Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 601/2021-T
Data da decisão: 2022-05-26   
Valor do pedido: € 24.950,89
Tema: IMI – Impugnação do valor patrimonial tributário. Efeitos da intempestividade da impugnação de atos de fixação do valor patrimonial
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DECISÃO ARBITRAL

 

A Signatária, Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, o qual foi constituído em 30 de novembro de 2021.

 

  1. Relatório

 

1. A…, S.A., com sede social na …, titular do número de identificação fiscal …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Loulé sob o mesmo número (doravante, Requerente), apresentou no dia 23 de setembro de 2021 pedido de pronúncia arbitral (PPA), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto‑Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida).

No PPA, a Requerente pede ao Tribunal:

Nestes termos e nos demais de Direito, face aos fundamentos expostos supra, requer-se que V. Ex.ª se digne:

  1. Dar como provada o presente pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, anular a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa, acima mencionado e, por conseguinte, anular o ato de liquidação de IMI respeitante ao período de tributação de 2019, no valor total de € 24.950,89;
  2. Ordenar o reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira do referido montante de € 24.950,89 (vinte e quatro mil, novecentos e cinquenta euros e oitenta e nove cêntimos);
  3. Ordenar o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos dos artigos 43.º da LGT, 61.º do CPPT e 24.º, n.º 5 do RJAT.”

 

Na fundamentação do seu pedido, a Requerente alega que o ato de liquidação de IMI (relativo ao ano de 2019) em causa no PPA é ilegal, uma vez que “a AT utilizou, no que respeita aos terrenos para construção, um valor patrimonial tributário (doravante abreviadamente designado de “VPT”) consideravelmente superior àquele que, legalmente, deveria ter considerado”.

A Requerente entende, em suma, que:

no âmbito da análise efetuada ao seu património imobiliário e correspondentes liquidações de imposto dos últimos anos, a Requerente verificou que o VPT dos referidos terrenos para construção, o qual serviu de base para a liquidação de IMI realizada pela AT – a qual se encontra a ser contestada com base em ilegalidade – foi determinado de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 38.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “Código do IMI”).

A este respeito, como é habitual no caso de terrenos para construção, no cálculo do VPT não foi considerado o coeficiente de vetustez. Contudo, foram considerados nas avaliações oportunamente realizadas, os coeficientes de localização, coeficiente de afetação e o coeficiente de qualidade e conforto, os quais não são aplicáveis aos terrenos para construção. A inaplicabilidade dos referidos coeficientes decorre da especificidade dos terrenos para construção face aos demais prédios urbanos, encontrando-se tal entendimento largamente suportado por vasta jurisprudência. No caso em apreço, tendo em conta que a liquidação do IMI de 2019 teve por base um VPT incorretamente determinado relativamente aos diversos terrenos para construção, o imposto liquidado foi consideravelmente superior ao legalmente devido, pelo que, a Requerente pretendia que a referida liquidação fosse anulada, sendo reposta por liquidação a emitir com base nos valores concretos de coleta que seriam devidos caso as normas legais tivessem sido corretamente aplicadas (cfr. Documento n.º 1 ), já junto ao processo) com os fundamentos que de seguida apresenta”.

 

No presente PPA, a Requerente impugna:

(i)          o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, a 26 de fevereiro de 2021; e

(ii)         o ato de liquidação de IMI identificado sob o n.º 2019 …, objeto de revisão oficiosa por iniciativa por iniciativa da Autoridade Tributária (Requerida), que veio a dar origem à emissão da liquidação de IMI nº 2019 …, relativo a 2019;

(doravante conjuntamente designados, ato impugnado).

 

2. O pedido de pronúncia arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 24 de setembro de 2021 e foi automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 12 de novembro de 2021, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Ainda em 12 de novembro de 2021, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 30 de novembro de 2021.

