SUMÁRIO:
1. Decorre da atual redação da al. a) do artigo 13.º do RCPIT que os actos de inspecção interna consistem na análise formal e de coerência dos documentos efectuada exclusivamente nos serviços da administração tributária, ainda que, para o efeito, tenham sido solicitados documentos para respectiva análise.
2. A classificação formal do procedimento não tem eficácia vinculativa, na situação prática em que os actos de inspeção demonstrem que o procedimento inspectivo teve, materialmente, uma natureza diferente da sua classificação.
3. Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vício de caducidade do direito de liquidação, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 3.09.2021, a Requerente, A... SGPS, S.A., (doravante designado por “Requerente”), titular do número de identificação fiscal..., com sede no ..., ...-... ..., requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação da decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico com o número de processo ...2020... (IRC de 2014), bem como a anulação total da liquidação de IRC n.ºs 2019 ..., Liquidações de juros compensatórios n.ºs 2019 ... e n.º 2019 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2019 ..., datadas de 8 de março de 2019, bem como as que posteriormente foram emitidas na sequência da decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico, liquidação de IRC n.º 2021 ..., de 12 de julho de 2021, respetiva liquidação de juros n.º 2021... e consequente demonstração de acerto de contas n.º 2021..., datada de 14 de julho de 2021;
A Requerente peticiona, ainda, o pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, em virtude dos encargos incorridos na sequência da prestação de garantia bancária para suspensão do processo de execução fiscal instaurado para cobrança do imposto em causa, até ao respetivo cancelamento.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros os signatários, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 17.11.2022.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
DA CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
A Requerente foi objeto de duas ações inspetivas distintas, de âmbito parcial, por referência ao IRC do exercício de 2014:
i) A ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., “para efeitos de análise e comprovação dos valores declarados em sede de IRC, nomeadamente, apuramento do resultado tributável e cálculo do imposto” da Requerente, em termos individuais, com fim a 26 de dezembro de 2018 (data de notificação do respetivo Relatório de Inspeção) formalmente identificada como inspeção interna e
ii) A ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., a coberto do disposto no artigo 70.º do Código do IRC, para efeitos de verificação do lucro tributável do grupo, no contexto do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), do qual a Requerente é sociedade dominante, com início a 1 de outubro de 2018 (data da assinatura da Ordem de Serviço por parte do representante da Requerente) e fim a 12 de fevereiro de 2019 (data de notificação do Relatório de Inspeção) – ou seja, com duração de 4 meses e 12 dias, formalmente identificada como inspeção externa.
Todavia, face ao artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), por força da substância dos atos de inspeção efetivamente praticados (meramente internos), só poderá concluir-se que estamos perante um procedimento interno de inspeção, e não externo, contrariamente à qualificação formal atribuída pela AT.
Neste contexto, a liquidação de IRC inicialmente emitida por referência ao exercício de 2014 encontra-se ferida de ilegalidade, – e, consequentemente, a nova liquidação entretanto emitida em sua substituição –, uma vez que, atendendo ao prazo de caducidade de 4 anos estabelecido no artigo 45º, nº 1, da Lei Geral Tributária (não suscetível de prorrogação no contexto de uma inspeção interna), a mesma foi emitida extemporaneamente – ou seja, terminando este prazo no dia 31 de dezembro de 2018, a mesma só foi notificada à Requerente no dia 9 de março de 2019.
DAS CORREÇÕES INDIVIDUAIS SUBJACENTES À CORREÇÃO DO RESULTADO TRIBUTÁVEL DO GRUPO
Sem prejuízo do exposto a Requerente entende, ainda, que o ato tributário impugnado sempre seria ilegal, por violação do artigo 23º do CIRC no que respeita às correções que a de seguida se identificam.
DA CORREÇÃO EFETUADA AO NÍVEL INDIVIDUAL DA REQUERENTE
No decurso do exercício de 2014, a Requerente alienou, por contrato de compra e venda, 90% das participações sociais detidas na sociedade B..., S.A., bem como a totalidade das prestações acessórias realizadas e dos créditos concedidos a esta sociedade, sob a forma de suprimentos, à sociedade C... SGPS, S.A., pelo preço, para cada realidade, de 1 Euro, valor suportado por uma avaliação independente, efetuada no ano de 2014 à situação patrimonial da B..., S.A. que atesta a situação económico-financeira deficitária desta sociedade e a incapacidade da Requerente para recuperar o investimento efetuado na mesma, o qual tendia, inclusivamente, a agravar-se.
Esta operação foi realizada, enquanto decisão de gestão, numa tentativa de sanear a situação patrimonial deficitária da B..., travando as perdas geradas na sua esfera por parte da B... e, consequentemente, libertando recursos para a obtenção de novos rendimentos no contexto da sua atividade, inserindo-se num objetivo último de alienação da mesma a terceiros – situação que se veio efetivamente a concretizar em momento posterior.
Existindo uma efetiva relação sinalagmática entre as partes envolvidas, e a ausência de qualquer animus donandi, não poderá concluir-se pela existência de uma liberalidade.
