DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A... (anteriormente designado B...), Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de identificação fiscal português..., com sede em ... ..., Alemanha, (doravante designado por “Requerente”), à data dos factos representado por C... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede em ..., ......, Alemanha, e atualmente representado por D... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada do Requerente apresentou, em 27-09-2021, um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/201, de 22 de março.
2. O Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2019, no montante global de €18.528,13 (dezoito mil quinhentos e vinte e oito euros e treze cêntimos), bem como da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa previamente apresentada, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.
3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) (adiante designada por “Requerida”).
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 28-09-2021.
5. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do tribunal arbitral singular o Exmo. Senhor Dr. Olívio Mota Amador que, no prazo aplicável, comunicou a aceitação do encargo.
6. A Requerente foi notificada, em 16-11-2021, da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. De acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 07-12-2021.
8. A Requerida foi notificada, em 07-12-2021, através do despacho arbitral, proferido na mesma data, para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
9. A Requerida, em 24-01-2022, apresentou a Resposta e remeteu o Processo Administrativo.
10. O Tribunal Arbitral por despacho, de 24-01-2022, notificou o Requerente para, no prazo de 10 dias, querendo pronunciar-se sobre o pedido de suspensão da instância formulado pela AT na Resposta.
11. O Requerente, em 07-02-2022, pronunciou-se sobre pedido de suspensão da instância formulado pela AT.
12. O Tribunal Arbitral, por despacho de 08-03-2022 determinou: (i) apreciar na decisão final os pedidos de suspensão da instância e de reenvio prejudicial; (ii) dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT); (iii) notificou as partes para apresentação de alegações escritas facultativas, no prazo sucessivo de 15 dias; (iv) indicou o dia 3 de maio para a prolação da decisão arbitral.
13. O Requerente, em 29-03-2022, apresentou as alegações.
14. A Requerida não apresentou alegações.
15. O Tribunal Arbitral através do despacho, de 02-05-2022, alterou a data limite para a prolação da decisão arbitral.
II. SANEAMENTO
16. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.ºs 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O pedido de pronuncia arbitral é tempestivo.
Não foram suscitadas exceções de que cumpra conhecer.
Não se verificam nulidades nem quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
III - Matéria de facto
17. Factos dados como provados
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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O Requerente é uma entidade jurídica de direito alemão (Organismo de Investimento Coletivo), constituída sob a forma contratual, designado de fundo de investimento, com residência fiscal na Alemanha.
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A entidade, referida na alínea anterior, tem por objeto a administração, gestão e investimento do seu património e baseia-se num contrato entre a entidade gestora, os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários.
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O Requerente era, à data dos factos, gerido pelo C... GmbH, e, à data de hoje, é gerido pela D... GmbH, ambas entidades gestoras de fundos de investimento com sede na Alemanha.
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O Requerente não reveste juridicamente a forma de sociedade comercial, não estando, nos termos da legislação alemã aplicável, sujeito a qualquer obrigação de registo no Registo Comercial alemão.
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O Requerente e a entidade gestora estão sujeitos à supervisão do Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (“BaFin”), entidade federal responsável pela supervisão do setor financeiro na Alemanha.
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O Requerente está sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido concedida uma isenção (nos termos da Secção 11 parágrafo 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão – “German Corporate Income Tax Act” – e da secção 11 parágrafo 2 do Código Fiscal de Investimento Alemão – “German Investment Tax Act”).
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O Requerente não tem qualquer estabelecimento estável em Portugal sendo um sujeito passivo de IRC não residente para efeitos fiscais.
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No ano de 2019, o Requerente era detentor de um lote de participações sociais, composto por 220.000 Ações Nominativas da E... SGPS, S.A., sociedade residente em Portugal.
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A entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era o F... GmbH.
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O Requerente, no ano de 2019, na qualidade de acionista da sociedade residente em Portugal, identificada na alínea H) supra, recebeu dividendos no montante total bruto de € 74.112,50 que foram sujeitos a tributação em IRC por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos referidos rendimentos.
