Sumário: As comissões de gestão cobradas pelas SGOIC aos OIC, por si geridos, estão sujeitas a IS por aplicação da norma de incidência consagrada na verba n.º 17.3.4 da TGIS.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
I.
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Em 16 de novembro de 2021 a contribuinte A...- Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A, NIF ... com sede na Rua..., n.º..., ...-... Lisboa, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo com designação dos árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto na al. a), no n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 19 de novembro de 2021.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) e artigo 6.º, n.º 2, al. a) do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 25.01.2022.
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Após o despacho de 26 de janeiro de 2022, a Requerida apresentou a sua resposta em 28 de fevereiro de 2022 e juntou o processo administrativo (“PA”).
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Por despacho de 29.03.2022, a reunião prevista no art. 18.º do RJAT e a produção de alegações escritas foram dispensadas.
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As partes notificadas para o efeito não se pronunciaram sobre as dispensas.
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Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade e consequente a anulação da decisão final de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2021..., da autoria da Chefe de Divisão de Serviço Central, e da Liquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”), no valor total de 208.166,67 Euros, refletida nas guias n.º... (fevereiro), n.º ... (março), n.º ... (abril), n.º ... (maio), n.º ... (junho), n.º ... (julho), n.º ... (agosto), n.º ... (setembro), n.º ... (outubro), n.º ... (novembro) e n.º ... (dezembro) bem como, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios e das custas processuais.
II.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
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Nos termos da verba n.º 17.3 da TGIS, estão sujeitas a IS, sobre o valor cobrado, as “operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras”, determinando a sub-verba n.º 17.3.4 da TGIS que se incluem neste âmbito “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”, sobre as quais incide IS, à taxa de 4%.
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Da norma de incidência atualmente em vigor resulta, assim, que a sujeição a IS obedece a dois elementos: Elemento subjetivo: A incidência depende de a operação ser realizada por, ou com intermediação de uma das entidades financeiras ali elencadas; e Elemento objetivo: A incidência depende também de estarmos perante comissões ou quaisquer outras contraprestações por serviços financeiros.
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Quanto ao elemento subjetivo, o mesmo verifica-se, apenas e só, quando estejamos perante montantes cobrados por (i) “instituições de crédito”, (ii) “sociedades financeiras”, ou outras entidades a elas legalmente equiparadas, e (iii) quaisquer outras “instituições financeiras”.
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Ora, de acordo com a alínea vi) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, na redação em vigor em 2019, as “sociedades gestoras de fundos de investimento” eram expressamente qualificadas como “sociedades financeiras” ao abrigo do RGICSF.
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A Requerente é uma SGOIC, e, como tal, era qualificada pelas disposições do RGICSF em vigor em 2019 como “sociedade financeira”, motivo pelo qual se concorda que, em 2019, o critério subjetivo da incidência se encontrava preenchido.
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Importa analisar igualmente o elemento objetivo da verba n.º 17.3.4 da TGIS, aí se estabelecendo como critério de incidência que as comissões e outras contraprestações respeitem a “serviços financeiros”, o que entende a Requerente não ser, de todo, o caso das comissões de gestão por si cobradas, conforme fundamenta nos pontos seguintes.
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Em primeira instância, a Requerente entende ser de excluir a hipótese de o conceito de “serviço financeiro” abranger todo e qualquer serviço prestado por uma “instituição de crédito”, “sociedade financeira” ou “instituição financeira”.
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Caso se entendesse que todo e qualquer serviço prestado por uma entidade financeira seria de enquadrar como “serviço financeiro”, então teria sido inútil o legislador incluir um elemento objetivo na norma de incidência, pois, só por si, a questão da incidência ficaria resolvida com o elemento subjetivo (ou seja, por se tratar de uma comissão cobrada por “instituição de crédito”, “sociedade financeira” ou “instituição financeira”).
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Concluir que o elemento objetivo da incidência foi introduzido inutilmente não seria, de todo, compatível com as normas de interpretação da lei previstas no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil (aplicáveis por remissão do artigo 11.º, n.º 1, da LGT), de acordo com as quais o intérprete deverá presumir sempre que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
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De igual modo, entende a Requerente ser de descartar qualquer tese no sentido de se considerarem “serviços financeiros” aqueles que forem prestados no âmbito das atividades permitidas às instituições de crédito e às sociedades financeiras nos termos do RGICSF e/ou da lista anexa à Diretiva Bancária (Diretiva n.º 2013/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013).
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Tal tese seria, inequivocamente, de descartar, porque também essas atividades contêm realidades que, de modo algum, se podem considerar de índole financeira.