Por outro lado, em contradição com esta tentativa de qualificação como liberalidade, a AT assimilou a perda apurada nos suprimentos às menos-valias apuradas na alienação das partes de capital e prestações acessórias, determinando assim que lhes seja igualmente aplicável o regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC, mas um crédito/suprimento não poderá ser assimilado a uma parte de capital ou outro instrumento de capital próprio pois, pese embora a Requerente tenha procedido à alienação em paralelo de diversas realidades (partes de capital, prestações acessórias, suprimentos), isto é, sob um único contrato, tal não legitima o tratamento da operação como um todo, do ponto de vista fiscal, desconsiderando a efetiva natureza jurídica de cada uma das componentes alienadas, pelo que a AT efetuou assim uma interpretação analógica do artigo 51.º-C do Código do IRC, a qual é proibida no Direito fiscal português.
Por outro lado, tratando-se da transmissão onerosa de um crédito, não faz igualmente sentido tentar qualificar a perda apurada como uma perda por imparidade em créditos ou como o reconhecimento de um crédito incobrável, ao abrigo do disposto no artigo 41.º do Código do IRC, por forma a justificar a não aceitação fiscal do gasto associado.
Face ao exposto, a Requerente entende que a dedutibilidade fiscal da perda apurada na alienação dos suprimentos, encontra-se sustentada na regra geral constante do artigo 23.º do Código do IRC.
Razões pelas quais a Requerente contesta veementemente a correção em causa, no valor de 10.799.999 €, responsável, maioritariamente, pela liquidação de IRC do exercício de 2014 objeto da presente impugnação.
DA CORREÇÃO EFETUADA AO NÍVEL INDIVIDUAL DA D...
A Requerente discorda também do fundamento-base subjacente à desconsideração fiscal de parte dos encargos financeiros suportados pela sociedade D..., S.A., - sociedade que faz parte do grupo de que a Requerente é sociedade dominante - no período de tributação de 2014, em concreto, do entendimento propugnado pela AT e mantido pela DSIRC de que esta parcela não é necessária para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC e, por conseguinte, não poderá ser fiscalmente dedutível à luz do disposto no artigo 23.º do CIRC, nem tão pouco pode concordar com o método de apuramento desta parcela dos gastos não dedutível, o qual não encontra qualquer aderência no normativo fiscal vigente.
A dedutibilidade fiscal dos gastos, prevista no artigo 23.º do CIRC, exige apenas que o gasto seja realizado no interesse da empresa, em ordem, direta ou indiretamente, à obtenção de lucros.
A AT ao concluir linearmente que se a D... S.A. tinha disponibilidades financeiras para emprestar a terceiros, não seria necessário recorrer a financiamento bancário no contexto da sua atividade não teve em consideração a aptidão funcional do património daquela sociedade para realizar (direta ou indiretamente) o fim lucrativo, no âmbito do grupo económico onde se insere.
Entende a Requerente que os encargos financeiros suportados pela D..., S.A., são fiscalmente dedutíveis, na sua totalidade, uma vez que os mesmos foram contraídos no contexto do exercício de uma atividade lucrativa, vista como um todo.
Razões pelas quais a Requerente entende que a presente correção, efetuada ao nível individual da D..., S.A., no valor de 31.966 €, deve ser considerada ilegal, sendo anuladas, em conformidade, as liquidações de IRC e juros compensatórios emitidas na sua sequência ao nível do grupo fiscal, por referência ao período de tributação de 2014.
4. A Requerida, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
DA CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
A ação de inspeção referente à ordem se serviço n.º OI2018... foi a realizada ao Grupo no âmbito da qual os Serviços de Inspeção se deslocaram às instalações da sociedade dominante e obtiveram os elementos contabilísticos, cuja análise permitiu concluir da necessidade de efetuar correções ao resultado tributável do grupo (não obstante identificáveis ao nível do resultado individual da sociedade) o que, nos termos definidos no artigo 13.º do RCPITA, determina que se qualifique como externo o procedimento de inspeção em causa.
Tratando-se de uma ação de inspeção externa e cuja duração não ultrapassou seis meses, conclui-se estarem reunidos os pressupostos definidos no artigo 46º da LGT para a suspensão do prazo de caducidade, pelo período de duração da mesma.
A suspensão teve duração de 134 dias, de onde poderia a liquidação ser emitida até 2019-05-14 e tendo-o sido em 2019-03- 08, tal ocorreu dentro do prazo de caducidade previsto na lei.
Improcedendo assim, segundo a AT, o fundamento de caducidade da liquidação invocado pela Requerente.
DA CORREÇÃO EFETUADA NA ESFERA INDIVIDUAL DA SOCIEDADE DOMINANTE A... SGPS, S.A. - PERDA APURADA NA ALIENAÇÃO DE SUPRIMENTOS: € 10 799 999,00
Do ponto de vista contabilístico, os suprimentos, porque constituem empréstimos que os sócios fazem às suas associadas, são considerados instrumentos financeiros.
Deste modo, sendo os suprimentos considerados instrumentos financeiros, os ganhos ou perdas conexos com a sua transmissão, ao contrário do defendido pela Recorrente, encontram-se subordinados ao regime das mais e menos valias (enunciado no artigo 46º do CIRC), podendo os gastos/perdas correspondentes à eventual diferença negativa entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes, e o valor de aquisição deduzido das perdas por imparidade aceites fiscalmente, serem dedutíveis, nos termos do art.º 23.º, n.º1 e n.º 2, alínea 1), do CIRC, caso se considere tal perda comprovadamente incorrida ou suportada pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.
