SUMÁRIO
I. Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à construção bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IMI, mas não os coeficientes previstos na expressão matemática contida no artigo 38.º do Código do IMI.
II. A fórmula consagrada no artigo 38.º do Código do IMI e a majoração contida no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI não são aplicáveis na determinação do valor patrimonial tributário de terrenos para construção.
III. A errada fixação do valor patrimonial tributário pode ser arguida através de reclamação graciosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo, não obstante os atos de fixação do valor patrimonial tributário constituírem “atos destacáveis” e serem suscetíveis de impugnação autónoma.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutor Francisco Carvalho Furtado e Doutor Pedro Guerra Alves, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 08-02-2022, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., NIPC ..., com sede na..., ..., ...-... ... (doravante “A...”), e B... S.A., NIPC..., com sede na ..., ..., ...-... ... (doravante “B...”, e conjuntamente com a A..., designadas por “Requerentes”), vieram, em 02-12-2021, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT, requer a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA") contra os atos de indeferimento das reclamações graciosas que apresentaram em 03-05-2021, formados tacitamente em 03-09-2021 (objeto imediato do PPA), e contra as liquidações de IMI n.ºs 2019..., 2019... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela A... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de... sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., e as liquidações de IMI n.ºs 2019..., 2019 ... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela B... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais U-..., U-... e U-..., todas referentes ao ano de 2019 (“Liquidações Contestadas”), no montante global de € 62.925,52 (objeto mediato do PPA), pretendendo a respetiva declaração de ilegalidade e anulação, na parte relativa ao IMI indevidamente liquidado com referência aos referidos terrenos para construção, bem como o reembolso do referido montante, acrescido de juros indemnizatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
As Requerentes fundamentam o PPA, em síntese, nos seguintes termos:
(i) Na avaliação dos terrenos para construção supra identificados, foram indevidamente aplicados coeficientes de localização e de afetação, bem como a majoração de 25% prevista no artigo 39.º do Código do IMI, dos quais resultaram valores patrimoniais tributários (“VPTs”) superiores àqueles que seriam fixados nos termos do artigo 45.º do Código do IMI (na redação vigente em 2019), inflacionando na mesma medida as liquidações de IMI efetuadas com base nesses VPTs.
(ii) Não é possível recorrer à fórmula geral prevista no artigo 38.º do Código do IMI, aplicável a prédios urbanos edificados, para determinar o VPT de terrenos de construção, por ausência total de base legal para esse efeito.
(iii) Foi a própria AT que, na sequência de diversa jurisprudência, reconheceu e corrigiu o erro que vinha cometendo, deixando de aplicar os referidos coeficientes nas avaliações efetuadas a partir do ano de 2019.
(iv) A majoração do artigo 39.º do Código do IMI é também apenas aplicável a prédios edificados, pelo que, na determinação do VPT dos prédios para construção em causa, a AT deveria ter considerado o valor médio de construção por metro quadrado (€492,00 para 2019), sem aplicação de uma majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação (€ 615,00 para 2019).
(v) Conclui-se que as Liquidações Contestadas são ilegais por incidirem sobre VPTs de terrenos para construção fixados de forma ilegal pela AT.
(vi) Para obterem a revisão das Liquidações Contestadas e a anulação do IMI que a mais pagaram, as Requerentes apresentaram, em 03-05-2021, reclamações graciosas junto da AT.
(vii) Uma vez que tais reclamações graciosas não foram expressamente decididas no prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT, as Requerentes deduziram o PPA contra o indeferimento tácito das mesmas (formado nos termos do n.º 5 do referido preceito legal).
(viii) Os contribuintes, tendo detetado erros grosseiros na fórmula de cálculo adotada pela AT para efeitos de avaliação de terrenos para construção, não devem ser privados de reagir contra as liquidações de imposto dos últimos quatro anos quer através da apresentação de reclamação graciosa nos termos dos artigos 68.º e seguintes do CPPT, quer através de pedido de revisão oficiosa nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 78.º, n.ºs 1, 4 e 5, da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI.
(ix) Aliás, deveria ser a própria AT, ciente de que cobrou ilegalmente impostos em excesso durante dezoito anos, a rever oficiosamente todos os atos tributários emitidos por referência a terrenos para construção, e a devolver os impostos liquidados em excesso aos contribuintes, sem necessidade de qualquer impulso procedimental ou processual por parte dos contribuintes.
(x) Conclui-se que assistia às Requerentes o direito de solicitar a revisão oficiosa das Liquidações Contestadas nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 78.º, n.ºs 1, 4 e 5, da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI e com fundamento quer em erros imputáveis aos serviços da AT quer em injustiça grave ou notória, e que, por maioria de razão, assistia igualmente às Requerentes o direito de apresentar reclamação graciosa.
