Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 834/2021-T
Data da decisão: 2022-07-12  IMI  
Valor do pedido: € 198.072,55
Tema: IMI; terrenos para construção; determinação do VPT; revisão do acto tributário - artigos 38.º e 45.º do Código do IMI e artigo 78.º da LGT.
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Sumário:

I. A excepção ao princípio da impugnação unitária que permite a impugnação contenciosa, directa e autónoma, dos actos de fixação do VPT, consiste numa faculdade concedida aos sujeitos passivos que não preclude a sindicância das suas ilegalidades no âmbito do acto final do procedimento, isto é, no âmbito da impugnação do acto de liquidação subsequente;

II. O artigo 78.º, n.º 1, da LGT permite a revisão oficiosa do acto de liquidação de IMI no prazo de quatro anos com base em erro na fixação do VPT que seja imputável aos serviços;

III. O artigo 45.º do Código do IMI, na redacção anterior à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, não previa a aplicação na determinação do VPT dos terrenos para construção dos coeficientes de afectação, de localização e/ou de qualidade e conforto previstos no artigo 38.º do Código do IMI.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Vasco Valdez e Ricardo Marques Candeias, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1. A... S.A., com o número de identificação fiscal..., com sede na ..., ..., ..., ..., ...‐... ...‐...  (“Requerente”), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência da formação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que apresentou, com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à anulação parcial dos actos tributários do Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”) n.º 2016..., n.º 2016..., n.º 2016..., n.º 2016..., n.º 2017..., n.º 2017..., n.º 2017..., n.º 2017..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2018..., n.º 2019..., n.º 2019... e n.º 2019..., referentes aos períodos de tributação de 2016, 2017, 2018 e 2019, no montante global de € 198.072,55.

 

            2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 21 de Dezembro de 2021 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a)e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

            As partes foram notificadas dessa designação em 3 de Fevereiro de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 22 de Fevereiro de 2022.

 

            5. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

A título prévio, mencionou a Requerente que o Tribunal Arbitral era competente para conhecer pedidos de declaração de ilegalidade e consequente anulação de actos de liquidação que foram objecto de pedidos de revisão oficiosa que vieram a ser tacitamente indeferidos em virtude da falta de decisão da AT no prazo legalmente previsto.

Quanto ao mérito da causa, referiu em primeiro lugar a Requerente que se prevêem no Código do IMI diferentes métodos de determinação do valor patrimonial tributário (“VPT”) em função da “espécie” de prédio urbano em questão, não cabendo aplicar analogicamente a um “tipo” de prédios regras que apenas se encontram expressamente consagradas para outra “categoria”. 

Segundo a Requerente, enquanto o VPT dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços, era apurado com base nas regras previstas no n.º 1, do artigo 38.º do Código do IMI, o VPT dos prédios urbanos da “espécie” terrenos para construção era apurado segundo as regras previstas no n.º 1, do artigo 45.º do Código do IMI. A grande diferença entre aquelas regras de fixação do VPT residia no facto de, no entender da Requerente, apenas se prever a aplicação de coeficientes de afectação, de localização, de qualidade e conforto e/ou de vetustez para os prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços e já não para os prédios urbanos que consistiam em terrenos para construção.

Acresce que, na perspectiva da Requerente, a AT acabava por valorar duplamente na determinação da base tributável a mesma realidade fáctica, porquanto as regras de cálculo do VPT aplicáveis aos terrenos para construção já tinham em consideração determinadas características de localização, que eram novamente valoradas em virtude da aplicação do coeficiente de localização.

Já quanto à aplicabilidade dos coeficientes de afectação e de qualidade e conforto na determinação do VPT dos terrenos para construção sublinhou a Requerente que os mesmos têm subjacente a utilização do prédio edificado bem como a respectiva qualidade e conforto, não fazendo assim sentido a sua aplicação àquele tipo de prédio urbano.

Para a Requerente, a aplicação na determinação do VPT dos terrenos para construção dos coeficientes que apenas se encontram previstos para os prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços apenas seria possível com recurso à analogia, que no âmbito do Direito Tributário não só é ilegal como também é inconstitucional por violação do princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º e no n.º 2, do artigo 103.º, ambos da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

            Neste sentido, considerou a Requerente que a AT incorreu num erro sobre os pressupostos de facto e de direito na determinação do VPT dos terrenos para construção objecto do pedido arbitral que inquinou de ilegalidade os actos de liquidação de IMI emitidos com base naquele VPT, impondo-se desse modo a anulação parcial destes actos tributários e a consequente devolução do montante de IMI pago em excesso acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos.