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Partindo destas conclusões preliminares, é inevitável recorrer a outros elementos interpretativos para tentar perceber o alcance do conceito de “serviços financeiros” a que faz alusão a norma de incidência contida na verba n.º 17.3.4 da TGIS.
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Assim sendo, ter-se-á necessariamente que recorrer ao único diploma vigente no nosso ordenamento jurídico que define “serviço financeiro”. Art. 2.º do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio
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Esmiuçando este conceito de “serviço financeiro”, no entender da Requerente, não é, de todo, possível enquadrar no mesmo os serviços de gestão, administração e comercialização por si prestados aos OIC.
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Quanto muito, em primeira análise, poder-se-ia tentar enquadrar estes serviços na componente de “serviço de investimento” contida naquele conceito, contudo, nem tal enquadramento se mostra possível, dado que, inequivocamente, essa alusão refere-se às atividades de investimento permitidas às instituições de crédito e às sociedades financeiras nos termos do artigo 199.º-A do RGICSF5, onde claramente não se inclui qualquer atividade de gestão, administração e comercialização de OIC.
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O próprio CAE da Requerente, elemento que a AT sempre usou e usa para concluir sobre o escopo de atividade dos contribuintes, é inequívoco quanto ao facto de a atividade económica em causa englobar a “prestação de serviços auxiliares da atividade financeira, mas sem fornecer serviços financeiros”.
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Em complemento ao que já ficou referido, a Requerente entende que a verba n.º 17.3.4 da TGIS deve ser interpretada restritivamente, em conformidade com as limitações impostas pela Diretiva da Reunião de Capitais, a qual proíbe a aplicação de qualquer tributação indireta (onde se inclui, sem margem para dúvidas, o IS) sobre as operações de reunião de capitais, nas quais entende a Requerente incluírem-se as comissões de gestão suportadas por OIC.
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Começando pelo elemento subjetivo, estabelece o artigo 2.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva, que se considera sociedade de capitais “[q]ualquer sociedade, associação ou pessoa colectiva cujas partes representativas do capital social ou do activo sejam susceptíveis de ser negociadas em bolsa”, que é precisamente o que sucede com as unidades de participação em fundos de investimento.
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Não restam, assim, dúvidas quanto ao enquadramento dos OIC, e em particular dos fundos de investimento, no escopo subjetivo da Diretiva.
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As comissões de gestão cobradas aos OIC terão, necessariamente, que ser consideradas como abrangidas pela exclusão de tributação prevista no artigo 5.º da Diretiva.
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Adicionalmente, a Diretiva estabelece na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º que se encontra proibida a tributação indireta sobre a “colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu”.
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Pretendeu o legislador comunitário proteger da tributação indireta todo e qualquer serviço necessário à reunião de capitais, incluindo expressamente na redação da norma a “colocação em circulação ou negociação” dos títulos, que é exatamente o que acontece quando a sociedade gestora, direta ou indiretamente, promove a comercialização dos títulos, capturando investidores.
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São precisamente estes serviços que viabilizam a reunião de capitais que o legislador quis desonerar fiscalmente, e que estão aqui em causa.
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De resto, não enquadrar as comissões de gestão na exclusão de tributação prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva conduziria a uma dupla tributação injustificada e, pior que isso, violadora do direito comunitário.
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Assim, tem forçosamente que se concluir que a tributação em IS das comissões de gestão, remuneração por excelência dos serviços de gestão, administração e comercialização prestados pelas SGOIC aos OIC, seria, per se, violadora do direito comunitário, nomeadamente por promover “fatores suscetíveis de distorcer as condições de concorrência ou entravar a livre circulação de capitais”, algo que expressamente o considerando 3 da Diretiva assinala como sendo um dos seus propósitos principais.
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Sendo o presente pedido procedente, a Requerente solicita, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º, da LGT, que sejam pagos os respetivos juros indemnizatórios.
II.B. Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:
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A principal atividade de uma instituição financeira há de forçosamente consistir na prestação de “serviços financeiros”.
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Será certamente o caso da atividade de gestão de fundos de investimento, levada a cabo por Sociedades de Gestão de Fundos de Investimento...que são instituições financeiras.
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Desde a reforma do CIS em 19991, com a introdução da redação “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”2 na verba 17.2.4 da TGIS (atual 17.3.4) ficou claro que a intenção do legislador foi alargar a sujeição de Imposto do Selo a quaisquer comissões cobradas ou contraprestações obtidas pela prestação de serviços financeiros pelas entidades financeiras elencadas na norma de incidência, independentemente da denominação que lhes fosse atribuída, que pode ser ou não “comissão”.
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Começando pelo conceito de “serviços financeiros”, presente na alínea c) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio, a atividade de uma SGOIC envolve sempre a prestação de “serviços financeiros” conexos com os OIC que gere, traduzidos, no mínimo, em “serviços de investimento”.
