Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 360/2021-T
Data da decisão: 2023-12-29  IRS  
Valor do pedido: € 70.730,01
Tema: IRS – Aplicação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS a transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros. Reenvio prejudicial – artigo 63.º do TFUE (livre circulação de capitais). – Decisão de reenvio (anexa à decisão).
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DECISÃO ARBITRAL

REENVIO PREJUDICIAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutor Nuno Pombo e Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

I. IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES

  1. Requerente: A..., de nacionalidade francesa, contribuinte n.º ..., residente nos ... Comporta, Portugal (doravante “Requerente”).
  2. Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT”).

II. LITÍGIO NO PROCESSO PRINCIPAL

§2.1. Questão decidenda

  1. Em 17.6.2021, o Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentou pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2020..., referente ao ano de 2019, no montante de € 141.460,02, na parte em que desconsidera o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, a que corresponde o valor de € 70.730,01, por violação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, dos artigos 49.º (direito de estabelecimento) e 63.º (livre circulação de capitais) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFEU”), e do artigo 8.º da Constituição da Républica Portuguesa.
  2. A referida liquidação de IRS foi emitida na sequência da transmissão de parte das participações sociais que o Requerente detinha numa sociedade de direito francês, que, à data da transmissão (23.4.2019), tinha “sede efetiva” em França, era residente para efeitos fiscais neste Estado-Membro, e não exercia atividade económica em território português.
  3. O litígio entre as partes surge por a AT (i) entender que esta transação não é elegível para o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, por efeito do qual apenas 50% do ganho decorrente da mesma seria tributado em sede de IRS, e (ii) ter emitido uma liquidação de IRS assente na tributação da totalidade do ganho derivado da referida transação.
  4. O artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS prevê que o ganho decorrente da transmissão de participações sociais em “micro e pequenas empresas” não cotadas nos mercados regulamentados e não regulamentado da bolsa de valores é considerado em apenas 50% do seu valor para efeitos de tributação em sede de IRS.
  5. Este benefício fiscal é automático, não se encontrando dependente do reconhecimento da autoridade tributária, e aplica-se quer as participações sociais transmitidas representem a maioria do capital social da sociedade, quer representem uma minoria do capital social da sociedade.
  6. Para efeitos deste benefício fiscal, o artigo 43.º, n.º 4, do Código do IRS remete para a definição de “micro e pequenas empresas” contida no anexo do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, que cria a certificação por via eletrónica do estatuto de micro, pequena e médias empresas (PMEs), pelo Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, I. P., para empresas que exerçam a sua atividade nas áreas sob tutela do Ministério da Economia e da Inovação, e que necessitem de apresentar e comprovar esse estatuto de PME no âmbito dos procedimentos administrativos para cuja instrução ou decisão final seja legalmente ou regulamentarmente exigido.
  7. Não é controvertido o facto de que a sociedade cujas participações sociais foram transmitidas pelo Requerente preenchia, à data da transmissão, os requisitos da categoria de “pequena empresa” estabelecidos no artigo 2.º do anexo do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.
  8. A questão principal a decidir pelo Tribunal Arbitral é a de saber se o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS é aplicável à transmissão de participações sociais de uma sociedade que não foi constituída de acordo com o direito português, que não tem “sede efetiva” em território português, que não é residente para efeitos fiscais em Portugal, e/ou que não exerce atividade económica em território português.

§2.2. Posição da Autoridade Tributária

  1. O benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS está “associado a empresa com sede efetiva em território português, na medida em que a avaliação de micro ou pequena empresa é feita pelo Estado Português, nomeadamente pelo Ministério da Economia e da Inovação”.
  2. O âmbito de aplicação deste benefício fiscal é limitado “ao território português”, tal como resulta da interpretação teleológica do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, cujo objetivo é apoiar empresas nacionais e estimular a atividade económica em Portugal.
  3. A este propósito, a AT refere o preâmbulo do Projeto de Lei n.º 257/XI, que esteve na origem da alteração legislativa advinda da Lei n.º 15/2010, de 26 de junho, que por sua vez introduziu o artigo 43.º, n.ºs 3 e 4 do Código do IRS, no qual se pode ler:

“Finalmente, porque importa também nesta ocasião significar a urgência da recuperação financeira das empresas, em particular das pequenas e médias empresas nacionais, muitas delas de matriz familiar, preconiza-se um regime fiscal mais favorável às mais-valias geradas na alienação onerosa de partes sociais, nos termos definidos no artigo 10º, nº 1, alínea b) do Código do IRS.” (sublinhado nosso).

  1. Da letra do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS retira-se que este se aplica apenas a sociedades que exercem a respetiva atividade numa área sob a tutela do Ministro da Economia, o que não é o caso da sociedade de direito francês cujas participações sociais foram transmitidas pelo Requerente.
  2. A interpretação do artigo 43.º, n.º 3, do Código que IRS sustentada pela AT não viola o Direito da União Europeia, designadamente a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, na medida em que o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE permite aos Estado-Membros distinguir entre contribuintes que não se encontrem em situação idêntica no que se refere ao lugar em que o seu capital é investido.
  3. Para este efeito, a comparabilidade da situação transfronteiriça com uma situação interna é examinada tendo em conta o objetivo das disposições nacionais em causa, e a questão de saber se a diferença de tratamento resultante da legislação nacional reflete uma diferença de situação objetiva é determinada à luz dos critérios de distinção estabelecidos na legislação nacional.
  4. Sendo o objetivo do artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS apoiar empresas portuguesas e estimular a atividade económica em Portugal, as transmissões de participações sociais em “sociedades estabelecidas em Portugal” não são comparáveis às transmissões de participações sociais em “sociedades localizadas fora do território nacional”, na medida em que as primeiras estimulam a atividade económica em Portugal e as segundas não terão esse efeito.
  5. A diferença de tratamento entre “sociedades estabelecidas em Portugal” e “sociedades localizadas fora do território nacional” reflete esta diferença objetiva de situação, pelo que o desagravamento fiscal do artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS limitado às primeiras não viola o Direito da União Europeia

§2.3. Posição do Requerente

  1. O Requerente defende que o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS aplica-se tanto aos ganhos decorrentes da transmissão de participações sociais em “empresas residentes em território nacional”, como aos ganhos decorrentes da transmissão de participações sociais em empresas residentes em outros Estados-Membros.
  2. Alega o Requerente que o não reconhecimento deste benefício fiscal ao Requerido constitui uma discriminação entre “sociedades residentes” e “sociedades não residentes”, em violação da (1) liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.º do TFEU, na medida em que esta, ao visar a remoção dos entraves jurídicos à atividade económica transnacional, à “interpenetração económica e social no interior da Comunidade no domínio das atividades não assalariadas”, veda tratamentos (fiscais) diferenciados conforme o Estado em que se pretenda investir, e da (2) liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, na medida em que uma operação de liquidação de um investimento mobiliário, como a que está em causa no caso sub judice, constitui um movimento de capitais abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 63.º do TFUE.
  3. Isto porque a situação dos contribuintes residentes em Portugal que recebem mais-valias da transmissão de participações sociais de sociedades com sede noutro Estado-Membro é objetivamente comparável à situação dos contribuintes residentes em Portugal que recebem mais-valias da transmissão de participações sociais de sociedades com sede em Portugal, sendo o único elemento distintivo entre as duas situações o Estado da fonte do rendimento.
  4. Assim, o tratamento diferenciado das mais-valias torna menos atrativo o exercício do direito ao estabelecimento e da liberdade de circulação de capitais, e configura uma inadmissível restrição dos mesmos.
  5. O Requerente não encontra qualquer justificação para a restrição aqui em causa – a saber, limitar o escopo de aplicação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS às mais-valias resultantes da transmissão de participações sociais de sociedades com sede em Portugal.
  6. Não se colocando, no caso sob análise, uma situação passível de se enquadrar como adequada e proporcional à prossecução de objetivos admitidos pelo TFUE, nem tampouco necessária face à ausência de uma maior harmonização fiscal, e não se perspetivando qualquer razão imperiosa de interesse público que aqui possa ser prevalecente, aquela restrição afigura-se incompatível com o direito e liberdade acima identificados.

III. PEDIDO DE DECISÃO PREJUDICIAL

§3.1. Objeto do pedido

  1. O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.º (direito de estabelecimento), 63.º e 65.º do TFEU (livre circulação de capitais), bem como do princípio de proibição de práticas abusivas enquanto princípio geral de Direito da União Europeia, que o Tribunal Arbitral entende por relevante e necessária para a solução do litígio no processo principal.
  2. No processo arbitral, as partes discutem se o artigo 49.º do TFEU, relativo ao direito de estabelecimento, e/ou o artigo 63.º do TFEU, relativo à livre circulação de capitais, opõem-se à interpretação do artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS sustentada pela AT.
  3. Da argumentação da AT não é claro para o Tribunal Arbitral se o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS foi negado ao Requerente por a sociedade cujas participações sociais foram transmitidas (a) constituir uma “sociedade de direito francês”, ou seja, constituída ao abrigo da lei francesa (por oposição a uma “sociedade de direito português”), (b) ter a sua “sede efetiva” em França (por oposição a uma sociedade com “sede efetiva” em território português), ou (c) exercer a sua atividade económica neste Estado-Membro (por oposição a uma sociedade que exerce a sua atividade económica em território português).
  4. Já o Requerente assume que o critério de distinção adotado pela AT terá sido a residência fiscal, fazendo também referência à sede da sociedade.
  5. Para efeitos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, uma sociedade é residente em Portugal quando tenha “sede social” ou “direção efetiva” em território português (cfr. artigo 2.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas).
  6. O conceito de “sede efetiva” surge no direito comercial português como “sede efetiva da administração da sociedade” (i.e., o local onde os órgãos de direção da sociedade se reúnem para a tomada de decisões sobre a mesma, bem como o local onde são realizadas as assembleias de membros), por contraposição a “sede estatutária”, i.e., o local fixado nos estatutos da sociedade (cfr. artigos 3.º e 4.º do Código das Sociedades Comerciais).
  7. Dada a falta de clareza da posição da AT a este respeito, afigura-se ao Tribunal Arbitral que importa assumir várias hipóteses: que a AT considera que o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS não se aplica ao Requerente por a sociedade cujas participações sociais foram transmitidas (a) não constituir uma sociedade de direito português, (b) não ter a sua sede efetiva em território português, (c) não ter residência fiscal em Portugal, (d) não exercer atividade económica em Portugal.
  8. Não obstante a questão não ter sido suscitada pelas partes no processo principal, o presente Tribunal Arbitral considera que, para a decisão do litígio em apreço, é também relevante o princípio da proibição de práticas abusivas enquanto princípio geral de Direito da União Europeia, tendo dado às partes oportunidade de se pronunciar sobre o mesmo no decurso do processo arbitral.
  9. Entende o Tribunal Arbitral que se trata de um quadro jurídico inédito quanto à interpretação do princípio da proibição de práticas abusivas, conjugado com os artigos 49.º, 63.º e 65.º do TFUE, havendo dúvida razoável quanto à respetiva interpretação no âmbito do processo principal.

§3.2. Outras considerações

  1. O artigo 267.º do TFUE prevê que o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados, e estatui que sempre que uma questão de tal natureza seja suscitada perante (i) um órgão jurisdicional dos Estados-Membros cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao TJUE, ou (ii) qualquer órgão jurisdicional nacional, esse órgão pode proceder ao reenvio prejudicial se considerar que uma decisão sobre a interpretação dos Tratados é necessária ao julgamento da causa.
  2. Quanto à natureza de órgão jurisdicional dos Tribunais Arbitrais Tributários a funcionar sob a égide do CAAD à luz do Direito da União Europeia, o TJUE reconheceu a mesma no Acórdão Ascendi, de 12 de junho de 2014, proferido no processo C-377/13, sendo, assim, pacífica a competência destes Tribunais Arbitrais para formular pedido de questão prejudicial nos termos do artigo 267.º do TFUE.
  3. Interessa também notar que as decisões dos Tribunais Arbitrais a funcionar sob a égide do CAAD decidem sobre a interpretação do TFUE sem possibilidade de recurso ordinário, sendo excecionalmente admissível recurso nessa matéria para o Supremo Tribunal Administrativo quando se verifique oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, da decisão arbitral em crise com Acórdãos dos Tribunais Superiores, ou outras Decisões de Tribunais Arbitrais (cfr. artigo 25.º, n.º 2, do RJAT).
  4. No que se refere à obrigatoriedade de um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial, de proceder a reenvio prejudicial, de acordo com as Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais, de 8.11.2019 (doravante “Recomendações aos OJN”), a mesma cessa “quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correcta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável” (parágrafo 6).
  5. O presente Tribunal Arbitral não tem conhecimento de Acórdãos do TJUE relativamente à interpretação dos artigos 49.º, 63.º e 65.º do TFUE em conjugação com o princípio da proibição de práticas abusivas.
  6. De acordo com as Recomendações aos OJN, a “competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação ou a validade do direito da União é exercida por iniciativa exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, independentemente de as partes no processo principal terem ou não exprimido a intenção de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Uma vez que é chamado a pronunciar-se sobre um litígio – e a ele apenas – que cabe apreciar, atendendo às particularidades de cada processo, tanto a necessidade de um pedido de decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça” (parágrafo 1).
  7. Não releva, assim, se o Requerente ou a AT se expressaram sobre o interesse de submeter questões prejudiciais ao TJEU.