 

            6. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta e junto aos autos o processo administrativo (“PA”) em 18 de Março de 2022, tendo concluído pela improcedência da presente acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

            O objecto da acção tal como conformado no pedido de pronúncia arbitral visa, na perspectiva da Requerida, a contestação de ilegalidades do acto destacável de fixação do VPT e não dos actos de liquidação, já que não foram imputados vícios próprios a estes últimos actos. Acontece que, no entender da Requerida, os vícios do acto que definiu o VPT não são susceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo.

            Referiu também a Requerida que a AT acolheu o entendimento dos tribunais superiores no sentido de que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI e não outra, pelo que não devem ser considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do Código do IMI, tais como os coeficientes de localização, de afectação e/ou de qualidade e conforto.

            Prosseguiu a Requerida por afirmar que a AT já corrigiu a fórmula de cálculo do VPT em nova avaliação feita em 2020, tendo assim satisfeito as pretensões da Requerente. Quanto ao VPT anteriormente fixado em 2012, entende a Requerida que o mesmo já não é passível de anulação administrativa nos termos do artigo 168.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”) por já terem decorrido mais de 5 anos desde a sua determinação. Por conseguinte, segundo a Requerida, não assiste razão à Requerente ao pretender a correcção das liquidações de AIMI de anos anteriores que foram calculadas com base em VPT’s já consolidados na ordem jurídica.

Para a Requerida, o prazo que a Requerente dispunha para impulsionar o pedido de revisão oficiosa era o prazo mais reduzido de 3 anos previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT para a revisão da matéria tributável e não o prazo de 4 anos previsto n.º 1 daquele artigo para a revisão dos actos de liquidação. Assim sendo, tendo em conta a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa das liquidações ora impugnadas e a data da respectiva avaliação dos terrenos para construção, ou, até mesmo, a data dos actos de liquidação, concluiu a Requerida que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente.

            Para além disto, o procedimento avaliativo constitui, no juízo da Requerida, um acto autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, de tal modo que a falta da sua impugnação implica a consolidação do VPT como caso decidido ou resolvido semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher. Desta forma, concluiu a Requerida que a errónea qualificação e quantificação do VPT apenas podia ser contestada através de uma 2.ª avaliação e já não no âmbito da contestação dos actos de liquidação subsequentes.

            Os actos de avaliação do VPT não são, de acordo com a Requerida, actos de liquidação mas antes actos autónomos e individualizados com eficácia jurídica própria e directamente sindicáveis. Quer isto dizer que estes actos afastam o princípio da impugnação unitária com o intuito de, na perspectiva da Requerida, alcançar a estabilização e consolidação da matéria tributável em momento anterior ao da efectivação da liquidação. Neste sentido, não é para a Requerida nem legal, nem admissível, a apreciação da correcção do VPT em sede de impugnação do acto de liquidação.

            Registou também a Requerida que por força do disposto no artigo 168.º do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT, a revogação e a anulação actos de fixação do VPT apenas é possível nos casos em que não tenham decorrido cinco anos desde a respectiva emissão. Ao não ser este o caso, e ao ter precludido o prazo de anulação administrativa, concluiu a AT que os efeitos jurídicos produzidos ao abrigo daqueles VPT’s se encontram sanados, sob pena de se estar a admitir que as liquidações de IMI subsequentes pudessem ser calculadas contra legem, isto é, com base num valor que não é o que consta na respectiva matriz predial.

            Relativamente à pretensão da Requerente de desaplicação por inconstitucionalidade da norma pretensamente extraída do artigo 45.º do Código do IMI, registou a Requerida que o que importava ter em conta não era a violação do princípio da igualdade tributária mas sim a constitucionalidade do regime da consolidação dos actos administrativo-tributários por falta da sua impugnação atempada. Esta consolidação era justificada e tutelada, no entender da Requerida, pelos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, bem como pelo princípio da igualdade e da justiça material. Para a Requerida, a procedência do pedido da Requerente é que determinaria uma violação do princípio da igualdade, porquanto se estaria a privilegiar os contribuintes que em tempo não contestaram o VPT face àqueles que o fizeram tempestivamente, sujeitando estes últimos às consequências da caducidade processual enquanto os primeiros estariam isentos das consequências processuais de preclusão do direito impugnatório.

            Defendeu também a Requerida que o pedido formulado pela Requerente não estava fundamentado na lei, sendo certo que o Tribunal Arbitral não pode decidir segundo juízos ou critérios da equidade, mas tão só com base no direito constituído. 