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Subsumindo e confrontando o artigo 66.º do RGOIC, nomeadamente o previsto nos seus n.ºs 1 e 2, com previsto no RGICSF e CVM, forçoso é concluir que as SGOIC prestam serviços materialmente financeiros aos OIC por si geridos, isto é, quer serviços e atividades de investimento, quer serviços auxiliares dos serviços e atividades de investimento, quer serviços de consultoria para investimento.
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Toda a atividade de gestão das SGOIC está na sua essência orientada para o bom desempenho financeiro dos OIC por si geridos, proporcionado aos investidores que neles queiram investir segurança, confiança e um maior retorno possível dos seus investimentos, no estrito cumprimento do quadro legal e regulamentar que lhe é imposto pela Lei e pelas respetivas autoridades de supervisão financeira.
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Gestão essa que, embora possa comportar no seu seio por várias funções, traduz-se, a final, e em substância, na prestação de um serviço materialmente financeiro, reservado a entidades legalmente habilitadas para o seu exercício.
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Finalmente, outro argumento assoma, de natureza sistemática, que aponta para a sujeição a Imposto do Selo das comissões cobradas pela gestão de fundos de investimento.
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É que, estando aquelas comissões isentas da IVA, mal se perceberia que não estivessem sujeitas a Imposto do Selo.
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Não se vê qualquer paralelismo entre a tributação de entradas de capital numa sociedade de capitais, operações de reestruturação ou a emissão de determinados títulos e obrigações, que é aquilo que é vedado pela Diretiva (2008/7/CE do conselho de 12.02.2008), e a tributação das comissões cobradas pela gestão de OIC, que é a realidade aqui sob apreço, realidade essa completamente distinta das operações abrangidas pela Diretiva, que diz respeito aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.
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Como é bom de ver, o Imposto do Selo que a Requerente reputa como violador da legislação comunitária não incide sobre nenhuma das realidades elencadas no artigo 5.º da Diretiva, nomeadamente sobre nenhuma das operações referidas na alínea a) do seu n.º 2.
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De facto, o Imposto do Selo previsto na verba 17.3.4 da TGIS não incide sobre qualquer operação de criação, emissão, admissão, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, mas sim sobre comissões, neste caso de gestão, cobradas por uma “instituição financeira” pela prestação de um serviço financeiro, realidade bem distinta daquelas.
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Não pode, por isso, considerar-se que as comissões de comercialização (acrescidas do devido Imposto do Selo) cobradas pelas instituições de crédito à Requerente, decorrentes dos serviços financeiros por esta contratados para a transmissão das unidades de participação por si geridas, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7/CE.
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De facto, o que foi tributado foi a remuneração de um serviço de intermediação financeira contratado pela Requerente que teve em vista a transmissão das UP dos OIC por si geridos junto dos clientes das instituições de crédito contratadas para o efeito.
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Remuneração (comissão) essa que preenche os pressupostos de incidência objetiva e subjetiva previstos na verba 17.3.4 da TGIS, estando por isso sujeita a Imposto do Selo.
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Inexiste assim qualquer situação de dupla tributação suscetível de violar os ditames da Diretiva.
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Não existe aqui nenhuma situação de dupla tributação, nem nenhuma tributação sobre a mesma realidade, isto é, sobre a prestação do mesmo serviço financeiro, uma vez que estamos perante dois fluxos económicos e de rendimento distintos e paralelos, geradores de factos tributários completamente distintos e com valorações tributárias em sede de Imposto do Selo também elas distintas.
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Mas, ainda que se considerasse que, o que não se concede à luz dos critérios atrás referidos, poderia existir aqui uma sobreposição de imposto, importa referir que não há qualquer obstáculo de cariz jurídico-constitucional à dupla tributação, o que significa na prática que a mesma não só não é ilegal como pode ser até desejada pelo legislador.
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Por tudo o que vem exposto, consideramos que inexiste qualquer desconformidade das [auto]liquidações de Imposto do Selo, incidentes sobre as comissões de gestão cobradas pela Requerente aos OIC por si geridos, com o preceituado na Diretiva 2008/7/CE, não padecendo, por esse motivo, as mesmas de qualquer ilegalidade
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Finalmente, não se verificando, nos presentes autos, em nosso entender, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT.
III – SANEAMENTO
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.
As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo é o próprio.
Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
IV – MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
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A Requerente é uma Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo (doravante “SGOIC”), tendo como atividade principal a gestão, administração e comercialização de Organismos de Investimento Coletivo (doravante “OIC”).
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A função de comercialização das unidades de participação é assegurada pela Requerente de forma indireta, na medida em que recorre à colaboração de intermediários financeiros (mormente, bancos).