IV. MATÉRIA DE FACTO RELEVANTE

  1. O Requerente é um cidadão francês com residência fiscal em Portugal no ano de 2019.
  2. Em 23.4.2019, o Requerente alienou à sociedade de direito francês B... (doravante “B...”), pelo valor de € 850.000,00, 29.222 ações da sociedade de direito francês C... SaRL (doravante “C... SaRL”), representativas de 47,5% do capital social desta sociedade, com o valor nominal total de € 155.057,78 e um valor contabilístico total de € 164.024,63 (cfr. balanço de 31.12.2018).
  3. À data desta transação, a sociedade C... tinha como principal objeto social a “criação de eventos, organização de congressos e de todas manifestações e encontros de caráter turístico, desportivo, cultural ou de lazer”, e o capital social dividido em 61.520 ações, com o valor nominal de € 5,3062 cada, no montante total de € 326.437,42, e com o valor contabilístico global de € 345.315,00 (cfr. balanço de 31.12.2018).
  4. Antes da transação em causa, as ações da sociedade C... eram detidas pelo Requerente e pela sociedade B..., na seguinte proporção:

 

Tabela 1 - Participação directa na sociedade C...

 

Número de ações

Valor nominal

Valor contabilístico (31.12.2018)

% do capital social

Requerente

60.260

€ 319.751,61

€ 338.242,55

97.95%

B...

1.260

€ 6.685,81

€ 7.072,45

2.05%

Total

61.520

€ 326.437,42

€ 345.315,00

100%

 

  1. À data da transmissão, o Requerente detinha também 86% do capital social da sociedade B..., cujo principal objeto social era a “detenção de participações de qualquer pessoa coletiva, com ou sem personalidade jurídica, por via da constituição de novas sociedades, ou de sociedades já constituídas, subscrição, aquisição de ações ou direitos, entradas de capital, fusão, aliança de participações ou outros, assim como a gestão e controlo das referidas participações”, com o capital social de € 860.465,00, dividido em 860.465 ações, com o valor nominal de € 1 cada, e com o valor contabilístico global de € 386.418,00 (cfr. balanço de 31.12.2018).
  2. Estas ações da sociedade B... eram detidas pelo Requerente e pela sociedade de direito suíço D... (doravante “D...”), com sede em Geneva, na seguinte proporção:

 

 

Tabela 2 - Participação direta na sociedade B...

 

Número de ações

Valor nominal

Valor contabilístico (31.12.2018)

% do capital social

Requerente

740.000

€ 740.000,00

€ 332.319,52

86%

D...

120.465

€ 120.465,00

€ 54.098,48

14%

Total

860.465

€ 860.465,00

€ 386.418,00

100%

 

 

 

 

 

 

 

  1. Antes da transação em causa, o Requerente detinha, direta e indiretamente, 99.71% das participações sociais da sociedade C..., conforme resulta da seguinte tabela:

 

Tabela 3 - Participações directa e indiretamente detidas pelo Requerente na sociedade C... antes da transmissão de 29.222 ações em 23.4.2019

 

Número de ações

% do capital social

Participação direta

60.260

97.95%

Participação indireta

1.084

(1.260 x 86%)

1.76%

Total

61.344

99.71%

 

  1. Entre 2016 e 2019, a sociedade C... teve o seguinte volume de negócios, resultado de exercício, ativo e capital próprio:

 

Tabela 4 – Informação contabilística da sociedade C...

Ano

Volume de negócios

Resultado de exercício

Ativo

Capital próprio

2016

€ 1.386.827,00

€ 16.387,00

€ 1.184.678,00

€ 284.072,00

2017

€ 1.465.260,00

€ 17.896,00

€ 1.222.190,00

€ 296.676,00

2018

€ 1.506.385,00

€ 50.660,00

€ 1.192.065,00

€ 345.315,00

2019

€ 1.515.782,00

€ 43.094,00

€ 1.176.151,00

€ 423.054,00

 

  1. Em 2019, a sociedade C... constituía uma pequena empresa nos termos do artigo 2.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, tendo (i) um efetivo de 15 pessoas e (ii) um volume de negócios anual ou balanço total anual que não excedia 10 milhões de euros.
  2. As sociedades C... e B... não distribuíram dividendos entre 2013 e 2019.
  3. Em Fevereiro de 2019, a sociedade B... realizou um empréstimo bancário no montante de € 850.000,00 para aquisição de participações sociais.
  4. Após a transmissão de 29.222 ações em 23.4.2019, o Requerente permaneceu como gerente da sociedade C..., bem como o acionista maioritário desta sociedade, conforme resulta da seguinte tabela:

Tabela 5 – Alteração da posição acionista decorrente da transação de 23.4.2019

 

Antes da alienação das ações

Após a alienação das ações

 

Número de ações

% do capital social

Número de ações

% do capital social

Requerente

60.260

97,95%

31.038

50,45%

B...

1.260

2,05%

30.482

49,55%

Total

61.520

100%

61.520

100%

 

  1. Após a transação em causa, o Requerente detinha, direta e indiretamente, 93.06% das participações sociais da sociedade C..., conforme resulta da seguinte tabela:

 

Tabela 6 - Participações directa e indiretamente detidas pelo Requerente na sociedade C... após a transmissão de 29.222 ações em 23.4.2019

 

Número de ações

% do capital social

Participação direta

31.038

50.45%

Participação indireta

26.215

(30.482 x 86%)

42.61%

Total

57.253

93.06%

 

  1. Na declaração de IRS referente ao ano 2019 que o Requerente apresentou em 5.11.2020, consta a alienação de partes sociais adquiridas pelo valor total de € 279.129,00 em 2011-2012 e transmitidas pelo valor de € 850.000,00 em 2019.
  2. Na sequência da apresentação desta declaração de imposto, foi o Requerente notificado da liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, a qual procedeu ao apuramento da coleta incidente sobre a totalidade da mais-valia resultante da transmissão de participações sociais em análise (€ 141.460,02), desconsiderando, por conseguinte, a redução em 50% que resultaria da aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, a que corresponde o valor de € 70.730,01.

V. DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA RELEVANTE

  1. São relevantes os artigos 49.º, 63.º e 65.º do TFUE.
  2. É também relevante princípio de proibição de práticas abusivas decorrente da jurisprudência do TJUE.

 VI. DISPOSIÇÕES DE DIREITO PORTUGUÊS RELEVANTES

  1. As disposições referidas infra têm a redação em vigor à data da transmissão das participações sociais em apreço (23.4.2019).

§6.1. Tributação de mais-valias mobiliárias em sede de IRS

  1. As mais-valias decorrentes da transmissão de participações sociais auferidas por indivíduos residentes em território português são tributadas em sede de IRS como “Categoria G - Incrementos patrimoniais”, conforme resulta dos artigos 1.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro (também designado por “Código do IRS”).
  2. O ganho sujeito a IRS corresponde à diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, conforme resulta do artigo 10.º, n.ºs 1, alínea b), e 4, do Código do IRS:

Artigo 10.º – Mais-valias

 

1 – Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais ou profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

 

(...)

 

b) Alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários (...);

 

(...)

 

4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:

 

a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1;

  1. O valor de realização é determinado nos termos do artigo 44.º do Código do IRS, no qual se pode ler, na parte relevante:

Artigo 44.º – Valor de realização

 

1 - Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização:

 

(...)

 

f) Nos demais casos, o valor da respetiva contraprestação.

  1. O valor de aquisição é determinado nos termos do artigo 48.º do Código do IRS, no qual se pode ler, na parte relevante:

Artigo 48.º - Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários


No caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:


(...)

 

 b) Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 10.º ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;

  1. No artigo 43.º do Código do IRS, na parte relevante, pode ler-se:

Artigo 43.º – Mais-valias

 

1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.

 

(...)

 

3 - O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.

 

4 – Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.

  1. No anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, as micro e pequenas empresas são definidas nos seguintes termos:

Artigo 2.º

Efectivos e limiares financeiros que definem as categorias de empresas

 

1 - A categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros.

 

2 - Na categoria das PME, uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros.

 

3 - Na categoria das PME, uma micro empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 2 milhões de euros.

  1. Quando o contribuinte não opta pelo englobamento das mais-valias (como no caso sub judice), estas são tributadas à taxa de 28%, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, no qual de pode ler:

Artigo 72.º - Taxas especiais

 

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:


(...)


c) O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º;

§6.2. Tributação de dividendos e lucros distribuídos por sociedades em sede de IRS

  1. Os dividendos e outras distribuições de lucros auferidas por indivíduos residentes em território português são tributadas em sede de IRS como “Categoria E – Rendimentos de capitais”, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, alínea h), do Código do IRS.
  2. Se o contribuinte que aufere de dividendos ou distribuições de lucros de sociedade residente noutro Estado-Membro optar pelo englobamento deste rendimento (nos termos do artigo 72.º, n.º 13, do Código do IRS), o respetivo montante é considerado em 50% e sujeito às taxas gerais (progressivas) de IRS, conforme resulta dos artigos 40.ºA, n.ºs 1 e 4, e 68.º do Código do IRS:

Artigo 40.º-A - Dupla tributação económica

 

1 - Os lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas do IRC são, no caso de opção pelo englobamento, considerados em apenas 50 % do seu valor.

 

(...)

 

4 - O disposto no n.º 1 é igualmente aplicável aos lucros distribuídos por entidade residente noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado membro do Espaço Económico Europeu que esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia, desde que tal entidade preencha os requisitos e condições estabelecidos no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mães e sociedades afiliadas de Estados membros diferentes.

 

 

Artigo 68.º - Taxas gerais

 

1 - As taxas do imposto são as constantes da tabela seguinte:

 

 

Rendimento coletável
(euros)

Taxas
(percentagem)

Normal
(A)

Média
(B)

  Até 7091

14,50

14,500

  De mais de 7091 até 10700

23,00

17,367

  De mais de 10700 até 20261

28,50 

22,621

  De mais de 20261 até 25000

35,00

24,967

  De mais de 25000 até 36856

​37,00

​28,838

  De mais de 36856 até 80640

​45,00

​37,613

  Superior a 80640

48,00

-

 


2 - O quantitativo do rendimento coletável, quando superior a € 7000, é dividido em duas partes: uma, igual ao limite do maior dos escalões que nele couber, à qual se aplica a taxa da coluna (B) correspondente a esse escalão; outra, igual ao excedente, a que se aplica a taxa da coluna (A) respeitante ao escalão imediatamente superior.

  1. Se o contribuinte que aufere de dividendos ou distribuições de lucros de sociedade residente noutro Estado-Membro não optar pelo englobamento deste rendimento, este é considerado em 100% do seu valor e sujeito à taxa especial de 28%, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS, no qual de pode ler:

Artigo 72.º - Taxas especiais

 

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:


(...)
 

d) Os rendimentos de capitais, tal como são definidos no artigo 5.º, quando não sujeitos a retenção na fonte, nos termos do artigo anterior;

 

 

§6.3. Norma geral anti-abuso e respetivo procedimento

  1. A norma geral anto-abuso está prevista no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (“LGT”), o qual, à data da transmissão de participações sociais, tinha a redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro:

Artigo 38.º - Ineficácia de actos e negócios jurídicos


2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

  1. O procedimento obrigatório para a aplicação desta norma geral anti-abuso encontra-se previsto no artigo 63.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), que, na redação em vigor à data dos factos, dispunha o seguinte:

 

Artigo 63.º - Aplicação de disposição antiabuso


1 - A liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo.

 

2 - (Revogado.)


3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:


a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;


b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.


4 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 depende da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei.


5 - O direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição antiabuso ao contribuinte.


6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.


7 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.


8 - A disposição antiabuso referida no n.º 1 não é aplicável se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de 150 dias.

 

9 - (Revogado.)

 

10 - (Revogado.)

 

VII. QUESTÕES PREJUDICIAS RELATIVAS À INTERPRETAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA RELEVANTE PARA O LITÍGIO PRINCIPAL

  1. Descrita a matéria de facto e o quadro legal relevantes, interessa enunciar as questões relativas à interpretação do Direito da União Europeia necessárias à decisão do litígio principal que o presente Tribunal Arbitral entende por relevante submeter, a título prejudicial, à apreciação do TJUE, bem como as razões que conduziram o Tribunal Arbitral a interrogar-se sobre as mesmas.

§7.1. Interpretação dos artigos 49.º, 63.º e 65.º do TFUE

  1. O Tribunal Arbitral entende que o tratamento menos favorável dos ganhos decorrentes da transmissão de participações sociais em sociedades formadas noutros Estados-Membros em comparação com os ganhos decorrentes da transmissão de participações sociais em sociedades de direito português, que resulta da interpretação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS subscrita pela AT, poderá constituir uma restrição injustificada ao direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE, por ter o efeito de dissuadir residentes em território português de participarem, de modo estável e contínuo, na vida económica de um outro Estado‑Membro, e à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, por ter o efeito de dissuadir residentes em território português de investir os seus capitais noutro Estado‑Membro.
  2. Tal como referido supra, da argumentação da AT não é claro para o Tribunal Arbitral o critério que a AT adotou para negar ao Requerente o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, pelo que é relevante também considerar os critérios da localização da “sede efetiva”, da residência fiscal e do território em que a sociedade exerce atividade económica.
  3. Da leitura conjugada dos artigos 63.º e 65.º do TFEU interessa distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.o, n.º 3, TFUE, sendo necessário apurar se a diferença de tratamento respeita a situações que sejam comparáveis objetivamente, ou se se justifica por uma razão imperiosa de interesse geral.
  4. A AT alega que as situações não são comparáveis tendo em vista o objetivo prosseguido pelo artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS (“estimular a atividade económica em Portugal”), que, assim, não viola o Direito da União Europeia.
  5. O Tribunal Arbitral questiona-se se assiste razão à AT.
  6. À luz destas considerações, o Tribunal formula as seguintes questões prejudiciais para apreciação do TJUE:

Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades de direito nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades formadas  noutro Estado-Membro?

Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território de outro Estado-Membro?

Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território de outro Estado-Membro?

Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território de outro Estado-Membro?