(xi) Tendo as Requerentes pago um montante de IMI em excesso por referência ao ano de 2019 (€ 35.090,21 no caso da A..., e € 27.835,31 no caso da B...), e devendo as Liquidações Contestadas (e as decisões de indeferimento tácito das reclamações graciosas que mantiveram tais liquidações na ordem jurídica) ser anuladas, deve a AT pagar às Requerentes juros indemnizatórios à taxa legal em vigor de 4% por ano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 03-12-2021, e subsequentemente notificado à AT.
As Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 21-01-2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 08-02-2022, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta em 16-03-2022, defendendo-se por exceção, em síntese, nos seguintes termos:
(i) As Requerentes pretendem a anulação dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios, não dos atos de liquidação, mas dos atos que fixaram o VPT dos terrenos para construção em apreço.
(ii) Às liquidações de IMI e às reclamações graciosas em causa não é imputado qualquer vício específico da operação de liquidação ou de procedimento.
(iii) O que está em causa são, apenas e só, atos destacáveis de fixação do VPT, que não são suscetíveis de ser impugnados nos atos de liquidação que sejam praticados com base nos mesmos.
(iv) Os atos de fixação do VPT são destacáveis e autonomamente impugnáveis (nos termos do artigo 86.º, n.º 1, da LGT e do artigo 134.º do CPPT).
(v) Os atos tributários que determinaram os VPTs dos terrenos para construção em causa consolidaram-se na ordem jurídica por as Requerentes não terem colocado em causa o respetivo VPT obtido pela 1.ª avaliação, ou requerido uma 2.ª avaliação, pelo que não é possível conhecer, em posteriores liquidações, eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.
(vi) Os atos de liquidação de IMI contestados são inimpugnáveis por vícios próprios e exclusivos na fixação do VPT, visto que os atos que fixam VPTs constituem “atos destacáveis”.
(vii) As reclamações graciosas não são meio próprio para anular liquidações de IMI com base em erros cometidos em avaliações dos prédios e, mesmo que, por mera hipótese, se admitisse tal impugnação administrativa, a AT só poderia anular atos de fixação do VPT que tenham ocorrido “há menos de cinco anos”.
Em resposta às exceções suscitadas pela Requerida, as Requerentes apresentaram requerimento em 31-03-2022, alegando, em síntese, o seguinte:
(i) A tese da Requerida assenta no pressuposto errado de que as Requerentes solicitaram diretamente a revisão dos atos de fixação dos VPTs, quando aquilo que as Requerentes fizeram foi apresentar reclamações graciosas contra as liquidações de imposto que foram emitidas com base em VPTs fixados de forma ostensivamente ilegal.
(ii) O facto de os atos de fixação do VPT serem autonomamente sindicáveis (o que é uma evidência) não permite concluir que os atos de liquidação com base neles emitidos – os verdadeiros atos lesivos de direitos e interesses e cuja tutela jurisdicional efetiva a Constituição da República Portuguesa (“CRP”) garante – não sejam naturalmente sindicáveis.
(iii) O regime regra que vigora no ordenamento jurídico-tributário é o da impugnação unitária, pelo que, a ser aplicável alguma exceção a tal regime no caso em análise, sempre a mesma teria de ter como finalidade o reforço das garantias dos contribuintes que passariam a poder reagir imediatamente contra atos lesivos, e não, como a Requerida parece pretender, a eliminação total das garantias dos contribuintes e do direito que lhes assiste de solicitar à AT que reveja atos tributários ostensivamente ilegais onde se constate que foi liquidado, de forma ilegal, imposto em excesso aos contribuintes em resultado de atos prévios ou preparatórios dos procedimentos de avaliação.
(iv) Se a jurisprudência fiscal arbitral tem vindo a admitir, de forma reiterada e uniforme, a possibilidade de revisão oficiosa das liquidações de imposto, com fundamento em erro imputável aos serviços e / ou em injustiça grave ou notória, em casos idênticos ao que ora se analisa, desde que apresentados nos prazos legais constantes no artigo 78.º, n.ºs 1 e 4, da LGT, é evidente que é possível a revisão daqueles atos tributários na sequência de apresentação de reclamação graciosa no prazo mais curto de 120 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário da última nota de cobrança de IMI.
(v) Sem conceder no exposto, sempre se acrescentará que, caso a AT entendesse ser necessária a convolação das reclamações graciosas apresentadas em pedidos de revisão oficiosa, a mesma deveria ter sido promovida pela própria AT.
Por despacho de 08-06-2022, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo e do princípio da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias (cfr. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), o Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações escritas finais, e indicou a data previsível para prolação da decisão arbitral.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar da legalidade de atos de indeferimento tácito de reclamações graciosas, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
O PPA é tempestivo porque apresentado no prazo de 90 dias referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar do indeferimento tácito das reclamações graciosas (apresentadas em 03-05-2021), que se formou em 03-09-2021, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT.