O caso da alienação de créditos por montante substancialmente inferior ao seu valor nominal, levanta naturais dúvidas desde logo quanto à sua racionalidade económica pois que, mantendo-se o valor do direito ao recebimento, traduzido no valor em divida, inalterado resulta de difícil explicação, no mencionado quadro de racionalidade económica, que seja alienado por um valor substancialmente inferior àquele com que vai ingressar na esfera patrimonial do adquirente;
Estas questões reconduzem-se, não a um cercear ou a uma intromissão na liberdade de gestão dos agentes económicos, mas antes à procura da mencionada racionalidade económica subjacente às operações porque a mesma é condição sine qua non para que os eventuais gastos ou perdas daí resultantes possam ser aceites fiscalmente nos termos do estatuído no n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.
Veja-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 219/2018-T, em que tal preço meramente simbólico levou o Tribunal a considerar que a cessão então poderia ser enquadrada na categoria da cessão a título gratuito, que, em si mesmo, a tornaria insuscetível de ser considerada como gasto ou perda para a determinação do lucro tributável, em função do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC.
Por outro lado, ainda por referência a um cenário de alegada perda de valor refletida no preço de venda (meramente simbólico) decorrente da incobrabilidade dos créditos por suprimentos, não será de perder de vista que o CIRC prevê, no seu artigo 41º, quais as situações em que os créditos reputados de incobráveis poderão ser aceites como gasto fiscal e, no caso concreto, nenhuma das situações previstas no mencionado artigo se verifica.
Aceitar fiscalmente uma perda resultante da alienação de um crédito por valor substancialmente inferior ao seu valor nominal, justificada pela desvalorização do valor de mercado do credito decorrente de uma provável incobrabilidade do mesmo e pela liberdade de gestão sem que se verifiquem as condições previstas no artigo 41º do CIRC para a aceitação fiscal de créditos ditos incobráveis pode redundar num contornar das regras estatuídas no próprio CIRC (art.º 41º) para o reconhecimento fiscal de perdas por créditos incobráveis.
Assim, entende a AT que deve o pedido ser julgado improcedente nesta parte.
CORREÇÃO EFETUADA NA ESFERA INDIVIDUAL DA SOCIEDADE DOMINADA D..., S.A.: € 31 966,00
Da análise efetuada às contas SNC 251 - Financiamentos Obtidos, 266 - Financiamentos Concedidos e 69 - Gastos e perdas de financiamento, verificou-se que a sociedade nos exercícios de 2014 e de 2015 suportou e contabilizou gastos de juros no montante € 110.541,11 e de € 64.864,58, referentes a financiamentos obtidos junto de instituições bancárias, cujos valores ascendiam a cerca de € 2.185.638,71 e a cerca de € 1.372.539,03 no final de cada um dos referidos anos, respetivamente.
Em paralelo verificou-se que a empresa reconhece proveitos de juros com a concessão de financiamento aos sócios, sendo que no período sob análise [2014 e 2015] reconheceu na conta 791 - Juros obtidos os montantes de € 129.054,24 e de € 78.358,26 [respetivamente].
Está em causa saber se existindo financiamento a terceiros, ainda que pertencentes ao mesmo grupo económico, através de empréstimos concedidos, o diferencial entre a remuneração desses empréstimos concedidos e os gastos suportados com juros de financiamento bancário obtidos (por referência a idêntico montante) devem concorrer para o apuramento do resultado tributável do Sujeito Passivo, mormente atento o disposto no artigo 23º do CIRC e a exigência de conformação dos gastos à obtenção ou garantia dos rendimentos sujeitos a IRC.
Nesta matéria entende-se que não obstante a relação de grupo que possa existir entre as empresas de um grupo económico e as sinergias que se geram e os ganhos que dai possam advir em termos económicos, em termos fiscais cada uma das entidades é uma entidade jurídico-tributária autónoma, pelo que, os gastos de financiamento suportados em razão de financiamento obtido - no caso bancário - e canalizado para a atividade económica de outras sociedades - não obstante pertencentes ao mesmo grupo - que não foram repercutidos em juros recebidos destas por tais empréstimos concedidos, seja in totum, seja em parte, não poderá ser aceite como gasto nos termos do artigo 23º do CIRC, por não constituírem gasto da atividade da sociedade que empresta pois que, para que determinado custo suportado por uma sociedade possa ser aceite fiscalmente é necessário que o mesmo se subsuma ao escopo societário da mesma e que tenha subjacente a obtenção de ganhos na sua esfera individual.
No tocante ao método utilizado pelos SIT para calcular o montante dos juros suportados que pelas razões referidas não são de aceitar fiscalmente, o mesmo decorre apenas da necessidade de traduzir em valores numéricos essa não aceitabilidade, em cumprimento do estatuído no artigo 23º do CIRC.
Verificando-se no caso concreto a existência de juros suportados e juros auferidos sobre montantes de empréstimos obtidos e concedidos (acumulados ao longo do tempo), afigura-se que o método utilizado pelos SIT, que consiste em calcular, através dos respetivos saldos médios mensais, a parcela de juros pagos que excede a parcela de juros recebidos, não põe em causa o princípio da tributação pelo lucro real, na medida em que permite apurar a parcela de gastos financeiros que foram suportados em beneficio alheio.