§7.2. Interpretação do princípio da proibição de práticas abusivas

  1. O Tribunal Arbitral questiona-se sobre (i) o conceito de “prática abusiva” enquanto pressuposto de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas, (ii) a relevância deste princípio no âmbito do direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFEU, (iii) as condições de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas, e (iv) os respetivos efeitos práticos na decisão a proferir no processo principal, em que o contribuinte terá formalizado uma transmissão de participações sociais artificial, com o objetivo essencial de obter um benefício fiscal decorrente do direito nacional e, para o efeito de aceder a esse benefício fiscal, invoca o direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFEU.

 

§7.2.1. O princípio da proibição de práticas abusivas enquanto princípio geral de Direito da União Europeia

  1. O TJUE reconheceu o princípio da proibição de práticas abusivas, segundo o qual “os particulares não podem abusiva ou fraudulentamente prevalecer‑se das normas comunitárias” (Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax, C-255/02, n.º 68), e que este princípio “tem (...) o caráter geral que é, por natureza, inerente aos princípios gerais do direito da União” (Acórdão de 22 de novembro de 2019, Cussens, C-251/16, n.º 31; no mesmo sentido, Acórdão de 29 de fevereiro de 2019, N Luxembourg, C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, n.º 96).
  2. Quanto à natureza e âmbito de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas, o TJUE reconheceu que “a aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas aos direitos e vantagens previstos no direito da União é feita independentemente da questão de saber se esses direitos e vantagens se baseiam nos Tratados (...), num regulamento, ou numa diretiva. Conclui‑se assim que este princípio não tem a mesma natureza dos direitos e vantagens aos quais se aplica.” (Acórdão de 22 de novembro de 2019, Cussens, C-251/16, n.º 30; no mesmo sentido, Acórdão de 29 de fevereiro de 2019, N Luxembourg, C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, n.º 101).
  3. Da jurisprudência do TJUE, o Tribunal Arbitral retira que o princípio da proibição de práticas abusivas tem aplicação no âmbito do direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e da livre de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
  4. No Acórdão de 22 de novembro de 2019, Cussens, C-251/16 pode ler-se que “segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a negação de um direito ou vantagem devido à prática de factos abusivos ou fraudulentos não é mais do que a simples consequência da constatação de que, em caso de fraude ou de abuso de direito, as condições objetivas necessárias para a obtenção da vantagem pretendida não estão realmente satisfeitas e, assim, essa recusa não carece de base legal específica” (n.º 32).
  5. Tendo em conta a factualidade subjacente ao litígio principal, o Tribunal questiona-se se uma transação artificial efetuada com o objetivo essencial de obter um benefício fiscal decorrente do direito nacional poderá constituir uma “prática abusiva” para efeitos do princípio da proibição de práticas abusivas, quando, para efeitos de obter esse benefício fiscal, o contribuinte invoque o direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFEU.

§7.2.2. A transmissão de participações sociais em apreço enquanto transação artificial efetuada com o objetivo de obter um benefício fiscal, e enquanto “prática abusiva” para efeitos de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas

  1. Considerando todos os factos e circunstâncias relevantes, nomeadamente as relações de natureza jurídica e económica entre as partes da transação em apreço, o Tribunal Arbitral conclui que existem indícios sérios e objetivos de que a transmissão das participações sociais da sociedade C... pelo Requerente para a sociedade B... poderá constituir uma transação artificial, ou uma transação “não genuína” (i.e., uma transação cuja forma não reflete a realidade económica, ou o resultado efetivamente produzido), e que a mesma poderá ter sido estruturada de forma e com o objetivo essencial de obter uma vantagem fiscal.
  2. Por um lado, a transmissão de 29.222 ações da C..., com um valor nominal de € 155.057,78 e um valor contabilístico de € 164.024,63, foi realizada pelo montante de € 850.000,00.
  3.  Não obstante muitas vezes o mercado reconhecer valor a participações sociais que não se encontra refletido na contabilidade da sociedade e, assim, o “valor de mercado” de participações sociais poder não corresponder ao valor contabilístico das mesmas (que não tem em conta o goodwill, i.e., o acréscimo de preço pago nas aquisições de participações sociais devido a fatores não materiais), a verdade é que, geralmente, o valor contabilístico das participações sociais (determinado com referência aos capitais próprios da sociedade) é um elemento essencial na negociação que antecede a transmissão das mesmas quanto a transmissão ocorre entre partes não relacionadas e sem relações especiais, agindo de forma independente e no interesse próprio.
  4. No caso em análise, o facto de o Requerente ter alienado, por € 850.000,00, ações com o valor contabilístico de € 164.024,63 a uma entidade por si controlada (B...) indicia que (i) as ações foram transmitidas por um valor substancialmente superior ao que seria pago caso a transação ocorresse entre partes não relacionadas ou sem relações especiais, e que (ii) o valor da transação foi fixado de forma artificial (e não em condições substancialmente idênticas às que normalmente seriam acordadas entre entidades independentes em operações comparáveis).
  5. Por outro lado, a transmissão de 29.222 ações da sociedade C... (correspondentes a 47,5% do respetivo capital social) pelo Requerente não alterou significativamente a posição do Requerente enquanto acionista maioritário e entidade que controla efetivamente a sociedade C... (antes da transação, o Requerente detinha 97.95% diretamente e 1.76% indiretamente das participações da sociedade C...– 99.71% no total); após a transação, o Requerente passou deter 50.45% diretamente e 42.61% indiretamente das participações da  sociedade C...– 93.06% no total), o que indicia que a transação em causa tem uma natureza artificial.
  6. Entende o Tribunal Arbitral que o facto de a transmissão das participações em causa não alterar significativamente a posição do Requerente enquanto acionista maioritário e entidade que controla efetivamente a sociedade C... significa que o resultado da transação foi, em termos substantivos, o Requerente ficar mais dinheiro e a sociedade B... ficar com menos dinheiro, representado uma verdadeira extração de ativos (dinheiro) da sociedade B... .
  7. Da matéria de facto assente resulta claro que não está em causa uma “permuta de ações” no âmbito de um plano de reorganização empresarial (através da qual a sociedade B... adquiriria ações na sociedade C... para efeitos de adquirir a maioria de votos nesta sociedade, e o Requerente receberia ações da B... em contrapartida), ou seja, uma transação suscetível de beneficiar de um eventual adiamento da tributação das mais-valias até à sua realização efetiva.
  8. À luz destas considerações, e tendo em conta os efeitos produzidos na esfera do Requerente e das sociedades, a questão que se levanta é a de saber se a transação em causa, em substância e vista de forma realista, consiste (a) no retorno do capital investido pelo Requerente na sociedade C..., que deveria beneficiar do regime de tributação mais benéfico das mais-valias, ou (b) numa distribuição de dinheiro que não altera de forma significativa a posição acionista do Requerente na sociedade C..., um pagamento com o resultado equivalente ao pagamento de dividendos, que não deveria beneficiar do regime de tributação mais benéfico das mais-valias.
  9. A este respeito, relevam também as seguintes observações: (i) as sociedades em causa não distribuíram dividendos entre 2013 e 2019; e (ii) não está em causa a validade e eficácia da transmissão das participações sociais em casa à luz do direito comercial e societário, mas apenas as suas consequências fiscais.
  10. A questão coloca-se no caso em análise porque a aplicação do regime fiscal das mais-valias (contido nos artigos referidos em 6.1 supra) ao pagamento de € 850.000,00 resulta efetivamente num montante de imposto substancialmente inferior do que resultaria da aplicação do regime fiscal dos dividendos (contido nos artigos referidos em 6.2 supra).[1]
  11. Acresce que, tratando-se de uma transmissão de participações socais, o valor de aquisição das mesmas a considerar numa transmissão futura é de € 850.000, enquanto que se estiver em causa um pagamento com um resultado equivalente a um pagamento de dividendos / distribuição de lucros, o valor de aquisição das participações sociais transmitidas a considerar numa transmissão futura permanece o mesmo (ou seja, cerca de € 279.129).
  12. Quando ao Requerente foi dada oportunidade para alegar um motivo de natureza comercial ou de natureza não fiscal que justificasse os termos em que a transação em causa foi efetuada, o Requerente limitou-se a responder que não existem quaisquer elementos que apontem no sentido de que a operação sob análise tenha tido como objetivo (único ou predominante) a obtenção abusiva de uma vantagem de natureza fiscal, nem tampouco que o preço recebido pelo Requerente tenha tido outra natureza que não a contraprestação devida pela cessão das participações alienadas.
  13. Considerando os factos e circunstâncias relevantes de forma objetiva, o Tribunal entende que a transmissão de participações sociais em análise terá tido como objetivo essencial a tributação do montante recebido pelo Requerente (€ 850.000,00) de acordo com o regime fiscal das mais-valias, assente no benefício fiscal previsto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, consideravelmente mais vantajoso do que o regime fiscal aplicável a dividendos / distribuições de lucros.
  14. Pelas razões expostas, considerada a matéria de facto assente e o conteúdo e significado real da transação em causa, nomeadamente que (i) o montante de € 850.000,00 recebido pelo Requerente representa um pagamento com o resultado equivalente a um pagamento de dividendos (ao invés de um retorno do capital investido na sociedade C...), e (ii) a transação terá como tido por objetivo essencial ou predominante a obtenção de uma vantagem fiscal, o Tribunal questiona-se se não estarão reunidos os elementos constitutivos de uma “prática abusiva” para efeitos de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas.
  15. À luz destas considerações, o Tribunal formula a seguinte questão prejudicial para apreciação do TJUE:

Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que se aplica a uma transmissão de participações sociais como a do caso vertente, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, e cuja forma legal foi selecionada pelo contribuinte tendo em vista essencialmente a obtenção de um benefício fiscal derivado do direito nacional e aplicável estritamente a mais-valias mobiliárias, em circunstâncias como as do caso vertente, em que o reconhecimento ao contribuinte do benefício fiscal em causa depende da possibilidade de o contribuinte invocar e exercer o direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e/ou da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE?

§7.2.3. A relevância do princípio da proibição de práticas abusivas no âmbito do direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFEU

  1. O Tribunal questiona-se se um contribuinte poderá fazer prevalecer-se do direito ao estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFEU e/ou da livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFEU para beneficiar de um benefício fiscal previsto na legislação nacional para mais-valias decorrentes de transmissão de participações sociais, quando, com o objetivo principal de beneficiar desse benefício fiscal, formalizou a transação como uma transmissão de ações quando, em substância, recebeu um pagamento com um resultado equivalente a um pagamento de dividendos.
  2.  Considerando que o direito ao estabelecimento e a liberdade de circulação capitais visam o estabelecimento e adequado funcionamento do mercado interno e, respetivamente, assegurar que indivíduos e empresas se estabeleçam noutros Estados-Membros nas mesmas condições que os nacionais desses Estados-Membros, e a liberalização de movimentos de capital e pagamentos, o Tribunal questiona-se se poderá um contribuinte prevalecer-se dos direitos decorrentes dos artigos 49.º e 63.º do TFUE quando realiza uma operação artificial (“não genuína”) com o objetivo essencial de obter um benefício fiscal previsto do direito nacional, ou se o Estado-Membro deverá recusar um tal exercício dos referidos direitos por contrário aos objetivos dos mesmos.
  3.  Mais especificamente: Poderá um contribuinte legitimamente invocar o direito ao estabelecimento e a liberdade de circulação capitais em tais circunstâncias? Configura uma tal invocação do Direito da União Europeia uma utilização abusiva do mesmo?
  4.  À luz destas considerações, o Tribunal formula as seguintes questões prejudiciais para apreciação do TJUE:

Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que previne um contribuinte de invocar e exercer o direito de estabelecimento (nos termos do artigo 49.º do TFUE) e/ou a liberdade de circulação capitais (nos termos do artigo 63.º do TFUE) para beneficiar de um benefício fiscal previsto na legislação nacional para mais-valias decorrentes de transmissão de participações sociais, quando, com o objetivo principal de beneficiar desse benefício fiscal, formalizou uma transação, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, como uma transmissão de ações?

Caso a resposta à questão anterior seja afirmativa, pode um contribuinte invocar a segurança jurídica ou a confiança legítima para se opor à recusa do reconhecimento do direito de estabelecimento e/ou da liberdade de circulação de capitais em aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas e, dessa forma, legitimar essa prática abusiva?

§7.2.4. Condições de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas

  1.  O princípio do abuso de direito não é de conhecimento oficioso pelos tribunais portugueses, pelo que a aplicação da norma geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT pelo Tribunal Arbitral depende da respetiva invocação pelas autoridades fiscais.
  2.  O artigo 63.º do CPPT regula o procedimento que a administração fiscal deverá observar na aplicação da norma geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
  3.  Ao invés, o Direito da União Europeia é de conhecimento oficioso pelo Tribunal Arbitral, não dependendo a respetiva aplicação de invocação pelas autoridades fiscais.
  4.  No processo principal, a relevância do princípio da proibição de práticas abusivas foi levantada pelo Tribunal Arbitral já no decorrer do processo arbitral, à luz dos factos e dos elementos de prova juntos aos autos, tendo o Tribunal dado oportunidade ao contribuinte e à administração fiscal para se pronunciarem sobre o mesmo.
  5.  O Tribunal Arbitral questiona-se quanto à possível interação do princípio da proibição de práticas abusivas, enquanto princípio geral de Direito da União Europeia, com a norma geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, designadamente: Se a aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas depende da verificação das condições de aplicação da norma geral anti-abuso nacional, ou se se trata de um princípio com autonomia em relação às normas gerais anti-abuso adoptadas pelos Estados-Membros? Se a aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas depende de invocação pelas autoridades nacionais, ou da aplicação do procedimento previsto para a aplicação da norma geral anti-abuso nacional, ou se este princípio é de conhecimento oficioso e opera de forma autónoma em relação a procedimentos de direito nacional?
  6.  À luz destas considerações, o Tribunal formula as seguintes questões prejudiciais para apreciação do TJUE:

Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da verificação das condições de aplicação da norma geral anti-abuso nacional?

Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende de invocação pelas autoridades nacionais?

Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da observação pelas autoridades tributárias nacionais do procedimento previsto para a aplicação da norma geral anti-abuso nacional?

§7.2.5. Consequências da aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas para a decisão do litígio principal

  1.  Decorre da jurisprudência do TJUE que, no caso de o princípio da proibição de práticas abusivas ser aplicável ao caso, deve o órgão jurisdicional nacional reclassificar / redefinir / requalificar a transação de forma a estabelecer a situação tal como ela existia na ausência da transação constitutiva de abuso em aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas, e aplicar a legislação nacional pertinente à transação que existiria no seu lugar (Acórdão de 22 de novembro de 2019, Cussens, C-251/16, n.ºs 46, 48, 49, 51).
  2.  Contudo, o processo arbitral situa-se no domínio do contencioso de legalidade, e os Tribunais Arbitrais que funcionam sobre a égide do CAAD têm a sua competência limitada à apreciação da legalidade de atos tributários e a decidir pela sua anulação ou manutenção na ordem jurídica, sem se substituir à administração fiscal.
  3.  Nestes termos, caso de verifiquem os pressupostos e condições de aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice, o Tribunal questiona-se (1) se será competente para reclassificar / redefinir / requalificar a transação abusiva e determinar as respetivas consequências fiscais (o que significaria ordenar à administração fiscal que emita uma nova liquidação de imposto assente na qualificação do rendimento auferido pelo contribuinte como dividendos), ou (2) se o Tribunal permanece limitado a negar o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS em aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas, e manter na ordem uma liquidação de imposto assente na qualificação do rendimento auferido pelo contribuinte como mais-valia mobiliária (quando, na realidade, se trataria de um pagamento com um resultado equivalente a um pagamento de dividendos).
  4.  À luz destas considerações, o Tribunal formula a seguinte questão prejudicial para apreciação do TJUE:

Tendo o órgão jurisdicional nacional uma competência limitada à apreciação da legalidade de atos tributários e a decidir pela respetiva anulação ou manutenção na ordem jurídica, sem se substituir à administração fiscal, deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que o Tribunal Arbitral tem competência para reclassificar / redefinir / requalificar a transação abusiva e aplicar a legislação nacional pertinente à transação que existiria no seu lugar?

VIII. DECISÃO DE REENVIO PREJUDICIAL

Decide o Tribunal Arbitral:

  1. Ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, submeter as seguintes questões prejudiciais à apreciação do TJUE:
  1. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades de direito nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades formadas  noutro Estado-Membro?
  2. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território de outro Estado-Membro?
  3. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território de outro Estado-Membro?
  4. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território de outro Estado-Membro?
  5. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que se aplica a uma transmissão de participações sociais como a do caso vertente, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, e cuja forma legal foi selecionada pelo contribuinte tendo em vista essencialmente a obtenção de um benefício fiscal derivado do direito nacional e aplicável estritamente a mais-valias mobiliárias, em circunstâncias como as do caso vertente, em que o reconhecimento ao contribuinte do benefício fiscal em causa depende da possibilidade de o contribuinte invocar e exercer o direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e/ou da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE?
  6. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que previne um contribuinte de invocar e exercer o direito de estabelecimento (nos termos do artigo 49.º do TFUE) e/ou a liberdade de circulação capitais (nos termos do artigo 63.º do TFUE) para beneficiar de um benefício fiscal previsto na legislação nacional para mais-valias decorrentes de transmissão de participações sociais, quando, com o objetivo principal de beneficiar desse benefício fiscal, formalizou uma transação, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, como uma transmissão de ações?
  7. Caso a resposta à questão anterior seja afirmativa, pode um contribuinte invocar a segurança jurídica ou a confiança legítima para se opor à recusa do reconhecimento do direito de estabelecimento e/ou da liberdade de circulação de capitais em aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas e, dessa forma, legitimar essa prática abusiva?
  8. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da verificação das condições de aplicação da norma geral anti-abuso nacional?
  9. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende de invocação pelas autoridades nacionais?
  10. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da observação pelas autoridades tributárias nacionais do procedimento previsto para a aplicação da norma geral anti-abuso nacional?
  11. Tendo o órgão jurisdicional nacional uma competência limitada à apreciação da legalidade de atos tributários e a decidir pela respetiva anulação ou manutenção na ordem jurídica, sem se substituir à administração fiscal, deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que o Tribunal Arbitral tem competência para reclassificar / redefinir / requalificar a transação abusiva e aplicar a legislação nacional pertinente à transação que existiria no seu lugar?
  1. Ordenar a passagem de carta, a dirigir pela secretaria do CAAD à secretaria do TJUE, com pedido de decisão prejudicial, acompanhado de traslado do processo, incluindo cópias da presente decisão, do pedido de pronúncia arbitral e documentos juntos, da resposta da AT, do requerimento apresentado pelo Requerente em 9.12.2021, e do requerimento apresentado pela AT em 20.1.2022.
  2. Suspender a instância até à comunicação da decisão a proferir pelo TJUE ao Tribunal Arbitral e às partes.

 

Lisboa, 9 de julho de 2022

 

Os Árbitros,

 

Professora Doutora Rita Correia da Cunha

 

 

Doutor Nuno Pombo

 

 

Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

 

 

 



[1] Da aplicação do regime das mais-valias resulta um montante de imposto a pagar pelo Requerente de € 70.730,01. A mais-valia sujeita a tributação (e sobre a qual incide uma taxa de 28%, caso o sujeito passivo não opte pelo englobamento) corresponde à diferença entre o valor de realização (no caso, € 850.000) e o valor de aquisição (no caso, € 279.129), sendo esta diferença considerada em 50%, por força do benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS.

Da aplicação do regime dos dividendos e dos lucros distribuídos resultaria um montante de imposto a pagar pelo Requerente de € 238.000 (€ 850.000,00 x 28%), caso o Requerente não optasse pelo englobamento deste rendimento. As distribuições de lucros podem ser tributadas a uma taxa de 28% (se o sujeito passivo não optar pelo englobamento), mas a referida taxa incide sobre 100% do valor dos dividendos / lucros distribuídos.

 

 

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SUMÁRIO

  1. Do Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no processo C-472/22, em 16-12-2023, resulta que o artigo 63.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (livre circulação de capitais) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática fiscal de um Estado-Membro, em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, que reserva um benefício fiscal, que consiste na redução para metade da tributação das mais-valias geradas pela transmissão de participações sociais, apenas às transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas nesse Estado-Membro, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros.
  2. Deste Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, retira-se que a interpretação subscrita pela Autoridade Tributária, segundo a qual a redução para metade da tributação das mais-valias geradas pela transmissão de participações sociais prevista no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS apenas se aplica quando as participações sociais digam respeito a sociedades estabelecidas em território português, representa uma restrição injustificada à livre circulação de capitais estatuída no artigo 63.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Nuno Pombo e Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 24-08-2021, acordam no seguinte:

I.  RELATÓRIO

A..., de nacionalidade francesa, contribuinte n.º..., residente em ..., ..., ...-... Comporta (doravante designado por “Requerente”), veio, em 17-06-2021, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, com designação de árbitros pelo Conselho Deontológico do CAAD, e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante “AT” ou “Requerida”), com vista (1) à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2020..., de 13-11-2020, no montante de € 141.460,02, referente ao período de tributação de 2019, na parte em que desconsidera o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, a que corresponde o valor de € 70.730,01, por violação do referido preceito do Código do IRS, dos artigos 49.º (direito de estabelecimento) e 63.º (livre circulação de capitais) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFEU”), e do artigo 8.º da Constituição da Républica Portuguesa, (2) ao reembolso do montante global de € 75.776,05, pago em 28-07-2022 no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2021..., o qual visa a cobrança coerciva da referida liquidação de IRS, correspondendo o valor de € 70.730,01 a imposto em falta, o valor de € 4.089,16 a juros, e o valor de € 956,88 a encargos, e (3) à condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e com fundamento no artigo 100.º, n.º 1, da LGT.

O PPA foi fundamentado, em síntese, nos seguintes termos:

- Em 23-04-2019, o Requerente, um cidadão francês com residência fiscal em Portugal, alienou pelo valor de € 850.000,00, 29.222 partes de capital da sociedade B... SaRL (adiante designada por “sociedade B...”), uma sociedade de direito francês, com sede em França, que se qualifica, para efeitos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do Código do IRS, como pequena empresa por se verificarem os pressupostos exigidos pelo Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.

- Não conseguindo inscrever, na sua declaração Modelo 3 do IRS relativa ao ano de 2019, a mais-valia decorrente da referida alienação de partes de capital, de forma a beneficiar do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, por se tratar de um rendimento obtido no estrangeiro, e por a sociedade B... não dispor de um NIPC português, o Requerente suscitou no “e-balcão” a questão de saber como enquadrar esta mais-valia na sua declaração de imposto. A AT respondeu o seguinte: “O benefício fiscal em causa está associado a empresa com sede efetiva em território português, na medida em que a avaliação de micro ou pequena empresa é feita pelo Estado Português, nomeadamente pelo Ministério da Economia e da Inovação”.

- Em face desta resposta, e da necessidade de cumprir atempadamente com a sua obrigação declarativa, o Requerente optou por apresentar, em 11-11-2020, a declaração periódica referente ao ano de 2019, inscrevendo a mais-valia em causa no anexo J. Posteriormente, foi o Requerente notificado da liquidação impugnada, a qual procedeu ao apuramento da coleta incidente sobre a totalidade da mais-valia resultante da transmissão operada, desconsiderando, por conseguinte, a redução em 50% resultante da aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS.

- Ao contrário do que entende a AT, o benefício de redução em 50% do saldo das mais-valias decorrentes da transmissão onerosa de partes sociais relativas a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, previsto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, abrange não só os ganhos decorrentes da venda de participações em empresas residentes em território nacional, como também os ganhos decorrentes da venda de participações em empresas residentes em outros Estados Membros da União Europeia (que satisfaçam os requisitos para a qualificação como micro ou pequena empresa).

- Aliás, em parte alguma o legislador limitou a aplicação do regime contido no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS a mais-valias decorrentes da venda de participações sociais em sociedades de direito nacional. Nem se diga que esta conclusão sairia prejudicada pela referência feita no n.º 4 do mesmo artigo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, pois é evidente que tal preceito tem uma função meramente remissiva, cometendo à legislação competente a definição da dimensão das sociedades que o legislador fiscal pretendeu abranger no benefício em causa (evitando, desta forma, a repetição de normas jurídicas).

- Acresce que a posição adotada pela Requerida na informação veiculada ao Requerente via “e-balcão” constitui uma discriminação intolerável entre sociedades residentes e não residentes, em clara violação do Direito Comunitário.

O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 21-06-2021 e automaticamente notificado à AT. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 24-08-2021.

Notificada para o efeito, a Requerida veio, em 08-10-2021, remeter cópia do processo administrativo e apresentar resposta, tendo alegado, em síntese, o seguinte:

- A sociedade B... não é subsumível aos ditames enunciados nas normas do artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS, que pressupõem a qualificação de micro e pequena empresa à luz dos requisitos enunciados pelo Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro. Isto porque, atendendo ao contexto daquele diploma, resulta à evidência que o respetivo âmbito de aplicação se limita ao território português. Veja-se o preâmbulo do Projeto de Lei n.º 257/XI, que esteve na origem da alteração legislativa advinda da Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, que por sua vez introduziu o artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS, e que refere: “Finalmente, porque importa também nesta ocasião significar a urgência da recuperação financeira das empresas, em particular das pequenas e médias empresas nacionais, muitas delas de matriz familiar, preconiza-se um regime fiscal mais favorável às mais-valias geradas na alienação onerosa de partes sociais, nos termos definidos no artigo 10º, nº 1, alínea b) do Código do IRS.”

- Não sendo controvertida a possibilidade se sindicar a qualidade de pequena e média empresa fora do âmbito da certificação do IAPMEI, não é posto em crise o facto de a sociedade B... não exercer a respetiva atividade numa área sob a tutela do Ministério da Economia visto que constitui uma sociedade de direto francês.

- Relativamente à alegada violação do Direito da União Europeia, o recente Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), proferido no processo C-480/19, de 29 de abril de 2021 (Veronsaajien), denota a sensibilidade do Tribunal de Justiça tendente à distinção entre o país de residência quando comparado com o Estado onde é realizado o investimento.

- Tendo em conta que o desagravamento fiscal inserto no artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS antevê a diferenciação entre sociedades estabelecidas em Portugal, de outras, localizadas fora do território nacional, as mencionadas normas são finalisticamente ordenadas com o fim de favorecer as entidades que mais necessitam desse benefício, sendo estas as micro e pequenas empresas, sendo igualmente necessário considerar que aqueles preceitos visam estimular a atividade económica em Portugal. Sendo a mais-valia realizada fora do território nacional, é evidente o reduzido impacto económico, particularmente quando confrontado com uma operação idêntica que se venha a efetuar com sociedades sediadas em Portugal, pelo que se afigura manifesto que a aplicação às mais-valias ora em questão do preceituado no artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS, não poderá ser atentatória ao ordenamento da União Europeia.

Em 05-11-2021, tendo em vista a adequada instrução do processo e o apuramento da verdade material, bem como o respeito pelo princípio do contraditório (cf. artigo 16.º, alínea a), do RJAT, e artigo 267.º, n.º 5, da CRP), o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sublinhe-se que, ao contrário do que o Requerente veio mais tarde alegar, o Tribunal Arbitral deu um prazo alargado de 30 dias para o Requerente se pronunciar sobre a relevância do princípio da proibição de práticas abusivas (enquanto princípio geral de direito da União Europeia), e para juntar os documentos que entendesse relevantes, para se determinar “se, para efeitos de IRS, o valor de €850.000 deverá ser tratado como (i) uma mais-valia apurada aquando da referida cessão de participações sociais (com uma tributação mais benéfica em sede de IRS aquando da cessão de participações sociais a 23.4.2019, e aquando transmissões futuras das mesmas participações sociais, com valor de aquisição de €850.000), ou (ii) uma verdadeira distribuição de lucros, um caso de “dividendos disfarçados” (com uma tributação menos benéfica aquando da cessão de participações sociais a 23.4.2019, e aquando transmissões futuras das mesmas participações sociais, com valor de aquisição de €279.129)”.