 

6. Em 30 de novembro de 2021, o Tribunal proferiu o seguinte despacho arbitral: Notifique o dirigente máximo do serviço da administração tributária, nos termos do artigo 17.º n.º 1 e n.º 2 do RJAT, para: (i) apresentar resposta; (ii) solicitar a produção de prova adicional; e (iii) remeter cópia do processo administrativo (na falta de remessa é aplicado o disposto no artigo 110.º n.º 5 do CPPT). (Prazo: 30 dias). Deste despacho foi a Requerida notificada em 02 de dezembro de 2021.

 

7. Em 10 de janeiro de 2022, a Requerida veio aos autos apresentar Resposta — na qual defendeu:

(i) Exceção de incompetência do Tribunal Arbitral: “A Requerente pretende a anulação dos atos impugnados com fundamento em vícios, não do ato de liquidação, mas sim dos atos que fixaram o VPT” “Acontece que os vícios do ato que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo. E o tribunal arbitral é incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do valor patrimonial, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis e encontra-se consolidados na ordem jurídica. Ou seja, o pedido formulado pela Requerente prende-se com a ilegalidade de um ato destacável, ele próprio autonomamente atacável e não com a declaração de ilegalidade de um qualquer ato tributário previsto no artigo 2.º do RJAT. Face ao exposto, conclui-se que a apreciação da legalidade do ato que procedeu à de fixação do valor patrimonial não cabem na competência dos tribunais arbitrais. Em conclusão, o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT e artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT, que obsta ao conhecimento do pedido e à absolvição da instância da AT, o que desde já se requer”;

(ii) Por impugnação: Defende a Requerida, em suma, “No caso dos autos, conforme tabela apresentada no ponto 33 e confirmado no ponto 40 do ppa, os pedidos de avaliação dos imóveis em causa foram apresentados em 14-10-2008. Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação” “por estar consolidada a fixação do valor patrimonial tributário, não podem os atos de liquidação ser anulados com fundamento em erros no cálculo do VPT. Matéria para a qual (apreciação de atos administrativos em matéria tributária) o Tribunal Arbitral não tem competência. As competências do tribunal arbitral encontram-se fixadas na lei, apenas abrangem a apreciação de atos de liquidação, não abrange o ato de fixação do VPT”. Defende também que: “Decorre do texto da lei que apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT que contrariam o recente entendimento jurisprudencial nos casos em que não tenha decorrido cinco anos desde a respetiva emissão” “Em face de tudo o exposto que por força do artigo 168, n.º 1, do CPA, que as avaliações, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, efetuadas há mais de cinco anos já não podem ser objeto de anulação administrativa por determinação legal (cf se verifica da tabela constante do ponto 30 do ppa)”. Mais pede a dispensa: (i) da inquirição das testemunhas indicada pela Requerente; e (ii) de junção do processo administrativo e de produção de alegações.

 

8. Em 26 de janeiro de 2022, foi proferido o seguinte despacho arbitral: Por aplicação do princípio da celeridade processual, notifica-se a Requerente para: (1) se pronunciar por escrito relativamente à matéria de exceção alegada pela Requerida na sua Resposta; e (2) informar os autos se mantém interesse na inquirição da testemunha arrolada no pedido de pronúncia arbitral. Prazo: 10 dias”. Este despacho foi notificado em 27 de janeiro de 2022.

 

9. Em 10 de fevereiro de 2022, a Requerente veio aos autos responder às exceções alegadas pela Requerida, reiterando a competência do Tribunal Arbitral para conhecimento do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, e mais alegando que “da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços. O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas. Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente do Requerente, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável”.