Em último lugar, invocou a Requerida que a AT está vinculada ao princípio da legalidade previsto nos artigos 266.º da CRP, 55.º da LGT e 3.º do CPA, de tal modo que não podia deixar de cumprir integralmente com as normas vigentes no ordenamento jurídico, pelo que os actos impugnados pela Requerente não padeciam de quaisquer vícios, não existindo também qualquer erro imputável aos serviços que conferisse o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

            7. Ainda que a Requerida não tenha identificado as excepções dilatórias que invocou e ainda que não tenha peticionado a sua absolvição da instância, a verdade é que não se defendeu apenas por impugnação. Por conseguinte, em 18 de Março de 2022 foi proferido despacho arbitral no qual se concedeu à Requerente a possibilidade de exercer o contraditório quanto às excepções invocadas pela Requerida na sua resposta. Em 31 de Março de 2022, a Requerente exerceu aquele direito tendo referido, em síntese, o seguinte:

            A título inicial, sublinhou a Requerente que o pedido arbitral por si apresentado teve como objecto os actos tributários de liquidação de IMI referentes aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, os quais materializaram as avaliações efectuadas ao longo dos anos e não os meros actos de fixação do VPT dos terrenos para construção.

            Referiu também a Requerente que não se podem confundir os diferentes meios de tutela previstos para cada um daqueles actos, isto é, não se pode confundir o meio de impugnação do acto de fixação do VPT com o meio de impugnação do acto tributário de liquidação de IMI subsequente, desde logo porque os pressupostos e os efeitos de cada um deles são distintos. Quanto à impugnação dos actos de liquidação de IMI ou AIMI considerou a Requerente que a mesma podia ter como fundamento ilegalidades no apuramento da base tributável, isto é, na fixação do VPT, não sendo tal possibilidade prejudicada pela susceptibilidade de impugnação directa e autónoma destes últimos actos.

            Segundo a Requerente, em princípio só o acto final do procedimento será passível de impugnação contenciosa, em função do princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 54.º do CPPT. Não obstante, aquele princípio comporta excepções, admitindo a impugnação contenciosa autónoma e directa de actos interlocutórios que sejam destacáveis ou imediatamente lesivos, considerando a Requerente que é este o caso dos actos de fixação do VPT. Sucede que, para a Requerente, esta excepção não foi prevista para limitar a impugnação do acto final do procedimento – o acto de liquidação –, mas antes para aumentar as garantias dos contribuintes em cumprimento do princípio da tutela jurisdicional efectiva.

            Nestes termos, defendeu a Requerente que não resulta da lei que um acto de liquidação de IMI não poderá ser contestado com fundamento numa ilegalidade de um acto de fixação do VPT que poderia ter sido, mas não chegou a ser, objecto de impugnação. Para a Requerente, só assim se compreende que a “errónea (…) quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais, e outros factos tributários” seja fundamento de impugnação judicial e de pedido arbitral nos termos do disposto na alínea a), do artigo 99.º do CPPT e da alínea c), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT.

            Sublinhou por fim a Requerente que, de resto, é vasta a jurisprudência que tem entendido que a impugnação autónoma de um acto intermédio ou preparatório como a fixação do VPT não impede o contribuinte de contestar o acto de liquidação de IMI que lhe é subsequente e cuja ilegalidade resulta daquele acto intermédio, independentemente de este ter sido ou não objecto de impugnação contenciosa autónoma.

            Dito isto, concluiu a Requerente pela improcedência da excepção de inimpugnabilidade dos actos de liquidação de IMI invocada pela Requerida.

 

8. Por despacho proferido em 31 de Março de 2022, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT, tendo-se ainda concedido às partes a faculdade de, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que estas não exerceram.

 

II. SANEAMENTO

 

            9. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

A apreciação da matéria de excepção invocada pela Requerida será feita a título prévio no âmbito da matéria de direito.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

10. Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

a)    A Requerente é uma sociedade que tem como objecto social a promoção, desenvolvimento e participação em projectos e investimentos imobiliários no sector de turismo, compra e venda de imóveis, bem como revenda, a construção e arrendamento de imóveis;

b)    A Requerente é proprietária de diversos prédios, incluindo terrenos para construção, que utiliza no desenvolvimento da sua actividade;

c)    Por referência ao ano de 2016, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação com as notas de cobrança n.º 2016..., n.º 2016..., n.º 2016... e n.º 2016..., no montante total de € 152.286,00 – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral e PA junto pela Requerida aos autos com a resposta;

d)    Por referência ao ano de 2017, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação com as notas de cobrança n.º 2017..., n.º 2017..., n.º 2017... e n.º 2017..., no montante total de € 150.211,97 – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral;

e)    Por referência ao ano de 2018, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação com as notas de cobrança n.º 2018 ..., n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., no montante total de € 157.868,09 – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral e PA junto pela Requerida aos autos com a resposta;

f)     Por referência ao ano de 2019, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação com as notas de cobrança n.º 2019 ..., n.º 2019 ... e n.º 2019 ..., no montante total de € 147.735,47 – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral e PA junto pela Requerida aos autos com a resposta;

g)    A Requerente pagou os montantes liquidados nos actos de liquidação de IMI identificados nas alíneas d)e)f)g) da presente matéria de facto – cfr. documento n.º 2 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral;