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Os intermediários financeiros debitam as comissões de comercialização à Requerente.
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A requerente cobra aos OIC comissões de gestão
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Desde 01.01.2019 a requerente liquidou e pagou Imposto de Selo (doravante apenas IS) ao Estado sobre as comissões de gestão cobradas aos OIC.
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Em 2019 a Requerente apresentou as seguintes liquidações de IS:
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A Requerente apresentou, a 18.02.2021, reclamação graciosa (proc. n.º ...2021...) à AT, no âmbito da qual peticionou o reembolso do IS suportado.
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A 15.08.2021, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento parcial da reclamação graciosa por parte da AT, na parte relativa ao IS de 2019.
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A decisão de indeferimento parcial da reclamação conclui da seguinte forma:
Os factos que constam dos números 1 a 9 são dados como assentes pela análise dos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 133 do pedido de constituição do Tribunal) e pela posição assumida pelas partes em relação à matéria de facto.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos alegados relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal e do mérito da causa foram considerados provados.
V – MATÉRIA DE DIREITO
1. Questões a decidir
A questão essencial submetida à apreciação deste Tribunal é a de aferir se as comissões de gestão cobradas pela Requerente aos fundos de investimento por si geridos devem, ou não, ser sujeitas a IS por aplicação da norma de incidência consagrada na verba n.º 17.3.4 da TGIS.
2.1. Falta de fundamentação
A Requerente invoca a falta de fundamentação da decisão da Reclamação Graciosa proferida pela Requerida dos atos impugnados, alegando para o efeito que a decisão nada refere quanto ao elemento objetivo da norma de incidência.
O direito à fundamentação, relativamente aos atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos tem consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias - Título II da parte 1ª da CRP - art. 268.º, n.º 3 - tendo o respetivo princípio constitucional sido densificado no art. 77.º, nºs. 1 e 2 da LGT.
A fundamentação tem a função de dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do ato ou pela sua impugnação. A fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio ato (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do ato um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação).
A falta ou insuficiência de fundamentação do ato, vício de natureza formal (e não substancial), verifica-se, pois, quando o respetivo ato não exterioriza de modo claro, suficiente e congruente, as razões por que apresenta determinado conteúdo decisório: o ato só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato administrativo (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do ato.
A fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do tipo concreto de cada ato (Cf. Ac. do STA, proc. n.º 0787/08 de 05-03-2009 e Ac. do STA proc. n.º 0399/13.9 BEAVR de 24.04.2019).
No caso em concreto, importa começar por referir que os atos sindicados resultam de autoliquidações efetuadas pela Requerente. A AT tem o dever de fundamentar as suas decisões preferidas nos procedimentos (art. 77.º, n.º 1 da LGT). Ora, os atos impugnados foram efetuados pela Requerente e não pela Requerida.
Mais, analisando a decisão da reclamação graciosa, verificamos que a Requerida indica expressamente que se verifica o elemento de natureza objetivo e subjetivo da norma de incidência.
A requerente discorda dos fundamentos da decisão. Contudo, não se verifica uma omissão de fundamentação, tal como alegado pela Requerente. Na verdade, as divergências existentes entre a AT e a contribuinte são, como resulta do processo, questões de Direito que a contribuinte no seu articulado alega e esgrime sem qualquer limitação.
Desta feita, não nos parece, por esta via, que ocorra aqui qualquer vício de falta de fundamentação.
2.2. Verba 17.3.4 da TGIS
O IS incide sobre os atos previstos na Tabela Geral (art. 1.º do IS). A verba 17.3.4 da TGIS prevê o seguinte:
“17
Operações financeiras:
(…)
17.3
Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras - sobre o valor cobrado:
(…)
17.3.4
Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões. 4%”
Face à norma citada da Tabela Geral, a sujeição a imposto de selo só corre se:
a) a entidade credora for uma instituição de crédito, uma sociedade financeira ou uma instituição financeira – elemento subjetivo;
b) forem cobradas outras comissões ou contraprestações por serviços financeiras – elemento objetivo.
No que diz respeito ao elemento subjetivo, não existe dissenso entre as partes. Ambas concordam que se verifica o elemento subjetivo. Nos termos do art. 6.º, n.º 1, al. b), subalínea VI do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (doravante apenas RGICSF), aplicável ex vi art. 11.º, n.º 2 da LGT, as sociedades gestoras de fundos de investimento eram expressamente qualificadas como sociedades financeiras. A norma citada é aqui aplicável, na versão em vigor até 31.12.2019, por estarem em apreciação factos tributários de 2019.