 

10. Em 20 de fevereiro de 2022, foi proferido o seguinte despacho arbitral: No requerimento de 10/fevereiro/2022, a Requerente vem responder ao ponto (1) do despacho de dia 26/janeiro/2022 (“para: se pronunciar por escrito relativamente à matéria de exceção alegada pela Requerida na sua Resposta”), mas não vem responder ao ponto (2) do mesmo despacho (“para: informar os autos se mantém interesse na inquirição da testemunha arrolada no pedido de pronúncia arbitral”). Assim, notifique-se a Requerente para responder ao ponto (2) do despacho identificado (“para: informar os autos se mantém interesse na inquirição da testemunha arrolada no pedido de pronúncia arbitral). Prazo: 10 dias.Ao qual a Requerente veio responder em 7 de março informando os autos que “não mantém interesse na inquirição da testemunha arrolada no presente processo”.

 

11. Em 9 de março de 2022, foi proferido o seguinte despacho arbitral: “Uma vez que a Requerente veio (i) responder por escrito à matéria de exceção (alegada pela Requerida na sua Resposta), e (ii) prescindir da prova testemunhal requerida no PPA; ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, o Tribunal: i) Dispensa a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT; ii) Faculta às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, sucessivas, no prazo de 10 dias; e iii) Comunica que decisão final será proferida até ao termo do prazo fixado no art.º 21.º/1 do RJAT (até dia 30 de maio 2022 — 2ª feira), devendo a Requerente, até 10 dias antes do termo de tal prazo, proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente”. Notificado em 10 de março de 2022.

 

12. Em 23 de março de 2022, só a Requerente veio aos autos apresentar alegações.

 

13. Em 25 de maio de 2022, foi proferido despacho arbitral: “Compulsados os autos, verifica-se que a Requerente ainda não juntou aos autos o documento comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente, embora estejamos já a menos de dez dias do termo do prazo para que seja proferida a decisão arbitral (30 de maio de 2022). Assim, Notifique-se a Requerente para proceder à junção aos autos da taxa arbitral subsequente; e Atenta a proximidade do prazo para que seja proferida a decisão arbitral, face à falta de junção da taxa arbitral subsequente, prorroga-se o prazo para que seja proferida a referida decisão por um período de dois meses (com termo em 30 de julho de 2022), nos termos do disposto no artigo 21.º n.º 2 do RJAT”.

    

  1. Saneamento

  

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram‑se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112‑A/2011 de 22 de Março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

    

  1. Matéria de Facto

III.1    Factos Provados

  1. A Requerente assume a forma jurídica de uma sociedade anónima de direito português, com sede e direção efetiva em Portugal;
  2. A Requerente é proprietária de diversos prédios urbanos, designadamente, terrenos para construção, os quais se encontram inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Almancil;
  3. Neste contexto, a Requerente recebeu, em 2020, as notas de liquidação de IMI referentes ao ano de 2019, as quais definiam uma coleta total de imposto a liquidar no montante de Euro 120.010,85;
  4. Apresenta-se infra uma tabela-resumo do apuramento da coleta do IMI que foi liquidado tendo por referência ao ano de 2019, e o qual é objeto do presente pedido de pronúncia arbitral:

 

  1. Os pedidos de avaliação dos imóveis em causa (através da entrega de declaração Modelo 1 do IMI) foram apresentados em 14‑10‑2008;
  2. A Requerente não colocou em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o que significa que o VPT fixado na avaliação desencadeada pela declaração modelo 1 do IMI entregue em 2008 tornou-se definitivo;
  3. No entanto, no âmbito de uma revisão interna às liquidações do IMI que recebeu em anos anteriores, designadamente a liquidação de IMI do ano de 2019, a Requerente verificou que, a mesma estipulou um valor a pagar consideravelmente superior àquele que seria exigido, caso as normas tributárias tivessem sido corretamente aplicadas;
  4. De facto, e de acordo com a análise efetuada à referida liquidação do IMI, a Requerente verificou que a AT utilizou, no que respeita aos terrenos para construção, um VPT consideravelmente superior àquele que, legalmente, deveria ter considerado;
  5. Para o que no caso em apreço importa, a Requerente apresenta infra, uma tabela que inclui o VPT dos terrenos para construção considerados na liquidação de IMI de 2019 – que entende ilegal – bem como a respetiva data em que o mesmo foi determinado:

 

 

  1. Com efeito, e no âmbito da análise efetuada ao seu património imobiliário e correspondentes liquidações de imposto dos últimos anos, a Requerente verificou que o VPT dos referidos terrenos para construção, o qual serviu de base para a liquidação de IMI realizada pela AT – a qual se encontra a ser contestada com base em ilegalidade – foi determinado de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 38.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “ Código do IMI”);
  2. A este respeito, como é habitual no caso de terrenos para construção, no cálculo do VPT não foi considerado o coeficiente de vetustez;
  3. Contudo, foram considerados nas avaliações oportunamente realizadas, os coeficientes de localização, coeficiente de afetação e o coeficiente de qualidade e conforto, os quais não são aplicáveis aos terrenos para construção — a inaplicabilidade dos referidos coeficientes decorre da especificidade dos terrenos para construção face aos demais prédios urbanos;
  4. A Requerente apresentou em 26 de fevereiro de 2021, junto do através dos CTT, reclamação graciosa “contra o ato de liquidação de IMI devido por referência ao ano de 2019, identificado pelo nº 2019 … e datado de 8 de abril de 2020 — objeto de revisão oficiosa por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) — que veio a dar origem à emissão da liquidação de IMI n.º 2019 …, datada de 22 de maio de 2020”;
  5. A Requerida não veio a dar resposta, presumindo-se assim o indeferimento tácito da reclamação graciosa.

    

III.2    Factos não Provados

     

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.

 

    

III.3    Fundamentação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

    

  1. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

A Signatária fez parte de um Tribunal Coletivo que proferiu decisão sobre as mesmas questões jurídicas em causa nos autos, numa situação de facto muito semelhante, pelo que, com respeito pelo princípio da uniformidade na aplicação do Direito, remetemos para o exposto na Decisão Arbitral de 31 de março de 2022 proferida no processo n.º: 538/2021-T:

 

Questões a decidir

 

Nesta sequência, tendo em atenção as pretensões e posições do Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, acima descritas, são as seguintes as questões que o Tribunal Arbitral deve apreciar [sem prejuízo de a solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões – cfr. artigo 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT]:

  1. Se a invocada exceção – incompetência do Tribunal Arbitral – procede;
  2. Se os atos de indeferimento silente dos pedidos de revisão oficiosa apresentados no dia 31.12.2020 devem ser anulados, bem como as subjacentes liquidações de AIMI, por aplicação ilegal dos coeficientes de localização, de afetação e de qualidade e conforto na determinação do VPT dos terrenos para construção;
  3. Se o Requerente tem direito ao reembolso do imposto pago em excesso - € 65.701,48;
  4. Se o Requerente tem direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado e pago.

 

III. 2. Matéria de Direito

 

  1. Quanto à exceção invocada - Incompetência do Tribunal

 

Seguindo de perto o Processo 540/2020-T, deste Centro[1], a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.

 

Refere-se nesta norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

Para além da apreciação direta da legalidade de atos deste tipo, incluem-se ainda nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, competências para apreciar atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, designadamente de atos que decidam reclamações graciosas ou pedidos de revisão oficiosa e recursos hierárquicos, como se depreende das referências expressas que se fazem no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT - que se reporta à impugnação judicial de decisões de reclamações graciosas), aos «atos suscetíveis de impugnação autónoma» e à «decisão do recurso hierárquico».

 

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constituir «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

 

Mas, resulta do teor do artigo 2.º do RJAT que a arbitragem tributária não foi implementada quanto às matérias suscetíveis de serem objeto de ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois é manifesto que não se enquadram em qualquer das situações previstas.

 

De qualquer forma, extrai-se também da referida autorização legislativa, designadamente da alínea a) do n.º 4 do referido artigo 124.º, ao fazer referência aos «atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», que não se pretendeu estender o âmbito da arbitragem tributária à apreciação de atos que, nos termos do CPPT, não podem ser objeto de impugnação judicial. Na verdade aquela expressão tem ínsita a exclusão dos «atos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação» e das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de atos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou ação administrativa (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do artigo 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – “CPTA”) conforme esses atos comportem ou não a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação.