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Os dividendos recebidos no decorrer do ano de 2019, referidos na alínea anterior, foram objeto de retenção na fonte a título de IRC, à taxa liberatória de 25%, prevista no artigo 87.º, n.º 4, do Código do IRC (CIRC), e não beneficiaram da isenção prevista no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) para as entidades residentes.
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A retenção na fonte em IRC, referida na alínea anterior, correspondeu à importância de € 18.528,13, nos termos do seguinte quadro:
Ano da Retenção
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Valor Bruto do Dividendo
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Data de Pagamento
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Taxa de Retenção na Fonte
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Guia de pagamento
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Valor da retenção
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2019
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39.325,00
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09.05.2019
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25%
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...
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9.831,25
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2019
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34.787,50
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10.09.2019
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25%
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...
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8.696,88
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TOTAL
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18.528,13
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O Requerente, em 23-02-2021, apresentou no Serviço de Finanças de Lisboa-... reclamação graciosa, que recebeu o n.º ...2021..., para a apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2019, supra identificados.
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Através do ofício n.º ..., datado de 27-04-2021, a Direção de Finanças de Lisboa notificou o Requerente para este exercer o direito de participação na modalidade de audição prévia relativamente ao projeto de decisão da reclamação graciosa não tendo o Requerente exercido o seu direito de audição prévia.
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Por ofício n.º ..., de 25-06-2021, o Requerente foi notificado do despacho do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, proferido ao abrigo de Subdelegação de competências, em 17-06-2021, que indeferiu a reclamação graciosa, identificada na alínea M).
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O Requerente apresentou o pedido de pronuncia arbitral em 27-09-2021.
18. Factos dados como não provados
Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
19. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, atendendo ao disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e no artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada.
Assim, de acordo com o disposto no artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida tendo em conta as questões de Direito suscitadas.
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Na formação da convicção do Tribunal quanto à prova foram ainda relevantes o processo administrativo instrutor bem como os demais documentos juntos aos autos e que o Tribunal analisou criticamente em conjugação com as posições das partes espelhadas nos respetivos articulados e alegações.
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou, em qualquer caso, cuja apreciação seria inútil (vd., artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Matéria de Direito
20. Pedido de suspensão da instância
Impõe-se começar por apreciar o pedido de suspensão da instância formulado pelo Requerente no pedido de pronuncia arbitral.
20.1. O Requerente alegou que estava pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) um pedido de reenvio prejudicial, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre Funcionamento da União Europeia (TFUE), formulado no âmbito do processo n.º 93/2019-T, que corre os seus termos no CAAD. O pedido de reenvio prejudicial deu entrada no TJUE, em 07-10-2019, e corria termos sob o n.º de processo C-545/19 (caso AlliazGI-Fonds Aevn). As questões suscitadas no pedido de reenvio prejudicial eram as seguintes:
”1. O artigo 56.º CE (atual artigo 63.º TFUE), relativo à livre circulação de capitais, ou o artigo 49.º CE (atual artigo 56.º TFUE), relativo à prestação de serviços, opõem-se a um regime fiscal como o que está em causa no litígio no processo principal, constante do artigo 22.º do EBF, que prevê a retenção na fonte de imposto com caráter liberatório sobre os dividendos recebidos de sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal e estabelecidos noutros países da UE, ao mesmo tempo que os OIC constituídos ao abrigo da legislação fiscal portuguesa e residentes fiscais em Portugal podem beneficiar de uma isenção de retenção na fonte sobre tais rendimentos ?
2. Ao prever uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes, uma vez que a estes últimos não lhes é dada qualquer possibilidade de aceder a semelhante isenção?
3. O enquadramento fiscal dos detentores de participações dos OIC será relevante para efeitos de apreciação do caráter discriminatório da legislação portuguesa, tendo presente que esta prevê um tratamento fiscal autónomo e distinto (i)para os OIC (residentes) e (ii) para os respetivos detentores de participações dos OIC ? Ou, tendo presente que o regime fiscal dos OIC residentes não é, de todo, alterado ou afetado pela circunstância de os respetivos participantes serem residentes ou não residentes em Portugal, a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o carater discriminatório da referida regulamentação deve ser realizada apenas por referência à fiscalidade aplicável ao nível do veículo de investimento?