h)    O VPT de cada um dos terrenos para construção – sobre os quais foi liquidado o IMI identificado nos actos referido nas alíneas d)e)f) e g) da presente matéria de facto – foi apurado pela AT através da aplicação de uma fórmula de cálculo que teve em consideração coeficientes multiplicadores de localização, de afectação e/ou de qualidade e conforto – cfr. documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos pela Requerente aos autos com o pedido arbitral;

i)     Não existem elementos probatórios nos autos que evidenciem que a Requerente impugnou directa e autonomamente os actos de fixação do VPT de cada um dos terrenos para construção objecto do presente processo; 

j)     Em 13 de Julho de 2021, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa quanto aos actos de liquidação identificados nas alíneas d)e)f) e g) da presente matéria de facto – cfr. documentos n.ºs 1 e 3 juntos pela Requerente aos autos com o pedido arbitral;

k)    No pedido de revisão oficiosa – bem como no presente pedido arbitral – a Requerente invocou a existência de um erro nos pressupostos de facto e de direito no apuramento do VPT dos terrenos para construção objecto dos actos de liquidação ora contestados, que alegadamente resultou no apuramento de uma colecta de IMI indevidamente paga no montante de € 198.072,55, tendo a suposta divergência sido discriminada nas seguintes tabelas resumo juntas pela Requerente ao processo – cfr. documento n.º 7 junto pela Requerente aos autos com o pedido arbitral;

l)     A AT não decidiu o pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 meses que dispunha para o efeito, tendo-se formado uma presunção de indeferimento tácito;

m)  Em 8 de Novembro de 2021 a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

III.1.2. Factos não provados 

 

11. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

12. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Neste sentido, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Considerando as posições assumidas pelas partes nas respectivas peças processuais, o disposto no artigo 110.º, n.ºs 6 e 7, do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

III.2.1. Questões prévias

 

            13.  A título prévio cumpre sanear o processo, apreciando para o efeito a matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta, a saber: a consolidação do acto tributário que determinou o VPT, a inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do VPT e a intempestividade do pedido de revisão oficiosa. Uma vez que as duas primeiras excepções invocadas implicam a apreciação de idênticos argumentos e de regras jurídicas semelhantes, a sua análise será feita em conjunto.

 

14. Relativamente à consolidação do acto tributário que determinou o VPT e à inimpugnabilidade dos actos de liquidação de IMI com fundamento em vícios próprios dos actos do procedimento que lhe são interlocutórios/intermédios, cumpre essencialmente determinar se o princípio da impugnação unitária veda ou não a possibilidade de sindicar eventuais ilegalidades dos actos de fixação do VPT no âmbito da impugnação do acto de liquidação que lhes é subsequente.

O princípio da impugnação unitária encontra-se previsto no artigo 54.º do CPPT, onde se refere que “[s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”.

Conforme resulta da citada norma, à partida, apenas será impugnável o acto final do procedimento – maxime o acto de liquidação –, sendo esse o momento no qual deverão ser contestados os vícios dos actos interlocutórios/intermédios do procedimento em si considerados. Não obstante, a citada norma prevê uma excepção ao princípio da impugnação unitária, abrindo a possibilidade de serem directa e autonomamente impugnados os actos interlocutórios/intermédios do procedimento que sejam imediatamente lesivos dos direitos dos contribuintes ou em que essa possibilidade seja expressamente conferida por lei. Tudo isto, “sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.

Ora, o acto de fixação do VPT é precisamente um acto interlocutório/intermédio do procedimento, que visa avaliar e fixar a base tributável para efeitos de apuramento do IMI e que tem um potencial de comportar efeitos lesivos externos e imediatos na esfera dos contribuintes. Porém, a verdade é que a sua impugnação contenciosa directa é expressamente conferida por lei, designadamente pelos artigos 86.º da LGT e 134.º do CPPT, que determinam o seguinte:

Artigo 86.º

Impugnação judicial

1 – A avaliação directa é susceptível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa directa.”

2 – A impugnação da avaliação directa depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão.

Artigo 134.º

Objecto da impugnação

1 – Os actos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de 90 dias após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.

(…) 7 - A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”.

 Conforme resulta da leitura das normas citadas, apesar de se permitir a impugnação contenciosa directa e imediata dos actos de fixação do VPT, procede-se em simultâneo a uma limitação segundo a qual a mesma apenas será possível mediante o recurso prévio aos meios de tutela graciosos previstos no procedimento de avaliação, dos quais se salienta o procedimento de segunda avaliação dos prédios urbanos previsto nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI. Só após o esgotamento destes meios de tutela graciosa é que será possível impugnar judicialmente aqueles actos em conformidade com o artigo 97.º, n.º 1, alínea f), do CPPT.