Assim, também esta correção não merece censura, pelo que, segundo a AT, deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente.
5. Por despacho de 11.01.2022 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo (artigo 19.º do RJAT), e da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigo 29.º, n.º 2, do RJAT).
6. As partes apresentaram alegações, nas quais reiteraram as posições expostas em sede de petição inicial e resposta.
7. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
8. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Ilegalidade das liquidações objeto do processo com fundamento em caducidade do direito à liquidação e, em caso de improcedência,
2) Ilegalidade das liquidações por vício substantivo por erro nos pressupostos de direito.
Em qualquer dos casos, haverá que ponderar do direito da Requerente a indemnização por garantia indevida.
II – A matéria de facto relevante
9. Consideram-se provados os seguintes factos:
9.1. A Requerente é uma sociedade anónima de direito português que, em conformidade com o seu objeto social, prossegue, a título principal, a atividade de gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro;
9.2. Para efeitos de IRC, a Requerente é tributada ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades sendo sociedade dominante de grupo do qual faz parte, entre outras, a sociedade D..., S.A.
9.3.Por referência ao IRC do exercício de 2014, a Requerente foi objeto da ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., para efeitos de análise e comprovação dos valores declarados em sede de IRC, nomeadamente, apuramento do resultado tributável e cálculo do imposto da Requerente, em termos individuais, formalmente identificada como inspeção interna, e da ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., para efeitos de verificação do lucro tributável do grupo de que a Requerente é sociedade dominante, no contexto do RETGS, formalmente identificada como inspeção externa, tendo a Ordem de Serviço sido assinada pelo representante da Requerente em 1 de outubro de 2018 e Relatório de Inspeção sido notificado à Requerente em 12 de fevereiro de 2019.
9.4.Do relatório de inspeção tributária decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., consta, além do mais, o seguinte:
9.5. No relatório de inspeção tributária referente à ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., no contexto do RETGS, os Serviços de Inspeção Tributária determinaram uma correção de 11.285.510,67 € ao resultado tributável do grupo fiscal deste período de tributação, com base nas seguintes correções efetuadas ao nível individual de algumas das sociedades do grupo fiscal, no âmbito das respetivas ações inspetivas de que foram objeto:
(i) Correção de 10.799.999 € ao lucro tributável individual da Requerente, decorrente das perdas apuradas na alienação de créditos sob a forma de suprimentos (concedidos à B..., S.A. – “B...”), alegadamente não dedutíveis em face do disposto no artigo 23.º do Código do IRC;
(ii) Correção de 31.966 € ao lucro tributável individual da D..., S.A. (“D...”), correspondente a alegados gastos de financiamento não dedutíveis, ao abrigo do disposto no artigo 23.º do Código do IRC;
(iii) Correção de 453.545,67 € ao lucro tributável individual da E..., S.A. (“E...”).
9.6. Do relatório inspetivo mencionado no ponto que antecede, consta, além do mais, o seguinte:
9.7 Do relatório inspetivo referente à ação inspetiva efetuada à sociedade D..., S. A., consta, além do mais, o seguinte:
(…)
(…)
9.8. Nesta sequência, tendo por base o relatório inspetivo respeitante à ação inspetiva decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2018..., a Requerente foi notificada, no dia 9 de março de 2019, da liquidação de IRC n.º 2019..., de 6 de março de 2019, e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2019..., de 8 de março de 2019, nos termos das quais resultou o valor a pagar de 647.916,31 €, no contexto do RETGS, por referência ao IRC do exercício de 2014.
9.9. Por entender ser a liquidação de IRC em apreço ilegal, a Requerente apresentou, no dia 9 de agosto de 2019, a competente reclamação graciosa, contestando os fundamentos que determinaram as correções ao seu nível individual e ao nível individual da Sociedade D..., S.A., referidas nos pontos antecedentes, e invocando ainda outras ilegalidades da liquidação.
9.10. Previamente à apresentação da reclamação graciosa, em 29.05.2019, a Requerente apresentou pedido de suspensão do processo de execução fiscal entretanto instaurado por referência à alegada dívida de IRC de 2014, tendo apresentado a garantia bancária identificada com o nº GAR/..., prestada pelo Banco F..., SA, por tempo indeterminado e até ao montante de 819.407,91 €, que foi aceite pela Requerida por a considerar idónea e suficiente.
9.11. A Requerente foi notificada, no dia 4 de janeiro de 2020, da decisão definitiva de indeferimento da reclamação graciosa apresentada.
9.12. Por não concordar com esta decisão, a Requerente interpôs, no dia 24 de janeiro de 2020, recurso hierárquico da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.
9.13. A Requerida, na decisão que incidiu sobre o recurso hierárquico, deferiu parcialmente o mesmo, determinando a correção do valor das tributações autónomas de IRC devidas por referência ao exercício de 2014, passando a considerar-se o valor de 613298,35 € ao invés do valor de 899018,93 €, mas indeferiu o recurso hierárquico no que respeita às correções referidas no ponto 9.5. do probatório.