4. Será admissível a diferença de tratamento entre OIC residentes e não residentes em Portugal, tendo em conta que as pessoas singulares ou coletivas residentes em Portugal, que sejam detentoras de participações de OIC (residentes ou não residentes) são, em ambos os casos, igualmente sujeitas (e, em regra, não isentas) a tributação sobre os rendimentos distribuídos pelos OIC, sujeitando os detentores de participações em OIC não residentes a uma fiscalidade mais elevada?
5. Tendo em consideração que a discriminação em análise no presente litígio diz respeito a uma diferença na tributação do rendimento relativamente a dividendos distribuídos pelos OIC residentes aos respetivos detentores de participações nos OIC , é legitimo, para efeitos de análise da comparabilidade da tributação sobre o rendimento considerar outros impostos, taxas ou tributos incorridos no âmbito dos investimentos efetuados pelos OIC ? Em particular, é legitimo e admissível, para efeitos da análise de comparabilidade, considerar o impacto associado a impostos sobre o património sobre despesas ou outros, que não estritamente o imposto sobre o rendimento dos OIC, incluindo eventuais tributações autónomas?”
20.2. O Requerente conclui que o pedido de reenvio prejudicial, supra identificado, versa sobre a mesma questão de Direito, com um substrato fáctico idêntico à do presente processo, e, em consequência, deve ser suspensa a instância nestes autos até ser proferida a decisão do TJUE no reenvio promovido.
20.3. A AT na Resposta propôs também a suspensão do presente processo até decisão final por parte do TJUE das questões suscitadas no processo n.º C-545/19 (vd. n.º 148.º da Resposta).
20.4. No âmbito do citado processo n.º C-545/19, o TJUE proferiu, em 17-03-2022, o acórdão.
20.5. Assim, atendendo ao exposto no n.º anterior, o Tribunal indefere o pedido de suspensão da instância por ter sido entretanto proferido acórdão pelo TJUE no âmbito do referido reenvio prejudicial.
21. Pedido de reenvio a título prejudicial
Subsidiariamente, o Requerente, ao abrigo do artigo 267.º do Tratado, requereu o reenvio prejudicial para o TJUE do presente processo quanto à questão relativa à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia.
21.1. Cumpre sublinhar que o TJUE no ponto 12. das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01)[1], afirma que o reenvio prejudicial para o TJUE não deverá ocorrer quando: (i) já exista jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoca.
21.2. O Tribunal Arbitral, no presente caso, considera que a jurisprudência do TJUE, nomeadamente através do acórdão proferido no processo n.º C-545/19, esclarece, em termos que este Tribunal considera suficientes, as questões suscitadas nos presentes autos arbitrais e, em consequência, permite a este Tribunal decidir da interpretação correta do direito da União Europeia e a sua aplicação à matéria de facto provada. Deste modo, afigura-se que a situação em análise, que já se encontra suficientemente tratada pela jurisprudência do TJUE, não suscita nenhuma dúvida fundada quanto à aplicação da norma comunitária ao caso concreto.
21.3. Nestes termos e pelo exposto, o Tribunal Arbitral conclui pela inexistência de fundamento para solicitar o reenvio prejudicial suscitado a título subsidiário pelo Requerente.
22. A questão decidenda
A questão decidenda nos presentes autos arbitrais consiste em saber se a retenção na fonte de IRC sobre dividendos auferidos por Organismo de Investimento Coletivo (OIC) não residente em Portugal é ilegal por violação do direito comunitário, em especial do princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.