Em todo o caso, a verdade é que a excepção ao princípio da impugnação unitária que resulta dos termos conjugados dos artigos 54.º e 134.º ambos do CPPT e do artigo 86.º da LGT não tem como consequência a impossibilidade de impugnação futura dos vícios próprios dos actos de fixação do VPT no âmbito da impugnação dos actos de liquidação de IMI subsequentes. De resto, e conforme prontamente se referiu, esta possibilidade é expressamente ressalvada na parte final do artigo 54.º do CPPT, o que significa que a excepção ao princípio da impugnação unitária traduz uma faculdade ou garantia de tutela adicional antecipada das posições jurídicas dos contribuintes – que pode ou não ser por estes utilizada –, e já não um ónus que preclude o direito de acção que lhes assiste.

            Dito isto, cumpre deixar claro que o regime de tutela administrativa prévia que resulta dos artigos 86.º, n.º 2, da LGT e 134.º, n.º 7, do CPPT não é extensível à impugnação do acto final do procedimento, mas tão só à impugnação do acto interlocutório/intermédio de fixação do VPT, que é o acto objecto daquelas normas. Dito de outro modo, a obrigatoriedade de utilização prévia dos mecanismos de tutela administrativos cinge-se à contestação directa e autónoma do acto de fixação do VPT e já não ao acto de liquidação que lhe é subsequente e relativamente ao qual não resulta da lei qualquer limitação quanto à sua impugnação contenciosa. Convém reter quanto a este ponto que a previsão de limitações ao princípio da impugnação unitária através da imposição de regimes de tutela administrativa prévia e necessária tem de ser expressamente consagrada na lei por referência ao conjunto de actos cuja impugnação se pretende limitar, conforme decorre do artigo 185.º do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT. Veja-se que ao contrário do que sucede com os actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, cuja impugnação contenciosa directa é limitada por via dos artigos 131.º a 133.º-A do CPPT, não resulta da lei semelhante limitação quanto aos actos de liquidação de IMI, precedidos ou não da impugnação dos actos de fixação do VPT. Tudo isto sem contar que o carácter facultativo da impugnação de actos interlocutórios/intermédios do procedimento resulta expressamente do disposto no artigo 51.º, n.º 3, do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT.

            Aqui chegados, é possível concluir que o princípio da impugnação unitária previsto no artigo 54.º da LGT não veda a possibilidade de sindicar eventuais ilegalidades dos actos de fixação do VPT no âmbito da impugnação do acto de liquidação de IMI que lhes é subsequente.

            Caso contrário, seria forçoso concluir que o regime jurídico vigente não reforça as garantias dos contribuintes, bem pelo contrário. Isto na medida em que a pretexto do reforço da tutela jurisdicional efectiva concretizado pela possibilidade de discussão antecipada de ilegalidades de actos interlocutórios/intermédios do procedimento, os contribuintes veriam simultânea e necessariamente diminuídas as possibilidades de contestação dos actos finais de liquidação.

Por um lado, porque o prazo de impugnação do acto de fixação do VPT é substancialmente inferior ao prazo para impugnar o acto final de liquidação. E se o objectivo do legislador era encurtar aquele prazo de forma a consolidar na ordem jurídica o acto de fixação do VPT, tornando-o inimpugnável por via da formação de caso decidido, seria incoerente a previsão no artigo 115.º, do Código do IMI a possibilidade de requerer a revisão oficiosa do acto de liquidação com base em “erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”, onde se inclui, como se verá, o erro na fixação da base tributável, isto é, na fixação do VPT.

Por outro lado, porque os actos de liquidação de IMI podem ser proferidos com base em actos de fixação do VPT realizados há vários anos e que já não são passíveis de impugnação contenciosa directa e autónoma, pelo que os vícios destes actos interlocutórios/intermédios iriam inquinar os actos de liquidação subsequentes sem que existisse a possibilidade de serem sindicados e sanados da ordem jurídica. Isto sendo certo que os destinatários dos actos de liquidação podem ser contribuintes que nem sequer tiveram a possibilidade de impugnar os actos que determinaram o VPT por não serem à data os proprietários dos prédios urbanos em questão.

Portanto, se a “discussão antecipada da legalidade” do acto interlocutório de fixação do VPT não for entendida como uma faculdade mas antes como um efectivo ónus de impugnação, ao qual está associado um efeito preclusivo da sindicância futura dessas ilegalidades, o legislador não estaria a excepcionar a ratio subjacente à previsão do princípio da impugnação unitária de forma a assegurar e incrementar a tutela jurisdicional efectiva.