 

Porém, como exceção a esta regra de delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa, poderão considerar-se os casos de impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, independentemente do seu conteúdo, pelo facto de a utilização do processo de impugnação judicial ter sido prevista numa norma especial, que é o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, atualmente revogado, em de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. No mesmo sentido aponta a alínea c) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, ao referir «a impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos atos tributários».

 

No caso em apreço, o Requerente não apresentou uma reclamação graciosa, mas sim um pedido de revisão oficiosa, que não foi apreciado no prazo previsto no artigo 57.º, n.º 5, da LGT, pelo que se formou indeferimento tácito.

 

Nos casos de indeferimento tácito não há, obviamente, apreciação expressa da legalidade do ato de liquidação, mas, tratando-se de uma ficção de ato destinada a assegurar a impugnação contenciosa em meio processual que tem por objeto um ato de liquidação, o meio de impugnação adequado depende do conteúdo ficcionado.

No caso de impugnação administrativa direta de um ato de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do ato de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido, por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito do meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objeto direto o ato de liquidação que se baseia em razões substantivas e não por razões formais.

 

Diferente é a situação nos casos em que se está perante o indeferimento tácito de um recurso hierárquico, subsequente a indeferimento expresso de reclamação graciosa, pois este não tem por objeto direto um ato de liquidação, mas sim um anterior ato de indeferimento da impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa). Se o ato expresso proferido na impugnação administrativa não conheceu da legalidade do ato de liquidação (por ter entendido existirem obstáculos formais, como a ilegitimidade ou a intempestividade), o indeferimento tácito presume-se ter mantido o ato anterior e, por isso, se este não comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação, o indeferimento tácito do recurso hierárquico também não a comporta.

 

Com efeito, nos casos de recurso hierárquico, em que é impugnado um anterior ato expresso, existe já um anterior ato impugnável, pelo que, no caso de indeferimento tácito do recurso hierárquico, é esse anterior ato expresso e não o indeferimento tácito o objeto da impugnação, como resulta do preceituado no artigo 198.º, n.º 4, do CPA, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT: o decurso do prazo para decisão do recurso hierárquico «sem que haja sido tomada uma decisão, confere ao interessado a possibilidade de impugnar contenciosamente o ato do órgão subalterno ou de fazer valer o seu direito ao cumprimento, por aquele órgão, do dever de decisão». Assim, o ato do subalterno, que se presume confirmado tacitamente, no caso de o recurso hierárquico não ser decidido no prazo legal, é o relevante para aferir a idoneidade do meio processual. É neste sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre o indeferimento tácito de recurso hierárquico (à face do artigo 175.º, n.º 3, do CPA de 1991, que, para este efeito, tem alcance substancialmente idêntico ao artigo 198.º, n.º 4, do CPA de 2015), como pode ver-se pelo acórdão de 21-11-2007, processo n.º 0444/07, em que se entendeu: «Nos casos de indeferimento tácito de recurso hierárquico considera-se indeferido o recurso (art. 175.º, n.º 3, do CPA), pelo que, quando a decisão da reclamação graciosa impugnada conheceu da legalidade de ato de liquidação (no caso, deferindo parcialmente a pretensão formulada), aquele indeferimento tácito considera-se também ter por objeto a legalidade do ato de liquidação cuja legalidade foi apreciada na decisão da reclamação.»

 

Assim, nos casos de indeferimento tácito de recurso hierárquico interposto de ato expresso, é à face do conteúdo deste ato recorrido que se afere se foi ou não apreciada a legalidade do ato de liquidação.

 

De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante o indeferimento tácito de pedidos de revisão oficiosa, que têm por objeto direto atos de liquidação, é de considerar que o ato ficcionado conhece da legalidade dos atos de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o processo arbitral.