É admitida a cumulação de pedidos, face ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, sempre que, como é o caso, “a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades. As exceções e questões prévias suscitadas pelas partes serão analisadas depois de apreciada a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§3.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
(i) Em 2019, a A... era proprietária dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-... (cfr. cadernetas prediais juntas ao PPA como documento 3).
(ii) Em 2019, a B... era proprietária dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-... e U-... (cfr. cadernetas prediais juntas ao PPA como documento 7).
(iii) A A... foi notificada e procedeu ao pagamento das liquidações de IMI n.ºs 2019 ..., 2019 ... e 2019 ..., nas quais está incluído IMI do ano 2019 referente aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-... (cfr. documento 4 junto ao PPA).
(iv) A B... foi notificada e procedeu ao pagamento das liquidações de IMI n.ºs 2019 ..., 2019 ... e 2019 ..., nas quais está incluído IMI do ano 2019 referente aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-... e U-... (cfr. documento 8 junto ao PPA).
(v) Estas liquidações de IMI foram emitidas com referência a VPTs calculados com base numa fórmula que incluía coeficientes de localização e de afetação, e a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI (cfr. cadernetas prediais juntas ao PPA como documentos 3 e 8, e alegado pelas Requerentes nos artigos 5.º e 34.º do PPA, sem contestação pela Requerida).
(vi) Destas liquidações resultou um IMI superior àquele que seria devido se não fossem incluídos, no cálculo do VPT dos terrenos para construção em apreço, coeficientes de localização e de afetação, e a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI: € 36.090,29 de IMI em excesso para a A..., e € 27.835,35 de IMI em excesso para a B... (cfr. alegado pelas Requerentes nos artigos 13.º e 48.º do PPA, e não contestado pela Requerida).
(vii) Em 2021, a AT procedeu à correção do VPT dos terrenos para construção em causa, que deixou, assim, de incluir coeficientes de localização e de afetação (cfr. documentos 6 e 10 juntos ao PPA).
(viii) Em 03-05-2021, a A... apresentou reclamação graciosa contestado a legalidade dos atos de liquidação de IMI do ano de 2019, com os n.ºs 2019..., 2019 ... e 2019 ..., referentes aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-... (cfr. documento 1 junto ao PPA).
(ix) Em 03-05-2021, a B... apresentou reclamação graciosa contestado a legalidade dos atos de liquidação de IMI do ano de 2019, com os n.ºs 2019 ..., 2019 ... e 2019 ..., referentes aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos U-..., U-... e U-... (cfr. documento 2 junto ao PPA).
(x) Estas reclamações graciosas não foram decididas até 03-09-2021 (i.e., até ao termo do prazo legal de quatro meses estabelecido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT).
(xi) Em 02-12-2021, as Requerentes apresentaram o PPA que deu origem ao presente processo arbitral.
§3.2. Factos não provados
Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.
§3.3. Fundamentação da matéria de facto
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§4.1. Questões a decidir
O PPA tem por objeto imediato os atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas apresentadas pelas Requerentes em 03-05-2021, ao abrigo dos artigos 68.º e seguintes do CPPT, e por objeto mediato as Liquidações Contestadas.
Tendo a Requerida suscitado exceções dilatórias e questões prévias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal apreciará primeiramente estas questões e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência das mesmas, os vícios alegados pelas Requerentes suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação dos referidos atos de indeferimento tácito e das Liquidações Contestadas (cfr. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).
Tendo em consideração a posição das partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:
A) Exceções dilatórias e questões prévias:
- Da consolidação dos atos tributários que fixam o VPT dos terrenos para construção;
- Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI, com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT, através de reclamação graciosa;
B) Da ilegalidade dos atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas e das Liquidações Contestadas, por erro no cálculo do VPT dos terrenos para construção.
C) Do reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
§4.2. Da consolidação dos atos tributários que fixam o VPT dos terrenos para construção
Quando um ato de fixação de VPT se consolida na ordem jurídica por inércia do sujeito passivo, o respetivo VPT serve de base à emissão de liquidações de IMI e de outros impostos, até eventual alteração do seu valor. Isto significa que, caso o sujeito passivo, por inércia, não impugne um ato de fixação do VPT, fica com o ónus de impugnar, sucessivamente, ao longo dos anos, cada uma das liquidações nele baseadas. Mas não significa que esteja impedido de o fazer, nomeadamente através de pedido de revisão oficiosa (nos termos do artigo 78.º da LGT).