            De forma algo similar ao que se deixou exposto, vejam-se as considerações do Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 2765/12.8BELRS, em 31 de Outubro de 2019, no qual se referiu que:

“[a] fixação do VPT constitui, como se disse, um acto administrativo em matéria tributária, destacável e, por isso, passível de impugnação autónoma. A impugnação autónoma dos actos destacáveis tem como propósito oferecer uma maior garantia aos administrados, permitindo-lhes reagir atempadamente de molde a evitar a produção de efeitos lesivos, que se projectam no acto final do procedimento ou em actos externos a este.

A impugnabilidade autónoma constitui um desvio ao princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54.º do CPPT), que postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte. Este artigo prevê a possibilidade de impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos prévios a essa liquidação (actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos dessa decisão final).

Como assim, sendo a fixação do VPT um acto destacável, ele goza de possibilidade de impugnação autónoma, independentemente da existência ou não de liquidação (…)”.

Ou ainda as considerações do Tribunal Arbitral no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 760/2020-T, em 22 de Julho de 2021, no qual se referiu o seguinte:

A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto –, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta. Há, pois, que ponderar sobre a ratio das normas que preveem a impugnabilidade judicial autónoma de atos administrativos que constituem pressuposto de outros atos administrativos.

Estas razões serão, essencialmente, três:

(i) O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.

(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida)

(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).

Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores.”.

            Em face do exposto, conclui-se que assistia à Requerente a faculdade de impugnar directa e autonomamente os diversos actos de avaliação que fixaram o VPT dos terrenos para construção objecto dos presentes autos, como também lhe assistia a faculdade de impugnar os actos de liquidação de IMI emitidos com base nos VPT’s anteriormente fixados, aí arguindo os vícios próprios destes últimos actos que inquinaram o acto final de liquidação que neles se baseou, razão pela qual se julgam improcedentes as excepções dilatórias invocadas pela Requerida a este propósito.

 

            15. Quanto à intempestividade do pedido de revisão oficiosa, alegou em síntese a Requerida que aquele meio de tutela apenas podia ser impulsionado pela Requerente nos três anos posteriores ao do acto tributário, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 78.º da LGT, e já não no prazo de quatro anos estabelecido no n.º 1 daquele mesmo artigo que se encontra previsto para actos de liquidação e não para actos de determinação da matéria tributável.

            A possibilidade de impulsionar a revisão oficiosa de actos de liquidação de IMI encontra-se prevista no artigo 115.º do código daquele imposto, que para além de remeter genericamente para o artigo 78.º da LGT, determina expressamente na alínea c) do n.º 1 que a revisão pode ter fundamento em “erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”. Por conseguinte, ao ter ficado assente a possibilidade de sindicar vícios próprios do VPT no âmbito da impugnação do acto de liquidação subsequente, verifica‑se que a Requerente podia, em abstracto, impulsionar a revisão dos actos de liquidação de IMI com fundamento em erro imputável aos serviços, no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT. 

Veja-se que os erros alegados pela Requerente e que se traduzem na aplicação de coeficientes multiplicadores de afectação, de localização e/ou de qualidade e conforto nas avaliações do VPT dos terrenos para construção, são erros que a serem julgados procedentes são unicamente imputáveis aos serviços, porquanto foi a AT que procedeu ao apuramento do VPT de cada um daqueles prédios urbanos e às subsequentes liquidações de IMI, conforme resulta da matéria de facto dada como provado nos presentes autos.

Neste sentido, vejam-se as considerações do Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 2765/12.8BELRS, em 31 de Outubro de 2019, no qual se considerou em sentido similar o seguinte:

“(…) ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.

É o que sucede com o artigo 78.º da LGT, que prevê a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro, mecanismo que se encontra presente na legislação tributária de outros países, como sucede em Espanha com o artigo 219.º da Ley General Tributária.

O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo‑lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.

Todavia, como já se disse, o artigo 78.º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação e qualquer tributo(2). O que não quer dizer que seja de todo imprestável para o caso sub judice, visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.

Ora, ultrapassada que está actualmente a questão de saber se a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.

O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.”. (destaque nosso)

            Em face do exposto, e na medida em que o prazo para a revisão dos actos de liquidação de IMI deve ser contado nos termos conjugados do artigo 78.º, n.º 1, da LGT e 129.º, n.º 2, do Código do IMI, verifica-se que ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos para a Requerente impulsionar a revisão dos actos de liquidação objecto do pedido de revisão oficiosa. Consequentemente, o pedido de pronúncia arbitral também foi apresentado dentro do prazo previsto para o efeito, sendo assim improcedente a excepção dilatória invocada pela Requerida.

 

III.2.3. Aplicação do artigo 38.º do Código do IMI aos terrenos para construção 

 

            16. Uma vez saneado o processo e não existindo quaisquer obstáculos à apreciação do pedido, cumpre então sindicar a legalidade dos actos de liquidação de IMI contestados no pedido de pronúncia arbitral, tendo para o efeito em conta que o VPT dos respectivos terrenos para construção foi determinado pela AT através da aplicação de coeficientes de afectação, de localização e/ou de qualidade e conforto, conforme resulta da matéria de facto assente nos presentes autos.