9.14. Nesta decisão foi ainda reconhecido à Requerente o direito a indemnização por garantia indevida, a calcular proporcionalmente ao montante deferido, mediante comprovação dos encargos efetivamente suportados.
9.15. Na sequência da decisão de deferimento parcial, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) emitiu uma nova liquidação adicional de IRC por referência ao IRC de 2014 – identificada com o número 2021 ..., de 12 de julho de 2021 –, e correspondentes liquidação de juros e demonstração de acerto de contas, nos termos da qual corrigiu o valor das tributações autónomas constante da liquidação inicial emitida, corrigindo o valor em falta (imposto e juros), por referência a este exercício, de 647.916,31 € para 319.830,80 €.
Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados
10. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, sendo ainda de observar que dos articulados apresentados emerge concordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- Matéria de Direito
11. DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO POR CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
O primeiro vício que a Requerente imputa à liquidação impugnada é o da caducidade do direito de liquidação.
O artigo 45º, nº 1, da Lei Geral Tributária, dispõe o seguinte:
“1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.”
Por sua vez, o nº1, do artigo 46º da mesma Lei:
“1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.”
A atual redação do artigo 13º do Regime Complementar de Inspeção Tributária resultante do Decreto-Lei n.º 36/2016, de 1 de julho, tem o seguinte teor:
“Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”
Antes do Decreto-Lei n.º 36/2016, de 1 de julho, a al. a), deste artigo, tinha a seguinte redação:
“a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”
Sobre a distinção entre procedimento interno e externo escreveram, ao tempo da anterior redação do art. 13º do RCPIT, Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira:
“Note-se que para que possa ser classificado como interno, o procedimento deve materializar-se em actos, todos eles, praticados exclusivamente nos seus serviços, instalações ou dependências, designadamente através da análise formal e de coerência dos documentos. Caso contrário (isto é, caso existam actos praticados fora, ainda que diminutos), estaremos perante um procedimento externo).
O procedimento interno é uma espécie de inspecção cadastral, efectuada dentro dos próprios serviços de inspecção, com recurso aos elementos declarados pelos sujeitos passivos, e engloba actividades de mera constatação em que a Administração se limita a verificar o cumprimento por parte dos sujeitos passivos dos seus deveres declarativos. Nestes casos a Administração tributária limita-se particularmente a confrontar, através do cruzamento de informação disponível nas suas bases de dados, se o sujeito passivo cumpriu ou não com os seus deveres e se os elementos fornecidos pelas declarações entregues por outros obrigados tributários com quem o sujeito passivo mantém ou manteve relações. Não se trata portanto de uma actividade propriamente fiscalizadora, em sentido estrito, trata-se de uma actividade de comprovação formal para verificação da exactidão do formalmente declarado pelo sujeito passivo. No quadro desse procedimento interno pode a inspecção tributária solicitar informações e esclarecimentos aos sujeitos passivos, podendo ser feitas correções em resultado do que for apurado.”[1]/[2]
Ainda na vigência da anterior redação do artigo 13º do RCPIT, pode ler-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo-Sul de 01-10-2014, proferido no proc. 04817/11[3]:
“(…) o procedimento de inspecção interno ocorre quando os actos de inspecção se efectuam exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos.
No entanto, e no caso, não se pode dizer que os actos de inspecção se efectuaram exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos, posto que os elementos que decididamente motivaram a correcção foram obtidos junto de terceiros, por iniciativa da AT e, bem assim, porque como é evidente a correcção efectuada não resultou de uma análise de conformidade de documentos que a AT tivesse em seu poder (a informação/ documentos em causa só ficou disponível para a AT porque esta a recolheu junto de terceiros).
(…)
Ora, (…) a qualificação do procedimento como inspecção interna ou externa, não depende da livre qualificação que a AT lhe atribua, antes obedecendo a critérios legais que confirmam, ou não, a designação escolhida.”
A nova redação da alínea a) do art. 13º do RCPIT ao adicionar a seguir ao vocábulo “documentos” o segmento “por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento”, teve manifestamente em vista permitir à AT, no âmbito do procedimento inspetivo interno, obter documentos sem deslocação física dos seus funcionários, sem que tal, só por si, implique a alteração da qualificação do procedimento de interno para externo.
Decorre da atual redação da al. a) do artigo 13º do RCPIT que os atos de inspeção interna consistem na análise formal e de coerência dos documentos efetuada exclusivamente nos serviços da administração tributária. A respeito do sentido da alteração introduzida na referida norma, salienta-se o entendimento de Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira: “No que diz respeito à prática dos actos, não se verifica qualquer diferença, já que o procedimento interno continua a decorrer exclusivamente nas instalações da Administração tributária. A diferença reside na circunstância de os actos de análise praticados serem efectuados, não só aos documentos que a AT detenha, mas também aos documentos que a AT possa vir a obter no decurso do procedimento. Ou seja, é possível aos serviços de inspecção, mesmo no procedimento interno, praticar actos com natureza externa, ainda que sem deslocação física dos seus funcionários. (…) Parece-nos uma tentativa de o legislador por cobro, àquilo que atrás designámos de “aparência de procedimento” – e que tem levado a jurisprudência a acolher o entendimento que aqui sustentamos, de que a classificação formal do procedimento não tem eficácia vinculativa se a prática de actos de inspecção demonstrar que o procedimento inspetivo teve, materialmente, uma natureza diferente da sua classificação.”[4].
