019) ao período a que se reporta a liquidação agora em apreço (2016). Nessa medida, a sua desconsideração ou não deve ser aferida no âmbito da discussão das liquidações de IRS dos períodos correspondentes.
Por fim, refira-se que o Requerente peticionou ainda juros indemnizatórios.
A esse respeito, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT determina que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. No presente caso, e conforme decidido, verifica-se que o Requerente foi onerado com imposto pago indevidamente, pelo facto de a AT ter considerado como valor de reinvestimento (para efeito da exclusão de tributação) apenas metade do montante que devia ser considerado. Nessa medida, serão devidos juros indemnizatórios ao Requerente pelo montante indevidamente pago, calculados à taxa legal supletiva nos termos previstos no n.º 4 do artigo 43.º e n.º 4 do artigo 35.º da LGT, no artigo 61.º do CPPT, no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
V. Decisão
À face do exposto, decide o presente Tribunal Arbitral:
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Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Declarar parcialmente ilegal o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente e anular parcialmente a liquidação de IRS n.º 2020 ...;
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Julgar parcialmente procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a AT ao seu pagamento;
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 42.003,39, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 2.142,00, de acordo com a Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando a cargo do Requerente o montante de € 359,86 e a cargo da Requerida o montante de € 1.782,14, valores correspondentes aos respetivos decaimentos.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de setembro de 2022
Tribunal Arbitral Singular,
Sérgio Santos Pereira
[1] Acórdão do STJ n.º 12/2015, Proc. 899/10.2TVLSB.L2.S1