A verdade é que, ainda que por vias e mecanismos diversos, os tribunais têm vindo a anular atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa (apresentados quer nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, com fundamento em erro imputável aos serviços, quer nos termos dos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo, com fundamento em injustiça grave e notória), juntamente com os correspondentes atos de liquidação de IMI e AIMI, com fundamento na errónea fixação do VPT: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31-10-2019, processo n.º 2765/12.BELRS; Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 487/2020-T; Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 254/2021-T; Decisão Arbitral de 24-06-2021, processo n.º 500/2020-T; Decisão Arbitral de 27-07-2021, processo n.º 41/2021-T; Decisão Arbitral de 10-12-2021, processo n.º 253/2021-T; Decisão Arbitral de 15-02-2022, processo n.º 676/2021-T; Decisão Arbitral de 22-02-2022, processo n.º 297/2021-T; Decisão Arbitral de 09-03-2022, processo n.º 540/2021-T; Decisão de 14-03-2022, processo n.º 541/2021-T; Decisão Arbitral de 04-05-2022, processo n.º 497/2021-T; Decisão Arbitral de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T; Decisão Arbitral de 06-05-2022, processo n.º 411/2021-T; Decisão Arbitral de 23-05-2022, processo n.º 753/2021-T; Decisão Arbitral de 06-05-2022, processo n.º 535/2021-T; Decisão Arbitral de 21-06-2022, processo n.º 55/2022-T.
Conclui-se, assim, que o facto de as Requerentes não terem impugnado o VPT dos terrenos de construção em apreço nos termos dos artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT, não as impede de posteriormente sindicar a ilegalidade das liquidações de IMI, com fundamento em vícios na fixação do VPT, através de pedido de revisão oficiosa. Como se verá infra, os sujeitos passivos poderão também socorrer-se do procedimento de reclamação graciosa para este efeito.
No caso sub judice, tal como sublinhado pelas Requerentes, não está em causa a declaração de ilegalidade e anulação de atos de fixação de VPT, mas a declaração de ilegalidade e anulação de atos de liquidação de IMI. Não releva, assim, o prazo de cinco anos referido no artigo 158.º do CPA, aplicável à anulação administrativa de atos que fixam o VPT de imóveis, subsidiariamente aplicável por força do artigo 79.º da LGT.
§4.3. Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI, com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT, através de reclamação graciosa
As Requerentes vieram, através do PPA que apresentaram em 02-12-2021, impugnar o indeferimento tácito de reclamações graciosas e as Liquidações Contestadas com fundamento em vícios dos atos de fixação dos VPTs dos terrenos de construção referidos supra. Defendem as Requerentes que o facto de os atos de fixação do VPT serem autonomamente sindicáveis não permite concluir que os atos de liquidação com base neles emitidos não sejam naturalmente sindicáveis, e que a exceção ao princípio da impugnação unitária prevista para os “atos destacáveis” não resulta numa eliminação total das garantias dos contribuintes e do direito que lhes assiste de solicitar à AT que reveja atos tributários ostensivamente ilegais onde se constate que foi liquidado, de forma ilegal, imposto em excesso aos contribuintes em resultado de atos prévios ou preparatórios dos procedimentos de avaliação. Concluem as Requerentes que é possível a revisão daqueles atos tributários na sequência de apresentação de reclamação graciosa e que, caso assim não fosse, sempre a AT deveria ter convolado as reclamações graciosas em causa em pedidos de revisão oficiosa.
Alega a Requerida que o ato de fixação do VPT é um ato destacável, autonomamente impugnável, cujos vícios não são sindicáveis aquando da apreciação da legalidade de atos de liquidação de IMI emitidos posteriormente.
Sintetizadas as posições das partes, cumpre sublinhar que, no caso sub judice, a questão que se coloca é a de saber se os sujeitos passivos podem impugnar atos de liquidação de IMI, com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT, através de reclamação graciosa.
A este propósito, interessa (i) salientar a identidade entre o procedimento de reclamação graciosa (previsto nos artigos 68.º e seguintes do CPPT) e o procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT; (ii) analisar a relevância do princípio da impugnação unitária contido no artigo 54.º do CPPT e da exceção dos “atos destacáveis”; (iii) referir a importância dos princípios da justiça e da tutela jurisdicional efetiva ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP; (iv) sublinhar a relevância dos princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” subjacentes ao artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT); (v) analisar o significado do princípio da segurança jurídica (e da figura do caso decidido dos atos administrativos que nele se alicerça), e do princípio da legalidade em matéria tributária contido no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
(i) A identidade entre o procedimento de reclamação graciosa e o procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT
O procedimento de reclamação graciosa visa a anulação de atos tributários (cfr. artigo 68.º, n.º 1, do CPPT) com os fundamentos previstos para a impugnação judicial, incluindo qualquer ilegalidade de atos tributários (cfr. artigos 70.º, n.º 1, e 99.º do CPPT).
Tal como referido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, “há identidade, quanto ao âmbito do procedimento, entre este meio de reclamação graciosa e o que no art. 78.º, n.º 1, [da LGT] se denomina “revisão dos actos tributários” por iniciativa do contribuinte. Com efeito, como se refere no n.º 1 deste art. 78.º, a revisão por iniciativa dos sujeitos passivos só pode fazer-se quando esta iniciativa teve lugar no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, o que coloca todos os casos de “revisão” no âmbito da reclamação graciosa.” [1]
A diferença entre estes meios impugnatórios reside (a) na entidade competente para apreciar os mesmos (o diretor do órgão periférico regional no caso de reclamações graciosas, nos termos do artigo 75.º, n.º 1, do CPPT, e a entidade que praticou o ato no caso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT), e (b) o prazo para apresentação dos mesmos (120 dias no caso de reclamações graciosas, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, do CPPT, e um prazo mais alargado no caso dos pedidos de revisão oficiosa apresentados nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT).
