Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 649/2021-T
Data da decisão: 2022-07-25  IRC  
Valor do pedido: € 348.436,51
Tema: IRC - Incompetência do Tribunal Arbitral Coletivo por o valor da causa ser inferior ao limiar mínimo necessário para a sua constituição a pedido da requerente; verificação de exceção dilatória que determina a absolvição de instância.
Versão em PDF

 

 

DECISÃO ARBITRAL

O Tribunal Arbitral, composto pelo Senhor Árbitro Presidente, Professor Doutor Fernando Araújo, e pelos Senhores Árbitros Vogais, Dr. André Festas da Silva e Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia (Relator), designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral (TA) em 24 de dezembro de 2021, acorda no seguinte: 

 

            I – RELATÓRIO

 

1. A Requerente, A..., S.A., com sede social no ..., ...-... ... e com o número de identificação de pessoa coletiva ..., veio, ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro ( RJAT) e nos artigos 1º, alínea a) e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral (coletivo).

O pedido tem por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o ato de Liquidação de IRC n.º 2020..., emitido na sequência da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de substituição de IRC, submetida pela Requerente no dia 13/08/2020, por referência ao período de tributação de 2016, tendo também por objeto aquele ato de liquidação em consideração de um saldo € 0,00 apurado e de um prejuízo fiscal fixado de € 780.668,30, igualmente para o ano de 2016, resumindo-se no seguinte tal pedido: 

i)              ser anulado o ato de Liquidação de IRC em causa, referente ao período de tributação de 2016, por se encontrar ferido do vício de violação de lei; 

ii)             ser emitido, em consequência, um novo ato de liquidação, quanto ao IRC deste ano de 2016, que promova a correção do valor a considerar no Campo 772 da Declaração Modelo 22 de IRC, referente a 2016, de €336.846,58 para € 348.436,51, resultando numa correção ao prejuízo fiscal em € 11.589,93.

 

            2. A Requerida, a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para responder, objetou com uma exceção dilatória relacionada com a incompetência do TA, uma vez que o valor da ação a considerar – €11.589,93 ou €40.393,75 – sempre seria inferior à possibilidade da designação de tribunal arbitral coletivo, solicitado pela Requerente, a qual estaria reservada para um valor processual superior ao dobro da alçada para o Tribunal Central Administrativo. 

            A Requerida também se defendeu por impugnação, não considerando procedente a argumentação expendida pela Requerida.

 

3. Entretanto, por despacho do TA, e perante a exceção invocada, foi dada a oportunidade para a Requerente se pronunciar, tendo ainda ambas as partes apresentado alegações.

            

II – OS FACTOS RELEVANTES

 

4. Dos elementos processuais disponíveis nos documentos apresentados, é possível considerar os seguintes factos como relevantes para a presente decisão: 

a) A Requerente é A..., S.A., com sede social no ..., ... ..., com o número de identificação de pessoa coletiva ...;

b) A requerente foi notificada do ato de Liquidação de IRC n.º 2020..., emitido na sequência da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de substituição de IRC, submetida pela Requerente no dia 13/08/2020, por referência ao período de tributação de 2016;

c) A Requerente reclamou depois – Reclamação Graciosa n.º ...2020... – quanto ao ato de liquidação do saldo € 0,00 apurado e do definido prejuízo fiscal de € 780.668,30, para o ano de 2016, entendendo que o prejuízo a considerar deveria ser, antes, o de € 792.258,23, devendo, pois, proceder-se a uma correção de €11.589,93.

d) Essa pretensão foi indeferida;

e) Na sequência disso, a Requerente intentou o presente pedido de pronúncia arbitral, solicitando a nomeação de um tribunal arbitral coletivo, nos termos do nº VII da sua petição inicial, trecho que se transcreve: “O Requerente não pretende nomear árbitro, pelo que o mesmo deverá ser nomeado pelo CAAD, de acordo com o preceituado no artigo 6.º do RJAT”; 

f) Concomitantemente, a Requerente calculou o valor da ação arbitral nos termos seguintes, segundo texto que se transcreve do nº V da sua petição inicial: “O valor da utilidade económica do presente pedido corresponde ao valor da correção cuja anulação se pretende, materializada no ato de liquidação de IRC em causa, correspondente ao valor do aludido ajustamento, ou seja, € 348.436,51”.

g) a Requerida defendeu-se, desde logo, pela apresentação de uma exceção dilatória, atinente à incompetência do TA por o valor da ação não exceder o dobro do valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, tal não habilitando a designação de tribunal arbitral coletivo, que houvera sido solicitada na sequência do pedido da Requerente. 

 

5. Não há factos não provados relevantes para a decisão.  

 

            III – DA PROCEDÊNCIA DA EXCEÇÃO DILATÓRIA DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO EM RAZÃO DO VALOR DA AÇÃO

 

a)    Valor da ação e competência do tribunal arbitral

            

6. Tendo sido suscitadas dúvidas no âmbito do exercício do poder jurisdicional por parte do TA, cumpre conhecê-las previamente. 