 

Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:

– de 06-10-2005, processo n.º 01166/04: «o indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se, para efeito das alíneas d) e p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, como um ato que comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação»;

– de 02-02-2005, processo n.º 01171/04, de 08-07-2009, processo n.º 0306/09, de 23-09-2009, processo n.º 0420/09, de 12-11-2009, processo n.º 0681/09: «o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o ato silente atribuído a diretor-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um ato de liquidação de um tributo é a impugnação judicial».

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o ato ficcionado quando ocorre indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral.

 

Nestes termos, improcede a exceção invocada.

 

  1. Questão de fundo

 

O Requerente vem impugnar atos de liquidação de AIMI de 2017, com fundamento em erros dos atos de fixação dos VPTS dos prédios sobre que incidiu o imposto, pelo que é necessário averiguar os seguintes pontos:

 

  1. Questão da possibilidade de impugnar liquidações AIMI com fundamento e vícios de atos de fixação de valores patrimoniais, tendo em conta os argumentos invocados pela Requerida: (i) A questão de saber se o ato que fixou o VPT está consolidado na ordem jurídica; e (ii) A questão de saber se eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo.
  2. A questão de saber se Administração Tributária pode anular todos e quaisquer atos de fixação do VPT, praticados ao longo do tempo, que envolve a questão da admissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação de valores patrimoniais.

 

Cumpre decidir.

 

  1. Questão da possibilidade de impugnar liquidações de AIMI com fundamento e vícios de atos de fixação de valores patrimoniais

 

Antes de mais, é necessário esclarecer se os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de AIMI que os têm como pressupostos.

 

A AT defende globalmente o seguinte:

  1. «O procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral,
  2. Que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher.
  3. E cuja impugnação não abrange os erros ou vícios que eventualmente tenham ocorrido nessa avaliação,
  4. Não tendo Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação,
  5. Ou seja, a errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da 2.ª avaliação que não na posterior liquidação consequente.»

 

Afigura-se correto este entendimento da AT.

 

Na verdade, podemos até acrescentar, e seguindo de perto o Processo 540/2020-T, deste Centro[2], por força do preceituado no artigo 15.º do CIMI a avaliação dos prédios urbanos é direta e, por isso, ela é «suscetível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa direta» (artigo 86.º, n.º 1, da LGT).

 

Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 86.º da LGT, «a impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão».

 

Os termos da impugnação da avaliação direta de valores patrimoniais constam do artigo 134.º do CPPT em que se estabelece que:

– «os atos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de três meses após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade» (n.º 1); e

– «a impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação» (n.º 7).

 

Como decorre do n.º 1 do artigo 134.º, ao fixar um prazo especial de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais e do n.º 7 do mesmo artigo, ao exigir o esgotamento dos meios graciosos, está afastada a possibilidade de essa impugnação se fazer, por via indireta, na sequência da notificação de atos de liquidação que a tenham como pressuposto, como são os de IMI ou de AIMI, sem observância do prazo de impugnação referido e sem esgotamento dos meios de revisão previstos no procedimento de avaliação.

 

No âmbito do AIMI, quando o sujeito passivo não concordar com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (artigo 76.º, n.º 1, do CIMI).

 

Só do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) cabe impugnação judicial, nos termos do CPPT (artigo 77.º, n.º 1 do CIMI).

 

Isto significa que os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos.

 

Assim, o sujeito passivo de AIMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes atos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT.

 

No caso concreto, consultadas as cadernetas prediais constata-se o que a avaliação do prédio foi feita em 16-01-2014, com referência à modelo 1 do IMI entregue em 27-12-2013 e que em 2016 foi atualizado o valor, não tendo sido promovida uma nova avaliação, como a já consolidada em 16-01-2014.

 

Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o ato de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de AIMI, sendo que «o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita» (artigo 113.º do CIMI).