Quanto ao elemento objetivo, no que diz respeito às normas hermenêuticas devemos recorrer, por remissão do art. 11.º, n.º 1 da LGT, ao previsto no Código Civil. O art. 9.º, n.º 1 do C.C. estabelece o seguinte:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
Assim a letra assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, não poder “ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Também como refere Oliveira Ascensão[1], “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito”
Aplicando o exposto ao caso em análise, importa considerar o elemento literal. A letra da lei utiliza a expressão “outras comissões”. Sendo comissões, o que é inequívoco, resta saber se são devidas por “por serviços financeiros”.
Tal como já se referiu atrás a Requerente é considerada uma instituição financeira (art. 6.º, n.º 1, al. b), subalínea VI do RGICSF).
A atividade da Requerente está regulada no regime Geral dos Organismos de Investimento coletivo (RGOIC). O art. 67.º deste diploma estabelece o seguinte:
“O exercício da atividade de gestão de organismo de investimento coletivo é remunerado através de uma comissão de gestão, podendo esta incluir uma componente variável calculada em função do desempenho do organismo de investimento coletivo, nos termos previstos em regulamento da CMVM.”
As comissões pagas à Requerente são pela atividade global que desenvolve na gestão dos diversos fundos de investimento. O valor da comissão não está decomposto em função de cada ato ou tipo de ato realizado pela Requerente. Essa atividade compreende todas as funções indicadas no art. 66.º, n.º 1 do RGOIC, que tem a seguinte redação:
“Artigo 66.º
Funções das entidades gestoras
1 - No exercício das funções respeitantes à gestão de organismo de investimento coletivo, compete à entidade gestora:
a) Gerir o investimento, praticando os atos e operações necessários à boa concretização da política de investimento, em especial:
i) A gestão do património, incluindo a seleção, aquisição e alienação dos ativos, cumprindo as formalidades necessárias para a sua válida e regular transmissão e o exercício dos direitos relacionados com os mesmos; e
ii) A gestão do risco associado ao investimento, incluindo a sua identificação, avaliação e acompanhamento.
b) Administrar o organismo de investimento coletivo, em especial:
i) Prestar os serviços jurídicos e de contabilidade necessários à gestão dos organismos de investimento coletivo, sem prejuízo da legislação específica aplicável a estas atividades;
ii) Esclarecer e analisar as questões e reclamações dos participantes;
iii) Avaliar a carteira e determinar o valor das unidades de participação e emitir declarações fiscais;
iv) Cumprir e controlar a observância das normas aplicáveis, dos documentos constitutivos dos organismos de investimento coletivo e dos contratos celebrados no âmbito da atividade dos mesmos;
v) Proceder ao registo dos participantes na condição prevista no n.º 4;
vi) Distribuir rendimentos;
vii) Emitir, resgatar ou reembolsar unidades de participação;
viii) Efetuar os procedimentos de liquidação e compensação, incluindo o envio de certificados;
ix) Registar e conservar os documentos.
c) Comercializar as unidades de participação dos organismos de investimento coletivo sob gestão.
2 - No exercício das funções respeitantes à gestão de OIA, à entidade gestora compete ainda, no que respeita aos ativos deste, nomeadamente:
a) Prestar os serviços necessários ao cumprimento das suas obrigações fiduciárias;
b) Administrar imóveis, gerir instalações e controlar e supervisionar o desenvolvimento dos projetos objeto de promoção imobiliária nas suas respetivas fases;
c) Prestar outros serviços relacionados com a gestão do OIA e ativos, incluindo sociedades, em que tenha investido por conta do OIA.”
Desde já, concluímos que é artificioso decompor todas as atividades indicadas na norma atrás citada e verificar se cada uma é, ou não, um serviço financeiro porque a comissão paga não é decomposta de igual forma. A comissão é relativa a todos os serviços, não sendo feita qualquer distinção em função da atividade concretamente desenvolvida. Os serviços indicados no art. 66.º, n.º 1, al. b), subalínea i) não são autónomos dos serviços de administração, são auxiliares do serviço de administração e diretamente dele dependentes. Os serviços da subalínea i) estão enunciados na al. b), o que indica que são realizados no âmbito da administração dos organismos de investimento coletivo. Pelo que, não se pode dissociar as atividades indicadas na subalínea i) da própria atividade de administração, como se fossem autónomas. Esses serviços não são autónomos, estão incluídos nos atos de administração.
Ainda assim, serão estas funções desenvolvidas pela Requerente consideradas serviços financeiros?
Para o efeito devemos concatenar o disposto no art. 66.º do RGOIC com o previsto no ramo do direito donde o conceito de serviço financeiro é proveniente (art. 11.º, n.º 2 da LGT), nomeadamente, do D.L. n.º 95/2006 de 29.05, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (doravante apenas RGICSF) e do Código dos Valores Mobiliários (doravante apenas CVM) para apurar se as atividades indicadas no art. 66.º do RGOIC devem, ou não, ser consideradas serviços financeiros.