Trata-se da relevância de eventuais exceções processuais dilatórias, as quais “…obstam a que o tribunal conheça o mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal”, nos termos do art. 576, nº 2, do CPC.

E, sendo estas procedentes, não lhe cumprirá, por inutilidade, a apreciação do mérito da causa.

 

            7. Ora, no presente processo arbitral, suscita-se a questão da competência do tribunal arbitral em razão do valor que a Requerente para o mesmo propôs. 

            Decerto que o tema da (in)competência do tribunal arbitral pode ser equacionada por outros motivos, mas será apenas este que será objeto de apreciação, o qual – sendo considerado procedente – acarreta a absolvição de instância da Requerida, nos termos dos arts. 577º e 278º do CPC. 

 

b)    O valor da ação a fixar pelo tribunal arbitral

 

8. Aquando da definição do valor da ação, a Requerente teve a preocupação de explicar o seu entendimento quanto à adequação do valor indicado, assunto que não lhe é estranho.  

            Diz a certo passo da sua petição inicial: “O valor da utilidade económica do presente pedido corresponde ao valor da correção cuja anulação se pretende, materializada no ato de liquidação de IRC em causa, correspondente ao valor do aludido ajustamento, ou seja, € 348.436,51”.

            Entendimento que reiterou no art. 7º das suas alegações, após conhecer o entendimento discordante da Requerida, apresentado na sua resposta: “Quer do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 97.º-A do CPPT, quer do artigo 32.º, n.º 2, do CPTA, resulta que o valor da causa deverá corresponder ao “valor contestado”, sendo que o que está aqui a ser impugnado são ajustamentos fiscais que não tiveram reflexo no imposto a pagar. Estes ajustamentos, como se demonstrou, têm reflexo na matéria coletável deste ano de 2016 e poderão também ter nos exercícios subsequentes, mas não se materializam em imposto a pagar”.        

 

            9. Mas este entendimento foi contrariado pela Requerida, que ofereceu mesmo duas hipóteses para o problema do valor da ação, em qualquer dos casos nunca chegando ao valor que, a seu ver, permitiria a designação de um tribunal arbitral coletivo. 

            Aplicando o CPPT, a Requerida, no art. 18º da sua resposta, afirmou que “…tendo em consideração o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A, a utilidade económica do pedido, aferida em função do pedido e da causa de pedir que sustenta o pedido de anulação parcial da liquidação, o valor da ação arbitral corresponde à quantificada pela Requerente «correção ao prejuízo fiscal em € 11.589,93», sendo este o valor contestado”.

            Mais ainda considerou que, alternativamente, como escreveu no art. 19º da resposta, se poderia considerar outro valor: “Ou, então, corresponde ao valor de € 40.393,75, respeitante à correção efetuada pelos SIT ao valor inscrito no campo 772 do quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 de substituição”. 

            Como quer que fosse, no entendimento da Requerida, como conclui no art. 20º da sua contestação, “Em qualquer dos casos, o presente Tribunal arbitral deveria ter sido constituído com árbitro singular e não coletivo, pois o valor do pedido não ultrapassa duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, isto é € 60.000,00, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do RJAT”.

            Afirmando, finalmente, no artigo 22º da sua contestação, que seria uma “Exceção dilatória que impede o conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, o que desde já se requer”.

 

            10. No entender do TA, e não se contestando a complexidade do assunto, o valor da ação arbitral deve ser definido em razão do tipo de ação intentada, cada uma delas com um valor próprio, segundo a pretensão processual formulada. 

            No caso, a ação em causa é, segundo a Requerente, uma ação de anulação, no caso parcial, de um ato de liquidação em IRC: a Requerente solicitou, ainda que sobre uma liquidação global de IRC, materializada no ato de liquidação nº 2020..., somente a anulação parcial do montante de €11.589,93 de tal liquidação, correspondente à nota de acerto de contas n.º 2020..., relativa ao exercício de 2016.

            Não estando em causa a anulação do valor de todo o ato de liquidação, o montante que importa para definir o valor da ação arbitral é o valor controvertido e submetido a juízo, no caso, o valor de €11.589,93, no contexto de uma ação de anulação parcial de um ato global de liquidação em IRC. 

 

            11. Também por isso mesmo não é de admitir alternativamente – como pretende a Requerida – que o valor da presente ação arbitral possa ser outro, o de € 40.393,75, respeitante à correção efetuada pelos SIT ao valor inscrito no campo 772 do quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 de substituição, por referência ao valor em crise na fixação da matéria coletável, a qual também foi discutida no âmbito do procedimento de liquidação. 

            Assim seria se o mecanismo processual em apreço tivesse sido o da revisão da matéria coletável, o que não foi manifestamente o caso, segundo o nomen iuris que a Requerente usou, o qual delimita, em razão do princípio do pedido, a intervenção processual do TA.