Os tribunais têm vindo a admitir que os sujeitos passivos podem arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo, com base no artigo 78.º, n.º 1, da LGT (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de em 31-10-2019, processo n.º 2765/12.BELRS; Decisões Arbitrais de 24-06-2021, processo n.º 500/2020-T; de 22-02-2022, processo n.º 297/2021-T; de 09-03-2022, processo n.º 540/2021-T; de 24-03-2022, processo n.º 615/2021-T; de 04-05-2022, processo n.º 497/2021-T; de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T; de 17-05-2022, processo n.º 506/2021-T; de 21-06-2022, processo n.º 55/2022-T; de 24-06-2022, processo n.º 670/2021-T.
Acompanhamos esta jurisprudência e temos que, para efeitos da impugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT, não se justifica uma distinção entre o pedido de revisão oficiosa apresentado nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT e a reclamação graciosa apresentada nos termos dos artigos 68.º e seguintes do CPPT, dada a identidade entre estes meio impugnatórios quanto ao fundamento dos mesmos (qualquer ilegalidade dos atos tributários), e considerando que as diferenças que existem entre os mesmos (prazo e entidade competente) não são relevantes para a questão em apreço.
Deste modo, conclui o Tribunal que assiste razão às Requerentes quando sustentam que o sujeito passivo pode sindicar a legalidade de atos de liquidação de IMI, com fundamento na errónea fixação do VPT, quer através de pedido de revisão oficiosa, quer através de reclamação graciosa.
Acresce que a admissibilidade de reclamação graciosa para estes efeitos é sustentada pela interpretação do princípio da impugnação unitária contido no artigo 54.º do CPPT que temos por mais adequada num Estado de Direito, e à luz dos nossos princípios constitucionais, nomeadamente, dos princípios da justiça e da tutela jurisdicional efetiva ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, e do princípio da legalidade contido no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Interessa começar por analisar o princípio contido no artigo 54.º do CPPT e a exceção aplicável aos “atos destacáveis, cuja interpretação se encontra no cerne da questão da impugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT.
(ii) Do princípio da impugnação unitária e da exceção dos “atos destacáveis”
Como se pode ler no texto do artigo 54.º do CPPT, do mesmo não resulta qualquer limitação para a impugnabilidade da decisão final (no caso em apreço, atos de liquidação de IMI) com fundamento em ilegalidade de ato interlocutório (no caso em apreço, atos de fixação de VPT):
“Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
Deste artigo resulta apenas e tão só que (a) em regra, os atos interlocutórios não são impugnáveis autonomamente, pelo que os vícios dos mesmos só podem ser invocados na impugnação da decisão final, e (b) a título excecional, os atos interlocutórios podem ser impugnados autonomamente. Os atos de fixação de VPTs caem nesta exceção por força do artigo 134.º, n.º 1, do CPPT (em sintonia com o artigo 86.º, n.º 1, da LGT).
Assim, não é controvertida a questão de saber se os atos de fixação de VPT constituem “atos destacáveis” (ou seja, a atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, são direta e autonomamente impugnáveis pelo contribuinte por tal resultar expressamente da lei)[2], ou se são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma. Os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT são claros a este respeito.
A questão relevante para o caso sub judice é a de saber se estas disposições, ao estabelecer que os atos de fixação de VPT são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma, têm o efeito de (1) precludir a possibilidade de o sujeito passivo arguir a errónea fixação do VPT através de reclamação graciosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo (caso em que a impugnação autónoma dos atos de fixação de VPT se torna num verdadeiro ónus), ou (2) conferir ao sujeito passivo a possibilidade de impugnar os atos de fixação de VPT de forma autónoma, a que acresce a possibilidade de posteriormente contestar a validade das liquidações baseadas no VPT erradamente fixado através de reclamação graciosa.
Quanto a esta questão, considera o Tribunal que os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT (as normas que permitem a impugnação autónoma dos atos de fixação do VPT) devem ser entendidos, não como uma restrição às garantias dos contribuintes, ou como um ónus sobre o sujeito passivo, o que seria a consequência da posição sustentada pela Requerida, mas antes como uma ampliação dessas garantias, uma ampliação materializada no reconhecimento aos contribuintes de uma defesa adicional contra um ato ilegal (no mesmo sentido: Decisão Arbitral de 02-07-2021, processo n.º 760/2020-T). Na verdade, o regime contido nestes artigos tem uma razão de ser: evitar que o sujeito passivo tenha de impugnar, sucessivamente, ao longo dos anos, cada uma das liquidações de imposto baseadas num VPT incorretamente fixado pela AT (cfr. Decisão Arbitral de 14-03-2022, processo n.º 541/2021-T).