Em resposta a este despacho arbitral, o Requerente apresentou um requerimento em 07-12-2021, no qual defendeu o seguinte:

- A interpretação feita pela Requerida do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, sem respaldo na letra da lei, contende com a liberdade de estabelecimento e a liberdade de circulação de capitais, previstas respetivamente nos artigos 49.º e 63.º do TFUE. A situação dos contribuintes residentes em Portugal que recebem mais-valias da transmissão de participações sociais de sociedades com sede noutro Estado-Membro é objetivamente comparável à dos contribuintes residentes em Portugal que recebem mais-valias da transmissão de participações sociais de sociedades com sede em Portugal, e o seu tratamento diferenciado configura uma (injustificada) restrição das referidas liberdades, porquanto, embora não corporize uma discriminação qua tale, perturba ou no mínimo torna menos atrativo o exercício das mesmas.

- Se de facto uma interpretação (exclusivamente) com base no elemento histórico poderá, efetivamente, apontar no sentido de que a aplicação dos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do Código do IRS se restrinja às mais-valias emergentes da alienação de participações em micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território português, certo é que tal interpretação não é, de forma alguma, critério absoluto a considerar, nem pode proceder por consubstanciar uma violação do Direito da União Europeia.

- Quanto ao Princípio da Proibição de Práticas Abusivas (segundo o qual os particulares não podem invocar fraudulenta ou abusivamente o Direito da União Europeia):

“In casu, não existem quaisquer elementos que apontem no sentido de que a operação sob análise tenha tido como objetivo (único ou predominante) a obtenção abusiva de uma vantagem de natureza fiscal, nem tampouco que o preço recebido pelo Requerente tenha tido outra natureza que não a contraprestação devida pela cessão das participações alienadas, concluindo-se assim, com o devido respeito, que o princípio da proibição de práticas abusivas não será relevante à apreciação do thema decidendum destes autos.”

No requerimento em 09-12-2021, o Requerente apresentou os seguintes esclarecimentos:

- A sociedade C... participa no capital social da sociedade B... desde a sua constituição, pelo que não houve aquisição de participação posterior à subscrição inicial.

- Como resulta das atas de aprovação de contas carreadas aos autos, não houve distribuição de dividendos nestas sociedades.

- Os relatórios anuais das sociedades em causa, relativos aos anos de 2015 a 2018, não mencionam qualquer empréstimo entre as sociedades, sendo por concluir que tais empréstimos não existem.

Juntamente com estes dois requerimentos, o Requerente juntou os seguintes documentos:

- Tradução do contrato de cessão de quotas de 23-04-2019 (originalmente em francês);

- Estatutos da sociedade B... e respetiva tradução;

- Atas da assembleia de acionistas da sociedade B... (2015-2020);

- Estatutos da sociedade C... e respetiva tradução;

- Atas da assembleia de acionistas da sociedade C... (2015-2020);

- Cópia das declarações de Impôt sur les Sociétés apresentadas pela sociedade C... com referência aos anos de 2017, 2018 e 2019;

- Comprovativo do financiamento obtido pela sociedade C... junto do banco D... para a aquisição das participações em causa (documento comprovativo da origem dos fundos).

Com referência ao despacho arbitral de 05-11-2021, o Requerente não juntou, nem justificou a não junção dos seguintes documentos:

- Cópia do documento comprovativo da transferência bancária da sociedade C... para o Requerente (€850.000);

- Cópia de contrato(s) de aquisição de participações sociais noutras sociedades pela sociedade C... .

Em 19-01-2022, a Requerida, no exercício do seu direito ao contraditório, veio dizer o seguinte:

- No que respeita ao Princípio da Proibição de Práticas Abusivas, é mister realçar que a noção do mesmo estriba a respetiva conceptualização a partir das diretrizes ordenadas nos Acórdãos paradigmáticos do TJUE, Halifax e Cadbury SchWeppes (Processos C-255/02 e C-196/04, respetivamente, que foram retirados em Decisões do Tribunal subsequentes, como, a título de exemplo, o Acórdão Oy AA, Processo C-231/05 ou Truck Center, Processo C-282/07, ou ainda National Grid Indus, Processo C-371/10).

- Em suma, o TJUE pugna que a verificação da existência de uma prática abusiva tenha por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal, cuja concessão seja contrária ao objetivo prosseguido pelas disposições nacionais ou comunitárias, ultrapassando, portanto, a mera verificação da legalidade formal. Por outro lado, deve igualmente emergir de um conjunto de elementos objetivos que a finalidade essencial das operações em causa é a obtenção de uma vantagem fiscal, competindo ao órgão jurisdicional nacional, verificar, em conformidade com as regras de prova do direito nacional, contanto que a eficácia do direito comunitário não seja posta em causa, se os elementos constitutivos de uma prática abusiva estão preenchidos no litígio no processo principal.

- Pelo que, tendo em conta o supra exposto, verifica-se, agora no caso em concreto, que o cerne do diferendo se centra na qualificação dos movimentos financeiros encetados entre as sociedades B... e C..., que serão tidos como mais-valias ou dividendos.

- Ora, o Requerente não logra prover ao enquadramento pretendido, porquanto nem no pedido de constituição de tribunal arbitral, nem nos elementos juntos por requerimento de 2021-12-10, é possível aferir que os montantes contestados não se trataram, verdadeiramente, de dividendos distribuídos.

Por Despachos Arbitrais de 19-02-2022, 22-04-2022, e 23-06-2022, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de facto e de direito relevante para a decisão do presente processo arbitral.

Em 09-07-2022, com base na informação a que teve acesso até essa data, o Tribunal Arbitral submeteu, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, as seguintes questões prejudiciais à apreciação do TJEU, dando origem ao processo prejudicial C-472/22 (cf. Decisão de Reenvio Prejudicial reproduzida no Apêndice 1 em anexo):

  1. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades de direito nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades formadas  noutro Estado-Membro?
  2. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com sede efetiva no território de outro Estado-Membro?
  3. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades com residência fiscal no território de outro Estado-Membro?
  4. Devem o artigo 49.º (direito de estabelecimento) e/ou o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFEU ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma legal ou prática fiscal de um Estado-Membro, segundo a qual, para efeitos da tributação sobre o rendimento de uma pessoa singular nesse Estado-Membro, um benefício fiscal, que consiste na tributação de 50% do ganho decorrente da transmissão de participações socais, é aplicável a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território nacional, mas não a transmissões de participações sociais em sociedades que exercem atividade no território de outro Estado-Membro?
  5. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que se aplica a uma transmissão de participações sociais como a do caso vertente, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, e cuja forma legal foi selecionada pelo contribuinte tendo em vista essencialmente a obtenção de um benefício fiscal derivado do direito nacional e aplicável estritamente a mais-valias mobiliárias, em circunstâncias como as do caso vertente, em que o reconhecimento ao contribuinte do benefício fiscal em causa depende da possibilidade de o contribuinte invocar e exercer o direito de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE e/ou da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE?
  6. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que previne um contribuinte de invocar e exercer o direito de estabelecimento (nos termos do artigo 49.º do TFUE) e/ou a liberdade de circulação capitais (nos termos do artigo 63.º do TFUE) para beneficiar de um benefício fiscal previsto na legislação nacional para mais-valias decorrentes de transmissão de participações sociais, quando, com o objetivo principal de beneficiar desse benefício fiscal, formalizou uma transação, que, em substância, tem um resultado equivalente a um pagamento de dividendos, como uma transmissão de ações?
  7. Caso a resposta à questão anterior seja afirmativa, pode um contribuinte invocar a segurança jurídica ou a confiança legítima para se opor à recusa do reconhecimento do direito de estabelecimento e/ou da liberdade de circulação de capitais em aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas e, dessa forma, legitimar essa prática abusiva?
  8. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da verificação das condições de aplicação da norma geral anti-abuso nacional?
  9. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende de invocação pelas autoridades nacionais?
  10. Deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que a sua aplicação depende da observação pelas autoridades tributárias nacionais do procedimento previsto para a aplicação da norma geral anti-abuso nacional?
  11. Tendo o órgão jurisdicional nacional uma competência limitada à apreciação da legalidade de atos tributários e a decidir pela respetiva anulação ou manutenção na ordem jurídica, sem se substituir à administração fiscal, deve o princípio da proibição de práticas abusivas ser interpretado no sentido de que o Tribunal Arbitral tem competência para reclassificar / redefinir / requalificar a transação abusiva e aplicar a legislação nacional pertinente à transação que existiria no seu lugar?

Na mesma decisão, o Tribunal Arbitral determinou a suspensão da instância até à comunicação da decisão a proferir pelo TJUE ao Tribunal Arbitral e às Partes.

Em 28-07-2022, o Requerente veio juntar aos autos a guia e comprovativo de pagamento integral voluntário no processo de execução fiscal n.º ...2021... o qual visa a cobrança coerciva da liquidação impugnada e objeto destes autos, peticionando também o alargamento do PPA à condenação da Requerida na restituição do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos e com fundamento no artigo 100.º, n.º 1, da LGT.

No âmbito do processo prejudicial, a Comissão Europeia, o Estado Português e a República Italiana submeteram as suas observações escritas (cujo texto encontra-se transcrito integralmente nos Apêndices 2, 3 e 4 em anexo, respetivamente), havendo concordância entre os três intervenientes quanto à aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice (tendo os três intervenientes assumido a factualidade descrita pelo Tribunal Arbitral na decisão de reenvio prejudicial).

Em 27-01-2023, o Requerente apresentou também observações escritas, alegando novos factos (que o Tribunal Arbitral desconhecia até então):

 

Da inexistência de transação artificial ou transação “não genuína”

- No processo principal, o Requerente foi notificado para que se pronunciasse sobre o princípio da proibição de práticas abusivas (princípio geral de direito da União Europeia segundo a qual os particulares não podem invocar fraudulenta ou abusivamente o Direito da União Europeia), quanto (i) à relevância deste princípio para os autos, (ii) ao objetivo essencial da transmissão das participações sociais em causa, e a existência de outros objetivos não fiscais subjacentes à mesma transação, e (iii) relativamente à natureza da quantia de € 850.000,00 para efeitos da tributação em sede de IRS, nomeadamente se se trata de uma mais-valia apurada aquando da cessão de participações sociais, ou de uma verdadeira distribuição de lucros, um caso de “dividendos disfarçados”.

- O Requerente alegou no processo principal que não existem quaisquer elementos que demonstrem que a transação tenha tido como objetivo (único ou predominante) a obtenção abusiva de uma vantagem de natureza fiscal, nem de que o preço recebido pelo Requerente tinha outra natureza que não a da contraprestação devida pela cessão das participações sociais alienadas, pelo que o princípio da proibição de práticas abusivas não teria relevância na apreciação do thema decidendum no processo principal.

- O tribunal de reenvio terá procedido a uma interpretação grosseira dos factos no caso vertente, não tendo diligenciado pela obtenção de toda a factualidade relevante à verificação de um suposto abuso na transmissão das participações sociais. Tivesse-a requerido e verificaria que não existe qualquer artificialidade na transação das participações sociais, que a transação não teve um caráter “não genuíno”, sendo motivada por razões económicas atendíveis, não tendo o Requerente, ainda, obtido qualquer vantagem fiscal injustificada, termos que prejudicam a conclusão visada pelo tribunal de reenvio e o conhecimento das questões prejudiciais por este formuladas. Poderia o Requerente ter dado mais explicações sobre as razões económicas que presidiram à transação e aos moldes em que esta se processou - porém, não se perspetivava como a transação poderia ser enquadrada como artificial, a que acresce o facto da transação nunca ter sido enquadrada como tal por parte da Requerida. De facto, o princípio da proibição de práticas abusivas pressupõe, obviamente, a existência de uma prática abusiva, de fraude ou abuso de direito - o que se afigura inconcebível, tomado devido conhecimento da factualidade envolvente da transação, a qual o tribunal de reenvio não cuidou de criteriosamente procurar conhecer antes de formular um pré-juízo quanto à motivação subjacente à mesma.

- Cumpre notar, assim, que o valor da transação não foi fixado de forma artificial, nem é substancialmente superior ao que seria pago caso a transação ocorresse entre partes não relacionadas ou sem relações especiais - antes, o preço acordado corresponde ao valor de mercado das participações transacionadas, sendo o valor de mercado o critério de valorização que, nos termos legais, deve ser atendido nestas situações.

- O B... (B...) SaRL (sociedade cujas participações sociais foram transacionadas) é a sociedade que explora o Château E..., um dos «châteaux de F...», que tem essencialmente um valor cultural e histórico, não um valor de rendimento. Na verdade, o Castelo em causa, cujas origens remontam ao século XIV, está classificado como Monumento Nacional desde março de 1947. A par das características intrínsecas ao edificado (sito no ..., e composto por hotel com 25 quartos e 4 apartamentos, restaurados e largamente decorados, restaurante, sala de chá, tomato bar, parque de 55 hectares incluindo jardins “National ...” e "...©", piscina, campo de ténis, caves de 25 000 m2 e quinta agroecológica), na determinação do valor de mercado da participações sociais, deve-se também atender ao valor histórico e cultural do Castelo, o qual, em situações normais de mercado, não poderia ser descurado.