Começando pelo previsto pelo D.L. n.º 95/2006 de 29 de maio[2], o art. 2.º, al. c) define assim serviços financeiros:
“c) «Serviços financeiros» qualquer serviço bancário, de crédito, de seguros, de investimento ou de pagamento e os relacionados com a adesão individual a fundos de pensões abertos;”
O diploma citado integra no conceito de serviço financeiro os serviços de investimento. Ora, a Requerente é precisamente um organismo de investimento coletivo, cujas funções, entre outras, passa, por gerir o investimento.
De acordo com o RGOIC, as SGOIC, como a Requerente, enquanto “sociedades financeiras”, podem exercer as atividades previstas nas alíneas e), f), h), i), l), n), q) e s) do n.º 1 do artigo 4.º que têm o seguinte conteúdo:
“1 - Os bancos podem efetuar as operações seguintes:
e) Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo, opções e operações sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobiliários;
f) Participações em emissões e colocações de valores mobiliários e prestação de serviços correlativos;
h) Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários;
i) Gestão e consultoria em gestão de outros patrimónios;
l) Tomada de participações no capital de sociedades;
n) Prestação de informações comerciais;
q) Prestação dos serviços e exercício das atividades de investimento a que se refere
o artigo 199.º-A, não abrangidos pelas alíneas anteriores;
s) Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba.”
O mesmo diploma no art. 199.º-A, com a redação à data dos factos, classificava da seguinte forma os serviços e atividades e investimento:
“Artigo 199.º-A
Definições
Para os efeitos deste título, entende-se por:
1.º Serviços e atividades de investimento:
a) A receção e transmissão, por conta de clientes, de ordens relativas a um ou mais instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
b) A execução de ordens por conta de clientes, relativas a um ou mais instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
c) A negociação por conta própria de um ou mais instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
d) A gestão de carteiras, numa base discricionária e individualizada, no âmbito de mandato conferido pelos clientes, sempre que essas carteiras incluam um ou mais instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
e) A consultoria para investimento em um ou mais instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
f) A tomada firme e a colocação, com ou sem garantia, de instrumentos financeiros referidos no n.º 3;
g) A gestão de sistemas de negociação multilateral ou organizado.
2.º Serviços auxiliares: qualquer dos serviços referidos na secção B, do anexo I da Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014;
3.º Instrumentos financeiros: qualquer dos instrumentos especificados na secção C, do anexo I da Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014;
4.º (Revogado.)
5.º Agente vinculado: uma pessoa singular ou coletiva que, sob a responsabilidade total e incondicional de uma única instituição de crédito ou empresa de investimento em cujo nome atua, promove serviços de investimento e/ou serviços auxiliares de serviços de investimento junto de clientes ou clientes potenciais, recebe e transmite instruções ou ordens de clientes relativamente a serviços de investimento ou instrumentos financeiros, coloca instrumentos financeiros ou presta aconselhamento aos clientes ou clientes potenciais relativamente a esses instrumentos ou serviços financeiros;
6.º Sociedade gestora de fundos de investimento mobiliário, a sociedade cuja atividade habitual consista na gestão de organismos de investimento coletivo;
7.º Sociedade gestora de fundos de investimento imobiliário, a sociedade cuja atividade habitual consista na gestão de organismos de investimento imobiliário.”
As atividades citadas, desenvolvidas pelas sociedades financeiras, são também desenvolvidas pela Requerente à luz do art. 66.º do RGOIC. Pelo que, sendo aqueles serviços considerados financeiros, não podem os serviços prestados pela Requerente deixar de ter a mesma classificação.
Por fim, analisando o previsto no CVM, o art. 289.º estatui o seguinte:
“1 - São atividades de intermediação financeira:
a) Os serviços e atividades de investimento em instrumentos financeiros;
b) Os serviços auxiliares dos serviços e atividades de investimento;
(…)”
Deste modo, mesmo as atividades auxiliares à atividade financeiras são integradas no mesmo conceito. Esta é mais uma razão para afastar a decomposição das atividades da Requerente previstas no art. 66.º do RGOIC.
Os arts. 289.º, 290.º e 294.º do CVM, na versão à data dos factos, previam as seguintes definições:
“Artigo 290.º
Serviços e atividades de investimento
1 - São serviços e atividades de investimento em instrumentos financeiros:
a) A receção e a transmissão de ordens por conta de outrem;
b) A execução de ordens por conta de outrem;
c) A gestão de carteiras por conta de outrem;
d) Os serviços e atividades de:
i) Tomada firme e colocação com garantia; ou
ii) Colocação sem garantia;
e) A negociação por conta própria;
f) A consultoria para investimento;
g) A gestão de sistema de negociação multilateral;
h) A gestão de sistema de negociação organizado.