Conclui-se, assim, que a exceção ao princípio da impugnação unitária aplicável a “atos destacáveis” foi criada com o objetivo de concretizar e ampliar o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP), e não de limitar ou restringir o mesmo.
(iii) Princípios da justiça e da tutela jurisdicional efetiva ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP
O Tribunal entende que a interpretação do artigo 54.º do CPPT subscrita pela Requerida (segundo a qual os vícios dos atos que fixam o VPT de terrenos para construção não são sindicáveis aquando da apreciação da legalidade de atos de liquidação de IMI emitidos com base nos mesmos) ofende o princípio da justiça e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
A este propósito, importa recordar que, no Acórdão n.º 410/2015, de 29-09-2015, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do CPPT que, qualificando a impugnação de “atos destacáveis” como um ónus e não como uma faculdade do sujeito passivo, impede a impugnação das liquidações de imposto com fundamento em vícios dos “atos destacáveis”, por a mesma desproteger gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo o princípio da justiça e o princípio da tutela judicial efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Segundo o Tribunal Constitucional, de tal interpretação resultaria “uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente”.
Acompanhamos inteiramente a interpretação do artigo 54.º do CPPT sustentada pelo Douto Tribunal Constitucional neste Acórdão, que reforça a conclusão de que a interpretação segundo a qual os vícios dos atos que fixam o VPT de terrenos para construção são sindicáveis aquando da apreciação da legalidade de atos de liquidação de IMI emitidos com base nos mesmos, através de reclamação graciosa (ou do pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT), é a que melhor se coaduna com os princípios da justiça e da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
Interessa agora atentar aos princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” subjacentes ao artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT).
(iv) Princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” decorrentes do artigo 7.º do CPTA
A interpretação da lei processual subscrita pela Requerida (segundo a qual os vícios dos atos que fixam o VPT de terrenos para construção não são sindicáveis aquando da apreciação da legalidade de atos de liquidação de IMI emitidos com base nos mesmos) não só não resulta expressamente na lei processual, como seria ela mesma contrária ao disposto no artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), no qual se pode ler que “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
Os princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” impõem uma interpretação da lei processual que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva. Assim, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, temos que se deverá optar por aquela que favoreça a ação, e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo sujeito passivo.
No caso sub judice, estes princípios impõem que se reconheça às Requerentes a possibilidade de sindicar a legalidade das Liquidações Contestadas, através de reclamação graciosa, com fundamento na errónea fixação do VPT a elas subjacente.
(v) O princípio da segurança jurídica (e da figura do caso decidido dos atos administrativos que nele se alicerça), e o princípio da legalidade em matéria tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP
Por último, uma nota relativamente à relevância do princípio da segurança jurídica e da figura do caso decidido dos atos administrativos que nele se alicerça. É inquestionável que este princípio é não só essencial como constitutivo do Estado de Direito. Todavia, importa lembrar que o princípio da segurança jurídica, nas suas diversas vertentes (incluindo o caso decidido dos atos administrativos), tem em vista primordialmente a proteção dos cidadãos contra a arbitrariedade e abusos de poder por parte do poder legislativo, executivo e judicial. A este propósito, escreveu o Professor Gomes Canotilho:
“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”.[3]
“Relativamente aos actos da administração, o princípio geral da segurança jurídica aponta para a idea de força de caso decidido dos actos administrativos. Embora não haja uma paralelismo entre sentença judicial e força de caso julgado e acto administrativo e força de caso decidido (...) entende-se que o acto administrativo goza de uma tendencial imutabilidade que se traduz: (1) na autovinculação da administração (...) na qualidade de autora do acto e como consequência da obrigatoriedade do acto; (2) na tendencial irrevogabilidade do acto administrativo a fim de salvaguardar os interesses dos particulares destinatários do acto (protecção da confiança e da segurança)”.[4]
“Tendo em conta as exigências resultantes dos princípios de protecção da confiança e da segurança jurídica (direitos dos particulares directamente interessados, direitos de terceiros) não se vê como é que a anulação de actos inválidos possa ser uma faculdade discricionária. Os princípios da constitucionalidade e da legalidade não se compaginam com uma “arrogância” da administração sobre os próprios vícios. Ela deverá anular ou sanar os vícios nos termos da lei”. [5]
Resulta assim claro que a tendencial imutabilidade dos atos administrativos associada à força de caso decidido dos mesmos deverá ser entendida como um mecanismo tendente à salvaguarda dos interesses dos particulares, e não como um argumento usado para a AT se recusar a sanar os vícios dos atos que pratica. A mesma vertente de proteção dos cidadãos do princípio da segurança jurídica foi referida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-11-2017, no processo n.º 0164ª/64, no qual se pode ler:
“Os citados princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.”