- Em suma, as qualidades próprias do ativo, apesar de não se refletirem no valor contabilístico das participações sociais, nem por isso deixam de pesar na determinação do seu “valor de mercado”, critério que deve ser adotado nas transações praticadas por sujeitos passivos em relações especiais. Do exposto supra resulta que o valor de mercado de um ativo como o castelo é largamente superior a € 150.000,00, facto que pesa na determinação do preço de transmissão das participações sociais, e que foi conformado no âmbito da avaliação do valor de mercado das participações sociais transmitidas, encomendada a perito externo, que chegou ao valor final de € 1.760.935, concluindo pela avaliação das participações entre € 1.700.000 e € 1.800.000, o qual se junta como Documento n.° 1.

- Cumpre notar que a avaliação das participações sociais não foi apresentada no processo principal por não ter sido solicitada pelo tribunal de reenvio, que instou o Requerente a apresentar um conjunto específico de documentos, o qual não incluía esta avaliação, salientando-se ainda que a avaliação das participações sociais não relevava para a apreciação do thema decidendum no processo principal, atentos os argumentos apresentados por ambas as partes nas respetivas peças processuais.

- Devendo, nas operações entre partes em situação de relações especiais, ser praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, era impensável, considerado o ativo detido pela sociedade transmitida, que as participações sociais fossem cedidas meramente pelo seu valor contabilístico ou nominal, pois que tal jamais se verificaria em condições normais de mercado, acordadas entre partes independentes.

- A contraprestação acordada para a transmissão das participações sociais não indicia um convénio fraudulento ou artificial; antes, representa o valor que seria praticado entre entidades independentes aquando da transmissão de um ativo como aquele que, em última linha, foi transmitido: um castelo no ... .

- Quando muito, considerada a avaliação feita às participações sociais, apenas se poderia assumir que estas foram transmitidas por um valor inferior ao seu valor de mercado, o que implicaria a conclusão contrária à pretendida pelo tribunal de reenvio, que se fundamenta na suposição de que as participações em causa foram transmitidas por um valor superior ao seu valor de mercado.

- Conclui-se, assim, que a transmissão das participações sociais, concretizando, nada teve de artificial, nem tampouco de “não genuíno”, inexistindo abuso na medida em que a transação não visou a obtenção de qualquer vantagem fiscal, daí resultando prejudicado o conhecimento das questões prejudiciais formuladas pelo tribunal de reenvio.

Das razões económicas válidas subjacentes à transmissão das participações sociais

- A transmissão das participações sociais foi presidida por motivos de eficiência/redução de custos na organização das participações sociais detidas pelo Requerente, que se concentram na sociedade adquirente (C...), a qual desenvolve a atividade de gestão de participações sociais (holding), conforme os Documentos n.° 2 e 3 que se juntam.

- A transação no caso vertente é inteiramente real: não apenas a transmissão das participações sociais, como o recebimento do seu preço, serviram interesses económicos e comerciais atendíveis.

Da existência de uma vantagem fiscal injustificada

- O Requerente encontra-se inscrito junto da Autoridade Fiscal Portuguesa como residente não habitual, estatuto fiscal previsto no artigo 16.°, números 8 a 12, do Código do IRS, conforme se comprova pelo Documento n.° 4 ora junto.

- O artigo 81.º, n.º 5, do Código do IRS, prevê uma isenção de IRS aplicável aos dividendos de fonte estrangeira obtidos por residentes não habituais caso estes dividendos possam ser tributados no respetivo Estado da Fonte, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado. O artigo 11.º, números 1 e 2, da Convenção para eliminar a Dupla Tributação celebrada por Portugal e a França, prevê uma competência cumulativa limitada ao Estado da Fonte (aqui, a França) em matéria de dividendos.

- Do normativo descrito resulta que, caso o Requerente, ao invés de uma mais-valia, tivesse obtido um dividendo, este se encontraria isento de IRS quanto a esse rendimento, por oposição a ser-lhe aplicada uma taxa reduzida de tributação. Ou seja: assume que o tribunal de reenvio que, com a transmissão das participações sociais, o Requerente pretendeu abusivamente transformar um rendimento sob a forma de dividendos (regra geral tributados à taxa de 28%) em rendimentos de mais-valias (os quais defende que deverão ser considerados em metade do seu valor, o que resultaria, na prática, na sua tributação efetiva à taxa de 14%). Porém, os rendimentos de fonte francesa com a natureza de dividendos auferidos pelo Requerente nunca seriam tributados à taxa de 28% - pelo contrário, estes rendimentos encontrar-se-iam isentos de tributação. Nessa medida, “dividendos encapotados” não resultariam em qualquer vantagem fiscal para o Requerente, pois que se estaria a sujeitar a tributação à taxa de 14%, quando doutra forma se encontraria isento de imposto.

Do ónus de prova de práticas abusivas

- O ónus de demonstrar a existência de uma prática abusiva sempre recairia sobre a Requerida, e nunca sobre o Requerente, não podendo a ausência de elementos probatórios num ou noutro sentido ser valorada contra si.

Juntamente com as suas observações escritas, o Requerente juntou três novos documentos:

- Avaliação por perito externo do valor de mercado das participações sociais da B...;

- Extrato do registo do comércio da sociedade C...;

- Certificação de residência não habitual do Requerente.

Tendo decidido proferir decisão no processo prejudicial C-472/22 sem audiência de alegações, e que o processo fosse julgado sem conclusões do advogado-geral, o TJUE proferiu Acórdão em 16-11-2023 (integramente transcrito no Apêndice 5 em anexo), tendo-se pronunciado sobre a compatibilidade da interpretação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS subscrita pela AT com o Direito da União Europeia, mas não sobre a aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice.

Por despacho arbitral de 20-11-2023, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e notificou as Partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas (simultâneas) até ao dia 28 de novembro de 2023.

Apenas o Requerente apresentou alegações escritas, defendendo, em síntese, o seguinte:

- Confrontada a prova carreada e contrapostas as posições das partes e do próprio tribunal, resulta evidente que o thema decidendum se encontra perfeitamente delimitado: saber se, in casu, (i) seria admissível um tratamento diferenciado dos rendimentos de mais-valias, reservando-se o benefício previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, às transmissões de participações em sociedades estabelecidas em território nacional, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros e se (ii) existe qualquer abuso da liberdade de estabelecimento ou da livre circulação de capitais, que imponha ou justifique uma sua desaplicação.

- Quanto à primeira, não sendo controvertido, nem entre as partes, nem para o coletivo arbitral, o facto de que a sociedade cujas participações sociais foram transmitidas pelo Requerente preenchia, à data da transmissão, os requisitos da categoria de “pequena empresa”, conforme estabelecidos no artigo 2.º do anexo do DL n.º 372/2007, de 6 de novembro, resulta evidente, atenta a decisão do TJUE, que um tratamento diferenciado destes rendimentos, em função do lugar de investimento dos capitais transacionados, é incompatível, desde logo, e sem necessidade de maiores considerações, com o artigo 63.º do TFUE (i.e., com a livre circulação de capitais).

- Quanto à segunda questão, tudo visto e ponderado, terá de se concluir que não ficou demonstrada, ou sequer indiciada, a existência de qualquer abuso no âmbito da transação sindicada nos autos, atento o quadro factual completo de que, agora, dispõe o coletivo arbitral, completado pelo Requerente na sequência do pedido de reenvio prejudicial, não tendo antes referido a factualidade relevante quanto a um tal enquadramento por nunca haver equacionado que a transação em causa pudesse ser tida como abusiva, i.e., que pudesse ser entendida como um “dividendo encapotado”.

- Munido da factualidade relevante, acima exposta e dada a conhecer em sede de reenvio prejudicial, está o coletivo arbitral em posição de, com total confiança, despistar qualquer suspeição de abuso no caso vertente, comprovado que foi que a transação sub judice foi efetuada pelo valor de mercado da participação alienada, e que, pela distribuição de um dividendo, o Requerente suportaria um imposto evidentemente inferior ao aplicável pelo regime das mais-valias, sendo despropositado equacionar uma transação artificial ou não genuína destinada a suportar uma carga de imposto superior à que seria doutra forma aplicável.

- Nada impedindo a reafirmação no processo principal das liberdades conhecidas pelo TJUE, impõe-se a procedência dos presentes autos, com a anulação da liquidação impugnada e consequente condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais, devendo também a Requerida ser condenada nas custas da lide, por a ela ter dado causa.

 

II.  SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 24-08-2021, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O PPA apresentado em 17-06-2021 é tempestivo, porquanto foi apresentado no prazo de 90 dias referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, contados do termo do prazo de pagamento voluntário da liquidação de IRS impugnada (05-01-2021), considerando a suspensão do mesmo prazo entre os dias 22-01-2021 e 05-04-2021, por força dos artigos 2.º e 4.º da Lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro, Lei n.º 1 -A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e artigos 5.º e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril. 

O processo não padece de vícios que o invalidem. Não foram suscitadas exceções que caiba apreciar, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.

 

III.  MATÉRIA DE FACTO

Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:

§1. Factos Provados

  1. O Requerente é um cidadão francês com residência fiscal em Portugal e estatuto de residente não habitual desde 2015 (cf. certificação de residência não habitual junta ao processo prejudicial C-472/22 em 27-01-2023).
  2. A sociedade B..., constituída em 1989 e matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o número ..., tem a sua sede social em ..., em França, e o seguinte objeto social:

 

(cf. referido nas traduções dos estatutos da sociedade B... e do contrato de cessão de participações sociais de 23-04-2019, originalmente em francês, juntas ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).

 

  1. A sociedade B... detém, como ativo, o Château E..., sito no ..., classificado como monumento nacional desde 1947, composto por hotel com 25 quartos e 4 apartamentos, restaurante, piscina, campo de ténis, e terreno envolvente com 55 hectares, cujas fotografias se encontram disponíveis online[1] (tal como referido pelo Requerente nas observações escritas que apresentou junto do TJUE em 27-01-2023):

 

Foto 1 Château E...

Foto 2 Château E...

Foto 3 Château E...

Foto 4 Château E...

 

  1. Ao longo dos anos, a sociedade B... sofreu diversas operações de capital:

 

 

(cf. referido na tradução dos estatutos da sociedade B..., originalmente em francês, junta ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).

  1. Entre 2015 e 2020, o Requerente era gerente da sociedade B... (cf. atas da assembleia de acionistas da sociedade B... de 2015-2020, juntas ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).
  2. Neste período, a sociedade B...  não distribuiu dividendos aos seus acionistas (cf. atas da assembleia de acionistas da sociedade B... de 2015-2020, juntas ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).
  3. No período de 2017, 2018 e 2019, a sociedade B... preenchia os requisitos da categoria de “pequena empresa” estabelecidos no artigo 2.º do anexo do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro (cf. declarações de Impôt sur les Sociétés apresentadas pela sociedade B... em França, com referência aos anos de 2017, 2018 e 2019, juntas ao PPA como Documentos 3, 4 e 5).
  4. Em 31-12-2018, o capital social da sociedade B... encontrava-se dividido em 61.520 ações, com o valor nominal de € 5,3062 cada, no montante total de € 326.437,42, e com o valor contabilístico global de € 345.315,00 (cf. declaração de Impôt sur les Sociétés apresentada pela sociedade B... com referência ao ano de 2018, junta ao PPA como Documento 4).
  5. Em 31-12-2018, as ações da sociedade B... eram detidas pelo Requerente e pela sociedade C..., na seguinte proporção

 

Participação direta na sociedade B... em 31-12-2018

(antes da transmissão de 29.222 ações em 23-04-2019)

 

Número de ações

Valor nominal

Valor contabilístico (31.12.2018)

% do capital social

Requerente

60.260

€ 319.751,61

€ 338.242,55

97.95%

C...

1.260

€ 6.685,81

€ 7.072,45

2.05%

Total

61.520

€ 326.437,42

€ 345.315,00

100%

(cf. declaração de Impôt sur les Sociétés apresentada pela sociedade B... com referência ao ano de 2018, junta ao PPA como Documento 4).

  1. A sociedade C..., com sede social na ..., Paris (...), constituída em 2000 e matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Paris sob o número ... tem o seguinte objeto social:

 

 

(cf. referido na tradução dos estatutos da sociedade C..., originalmente em francês, junta ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021; e cf. extrato do registo do comércio da sociedade C... junto ao processo prejudicial C-472/22 em 27-01-2023).

  1. Em 2015, e até meados de 2016, o Requerente era presidente da sociedade C..., passando o cargo a ser exercido pela Senhora G... em 30 de junho de 2016 (cf. atas da assembleia de acionistas da sociedade C... de 2015-2020, juntas ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).
  2. Em 31-12-2018, as ações da sociedade C... eram detidas pelo Requerente e pela sociedade de direito suíço H..., com sede em Genebra, na seguinte proporção:

Participação direta na sociedade C... em 31-12-2018

 

Número de ações

Valor nominal

Valor contabilístico (31.12.2018)

% do capital social

Requerente

740.000

€ 740.000,00

€ 332.319,52

86%

H...

120.465

€ 120.465,00

€ 54.098,48

14%

Total

860.465

€ 860.465,00

€ 386.418,00

100%

 

 

 

 

 

 

(cf. declaração de Impôt sur les Sociétés apresentada pela sociedade C... com referência ao ano de 2018, junta ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).