22.1. A posição do Requerente, expressa no pedido pronuncia arbitral e nas alegações, é, em síntese, a seguinte:
i) As distribuições de dividendos efetuadas ao Requerente no ano de 2019 constituem um movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE, pelo que se impõe determinar se a legislação nacional em vigor à data dos factos se mostra contrária a tal normativo por via da introdução de um tratamento discriminatório entre OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa e OIC constituídos ao abrigo de normas de outros Estados Membros da UE.
ii) O Requerente entende que existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa na tributação de dividendos de fonte portuguesa entre os OIC residentes e os OIC não residentes. Esta diferença de tratamento consiste nos rendimentos obtidos em Portugal por OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa estarem isentos de imposto e os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa estarem sujeitos a retenção na fonte de IRC a uma taxa liberatória de 25%.
iii) Um tratamento desfavorável por um Estado-Membro dos dividendos pagos a entidades não residentes face ao tratamento favorável reservado aos dividendos pagos às entidades aí residentes é inequivocamente suscetível de dissuadir as entidades não residentes de realizarem investimentos nesse Estado-Membro e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE (cfr. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 39 e, ainda acórdãos anteriores, designadamente, de 14 de dezembro de 2006, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, C-374/04, parágrafo 70; de 18 de novembro de 2007, Amurta SGPS, C170/05, parágrafo 29; de 18 de junho de 2009, Aberdeen Property Fininvest Alpha, C-303/07, parágrafo 41; de 11 de junho e 2009, Comissão v. Países Baixos, C-521/07, parágrafo 39; de 6 de outubro de 2011, Comissão v. Portugal, C-493/09, parágrafo 32; de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC, S.A., C-338/11 a C-347/11, parágrafos 17 e 18 e de 22 de novembro de 2018, Sofina, Rebelco e Sidro, C-575/17, parágrafo 24).
iv) Uma legislação que prevê a tributação em sede de imposto sobre o rendimento, através de retenção na fonte liberatória, dos dividendos de origem nacional quando são recebidos por OIC residentes noutro Estado Membro, ao mesmo tempo que prevê uma isenção de tributação em sede de imposto sobre o rendimento quando os dividendos de origem nacional são auferidos por OIC residentes nesse mesmo Estado Membro, é discriminatória à luz do princípio da liberdade de circulação de capitais.
v) Neste caso verifica-se que a legislação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis e não se pode justificar por qualquer razão imperiosa de interesse geral. Assim, está em causa uma discriminação proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
vi) A consequência jurídica do princípio do primado do Direito da União Europeia é a não aplicação, em caso de conflito entre leis, das disposições internas contrárias à disposição comunitária bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária.
vii) Na pendência do presente processo e em sede de outro processo arbitral que corre termos junto do CAAD (processo n.º 93/2019-T), foi decidido o reenvio de questões prejudiciais para análise do TJUE, em tudo idênticas às que se colocam nos presentes autos tendo o processo corrido termos junto do TJUE sob o n.º C-545/19. 2. Em 17-03-2022 foi conhecido o acórdão do TJUE no referido processo (caso AllianzGIFonds AEVN) do qual decorre, inapelavelmente, a procedência da presente impugnação, uma vez que a questão material controvertida se mostra integralmente resolvida por aquela instância comunitária.
viii) Em conclusão, o regime previsto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4, e 87.º, n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% e ao prever uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco da decisão do TJUE.
ix) Nestes termos, deve o regime que resulta daqueles normativos ser afastado, por força do princípio do primado, consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP sendo, assim, forçoso concluir que não podem manter-se os atos tributários de retenção na fonte ora sindicados, porque manifestamente ilegais.
22.2. A posição da Requerida, expressa na resposta, pode ser sintetizada no seguinte:
i) Não compete à AT avaliar a conformidade das normas internas com as dos tratados da União (nem com as orientações interpretativas do TJUE), não pode, assim, no âmbito da sua atividade, deixar de aplicar uma norma legal com o fundamento na sua desconformidade com os referidos tratados.
ii) O princípio da não discriminação atende à necessidade de conferir tratamento igual ao que é igual e diferente àquilo que é diferente, na medida dessa diferença. De facto, resulta da jurisprudência do TJUE que determinada norma ou prática pode ser discriminatória, entrando em conflito com o Direito Comunitário, se não for objetivamente justificada. Ora, no caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português.
iii) O Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, veio proceder à reforma do regime de tributação dos OIC, ficando estes sujeitos passivos de IRC excluídos na determinação do seu lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais valias, referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, conforme prevê o n.º 3 do artigo 22.º do EBF a que acresce a isenção das derramas municipal e estadual, conforme o n.º 6 da mencionada norma legal. Contudo paralela a esta opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC. Assim, optou-se por uma tributação na esfera do Imposto do Selo tendo sido aditada, à TGIS, a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.