 

A natureza de atos destacáveis que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[3], desde o tempo em que regime idêntico ao do artigo 134.º, n.ºs 1 e 7 do CPPT, previsto nos n.ºs 1 e 6 do artigo 155.º do Código de Processo Tributário de 1991, quer em sede de Sisa, quer de contribuição autárquica, quer de IMI, quer de IMT.

 

Podemos até citar a decisão proferida no Processo 540/2020-T, deste Centro[4]:

 

«Na verdade, este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes ao facto de cada ato de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de atos de liquidação de impostos (liquidações anuais de IMI e eventuais liquidações de IMT) e ser relevante para vários efeitos a nível de IRS (   ), IRC (   ) e Imposto do Selo (   ), o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento.

Por outro lado, a caducidade do direito de ação derivada da inércia do lesado por atos administrativos durante um prazo razoável, é generalizadamente justificada por razões de segurança jurídica, necessária para adequado funcionamento da administração pública, que também é um valor constitucional ínsito no princípio do Estado de Direito democrático e é reconhecida generalizadamente em matéria administrativa e tributária.

O prazo de impugnação de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais é perfeitamente razoável, sendo o prazo geral previsto a lei para a impugnação da generalidade dos atos administrativos com fundamentos geradores de vícios de anulabilidade (artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 102.º do CPPT).

Para além disso, neste caso, a pretensão da Requerente reconduz-se a impugnar, em 2020, atos de avaliação praticados até 2015, muito depois do prazo legal de impugnação de três meses e mesmo depois do decurso do prazo de três anos em que a lei admite a revisão oficiosa de atos de fixação da matéria tributável, com fundamento em injustiça grave ou notória (artigo 78.º, n.º 4 da LGT).

Num Estado de Direito, assente no primado da Lei (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), estando os tribunais arbitrais obrigados a decidir «de acordo com o direito constituído» (artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), o intérprete tem de acatar os ditames legislativos que não colidam qualquer norma de hierarquia superior, não podendo sobrepor ao entendimento legislativo manifestado na lei os critérios classificativos pessoais que ele próprio eventualmente adotaria se, em vez de ser intérprete, fosse o legislador.»

 

Pelo exposto, os alegados vícios dos atos de avaliação invocados pela Requerente, que não foram objeto de impugnação tempestiva autónoma, não podem ser fundamento de anulação da liquidação de AIMI, pelo que improcede necessariamente pedido de pronúncia arbitral quanto ao ano de 2017.

 

Por isso, as liquidações de AIMI não podem ser anuladas com fundamento nos alegados erros nas avaliações dos prédios.

 

  1. Questão da admissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação de valores patrimoniais

 

A possibilidade de revisão oficiosa de atos de avaliação de valores patrimoniais não está prevista no CIMI. Assim, só à face do regime geral da revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, se pode aventar a possibilidade de revisão.

 

Das várias situações de revisão oficiosa previstas no artigo 78.º da LGT, as dos n.ºs 1 e 6 reportam-se a atos de liquidação (como se infere do termo inicial do prazo de quatro anos previsto no n.º 1).

 

Apenas as situações previstas nos seus n.ºs 4 e 5 deste artigo 78.º se reportam a atos de fixação da matéria tributável, categoria a que se reconduzem os atos de fixação de valores patrimoniais. Por isso, só dentro do condicionalismo previsto nestes n.ºs 4 e 5 se pode aventar a possibilidade de revisão oficiosa.

 

No entanto, é manifesto que não foi observado pelo Requerente o prazo de três anos fixado no n.º 4 deste artigo 78.º.

 

Na verdade, todas a liquidações de AIMI se baseiam nos valores inscritos nas respetivas matrizes e fixados por avaliações realizadas em 16-01-2014, com referência à modelo 1 do IMI entregue em 27-12-2013.