Temos que o princípio da segurança jurídica, orientado para a proteção dos cidadãos, não deverá ser interpretado ou utilizado como fundamento para negar aos cidadãos um direito ou uma garantia processual prevista na lei, ou, relativamente à questão em apreço, como fundamento para negar ao sujeito passivo a possibilidade de arguir a errónea fixação do VPT através de reclamação graciosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo (ao abrigo dos artigos 68.º e seguintes do CPPT).
Como referido supra, tal interpretação, para além de carecer de base legal, seria ofensiva do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da justiça (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
Num Estado de Direito assente no princípio da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que exige que a AT arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei), no princípio da justiça e no princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP), a coerência entre os atos de liquidação de IMI, AIMI, IMT, e Imposto do Selo emitidos relativamente a um mesmo imóvel (que pressupõe que os mesmos se baseiem no mesmo VPT) deverá ser assegurada através do cumprimento, por parte da AT, do seu dever de sanar oficiosamente os eventuais vícios no cálculo do VPT à luz da lei (como aliás impõe o adequado funcionamento da AT), e não através de uma restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça consubstanciada na obliteração da possibilidade do sujeito passivo de se socorrer a um meio processual previsto na lei (a reclamação graciosa) para reagir contra atos de liquidação de imposto contaminados por uma determinação da matéria coletável incorreta e ilegal, por erro exclusivamente imputável à AT.
A “estabilidade” na ordem jurídica alcançada por uma tal restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça seria a de permitir à AT que continue a arrecadar quantias de imposto que não são exigíveis ao sujeito passivo nos termos da lei (em violação do princípio da legalidade em matéria tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP), o que são é aceitável num Estado de Direito.
***
À luz de todas estas considerações, temos que o princípio da legalidade, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o princípio da justiça ínsitos na nossa Constituição impõem afastar a interpretação do artigo 54.º do CPPT, conjugado com o artigo 134.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual a possibilidade de impugnação autónoma e imediata dos atos de fixação de VPT (enquanto “atos destacáveis”) constitui um ónus cujo incumprimento inviabiliza a reclamação graciosa das liquidações de IMI emitidas posteriormente, com fundamento em erro no cálculo do VPT que serviu de base às mesmas liquidações.
De facto, a interpretação da lei processual à luz dos referidos princípios constitucionais impõe a solução oposta: reconhecer que os sujeitos passivos podem arguir a errónea fixação do VPT através de reclamação graciosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo, e que o indeferimento (expresso ou tácito) de reclamação graciosa faz nascer na esfera jurídica do sujeito passivo o direito a impugnar esse indeferimento. O pedido de pronúncia arbitral constitui meio adequado para o efeito. No mesmo sentido: Decisão Arbitral de 31-01-2022, proferida no processo n.º 533/2021-T.
Conclui-se, assim, no caso sub judice, que são admissíveis as reclamações graciosas das Liquidações Contestadas apresentadas pelas Requerentes nos termos dos artigos 68.º e seguintes do CPPT, com fundamento em vícios na fixação do VPT dos terrenos para construção em apreço, bem como o PPA apresentado do indeferimento tácito que se formou sobre as mesmas. Nestes termos, improcede a exceção invocada pela Requerida relativa à inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI, com fundamento em vícios na fixação do VPT, através de reclamação graciosa.
Acresce que, tal como referido pelas Requerentes, caso a AT viesse a entender que o pedido de revisão oficiosa seria mais adequado a obter o efeito pretendido pelas Requerentes (i.e., a anulação parcial das Liquidações Contestadas), sempre deveria a AT ter convolado as reclamações graciosas apresentadas pelas Requerentes em pedidos de revisão oficiosa.
Julgadas improcedentes todas as exceções e questões prévias suscitadas pela Requerida, cumpre ao Tribunal Arbitral conhecer do mérito da causa.
§4.4. Da ilegalidade dos atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas e das Liquidações Contestadas, por erro no cálculo do VPT dos terrenos para construção
Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à construção bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IMI, mas não os coeficientes previstos na expressão matemática contida no artigo 38.º do Código do IMI (nomeadamente coeficientes de localização e de afetação).
Tal como referido pelas Requerentes, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a decidir, de forma reiterada e uniforme, que, na fixação dos VPTs dos terrenos para construção, não será de aplicar a fórmula de cálculo prevista no artigo 38.º do Código do IMI para os prédios edificados (e.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2019, processo n.º 016/10.9BELLE; de 23-10-2019, recurso n.º 0170/16.6BELRS 0684/17; de 9-10-2019, recurso n.º 165/14.4BEBRG; de 14-11-2018, processo n.º 0398/08.2BECTB 0133/18; de 16-05-2018, processo n.º 0986/16).