Resultando claro da alteração legislativa que os atos de inspeção interna consistem na análise formal e de coerência dos documentos quando efetuadas exclusivamente nos serviços da administração tributária e emergindo dos autos que foi esta a situação que ocorreu, tendo apenas sido obtidos documentos junto do inspecionado, nos termos enquadrados na atual redação da Lei, no âmbito da inspeção interna, e conforme oportunamente referidos, não pode deixar de se concluir que a inspeção em causa não foi externa, como qualificada pela Requerida, mas sim interna.
Por outro lado, como referem ainda Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, na obra citada[5], em linha com o acórdão do TCA-SUL acima citado:
“Na questão da classificação do procedimento de inspecção como interno ou externo importa sublinhar o que denominamos de “aparência de procedimentos”. Esta “aparência de procedimentos” traduz-se nas situações em que embora os procedimentos sejam formalmente classificados pela Administração tributária de determinada forma, na realidade e materialmente, em função dos actos praticados, os mesmos não correspondem à classificação que lhe foi atribuída. Esta desconformidade pode e deve ter efeitos quanto ao resultando final do procedimento, devendo os efeitos ser valorados contra a própria Administração. Uma vez que esta se encontra vinculada ao princípio da legalidade”.
Nesta medida, tendo-se concluído que a inspeção tributária em causa não foi, efetivamente, externa, conforme qualificada pela Requerida, mas sim interna, não pode deixar de se retirar as inerentes consequências. Assim sendo, não se verificou a suspensão do prazo de caducidade previsto no artigo 46º, nº 1, da Lei Geral Tributária. Assim, quando a liquidação em causa foi emitida em 6 de março de 2019, já havia decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação, pelo que a mesma enferma de ilegalidade por violação do artigo 45º, nº 1, da LGT, o que tem como consequência a anulação da mesma, bem como da liquidação emitida pela AT em execução da decisão que incidiu sobre o recurso hierárquico.
De acordo com o regime emergente dos nºs 1º e 2º, do artigo 53º da LGT, o direito à indemnização por garantia indevida, antes do decurso do prazo de três anos referido no nº 1 daquele artigo, depende da ocorrência de erro imputável aos serviços.
Ora, como se pode ler no acórdão do STA de 30.5.2012, proferido no processo 0410/12[6] “(…), a declaração de caducidade não implica a existência de um erro – vício sobre os pressupostos de facto ou de direito”.
No mesmo sentido foi a decisão proferida pelo mesmo Tribunal no processo 01610/13, de 12.02.2015, em cujo sumário consta o seguinte:
“A anulação de um acto de liquidação baseada na caducidade do direito de liquidar o tributo, por a notificação daquele acto não ter sido efectuada dentro do prazo da caducidade, não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação (…)”
Essa mesma jurisprudência foi reafirmada no Sumário do acórdão do STA de 23.6.2021, proferido no processo 0480/12.1BESNT:
“II – A anulação de um acto de liquidação baseada na caducidade do direito de liquidar o tributo, por a notificação daquele acto não ter sido efectuada dentro do prazo da caducidade, não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação, pelo que não existe o direito de juros indemnizatórios a favor do contribuinte, previsto naquele n.º 1 do art. 43.º da LGT.”
11. Questões de conhecimento prejudicado
Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vício de caducidade do direito de liquidação, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada.
12. Pedido de indemnização por prestação de garantia indevida
Entende o Tribunal que o pedido de indemnização ressarcitória por pagamento indevido (seja de indemnização por garantia indevida, seja de juros indemnizatórios) é um pedido dependente, derivado e consequencial (incluindo para efeitos de custas) que segue necessariamente o regime aplicado à decisão do caso. Tendo procedido o pedido formulado em primeiro lugar pela Requerente, que lhe garante a maior amplitude na tutela dos seus interesses, aplicam-se naturalmente as consequências daí decorrentes – que são, face à jurisprudência citada do STA, a não atribuição de juros indemnizatórios (e, logo, por identidade ou maioria de razão, a não atribuição de indemnização por garantia indevida).
O prolongamento da análise dos demais vícios invocados pela Requerente para efeitos indemnizatórios (atribuição de juros ou pagamento de indemnização por garantia indevida) equivaleria a desdobrar (e duplicar) a fundamentação do vício do mesmo acto de liquidação e – pior – a desdobrá-lo em função dos efeitos pretendidos pela Requerente: para efeitos da sua anulação, teria caducado; para efeitos indemnizatórios, seria ilegal…
Assim, as consequências indemnizatórias fixadas pelo STA para a caducidade – o vício que levou à anulação do acto – seriam desconsideradas; e os efeitos indemnizatórios da ilegalidade, que, no caso, só seria apreciada porque a caducidade não permite esses efeitos indemnizatórios, prevaleceriam onde não prevaleceu o vício de ilegalidade (onde há caducidade há insusceptibilidade de juízo sobre erros de facto ou de direito).