  1. Em 31-12-2018, através da sua participação na sociedade C..., o Requerente detinha, direta e indiretamente, 99.71% das participações sociais da sociedade B..., conforme resulta da seguinte tabela:

Participações direta e indiretamente detidas pelo Requerente na sociedade B... em 31-12-2018 (antes da transmissão de 29.222 ações em 23-04-2019)

 

Número de ações

% do capital social

Participação direta

60.260

97.95%

Participação indireta

1.084

(1.260 x 86%)

1.76%

Total

61.344

99.71%

 

 

  1. Em fevereiro de 2019, a sociedade C... realizou um empréstimo bancário no montante de € 850.000,00 para aquisição de participações sociais (cf. comprovativo do financiamento obtido junto do banco D..., junto ao requerimento apresentado pelo Requerente em 09-12-2021).
  2. Em 23-04-2019, o Requerente celebrou um contrato de cessão de participações sociais com a sua sociedade C... (representada por G...), mediante o qual transmitiu 29.222 ações na sociedade B..., representativas de 47,5% do capital social desta sociedade, com o valor nominal total de € 155.057,78 e um valor contabilístico total de € 164.024,63 (cf. declaração de Impôt sur les Sociétés apresentada pela sociedade B... com referência ao ano de 2018, junta ao PPA como Documento 4).
  3. Deste contrato de cessão de participações sociais consta que, como contrapartida, o Requerente recebeu o valor de € 850.000,00, tendo o mesmo sido liquidado por transferência bancária em data anterior a 23-04-2019 (cf. referido na tradução do contrato de cessão de participações sociais de 23-04-2019, originalmente celebrado em francês, junta ao requerimento apresentado pelo Requerente em 07-12-2021).
  4. Após 23-04-2019, o Requerente permaneceu como gerente da sociedade B..., bem como o acionista maioritário desta sociedade, conforme resulta da seguinte tabela:

Alteração da posição acionista decorrente da transação de 23-04-2019

 

Antes da alienação das ações

Após a alienação das ações

 

Número de ações

% do capital social

Número de ações

% do capital social

Requerente

60.260

97,95%

31.038

50,45%

C...

1.260

2,05%

30.482

49,55%

Total

61.520

100%

61.520

100%

 

  1. Após a cessão de participações sociais de 23-04-2019, o Requerente passou a deter, direta e indiretamente, 93.06% das participações sociais da sociedade B..., conforme resulta da seguinte tabela:

 

Participações direta e indiretamente detidas pelo Requerente na sociedade B... após a transmissão de 29.222 ações em 23-04-2019

 

Número de ações

% do capital social

Participação direta

31.038

50.45%

Participação indireta

26.215

(30.482 x 86%)

42.61%

Total

57.253

93.06%

 

 

 

  1. Em 19-10-2020, o Requerente submeteu a seguinte questão à AT:

 

(cf. print retirado do portal das finanças e junto pelo Requerente aos autos em 24-06-2021).

  1. Na sequência desta questão, a AT respondeu o seguinte em 20-10-2020:

 

(cf. print retirado do portal das finanças e junto pelo Requerente aos autos em 24-06-2021).

  1. Na declaração de IRS referente ao ano 2019, que o Requerente apresentou em 05-11-2020, consta a alienação de partes sociais adquiridas pelo valor total de € 279.129,00 em 2011-2012 e transmitidas pelo valor de € 850.000,00 em 2019 (cf. Declaração Modelo 3 junta aos autos pelo Requerente em 24-06-2021).
  2. Na sequência da apresentação desta declaração de imposto, foi o Requerente notificado da liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, a qual procedeu ao apuramento da coleta incidente sobre a totalidade da mais-valia resultante da transmissão de participações sociais em análise (€ 141.460,02), desconsiderando, por conseguinte, a redução em 50% que resultaria da aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, a que corresponde o valor de € 70.730,01 (cf. Documento 1 junto ao PPA).
  3. Em 17-06-2021, o Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos (cf. registo no sistema de gestão processual do CAAD)
  4. Em 28-07-2022, o Requerente procedeu ao pagamento de € 75.776,05 com referência ao processo de execução fiscal n.º ...2021..., o qual visa a cobrança coerciva da liquidação impugnada, correspondendo o valor de € 70.730,01 a imposto em falta, o valor de € 4.089,16 a juros, e o valor de € 956,88 a encargos (cf. guia e comprovativo de pagamento juntos aos autos pelo Requerente em 28-07-2022).

 

§2. Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa, devem considerar-se como não provados os seguintes factos:

  1. O Requerente recebeu € 850.000,00 da sociedade C..., como contrapartida da transmissão de 29.222 ações na sociedade B..., em data anterior a 23-04-2019.
  2. Em 23-04-2019, o valor de mercado das ações da sociedade B... situava-se entre € 1.700.000,00 e € 1.800.000,00.
  3. A transmissão das 29.222 ações na sociedade B...foi presidida por motivos de eficiência/redução de custos na organização das participações sociais detidas pelo Requerente.

 

§3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas (cf. n.º 5 do artigo 607.º do CPC). Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Dever de cooperação e afastamento da presunção de veracidade e boa-fé contida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT

Nos termos do artigo 75.º, n.º 2, alínea b), da LGT, quando o contribuinte incumpre os deveres que lhe cabem de esclarecimento da sua situação tributária (sem que seja legítima a recusa da prestação de informações), as respetivas declarações e contabilidade deixam de gozar da presunção de veracidade e boa-fé estatuída no n.º 1 do mesmo artigo.

A este propósito, importa relembrar que os sujeitos passivos têm o dever de colaboração com a AT, dentro do espírito da boa-fé, conforme resulta do artigo 59.º, n.º 1, da LGT, compreendendo este dever “o cumprimento das obrigações acessórias previstas na lei e a prestação dos esclarecimentos que esta lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros” (cf. n.º 4 do mesmo artigo). O artigo 48.º, n.º 2, do CPPT acrescenta que o contribuinte cooperará de boa-fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”.

Os sujeitos passivos têm também o dever de cooperação em relação aos tribunais, conforme resulta do artigo 417.º, n.º 1, do NCPC: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.

In casu, o Requerente ocultou vários factos relevantes para a determinação da sua situação tributária e para o esclarecimento das circunstâncias em que a cessão de participações sociais de 23-04-2019 ocorreu. Senão vejamos.

Quando apresentou o PPA em 17-06-2021, com vista à anulação da liquidação de IRS impugnada, emitida com referência à transmissão de participações sociais em apreço, o Requerente omitiu que tal transmissão ocorreu entre partes com “relações especiais”: o Requerente e a sociedade C..., uma sociedade na qual o Requerente detinha uma participação não inferior a 20% do capital (cf. artigo 63.º, n.º 4, alínea a), do Código do IRC). A existência de tais “relações especiais” foi desvelada pelo Tribunal já no decorrer do processo arbitral, e confirmada pelo Requerente apenas em dezembro de 2021.

Note-se que a existência de “relações especiais” entre as partes de uma qualquer transação é relevante para efeitos da legislação de preços de transferência e da aplicação de diversas cláusulas anti-abuso, designadamente, as contidas no artigo 52.º do Código do IRS (relativa à divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão), no artigo 39.º, n.º 1, da LGT (simulação do negócio jurídico), e no artigo 38.º, n.º 2, da LGT (cláusula geral anti-abuso). 

Acresce que, mesmo após ter sido instado para se pronunciar sobre a classificação do rendimento gerado pela transação de 23-04-2019 (mais-valias vs dividendos) e sobre a relevância do princípio da proibição de práticas abusivas, e para juntar os documentos que entendesse por conveniente (por despacho arbitral de 05-11-2021), o Requerente continuou a ocultar (1) factos relevantes para a determinação da sua situação tributária (ocultando, designadamente, o seu estatuto de residente não habitual), e (2) circunstâncias relativas à transmissão das partes sociais da B... em 23-04-2019 (ocultando, designadamente, que o valor referido no contrato em causa foi influenciado pelo facto de a sociedade B... ser proprietária de um castelo n.. classificado como monumento nacional).

De facto, apenas em 27-01-2023, nas observações escritas que apresentou junto do TJUE, é que o Requerente se dignou a mencionar o estatuto de residente não habitual e a existência do castelo no ..., que o Tribunal Arbitral não pode deixar de considerar como factos relevantes para averiguar da natureza da transação que teve lugar em 23-04-2019 e do rendimento por ela gerado.

Conclui-se, assim, que o Requerente incumpriu o seu dever de cooperação para com o Tribunal Arbitral em diversos momentos ao longo do processo arbitral (sem que seja legítima a recusa da prestação de informações), e que, por conseguinte, as suas declarações e contabilidade não se presumem verdadeiras e de boa-fé (cf. artigo 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), da LGT).

Note-se, por último, que, da ocultação de factos inicial e da revelação de factos tardia referidas supra, exclusivamente imputáveis ao Requerente, resultou que (1) o Tribunal Arbitral procedeu ao reenvio prejudicial para o TJUE com base num quadro regulamentar e factual incompleto, e que (2) perante um conjunto de normas e factos alegados pelo Requerente nas suas observações escritas, acompanhados de documentos vários, mas não anteriormente referidos no pedido de reenvio prejudicial efetuado pelo Tribunal Arbitral, o TJUE tenha concluído que não dispunha dos elementos de facto e de direito necessários para dar um resposta útil às questões relativas ao princípio da proibição de práticas abusivas.

Factos dados como provados

A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame dos documentos juntos aos autos pelas Partes, bem como nos documentos juntos no decorrer do processo prejudicial, conforme se refere em cada alínea do probatório, juntamente com o princípio da livre apreciação da prova.

Factos dados como não provados

A. O Requerente recebeu € 850.000,00 da sociedade C..., como contrapartida da transmissão de 29.222 ações da sociedade B..., em data anterior a 23-04-2019.

Embora conste do contrato de cessão de participações sociais em apreço que, em 23-04-2019, o valor de € 850.000,00 já havia sido pago por transferência bancária, o Requerente não juntou aos autos o comprovativo desta transferência, embora tal documento tenha sido expressamente solicitado pelo Tribunal Arbitral (cf. despacho arbitral de 05-11-2021). Note-se que o Requerente não alegou dificuldade séria em obter o comprovativo da transferência de € 850.000,00.

Resta, assim, ao Tribunal Arbitral dar como não provado que o Requerente tenha recebido o referido montante da sociedade C..., e que a transferência tenha ocorrido antes de 23-04-2019.

Note-se também que a falta de cooperação do sujeito passivo com a AT, de que resulte a impossibilidade de comprovar, de forma direta e exata, a verdadeira situação tributária do sujeito passivo, autoriza a determinação da matéria tributável pelo método indireto, ao abrigo dos artigos 87.º, n.º 1, alínea b), e 90.º da LGT (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06-12-2022, processo n.º 485/09.0 BELRS). Assim, se o Requerente persistir na ocultação de factos relevantes para a determinação da sua situação tributária, ou se não facultar à AT a documentação que esta solicite futuramente com referência à cessão de participações sociais de 23-04-2019 (designadamente, o comprovativo do pagamento de € 850.000,00), ficará a AT autorizada a determinar o preço de venda / realização das ações da sociedade B... por métodos indiretos, tendo em conta o respetivo valor de mercado.

Cumpre também referir que, se for apurado in casu que o preço declarado (€ 850.000,00) foi inferior ao preço efetivamente praticado, pode a AT lançar mão ao disposto no artigo 39.º, n.º 1, da LGT (“Em caso de simulação de negócio jurídico, a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado”). De facto, esta disposição tem permitido à AT, com assentimento do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Centrais Administrativos, prevenir que os sujeitos passivos, com o objetivo de reduzir a tributação incidente sobre negócios jurídicos, declarem um valor de transmissão / realização inferior ao valor efetivamente praticado entre as partes. Tal como referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo de 09-07-2020, processo n.º 964/08.6BELRA, a “simulação de preço” é uma “simulação fraudulenta [porque tem por objetivo prejudicar a AT] que tem subjacente ao negócio simulado [simulação de preço] um outro, “escondido”, dissimulado, que corresponde ao valor efetivo pelo qual os contraentes efetuaram o negócio”.

Por último, cumpre referir que (i) a celebração de negócio simulado (incluindo a simulação do preço), e a ocultação de factos ou valores não declarados que devam ser revelados à AT, para que esta fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável, (ii) visando a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária, ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, poderá constituir crime de fraude fiscal, nos termos do artigo 103.º do RGIT, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, quando a vantagem patrimonial ilegítima for superior a € 15.000,00.

B. Em 23-04-2019, o valor de mercado das ações da sociedade B... situava-se entre € 1.700.000,00 e € 1.800.000,00.

Em 27-01-2023, aquando da apresentação de observações escritas junto do TJUE, e com o intuito de demonstrar que o valor da contrapartida da cessão de participações sociais na sociedade B... não foi fixado artificialmente, o Requerente juntou ao processo prejudicial cópia de uma avaliação do valor de mercado da totalidade das participações sociais da sociedade B..., em 30-06-2018, atestando que o mesmo se situava entre € 1.700.000,00 e € 1.800.000,00.

Segundo o documento em apreço, a avaliação foi baseada nas contas dos cinco exercícios anteriores, estatutos, repartição de capital, previsões de exploração para 2018 a 2020, preço médio do quarto dos três últimos exercícios, contabilidade, e outros documentos da mesma natureza fornecidos pelo Requerente. O documento refere também que a sociedade B... detém o Château E..., um monumento histórico do século XVI-XVII no qual funciona um hotel de charme com 25 quartos e 4 apartamentos (restaurados e largamente decorados pelo Requerente), restaurante, sala de chá, tomato bar, parque com 55 hectares (incluindo jardins, piscina, campo de ténis).

Ora, de acordo com as regras da experiência comum, a convicção do Tribunal Arbitral é a de que não é plausível, ou credível, que um monumento histórico com estas características tenha um valor de mercado de apenas € 1.700.000,00 ou € 1.800.000,00. Não está em causa um apartamento com 3 ou 4 quartos numa das zonas nobres de Paris ou Lisboa, ou uma moradia na Comporta, que facilmente ascenderiam a tais valores, mas um castelo classificado como monumento nacional, com um terreno adjacente de 55 hectares.

Conclui-se, assim, que, não obstante o Requerente ter junto uma avaliação do valor de mercado das partes sociais da B... (sujeita à livre apreciação do Tribunal Arbitral), o Tribunal julga como não provado que o valor de mercado das partes sociais da B..., em 23-04-2019, se situava entre € 1.700.000 e € 1.800.000.

Em consequência, o Tribunal Arbitral considera também que (A) o valor de mercado das 29.222 ações da sociedade B... transmitidas em 23-04-2019 (representativas de 47,5% do capital social da mesma sociedade) não era de € 850.000,00 a essa data (valor declarado no contrato), e que (B) o Requerente não logrou demonstrar que o preço das ações não foi fixado artificialmente.