A jurisprudência arbitral é também uniforme a este respeito (e.g., Decisões Arbitrais de 26-11-2021, processo n.º 486/2020-T; de 22-11-2021, processo n.º 504/2020-T; 24-6-2021, processo n.º 500/2020-T; de 31-01-2022, processo n.º 533/2021-T; de 04-05-2022, processo n.º 497/2021-T; 06-05-2022, processo n.º 411/2021-T; de 06-05-2022, processo n.º 535/2021-T).
Resulta claro desta jurisprudência, que o presente Tribunal Arbitral acompanha, que os coeficientes de localização e de afetação estatuídos no artigo 38.º do Código do IMI não se aplicam no cálculo do VPT de terrenos de construção.
Quanto à majoração de 25% do valor do metro quadrado do terreno de implantação constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, a jurisprudência arbitral é também consistente em considerar a mesma inaplicável na fixação do VPT de terrenos para construção (e.g. Decisões Arbitrais de 10-05-2021, processo n.º 487/2020-T; de 31-01-2022, processo n.º 533/2021-T; de 04-05-2022, processo n.º 497/2021-T; de 06-05-2022, processo n.º 535/2021-T).
Sendo a majoração do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI apenas aplicável a prédios edificados, resulta claro que, na determinação do VPT dos prédios para construção em causa, a AT deveria ter considerado o custo médio de construção por metro quadrado (€492,00 para 2019) sem aplicação da majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI (€ 615,00 para 2019).[6]
Em conclusão, a fórmula consagrada no artigo 38.º do Código do IMI (incluindo coeficientes de afetação e de localização) e a majoração contida no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI não são aplicáveis na determinação do VPT dos terrenos para construção.
Em consequência, o Tribunal Arbitral declara ilegal e anula parcialmente, nos termos do artigo 163.º do CPA, as liquidações de IMI n.ºs 2019..., 2019 ... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela A... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., e as liquidações de IMI n.ºs 2019..., 2019... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela B... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais U-..., U-... e U-... (objeto mediato do PPA), por enfermarem de vício de violação da lei por erro sobre os pressupostos de Direito, declarando-se também ilegais os atos de indeferimento tácito das reclamações graciosas apresentadas pelas Requerentes em 03-05.2021 (objeto imediato do PPA).
Face a tudo o que se expôs, torna-se evidente que o Tribunal Arbitral limita-se a apreciar questões de legalidade segundo o direito constituído, não tendo cabimento a invocação da Requerida do princípio da proibição legal do julgamento segundo a equidade.
§4.5. Do reembolso do IMI indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios
Conforme determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Assim, em resultado da anulação parcial das Liquidações Contestadas, deverá a Requerida reembolsar o montante de € 35.090,21 à A..., e o montante de € 27.835,31 à B... .
Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável à AT de que resulte pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido. Foi o que sucedeu no caso em apreço, visto que ficou demonstrado que as Liquidações Contestadas padecem de erro de Direito imputável à AT, vício para o qual as Requerentes em nada contribuíram, e que desse erro resultou pagamento de IMI em montante superior ao legalmente devido.
Assim, o Tribunal Arbitral condena a Requerida a pagar às Requerentes juros indemnizatórios sobre o montante de imposto indevidamente pago por estas (i.e., sobre € 35.090,21, no caso da A..., e sobre € 27.835,31, no caso da B...), desde a data do respetivo pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos (cfr. artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
V. DECISÃO
De harmonia com o exposto, acordam os árbitros, neste Tribunal Arbitral, em julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
a) Declarar ilegal e anular integralmente os atos de indeferimento das reclamações graciosas que as Requerentes apresentaram em 03-05-2021, formados tacitamente em 03-09-2021;
b) Declarar ilegal e anular parcialmente, por erro nos pressupostos de Direito:
(i) As liquidações de IMI de 2019 com os n.ºs 2019..., 2019... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela A... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., no montante de € 35.090,21;
(ii) As liquidações de IMI de 2019 com os n.ºs 2019..., 2019... e 2019..., referentes aos terrenos para construção detidos pela B... e inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos matriciais U-..., U-... e U-..., no montante de € 27.835,31;
c) Condenar a AT à restituição do montante de € 35.090,21 à A..., acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do referido valor até à data do processamento da nota de crédito, em que são incluídos.
d) Condenar a AT à restituição do montante de € 27.835,31 à B..., acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do referido valor até à data do processamento da nota de crédito, em que são incluídos.
VI. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 62.925,52.
VII. CUSTAS ARBITRAIS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida em razão do decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de julho de 2022
Os Árbitros,
Rita Correia da Cunha (presidente)
Pedro Guerra Alves
Francisco Carvalho Furtado
[1] Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado (4ª edição, Vislis Editores 2003), página 340 (anotação ao artigo 68º do CPPT).
[2] Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado – vol I (5ª edição, Áreas Editora 2006), página 424 (anotação ao artigo 54º do CPPT).
[3] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (4ª ed., Almedina 2000), página 256.
[6] Portaria n.º 330-A/2018, de 20 de dezembro.