Com o devido respeito por opiniões diferentes, não se convence o Tribunal que fosse adequada a pretendida dupla subsunção, razão pela qual entende que improcede o pedido (dependente, derivado e consequencial – e por isso sem efeitos em termos de condenação em custas) de pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral:
a) Declarar a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários impugnados, com base na caducidade do direito à liquidação.
b) Condenar a Requerida nas custas do processo, nos termos abaixo indicados.
Valor da ação: 319.830,80 € (trezentos e dezanove mil oitocentos e trinta euros e oitenta cêntimos), nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de 5508,00 € (cinco mil quinhentos e oito euros), nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de julho de 2022,
O Árbitros
Victor Calvete
(Presidente)
Ana Rita do Livramento Chacim
Declaração de voto do Árbitro Marcolino Pisão Pedreiro (Relator designado)
Sufrago a decisão de declarar a ilegalidade e anular os atos tributários impugnados com fundamento na caducidade do direito à liquidação. Aliás, este segmento decisório corresponde ao projeto de decisão que apresentei na qualidade de relator.
Não acompanho, todavia, a posição que fez vencimento no que respeita à decisão de não conhecer do vício de violação de lei invocado e de, consequentemente, não apreciar, à luz de tal vício, o pedido indemnização por garantia indevida formulado pela Requerente, consequentemente votando vencido quanto a esta questão.
As razões da discordância são as que passo a enunciar.
Nos termos do n.º 1 do artigo 53.º da LGT, “O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida”.
O n.º 2 do mesmo preceito acrescenta que “O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo”
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 171.º do CPPT determina que “A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda”.
Nos termos do n.º 2 do artigo 171.º do CPPT que “A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.
Face ao n.º 2 do artigo 53.º da LGT, o direito à indemnização por prestação de garantia indevida depende da verificação de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, como pressuposto constitutivo.
A Requerente invocou, como causas de invalidade dos atos tributários, quer o vício de caducidade do direito à liquidação, quer o vício de violação de lei, sendo que, relativamente a este, lhe imputou apenas ilegalidade parcial (não imputou ilegalidade referente à correção respeitante à sociedade E..., S.A., integrante do grupo de que a Requerente é sociedade dominante.)
Relativamente à ordem do conhecimento dos vícios a Requerente invocou em primeiro lugar a caducidade (cuja procedência lhe assegurava a anulação total das liquidações) e em segundo lugar o vício de violação de lei (do que decorria a anulação apenas parcial).
Na qualidade de relator, manifestei no projeto de acórdão a posição de que, tendo em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo supra citada sustenta que o vício de caducidade do direito à liquidação não consubstancia “erro imputável aos serviços”, ter-se-ia que apreciar, de seguida ao conhecimento do vício invocado em primeiro lugar, se os atos em causa padecem, também, de vício de violação de lei, na parte alegada pela Requerente, condição de procedência da pretensão da Requerente a indemnização por garantia indevida e que, em caso de procedência do vício de violação de lei, procederia o pedido de indemnização por garantia indevida, relativamente à parte da liquidação objeto do presente processo, embora só na proporção da parte da liquidação assente nas correção efetuadas à Requerente referente à perda reconhecida em suprimentos prestados à B..., S.A., bem como na correção efetuada à Sociedade D..., S.A. referente a encargos com juros suportados.
Porém, por maioria, o coletivo, decidiu não conhecer do vício de violação de lei invocado pela Requerente, considerando, além do mais, que:
“O prolongamento da análise dos demais vícios invocados pela Requerente para efeitos indemnizatórios (atribuição de juros ou pagamento de indemnização por garantia indevida) equivaleria a desdobrar (e duplicar) a fundamentação do vício do mesmo acto de liquidação e – pior – a desdobrá-lo em função dos efeitos pretendidos pela Requerente: para efeitos da sua anulação, teria caducado; para efeitos indemnizatórios, seria ilegal…
Assim, as consequências indemnizatórias fixadas pelo STA para a caducidade – o vício que levou à anulação do acto – seriam desconsideradas; e os efeitos indemnizatórios da ilegalidade, que, no caso, só seria apreciada porque a caducidade não permite esses efeitos indemnizatórios, prevaleceriam onde não prevaleceu o vício de ilegalidade (onde há caducidade há insusceptibilidade de juízo sobre erros de facto ou de direito).
Com o devido respeito por opiniões diferentes, não se convence o Tribunal que fosse adequada a pretendida dupla subsunção, razão pela qual entende que improcede o pedido (dependente, derivado e consequencial – e por isso sem efeitos em termos de condenação em custas) de pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida. “
Todavia, salvo o devido respeito, no meu entender, sem razão, como desde logo o indicia a ausência de indicação de qualquer norma jurídica que suporte a posição adotada.
Como é bom de ver, não há qualquer impedimento legal a que um ato administrativo de liquidação seja anulado por mais do que um vício.
Em sede de direito processual administrativo geral é, até, obrigatória a pronuncia do tribunal sobre todos os vícios invocados contra o ato impugnado, estabelecendo o artigo 95º, nº 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o seguinte:
“Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório.”
Em sede de direito processual tributário, a matéria é regulada pelo artigo 124º do Código de Procedimento e Processo Tributário:
“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 - Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”
Em comentário a este artigo, escreve o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa o seguinte:
“O estabelecimento desta ordem de conhecimento dos vícios, tem como pressuposto que, conhecendo de um vício que conduza à eliminação jurídica do acto impugnado, o tribunal deixará de conhecer dos restantes, pois, se assim não fosse, se o julgador tivesse de conhecer de todos os vícios imputados ao acto, seria indiferente a ordem de conhecimento.