C. A transmissão das 29.222 ações na sociedade B... foi presidida por motivos de eficiência/redução de custos na organização das participações sociais detidas pelo Requerente.

Nas observações escritas que apresentou junto do TJUE em 27-01-2023, o Requerente alegou que a transação em apreço foi efetuada com o objetivo de concentrar as participações sociais da B... numa holding, a sociedade C..., e assim gerir as mesmas de forma mais eficiente. Que dizer?

Sendo certo que a concentração de participações sociais em holdings é comum e que apresenta vantagens sob o ponto de vista da respetiva gestão, a verdade é que, no caso sub judice, o Requerente apenas transferiu partes sociais representativas de 47,5% do capital social da B... para a sociedade C..., que, mesmo após a transmissão, continuou a deter menos de metade do capital social da B... .

Se o objetivo do Requerente, ao transmitir participações sociais de uma sociedade operacional (B...) para uma holding (C...), fosse a consolidação nesta última de partes sociais com o objetivo de otimizar a respetiva gestão, não teria o Requerente transferido 100% das participações sociais e assegurado que a holding (C...) passasse a deter a totalidade das partes sociais da sociedade operacional (B...)?

Acresce que as operações de mera reestruturação societária ou empresarial com vista à obtenção de uma maior eficiência organizacional geralmente não geram o pagamento de avultadas somas de dinheiro aos sócios (como sucede in casu), e muitas vezes beneficiam de regimes especiais de neutralidade fiscal que permitem o deferimento da tributação dos ganhos obtidos no momento em que se realizam tais operações (vd. regime contido nos artigos 73.º a 78.º do Código do IRC, em especial, o disposto no artigo 77.º, n.º 1).

Pelo exposto, de acordo com as regras da experiência comum, na convicção do Tribunal Arbitral, não é plausível, ou credível, que a única motivação, ou motivação essencial/principal, da cessão de participações sociais da B... em 23-04-2019 tenha sido a eficiência/redução de custos na organização das participações sociais detidas pelo Requerente.

Fica, assim, por desvendar que razões económicas atendíveis motivaram a cessão de participações sociais em 23-04-2019 do Requerente para a sociedade C...

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questões decidendas

A liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2019, foi emitida na sequência da transmissão de parte das participações sociais que o Requerente detinha numa sociedade de direito francês, a B..., que, à data da transmissão (23-04-2019), tinha “sede efetiva” em França, era residente para efeitos fiscais neste Estado-Membro, e não exercia atividade económica em território português.

O litígio entre as partes surge por a AT (i) entender que esta transação não é elegível para o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, por efeito do qual apenas 50% do ganho decorrente da mesma seria tributado em sede de IRS, e (ii) ter emitido uma liquidação de IRS assente na tributação da totalidade do ganho derivado da referida transação.

A questão principal a decidir pelo Tribunal Arbitral é, assim, a de saber se o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS é aplicável à transmissão de participações sociais de uma sociedade que não foi constituída de acordo com o direito português, que não tem “sede efetiva” em território português, que não é residente para efeitos fiscais em Portugal, e/ou que não exerce atividade económica em território português.

Uma questão que surgiu no decorrer do processo arbitral foi a de saber se o princípio de proibição de práticas abusivas, enquanto princípio geral de Direito da União Europeia, exige que ao Requerente seja negado o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS.

Tal como referido supra, em 09-07-2022, o Tribunal efetuou um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE relativo à interpretação dos artigos 49.º (direito de estabelecimento), 63.º e 65.º do TFEU (livre circulação de capitais), bem como do referido princípio de proibição de práticas abusivas (vd. Apêndice 1 em anexo), tendo o TJUE proferido decisão em 16-11-2023.

 

§2. Legislação aplicável (na redação em vigor em 2019)

As mais-valias decorrentes da transmissão de participações sociais auferidas por indivíduos residentes em território português são tributadas em sede de IRS como “Categoria G - Incrementos patrimoniais”, conforme resulta dos artigos 1.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS.

O ganho sujeito a IRS corresponde à diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, conforme resulta do artigo 10.º, n.ºs 1, alínea b), e 4, do Código do IRS.

O n.º 1 do artigo 43.º do Código do IRS dispõe que “o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes”.

O n.º 3 do mesmo preceito estabelece que “o saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor”.

O n.º 4 clarifica que “por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro”. Este diploma cria a certificação por via eletrónica do estatuto de micro, pequena e médias empresas (PMEs), pelo Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, I. P., para empresas que exerçam a sua atividade nas áreas sob tutela do Ministério da Economia e da Inovação, e que necessitem de apresentar e comprovar esse estatuto de PME no âmbito dos procedimentos administrativos para cuja instrução ou decisão final seja legalmente ou regulamentarmente exigido. No anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, as micro e pequenas empresas são definidas nos seguintes termos:

Artigo 2.º

Efetivos e limiares financeiros que definem as categorias de empresas

 

1 - A categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros.

2 - Na categoria das PME, uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros.

3 - Na categoria das PME, uma micro empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 2 milhões de euros.

Quando o contribuinte não opta pelo englobamento das mais-valias, estas são tributadas à taxa de 28%, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS.

 

§3. Da aplicação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS a transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros

A primeira das questões a decidir nos autos é a de saber se o Requerente, enquanto sujeito passivo que efetuou uma transmissão onerosa de partes sociais numa sociedade residente em França (que satisfaz os requisitos para a qualificação como micro ou pequena empresa previstos no anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro), pode beneficiar da redução em 50% do saldo da mais-valia decorrente de tal transmissão, conforme previsto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS?

A este propósito, o TJUE concluiu, no Acórdão proferido em 16-11-2023 (e integralmente reproduzido no Apêndice 5 em anexo), que o artigo 63.° do TFUE (livre circulação de capitais) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática fiscal de um Estado-Membro, em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, que reserva um benefício fiscal, que consiste na redução para metade da tributação das mais-valias geradas pela transmissão de participações sociais, apenas às transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas nesse Estado-Membro, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros.

Conclui-se, assim, que a interpretação que a AT efetuou do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, na qual assenta a liquidação de IRS impugnada, viola o artigo 63.º do TFUE (livre circulação de capitais).

 

§4. Do princípio da proibição de práticas abusivas

Subjacente à questão da aplicação do princípio de proibição de práticas abusivas no caso sub judice encontrava-se a dúvida quanto à qualificação, para efeitos de IRS, do rendimento auferido em virtude da transmissão das ações na B... do Requerente para a sociedade C... (mais-valias vs dividendos), dúvida essa que surgiu à luz dos factos que eram do conhecimento do Tribunal Arbitral no momento em que efetuou o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE (09-07-2022): (i) o preço de venda (declarado) das participações sociais (€ 850.000,00) foi consideravelmente superior tanto ao valor nominal como ao valor contabilístico das mesmas (€ 155.057,78 e € 164.024,63, respetivamente), (ii) o Requerente era o acionista maioritário de ambas as sociedades (B... e C...), e (iii) a transmissão das partes sociais da B... não diminuiu substancialmente a participação social detida, direta e indiretamente, pelo Requerente, que, após 23-04-2019, continuou a deter 93.06% do capital desta sociedade e a exercer as funções de gerente da mesma.

Neste contexto, cumpre voltar a sublinhar que, antes de formular as questões prejudiciais e de as remeter ao TJUE, o Tribunal Arbitral diligenciou no sentido de esclarecer, junto do Requerente, a factualidade relevante para avaliar a existência de um eventual abuso na transmissão das participações sociais da B..., tendo conferido ao Requerente 30 dias para esclarecer a natureza e fins da transação e do rendimento por ela gerado, e para juntar os documentos que entendesse por conveniente.

Cumpre também sublinhar que, nas suas observações escritas, com base na factualidade descrita pelo Tribunal Arbitral na decisão de reenvio prejudicial, a Comissão Europeia, o Estado Português e a República Italiana deram o seu parecer favorável à aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice (vd. Apêndices 2, 3 e 4 em anexo).

Sucede que, aquando das suas observações escritas junto do TJUE, o Requerente alegou um facto novo que altera significativamente a apreciação da transação em causa e que o Tribunal Arbitral não pode ignorar: em 23-04-2019, a sociedade B... era proprietária de um imóvel de elevando valor cultural e económico, classificado como monumento nacional. Este facto abala a conclusão de que o valor de realização declarado, € 850.000,00, é significativamente mais elevado do que o valor de mercado das ações da B... transmitidas, deixando cair a questão de saber se estariam em causa “dividendos disfarçados”.

Dada a relevância dos factos dados a conhecer pelo Requerente aquando das suas observações escritas junto do TJUE para a apreciação da aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice, o TJUE (a quem não compete apreciar os factos do processo principal) concluiu, no Acórdão de 16-11-2023, o seguinte: (A) o órgão jurisdicional de reenvio forneceu uma exposição lacunar do quadro regulamentar e factual, (B) o TJUE não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar um resposta útil às questões que lhe são submetidas, e (C) o órgão jurisdicional de reenvio poderia submeter um novo pedido de decisão prejudicial quanto estivesse em condições de fornecer ao TJUE todos os elementos que lhe permitam pronunciar-se.

A verdade é que, dada a falta de cooperação do Requerente no decorrer do processo arbitral e o elenco dos factos dados como não provados supra, o Tribunal Arbitral não dispõe ele próprio de informação suficiente (ou forma de a obter) para apreciar a aplicação do princípio da proibição de práticas abusivas no caso sub judice.

Resta assim ao Tribunal Arbitral anular parcialmente a liquidação de IRS impugnada, no montante de € 70.730,01, com fundamento em ilegalidade da interpretação do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, e determinar a restituição do referido montante ao Requerente.

Já a AT, vinculada a realizar as “diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material” (cf. princípio do inquisitório constante do artigo 58.º da LGT), poderá realizar diligências adicionais e solicitar informações às autoridades fiscais francesas (nomeadamente, o valor de mercado do Château E...), de forma a esclarecer cabalmente os contornos da transmissão de participações sociais na sociedade B..., e eventualmente, com base na informação obtida, emitir nova liquidação dentro do prazo de caducidade (prazo este que se suspendeu com a apresentação do PPA em 17-06-2021, no termos do artigo 46.º, n.º 2, alínea a), da LGT).

Se, futuramente, o Requerente persistisse na ocultação de factos relevantes para a determinação da sua situação tributária e das circunstâncias em que ocorreu a transmissão das participações sociais na sociedade B..., ou não facultasse à AT a documentação que esta solicitasse para o efeito (incluindo, o comprovativo da transferência bancária no montante de € 850.000,00), em violação do seu dever de cooperação com a AT, poderia a AT determinar o preço das referidas participações sociais por métodos indiretos, ao abrigo do artigo 90.º da LGT.

Em tal caso, caberia à AT provar que estariam verificados os pressupostos do recurso à avaliação indireta, previstos nos artigos 87.º, n.º 1, alínea b), e 88.º, alínea d), da LGT, ou seja, que: (1) a AT não consegue determinar o preço de venda (valor de realização) das participações sociais em causa por métodos diretos, e (2) existe uma manifesta discrepância entre (A) o valor de realização declarado no contrato de cessão das participações sociais na sociedade B..., celebrado em 23-04-2029 (€ 850.000,00), e (B) o valor de mercado das referidas participações sociais, designadamente por o valor de mercado do Château E... ser manifestamente superior a € 1.800.000,00 (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13-10-2022, processo n.º 284/09.9BESNT; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06-12-2022, processo n.º 485/09.0 BELRS; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05/03/2020, processo n.º 9213/15.0BCLSB).

Refira-se que, nos termos do artigo 90.º da LGT, a matéria tributável poderia vir a ser determinada tendo em conta, nomeadamente, o valor de mercado das ações da B... (cf. alínea h) do n.º 1), podendo o sujeito passivo solicitar a revisão da matéria tributável fixada por métodos indiretos e demonstrar o excesso de quantificação, nos termos dos artigos 91.º e seguintes da LGT.

 

§5. Dos juros indemnizatórios

Tendo o Requerente pago indevidamente o montante de imposto de € 70.730,01, por erro imputável à AT, o Tribunal Arbitral condena esta a pagar àquele juros indemnizatórios sobre este montante, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, contados desde 28-07-2022 (data do pagamento indevido) até à data da emissão da nota de crédito

 

V. DECISÃO

Com base nos fundamentos enunciados supra, decide-se julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar a ilegalidade e anular parcialmente a liquidação de IRS n.º 2020..., no montante de € 70.730,01;
  2. Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios à Requerente sobre o montante de € 70.730,01, contados desde 28-07-2022 até à data da emissão da nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 70.730,01, indicado pelo Requerente e não contestado pela Requerida.

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de 2.448,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento.

Notifique-se

 

CAAD, 29 de dezembro de 2023

Os Árbitros,

 

 

 

Rita Correia da Cunha

 

Nuno Pombo

 

         

Jorge Bacelar Gouveia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE 1: DECISÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL DE REENVIO PREJUDICIAL (anexo à decisão) e disponível para consulta em:

https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=360/2021&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=6562

 

APÊNDICE 2: OBSERVAÇÕES ESCRITAS DA COMISSÃO EUROPEIA NO PROCESSO PREJUDICIAL C-472/22

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE 3: OBSERVAÇÕES ESCRITAS DO ESTADO PORTUGUÊS NO PROCESSO PREJUDICIAL C-472/22

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE 4: OBSERVAÇÕES ESCRITAS DA RÉPUBLICA ITALIANA NO PROCESSO PREJUDICIAL C-472/22

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE 5: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA NO PROCESSO PREJUDICIAL C-472/22

 

https://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf?mode=lst&pageIndex=0&docid=256944&part=1&doclang=PT&text=&dir=&occ=first&cid=3631280