            À data dos factos, a fixação do VPT dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços era feita com base nas regras constantes do artigo 38.º, do Código do IMI no qual se determinava o seguinte:

Artigo 38º

Determinação do valor patrimonial tributário

1 – A determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão:

Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv

em que:

Vt = valor patrimonial tributário;

Vc = valor base dos prédios edificados;

A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação;

Ca = coeficiente de afectação;

Cl = coeficiente de localização

Cq = coeficiente de qualidade e conforto;

Cv = coeficiente de vetustez.

2 – O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos apurado é arredondado para a dezena de euros imediatamente superior.

3 – Os prédios comerciais, industriais ou para serviços, para cuja avaliação se revele desadequada a expressão prevista no n.º 1, são avaliados nos termos do n.º 2 do artigo 46.º

4 – A definição das tipologias de prédios aos quais é aplicável o disposto no número anterior é feita por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, sob proposta da Comissão Nacional de Avaliação de Prédios Urbanos.”.

            Já o VPT dos terrenos para construção era determinado com base nas regras constantes do artigo 45.º, n.º 1, do Código do IMI, no qual se determinava o seguinte: 

Artigo 45.º

Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção

1 – O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.

2 – O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.

3 – Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º

4 – O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º.

5 – Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respectiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente.”.

            Conforme resulta do confronto do teor das normas jurídicas citadas, a fórmula de cálculo de determinação do VPT era diferente em função do tipo de prédios urbanos ali descritos, não se prevendo a aplicação na determinação do VPT dos terrenos para construção dos coeficientes de afectação, de localização, de qualidade e conforto e/ou de vetustez previstos para os prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços. Na verdade, a aplicação de parte destes coeficientes aos terrenos para construção apenas foi consagrada no Código do IMI pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que alterou a redacção do artigo 45.º daquele código.

            Até à referida alteração legislativa, é entendimento consolidado e uniforme da jurisprudência que não eram aplicáveis os coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI na fixação do VPT dos terrenos para construção. Neste preciso sentido vejam-se as conclusões do STA no acórdão uniformizador de jurisprudência proferido no âmbito do processo n.º 0183/13, em 21 de Setembro de 2016, no qual se decidiu que:

(…) na determinação do seu valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente, aqui discutido, de qualidade e conforto relacionado com o prédio a construir. O que, faz todo o sentido e dá coerência ao sistema de tributação do IMI uma vez que os coeficientes previstos nesta fórmula só podem ter a ver com o que já está edificado, o que não é o caso dos terrenos para construção alvo de tributação específica, sim, mas na qual não podem ser considerados para efeitos de avaliação patrimonial factores ainda não materializados”.

Entendimento este que foi reiterado por aquele tribunal em diversos acórdãos posteriores, de que são exemplo os acórdãos proferidos no âmbito do processo n.º 0165/14.4BEBRG, em 9 de Outubro de 2019, e no âmbito do processo n.º 0170/16.6BELRS, em 23 de Outubro de 2019, onde se decidiu que: 

(…) os coeficientes de localização, qualidade e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI)”.

 Por fim, cabe sublinhar que foi a própria AT que no artigo 10.º da sua resposta referiu que “(…) a Autoridade Tributaria acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, pelo que não devem ser considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afectação, de qualidade e conforto”.

Em face do exposto, julga-se verificada a ilegalidade invocada pela Requerente no seu pedido arbitral, impondo-se a anulação parcial dos actos de liquidação de IMI contestados nos presentes autos.

 

III.2.5. Questões de conhecimento prejudicado

            

            17. Uma vez que os actos de liquidação de IMI ora contestados já foram julgados ilegais, considera-se prejudicado o conhecimento do vício de inconstitucionalidade invocado pela Requerente, na medida em que esta já obteve a satisfação das suas pretensões, revelando-se a apreciação de tal vício a prática de um acto inútil no processo, proibida nos termos conjugados dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.2.6. Reembolso do imposto indevidamente liquidado e juros indemnizatórios

 

            18. Quanto aos vícios objecto de apreciação por este Tribunal, concluiu a Requerente o seu pedido de pronúncia arbitral peticionando o seguinte:

Nestes termos, e nos demais de Direito que V/ Exa. suprirá, requer a pronúncia arbitral relativamente à presente pretensão e, por conseguinte, requer que:

a) Sejam parcialmente anulados os actos tributários que constituem o seu objecto, relativos às liquidações de IMI supra identificadas, porque contrários à lei, por padecerem de erro nos pressupostos de facto e de direito;

b) Seja a AT condenada a reembolsar a Requerente do valor do imposto pago em excesso, no montante global de € 198.072,55, relativamente às liquidações sub judice, e, bem assim, condenada ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral do montante referido.