Isto significa, assim, que o reconhecimento da existência de um vício leva a considerar prejudicado o conhecimento dos restantes, o que vem sendo levado à prática pelos tribunais administrativos e fiscais, mas é de duvidosa razoabilidade.
Trata-se, na verdade, de uma regra que só se pode justificar quando o reconhecimento da existência de um vício impeça definitivamente a renovação do acto, pois, se esta for possível em face do vício reconhecido, será necessário apreciar os restantes, uma vez que o conhecimento deste poderá levar à anulação com base num vício que impeça tal renovação” (Código de Procedimento e Processo Tributário, Anotado e Comentado, Áreas Editora, 2006, Vol. I, 2006, pag. 893).
É pois, claro, no meu entender, que o conhecimento de mais do que um vício imputado ao ato tributário e a possível anulação deste por mais que uma causa de invalidade, não constitui “desdobrar (e duplicar) a fundamentação do víciodo mesmo acto de liquidação”, nem “dupla subsunção”.
Diferentemente, trata-se apenas da aplicação do princípio de que o tribunal deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (art. 95º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, art. 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, 125º, nº 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário e 28º, nº 1, al. c), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária).
Com ligação a esta questão, há que fazer um parêntesis para referir que se discorda de parte do teor do ponto 8. do acórdão em que ficou exarado o seguinte:
“8. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Ilegalidade das liquidações objeto do processo com fundamento em caducidade do direito à liquidação e, em caso de improcedência,
2) Ilegalidade das liquidações por vício substantivo por erro nos pressupostos de direito.
Em qualquer dos casos, haverá que ponderar do direito da Requerente a indemnização por garantia indevida.”
Entende o signatário da presente declaração de voto, que tal ponto deveria ter antes o seguinte teor (constante do projeto de decisão):
“8. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Ilegalidade das liquidações objeto do processo com fundamento em caducidade do direito à liquidação.
2) Ilegalidade das liquidações por vício substantivo por erro nos pressupostos de direito.
3) Direito da Requerente a indemnização por garantia indevida.”
A discordância radica no facto do direito da Requerente a indemnização por garantia indevida ser uma verdadeira questão que o tribunal tem o dever de solucionar, não se entendendo o alcance da sua não consideração formal como “questão a solucionar”. Pode parecer uma discordância meramente formal, mas o certo é que a questão em causa não foi apreciada à luz do vício de violação de lei de cuja apreciação estava dependente, na economia da decisão, a procedência (no caso parcial) do pedido de indemnização por garantia indevida.
Fechado este parêntesis, há que observar que a possibilidade, em processo tributário, de considerar prejudicado o conhecimento dum vício em função da procedência doutro, conhecido em primeiro lugar, é admissível em caso de inutilidade que, no caso, manifestamente se não verifica, conforme, no meu entender, resulta implícito da fundamentação da decisão de não conhecimento do vício de violação de lei constante do ponto 12, que assenta em argumentos diferentes da pretensa inutilidade invocada no ponto 11.
No caso em apreço, o conhecimento do vício de violação de lei invocado, não só não seria inútil como, ao invés, no caso, seria essencial para apreciação do pedido de indemnização por garantia indevida. Ou seja, indispensável para a satisfação do direito à tutela jurisdicional efetiva (plena) da Requerente.
Como se escreveu no acórdão arbitral, proferido pelo tribunal coletivo, no processo 101/2018-T, de 13 de novembro de 2018, cujo entendimento subscrevo inteiramente:
“o vício de caducidade ou, por idênticas razões, o vício de falta de notificação de um prévio ato decisório de correção dos prejuízos fiscais, de que padecem os atos tributários em crise, nada nos dizem sobre o acerto ou justeza material destes atos, pelo que, para determinarmos o direito a juros indemnizatórios ter-se-á, também, de apreciar os fundamentos materiais dos atos de liquidação, sob pena de a sua invalidação unicamente por vício de forma coartar o direito a juros indemnizatórios na esfera da Requerente, de acordo com a posição sufragada de que aqueles juros, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, dependem de um erro material imputável à AT, como resulta da jurisprudência do STA citada.”
Em boa verdade, a decisão do tribunal de não apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida formulado pela Requerente à luz do vício de violação de lei por ela invocado, para além de não assentar em qualquer norma jurídica (que a decisão não invoca) violou, salvo melhor entendimento, a regra de que o tribunal deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, ínsita nos artigos 28º, nº 1, al. c), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, 124º e 125º, nº 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário 95º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, traduzindo-se, ainda, numa situação de denegação de justiça no que respeita à pretensão indemnizatória, manifestamente lesiva do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA ANOTADO E COMENTADO, Almedina, 2ª Edição revista, atualizada e ampliada, 2021, págs. 96-97.
[4] REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA ANOTADO E COMENTADO, Almedina, 2ª Edição revista, atualizada e ampliada, 2021, pág. 99.
[6] Em linha, designadamente com os acórdãos do STA de 8.6.2011, rec. 876/09 e de 7.9.2011, rec. 416/11.