iv) Por outro lado, está também prevista a tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC e do n.º 8 do artigo 22.º do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.
v) A aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, não pode levar a concluir por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois como se viu embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma em IRC, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos. Assim, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
vi) Efetivamente, a tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira. Também os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso do Requerente, não estão sujeitos a tributação autónoma sobre os dividendos.
vii) Além do mais, o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores. Aliás o Requerente não esclareceu/provou (apenas alegou) se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera do próprio Requerente ou dos investidores.
viii) A jurisprudência do TJUE não autoriza o intérprete a extrair a conclusão, em abstrato, de que a mera existência de uma retenção na fonte de IRC incidindo apenas sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um Fundo de Investimento estabelecido noutro Estado-Membro constitui por si só uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital no espaço europeu, sem que seja feita uma apreciação global do regime fiscal aplicável aos Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos em Portugal.
ix) O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância, conforme supra referido. Portanto, em lugar de se acentuar a discriminação existente no Estado de residência fiscal do credor dos rendimentos, será mais acertado falar em diferentes modalidades de tributação que até pode redundar, em certos casos, numa carga fiscal menor dos dividendos auferidos em Portugal por Fundos de Investimento constituídos ao abrigo da legislação de outros Estados-Membros da UE. Assim, não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em desconformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.
22.3. Cumpre decidir procedendo, em primeiro lugar, ao enquadramento legal da questão decidenda.
O artigo 22.º do EBF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro[2], na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:
“Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
(…)”
As normas do CIRC que importa atender no presente caso são as seguintes:
“Artigo 3.º
Base do imposto
1 - O IRC incide sobre:
(…)
d) Os rendimentos das diversas categorias, consideradas para efeitos de IRS e, bem assim, os incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito por entidades mencionadas na alínea c) do n.º 1 do artigo anterior que não possuam estabelecimento estável ou que, possuindo-o, não lhe sejam imputáveis.
(…)”
“Artigo 4.º
Extensão da obrigação de imposto
(…)
2 - As pessoas coletivas e outras entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português ficam sujeitas a IRC apenas quanto aos rendimentos nele obtidos.”
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável aí situado e, bem assim, os que, não se encontrando nessas condições, a seguir se indicam:
(…)
c) Rendimentos a seguir mencionados cujo devedor tenha residência, sede ou direção efetiva em território português ou cujo pagamento seja imputável a um estabelecimento estável nele situado:
(…)
3) Outros rendimentos de aplicação de capitais;
(…)”
“Artigo 87.º
Taxas
(…)
4 - Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25%, (…).”
“Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma
(…)
11 - São tributados autonomamente, à taxa de 23 %, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.
(…)”
“Artigo 94.º
Retenção na fonte
1 - O IRC é objeto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português:
(...)
c) Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à atividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade;
(…)”
3 - As retenções na fonte têm a natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm carácter definitivo:
b) Quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis.
(…)
5 - Excetuam-se do disposto no número anterior as retenções que, nos termos do n.º 3, tenham carácter definitivo, em que são aplicáveis as correspondentes taxas previstas no artigo 87.º
6 - A obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC ocorre na data que estiver estabelecida para obrigação idêntica no Código do IRS ou, na sua falta, na data da colocação à disposição dos rendimentos, devendo as importâncias retidas ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas e essa entrega ser feita nos termos estabelecidos no Código do IRS ou em legislação complementar.
(…)”
Relativamente à tributação dos OIC em Imposto do Selo a Tabela Geral do Imposto do Selo estabelece o seguinte:
“29 - Valor líquido global dos organismos de investimento coletivo abrangidos pelo artigo 22.º do EBF:
29.1 - Organismos de investimento coletivo que invistam, exclusivamente, em instrumentos do mercado monetário e depósitos - sobre o referido valor, por cada trimestre: 0,0025 %
29.2 - Outros organismos de investimento coletivo - sobre o referido valor, por cada trimestre: 0,0125 %.”.