            Tendo ficado demonstrado que os actos de liquidação de IMI ora contestadas são parcialmente ilegais e tendo ficado demonstrado o pagamento indevido do imposto por parte da Requerente, deverá a Requerida proceder ao reembolso à Requerente da quantia de € 198.072,55 paga em excesso.

            

19. Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe-se ao que aqui importa no artigo 43.º da LGT que:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

(…)

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”.

            Quanto à aplicabilidade desta norma aos casos em que o sujeito passivo contesta os actos de liquidação através do procedimento de revisão previsto na 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 78.º, da LGT, é entendimento uniforme e constante do STA que o direito a juros indemnizatórios apenas é conferido nos termos da alínea c), do n.º 3, do artigo 43.º da LGT e já não nos termos mais abrangentes previstos no n.º 1 daquele mesmo artigo.

            Nas palavras do STA, expressas no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 038/19.4BALSB, em 4 de Novembro de 2020, refere-se precisamente que os juros indemnizatórios “são devidos depois de decorrido um ano contado da apresentação do pedido de revisão, por aplicação do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, e não desde a data do pagamento indevido do imposto, porque o contribuinte poderia ter “obtido anteriormente a anulação do acto”, e ao não fazê-lo “desinteressou-se temporariamente pela recuperação do seu dinheiro”, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte, suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente”.

Assim sendo, tendo em conta que o pedido de revisão foi apresentado pela Requerente em 13 de Julho de 2021, apenas seriam devidos juros indemnizatórios a partir de 13 de Julho de 2022, data posterior à da presente decisão, razão pela qual improcede este concreto pedido formulado pela Requerente.

            

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência:

a)    Anular parcialmente os actos de liquidação de IMI objecto de impugnação nos termos acima evidenciados;

b)    Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante indevidamente pago nos termos acima referidos;

c)    Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

            

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 198.072,55.

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.672,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Julho de 2022.

 

 

Os Árbitros,

 

Carla Castelo Trindade

(relatora)

Vasco Valdez

(vencido conforme declaração junta)

 

Ricardo Marques Candeias

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

O signatário votou parcialmente vencido a decisão arbitral acima identificada, porquanto, quanto à questão de fundo, me revejo no entendimento de várias decisões arbitrais proferidas, designadamente as constantes, entre outras, dos processos nº’s 254/2021-T, 487/2020-T (tribunais coletivos presididos pelo Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa) e 465/2021-T (idem, presidido pela Senhora Professora Regina Monteiro, tendo sido relator o Dr. Silvério Mateus).

 

Em síntese, o entendimento dado nos referidos processos no que concerne à problemática em apreço e que o signatário acolhe por inteiro, é o de que, após a primeira avaliação, o sujeito passivo deveria ter requerido uma segunda avaliação do prédio urbano (no caso dos terrenos para construção), ao abrigo do artigo 76º do CIMI, em ordem a poder impugnar seguidamente o VPT que resultasse dessa segunda avaliação, mormente ao abrigo do artigo 77º do CIMI e demais legislação aplicável, designadamente o artigo 134º do CPPT.

 

Não tendo sido o ato de avaliação autonomamente impugnado, não será já possível atacar as liquidações feitas com base nesse mesmo VPT, ainda que tal avaliação seja ilegal por ter considerado que aos terrenos para construção eram de aplicar diversos coeficientes da fórmula do artigo 38º do CIMI, o que não fazia sentido e foi muito bem salientado na presente decisão arbitral, pelo que me escuso de repetir a argumentação constante da mesma. Aliás, a AT deixou de utilizar tais critérios, na sequência do acórdão do STA de 07-10-2009 (processo 0476/09), mas a verdade é que não reviu retroativamente o VPT aplicável aos mencionados terrenos por entender que a situação se havia consolidado na ordem jurídica atendendo a que haviam passado mais de 5 anos que é prazo para revisão desses atos previstos no artigo 168º, nº 1 do CPA.

 

Ora, a nosso ver, face aos argumentos anteriormente expendidos, entendemos que é legítimo ao sujeito passivo lançar mão do mecanismo previsto no artigo 78º da LGT, em particular nos nº’4 e 5 do mesmo, porque estamos perante uma injustiça grave e notória operada na esfera daquele e tal pode ser requerido pelo mesmo no prazo de 3 anos posteriores ao do ato tributário que, como bem salienta se salienta na decisão arbitral relativa ao processo nº 487/2020-T, termina a 31 de dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foi praticado o ato tributário.

 

Assim sendo, somente as liquidações de IMI relativas ao ano de 2016, de acordo com o ponto de vista que defendo, não seriam suscetíveis de ser anuladas com fundamento em injustiça grave e notória.

 

 

(Vasco Valdez)