Por isso, quando os Requerentes apresentaram os pedidos de revisão oficiosa, em 31/12/2020, há muito que havia expirado o prazo de 3 anos em que podia ser autorizada a revisão dos atos de fixação de valores patrimoniais. E acrescente-se que o mesmo sucederia mesmo se o ato de avaliação a considerar fosse o de 31/12/2016, que é a base da liquidação de AIMI de 2017, em causa nos presentes autos.

 

Pelo exposto, por intempestividade está afastada esta possibilidade de revisão oficiosa”.

 

Conforme exposto supra, a doutrina exposta na Decisão Arbitral Coletiva reproduzida é inteiramente aplicável à situação em causa nos autos — aliás, note-se que o ato de avaliação em causa nos autos tornou-se definitivo no ano de 2008, e a reclamação graciosa em causa nos autos foi apresentada pela Requerente em 26 de fevereiro de 2021, ou seja, quase 15 anos após a emissão do ato de avaliação que deu origem ao VPT que a Reclamante vem defender que é manifestamente ilegal.

 

Assim, tendo em consideração que o prazo para exercício do direito de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT (quer por parte do contribuinte quer por parte da AT) e de 3 anos (ou ainda que se considerasse que o prazo aplicável é o prazo de 4 anos), a Requerida não poderia converter a reclamação graciosa em pedido de revisão oficiosa por aplicação do princípio do aproveitamento do ato por já se encontrar esgotado o prazo legal previsto no artigo 78.º da LGT para a utilização deste último meio de reação. Note-se que também o prazo de 5 anos previsto no atual artigo 168.º do CPA, referenciado pela AT, se encontrava esgotado há muito tempo aquando da apresentação da reclamação graciosa.

 

Acresce ainda que o meio processual adequado para a correção do VPT dos prédios em causa nos autos (para o futuro) é a reclamação da matriz prevista no disposto no artigo 130.º do CIMI — poderá questionar-se se a Requerida deverá (com base na aplicação do princípio da legalidade) instaurar oficiosamente este procedimento, uma vez que com a apresentação da reclamação graciosa teve conhecimento da ilegalidade do VPT determinado.

 

Contudo, nos termos do artigo 130.º n.º 8 do CIMI “Os efeitos das reclamações, bem como o das correcções promovidas pelo chefe do serviço de finanças competente, efectuadas com qualquer dos fundamentos previstos neste artigo, só se produzem na liquidação respeitante ao ano em que for apresentado o pedido ou promovida a rectificação”. Ou seja, os efeitos das reclamações só produziriam efeitos na liquidação respeitante ao ano em que fosse promovida a retificação, ou seja, (se considerarmos a data da apresentação da reclamação graciosa) na liquidação de IMI respeitante ano de 2021 — o que determinaria sempre a improcedência da reclamação graciosa e por conseguinte do presente PPA, uma vez que aquilo que a Requerente pretende é a anulação do ato de liquidação de IMI relativo ao ano de 2019.

   

  1. DECISÃO

   

Termos em que, decide este Tribunal:

  1. Julgar totalmente improcedente o PPA;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

   

  1. VALOR DO PROCESSO

  

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 24.950,89.

   

  1. CUSTAS

  

O montante das custas (a cargo da Requerente) é fixado em EUR 1 530.00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).

  

Notifique-se.

Lisboa, 26 de maio de 2022.

 

Elisabete Flora Louro Martins Cardoso

(Árbitro Singular)



[1] Disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=540%2F2020&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=5428.

[2] Disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=540%2F2020&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=5428.

[3] Conforme podemos consultar nos seguintes processos:  de 30-06-1999, processo n.º 023160; de 02-04-2003, processo n.º 02007/02; de 06-02-2011, processo n.º 037/11; de 19-09-2012, processo n.º 0659/12; de 5-2-2015, processo n.º 08/13; de 13-7-2016, processo n.º 0173/16; de 10-05-2017, processo n.º 0885/16.

[4] Disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=540%2F2020&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=5428.