2 - A receção e transmissão de ordens por conta de outrem inclui a colocação em contacto de dois ou mais investidores com vista à realização de uma operação.
3 - (Revogado.)”
“Artigo 291.º
Serviços auxiliares
São serviços auxiliares dos serviços e atividades de investimento:
a) O registo e o depósito de instrumentos financeiros, bem como os serviços relacionados com a sua guarda, como a gestão de tesouraria ou de garantias, com exceção do serviço de administração de sistema de registo centralizado de valores mobiliários;
b) A concessão de crédito, incluindo o empréstimo de valores mobiliários, para a realização de operações sobre instrumentos financeiros em que intervém a entidade concedente de crédito;
c) A elaboração de estudos de investimento, análise financeira ou outras recomendações genéricas relacionadas com operações em instrumentos financeiros;
d) A consultoria sobre a estrutura de capital, a estratégia industrial e questões conexas, bem como sobre a fusão e a aquisição de empresas;
e) A assistência em oferta pública relativa a valores mobiliários;
f) Os serviços de câmbios ligados à prestação de serviços de investimento;
g) Os serviços e atividades enunciados no n.º 1 do artigo 290.º, quando se relacionem com os ativos subjacentes aos instrumentos financeiros mencionados nas subalíneas ii) e iii) da alínea e) e na alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º”
“Artigo 294.º
Consultoria para investimento e consultoria para investimento independente
1 - Entende-se por consultoria para investimento a prestação de um aconselhamento personalizado a um cliente, na sua qualidade de investidor efetivo ou potencial, quer a pedido deste quer por iniciativa do intermediário financeiro ou consultor para investimento autónomo relativamente a transações respeitantes a valores mobiliários ou a outros instrumentos financeiros.
2 - Para efeitos do número anterior, existe aconselhamento personalizado quando é feita uma recomendação a uma pessoa, na sua qualidade de investidor efetivo ou potencial, que seja apresentada como sendo adequada para essa pessoa ou baseada na ponderação das circunstâncias relativas a essa pessoa, com vista à tomada de uma decisão de investimento.
3 - Uma recomendação não constitui um aconselhamento personalizado, caso seja emitida exclusivamente ao público.
4 - A consultoria para investimento pode ser exercida:
a) Por intermediário financeiro autorizado a exercer essa atividade, relativamente a quaisquer instrumentos financeiros;
b) Por consultores para investimento autónomos, relativamente a valores mobiliários.”
Tendo presente estas definições de serviços e atividades de investimento, serviços auxiliares e de consultoria para o investimento em instrumentos financeiros concluímos que possuem a mesma natureza do que as atividades desenvolvidas pelas SGOIC. Porquanto, também as atividades desenvolvidas pelas SGOIC devem ser consideradas como serviços financeiros.
Deste modo, por recurso ao disposto no D.L. n.º 95/2006 de 29.05, no RGICSF e no CVM, concluímos que as atividades desenvolvidas pelas SGOIC devem ser consideradas serviços financeiros. Porquanto, verifica-se o elemento objetivo previsto na verba 17.3.4 da TGIS, estando as comissões pagas à Requerente, decorrentes das atividades indicadas no art. 66.º do RGOIC, sujeitas a IS.
2.3. Diretiva n.º 2008/7/CE de 12.02.2008
Em complemento, a Requerente alega que sujeição da IS das comissões por si recebidas é contrária ao disposto no art. 5.º, n.º 2, als. a) e b) da Diretiva n.º 2008/7/CE de 12.02.2008.
O art. 5.º, n.º 2, als. a) e b) dispõe que:
“2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indirecto:
a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;
b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.”
Esta diretiva, nos termos do seu artigo 1º, regula a aplicação de impostos indiretos sobre:
a) Entradas de capital em sociedades de capitais;
b) Operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais;
c) Emissão de determinados títulos e obrigações.
O pagamento das comissões efetuado pelas OIC às SGOIC, em virtude das funções exercidas por estas, são operações distintas das entradas de capital em sociedades de capitais, das operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais ou da emissão de determinados títulos e obrigações. O pagamento das comissões não está relacionado com a operação de reunião de capitais.
De facto, não se vê qualquer paralelismo entre a tributação de entradas de capital numa sociedade de capitais, operações de reestruturação ou a emissão de determinados títulos e obrigações, que é aquilo que é vedado pela Diretiva, e a tributação das comissões cobradas pela gestão de OIC, que é a realidade aqui sob apreço, realidade essa completamente distinta das operações abrangidas pela Diretiva, que diz respeito aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.