22.4. Como se referiu supra (vd., 20.4.) na pendência do presente processo, o TJUE decidiu o reenvio de questões prejudiciais suscitadas em sede de outro processo arbitral do CAAD (processo n.º 93/2019-T) e que são em tudo idênticas às que se colocam nos presentes autos. O acórdão do TJUE de 17 de março de 2022 (processo n.º C-545/19 - Caso AllianzGI-Fonds AEVN) estabelece o seguinte:
“33 Uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal tem, assim, por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar-se que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais (v. por analogia, Acordão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 35 e 36). (…)
36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (…)
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (…)
40 Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (…)
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (…).”
O TJUE no citado acórdão considera, quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, que “(…) o critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes” (vd., n.º 73). Assim, o TJUE conclui que, “(…) no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis” (vd., n.º 74).
Relativamente à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o TJUE afirma que “(…) é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (vd., n.º 78). No caso em análise o TJUE conclui que:
“ 80 Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.º 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.
81 A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.”
Em conclusão, o TJUE fixou a doutrina nos seguintes termos:
“O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
22.5. Relativamente às consequências do acórdão do TJUE, supra citado, no presente caso, o Tribunal Arbitral subscreve a posição adotada pela Decisão Arbitral, de 18 de maio de 2022, proferida no processo n.º 817/2021-T, desenvolvida nos seguintes termos:
“O artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento mobiliário que constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional, mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.
Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.
Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).
De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 1 de julho de 2015, Processo n.º 0188/15).”
22.6. Atendendo á primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional e à jurisprudência do TJUE, em especial ao acórdão proferido no Processo n.º C-545/19, cabe ao presente Tribunal arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respetiva ilegalidade. Assim, os atos de retenção na fonte de IRC impugnados e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa são ilegais por erro nos pressupostos de direito ao fundamentarem-se em normas legais que violam o princípio da liberdade de circulação de capitais, consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.
23. Da restituição das quantias pagas e dos juros indemnizatórios
O Requerente formula o pedido de restituição das quantias arrecadadas pela AT, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
23.1. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que corresponde ao preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, nos termos do qual a “… administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Assim, para efeitos da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação dos atos tributários supra identificados, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
23.2. De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto no artigo 43.º da LGT e no artigo 61.º do CPPT.
A aplicação, pela AT, da isenção e das retenções resultantes, respetivamente, do artigo 22.º do EBF e dos artigos 94.º n.º 1 alínea c), n.º 3 alínea b), e 87.º, n.º 4, do CIRC, criaram uma diferenciação entre fundos de investimento residentes e não residentes, em violação da liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º da TFUE. Na sua atuação, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como foi claramente referido pelo TJUE. Assim, neste caso a procedência do pedido anulatório implica o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT, a partir do trânsito em julgado da sentença.
V - Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Julgar improcedente o pedido do Requerente para a suspensão da instância fundada em pedido de reenvio prejudicial pendente no TJUE;
-
Julgar improcedente o pedido subsidiário do Requerente de reenvio prejudicial de interpretação previsto no artigo 267.º do TFUE;
-
Julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral e anular os atos tributários de retenção na fonte de IRC suportados em Portugal sobre os dividendos distribuídos ao Requerente no ano de 2019, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida;
-
Condenar a Requerida à restituição da quantia de €18.528,13 relativa às retenções na fonte de IRC, referidas na alínea anterior, e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT;
-
Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo no montante abaixo indicado.
VI - Valor do Processo
Atendendo ao disposto nos artigos 32.º do CPTA, 306.º, n.º 2, do Código do Processo Civil e 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) fixa-se o valor do processo em €18.528,13 (dezoito mil quinhentos e vinte e oito euros e treze cêntimos).
VII - Custas
O montante das custas é fixado em € 1.224.00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerida nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, bem como do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do RCPAT,
Notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 24 de maio de 2022
O Árbitro
(Olívio Mota Amador)
[1] Publicada no Jornal Oficial da União Europeia, C 330, de 6 de novembro de 2012.
[2] Que entrou em vigor a partir de 1 de julho de 2015.