 

            12. A adequação da consideração de dois valores sugeridos para a demarcação do valor de ação arbitral, longe de uma qualquer decisão arbitrária, poderia porventura fazer sentido na hipótese de haver cumulação de pedidos, os quais se traduziriam no somatório de valores contestados conforme as respetivas pretensões processuais. 

            Contudo, não é isso o que aqui se observa porque o segundo valor aventado pela Requerida é um mero suposto da intervenção da AT cuja anulação se pretende, esta sendo o resultado concreto que a Requerente não pretende pagar em sede de IRC, nisso se consubstanciando o valor desta ação arbitral, que somente tem um único pedido formulado. 

 

c)    A consequência da procedência da incompetência do tribunal em razão do valor: absolvição da instância e não também “remessa” do processo ao tribunal competente

 

13. Nas suas alegações, a Requerente, após contestar que o valor do processo determinasse a incompetência do tribunal arbitral, chamou a atenção para a necessidade – perante o eventual acolhimento de tal conclusão – de que a instância se manteria, ainda que através da “remessa” do processo para um tribunal arbitral singular, em resultado do novo valor determinado. 

            Não o dizendo assim, utilizou um raciocínio analógico ao que se passa com os tribunais estaduais, em cujo regime processual se distingue entre a incompetência absoluta e a incompetência relativa, aqui nalguns casos com a possibilidade da “remessa” do processo judicial para o tribunal competente.  

 

            14. Porém, não parece que esse raciocínio seja viável porque o mesmo é estranho à lógica da justiça arbitral, já tendo o CAAD decidido, na decisão tomada no Processo nº 365/2019-T, que a consequência da incompetência do tribunal arbitral é apenas a da absolvição da instância, não a remessa dos articulados para outro tribunal arbitral competente. 

            A questão de saber como depois se opera a tutela dos direitos e interesses do autor deve ser vista noutros moldes, a partir do uso do meio processual adequado, sendo certo que a legislação fiscal versa o problema, sobre o mesmo se tendo pronunciado a decisão nº 197/2019-T, em cujos termos desculpou do erro a Requerente na fixação do valor da causa de processo anterior, aceitando a instância e decidindo quanto ao mérito.

            Daí que, considerando o TA que é incompetente em razão do valor da ação, não lhe compete qualquer outra decisão relativa ao destino a dar aos autos, exemplificando-se este entendimento com aquela mencionada decisão arbitral do CAAD.   

 

            IV – DECISÃO

 

            15. Termos em que o TA decide: 

a) absolver da instância a Requerida, verificando existir uma exceção dilatória quanto à competência do tribunal arbitral coletivo, o que o impede de exercer o seu poder jurisdicional, na medida em que o que estaria em causa na presente ação arbitral seria um montante de €11.589,93, o valor que a Requerente não quer pagar, e em relação ao qual formulou um pedido de anulação;

b) considerar prejudicada a apreciação de outras questões suscitadas; 

c)  condenar a Requerente no pagamento das custas processuais. 

 

V – VALOR DO PROCESSO 

 

16. Chegados aqui, temos que distinguir dois valores:

1) aquele que, divergindo da indicação no Pedido de Pronúncia Arbitral, veio a revelar-se ser o valor do litígio subsistente: €11.589,93;

2) aquele que, tendo sido indicado naquele Pedido de Pronúncia Arbitral, levou à formação deste tribunal arbitral coletivo: € 348.436,51.

Não obstante este tribunal ter considerado procedente a exceção de incompetência, o funcionamento deste tribunal envolve custas que devem ser suportadas pelas partes – e daí que o Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária estabeleça regras próprias para cálculo do valor do processo, mais próximas do princípio de que o valor da ação é aquele que existe no momento em que ela é proposta (art. 299º CPC).

Assim, não obstante o Tribunal basear a sua decisão no reconhecimento de que o valor da causa, para efeitos de competência, é inferior àquele inicialmente atribuído pela Requerente, é este último que terá que servir de referência ao cálculo das custas.

Vale aqui o entendimento fixado na decisão proferida no Proc. 151/2013-T: "O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada, e, como se disse, a regulamentação do regime de custas foi deixada pelo artigo 12.º do RJAT, na sua exclusiva disponibilidade, ao estabelecer que «é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objetiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa»".

Fixa-se, assim, ao processo o valor global de € 348.436,51, nos termos do artigo 97º-A, nº 1, al. a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI – CUSTAS 

 

            17. Custas no montante de € 5.814,00 (cinco mil, oitocentos e catorze euros) a suportar pela Requerente, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, e com os artigos 12º, nº 2, e 22º, n.º 4, do RJAT, artigo 4º, nº 5, do RCPAT, e artigos 527º e 536º, nºs 3 e 4, do CPC, ex vi artigo 29º, nº 1, al. e), do RJAT. 

 

Lisboa, 25 de julho de 2022.

 

O Árbitro-Presidente

 

 

Fernando Araújo

 

O Árbitro

 

 

André Festas da Silva

 

O Árbitro

 

 

Jorge Bacelar Gouveia