Mais se refere que, não está em causa qualquer restrição aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros porque trata-se da tributação de um facto tributário, cujos elementos de conexão se verificam todos em território nacional.
Pelo que, a sujeição a imposto de selo das comissões de gestão cobradas pela SGOIC, ora Requerente, aos OIC sob sua gestão, não é vedada pela Diretiva n.º 2008/7/CE de 12.02.2008, nem pelo art. 63.º do TFUE.
Por fim, alega ainda a requerente que a admissão de sujeição a IS das comissões irá conduzir a uma dupla tributação injustificada, uma vez que a Requerente recorre a intermediários financeiros cujas comissões estão sujeitas a IS e depois a Requerente cobra as suas comissões aos OIC, estando também sujeitas a IS.
Invocando os ensinamentos do Prof. Alberto Xavier[3], a dupla tributação económica (que difere da dupla tributação jurídica) verifica-se sempre que o imposto de um Estado seja incidente sobre o mesmo período e rendimento na esfera de dois sujeitos passivos distintos.
Sucede que, em primeiro lugar não se nos afigura que exista dupla tributação económica porque, no caso em apreço, o IS não incide sobre o mesmo rendimento/objeto, são factos tributários distintos.
Em segundo lugar, não existe qualquer obstáculo jurídico à denominada dupla tributação económica. Citando o Ac. do TC n.º 363/01 de 12.07.2001:
“Porém, nem sequer se exigirá aqui a análise da fundamentação do acto de liquidação de contribuição autárquica sob a perspectiva de uma dupla tributação, porque desde logo não existe nos preceitos constitucionais invocados qualquer referência expressa ao fenómeno da dupla tributação e muito menos uma sua proibição expressa.”
O mesmo Tribunal (proc n.º 338/2006 de 18.05.2006), referiu, num outro aresto, que a dupla tributação: “(…) não é, per se, constitucionalmente proibida.”
No proc. n.º 489/02 de 26.11.2002, o TC asseverou: “não se encontra[r] na Constituição da República qualquer explícita proibição de uma «dupla tributação» do rendimento – análoga, por exemplo, à proibição do ne bis in idem penal. Tal consideração só
poderia, pois, relevar (...) de forma indirecta, enquanto tal «dupla tributação» implicasse a violação de uma regra ou princípio constitucional, como, por exemplo, o artigo 104º, nº 1, da Constituição, ou o princípio da proporcionalidade.”
Citando o Prof. Casalta Nabais[4]: “Por sua vez, a dupla tributação económica ou a também designada sobreposição de impostos tem sobretudo a ver com a organização (dos factores) e a estruturação da produção, a implicar a circulação dos rendimentos por diversos sujeitos tributários num mesmo período tributário, como é a situação típica da tributação dos lucros distribuídos, tributados enquanto lucros das sociedades e enquanto dividendos dos sócios.
Ora, em qualquer destas situações de cumulação de impostos, o legislador goza de ampla liberdade, estando apenas impedido, por um lado, que dessa cumulação resulte uma tributação excessiva ou com carácter confiscatório e, por outro lado, de estabelecer duplas tributações que se revelem arbitrárias (…)”.
Não havendo impedimentos legais à dupla tributação económica improcede o vício alegado pela Requerente.
2.4. Juros indemnizatórios
A apreciação da condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios fica prejudicada pela solução atrás alcançada.
Mantendo-se o ato tributário sindicado, em consequência, o pedido de juros indemnizatórios deverá também ser julgado improcedente.
VI – DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2021... e a consequente, anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo no valor total de 208.166,67 Euros, refletida nas guias n.º ... (fevereiro), n.º ... (março), n.º ... (abril), n.º ... (maio), n.º ... (junho), n.º ... (julho), n.º ... (agosto), n.º ... (setembro), n.º ... (outubro), n.º ... (novembro) e n.º ... (dezembro)
b) Manter integralmente o ato tributário objeto deste processo;
c) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo, nos termos infra.
Fixa-se o valor do processo em € 208.166,67, indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de maio de 2022.
Os Árbitros
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(Árbitro Presidente – Guilherme W. d'Oliveira Martins)
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(Árbitro Adjunto - Miguel Patrício)
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(Árbitro Adjunto Relator - André Festas da Silva)
[1] In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 9.ª Ed., Almedina, Lisboa, 1995, p. 382.
[2] Estabelece o regime jurídico aplicável aos contratos à distância relativos a serviços financeiros celebrados com consumidores, transpondo para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores.
[3] Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, 2018, pág. 36.
[4] O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, 4.ª reimpressão, 2015, pág. 511.