SUMÁRIO:
1. O facto tributário correspondente ao pagamento do adicional de solidariedade sobre o sector bancário relativo ao primeiro semestre de 2020 é o apuramento semestral dos saldos finais de cada mês desse semestre, apuramento apenas contabilístico no final desse semestre e tinha de ser pago até 15 de Dezembro de 2020.
2. Como o adicional de solidariedade sobre o sector bancário só foi criado pela Lei nº. 27-A/2020, de 24 de Julho, a sua aplicação aos saldos apurados contabilisticamente no primeiro semestre de 2020, sem qualquer outro acto ou facto do sujeito passivo, estamos perante uma aplicação retroactiva dessa lei fiscal, por tributar factos já passados à data da sua publicação, em violação do artº. 103º., nº. 3 da Constituição, pelo que são inconstitucionais as normas do artº. 18º e 21º., nº. 1, al. a) da referida lei na parte em que tributam dessa forma os saldos passivos do primeiro semestre de 2020
Decisão Arbitral
O árbitro Dr. José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 3 de Novembro de 2021, profere a presente decisão arbitral, nos termos seguintes:
1. Relatório
A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, com o número único de pessoa coletiva ... e com morada na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa veio requerer a constituição de tribunal arbitral e a respectiva pronúncia arbitral pretendendo a anulação do indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada e mediatamente do acto tributário resultante da sua própria "autoliquidação" do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB), com a base apurada no 1º. Semestre de 2020, para o que invoca os seguintes fundamentos:
- são nulas as normas que preveem a cobrança do ASSB por violação da Lei de Enquadramento Orçamental, por, por um lado, haver violação do principio geral da não consignação de receitas, nos termos do artigo 16º., n.º 1 da LEO, mais precisamente o artigo 9.º do regime do ASSB, onde se prevê que a receita do ASSB é inteiramente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social e, por outro lado, por violação do princípio da especificação orçamental, previsto no artigo 105º., n.º 1 e 3 da CRP e no artigo 17º.. da LEO, em virtude de não haver qualquer referência específica ao ASSB nos mapas e desenvolvimentos orçamentais do Orçamento Suplementar para 2020, que instituiu o ASSB.
- as normas do regime do ASSB são violadoras do princípio da não retroatividade da lei fiscal, em virtude da tributação dos saldos passivos relativos ao primeiro semestre de 2020, tendo em conta que o regime do ASSB apenas foi publicado em Diário da República no dia 24 de julho de 2020.
- o ASSB constitui ainda uma violação do princípio constitucional da igualdade, porque, se for qualificado como uma contribuição, não identifica quaisquer prestações que se possam ter por provocadas pelos respetivos sujeitos passivos ou que por eles sejam aproveitadas e que o ASSB possa visar compensar, mas se for qualificado como imposto, então apenas visa um único sector de contribuintes para suportar uma despesa, de que esse sector apenas é responsável em parte.
- o ASSB constitui manifesta violação do Direito da União Europeia, em particular a violação do direito de estabelecimento, previsto no artigo 49º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, atento o facto de, no caso das instituições de créditos residentes, o ASSB incide sobre o seu passivo "líquido dos capitais próprios”, ao passo que, no que relativamente às sucursais na UE, o ASSB incide sobre o seu passivo "bruto", sem qualquer dedução relacionada com capitais próprios, colocando as últimas em situação desfavorável face às primeiras.
- Por fim, invoca a Diretiva 2014/59/EU, transposta pela Lei nº 230-A/2015, de 26 de março, que estabelece um enquadramento harmonizado a nível europeu para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento, referindo que o ASSB consubstancia uma contribuição sui generis, não prevista na diretiva, com a consequente violação do regime de contribuições criadas pela mesma directiva.
A Requerente pede ainda o reembolso do imposto pago, acrescido de juros compensatórios, por entender que a liquidação que pretende ver anulada apenas pode ser atribuída a erro dos serviços da AT.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 25-08-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 15-10-2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 3-11-2021.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, para além de entender que se não justifica a produção de qualquer prova testemunhal.
2. Despacho saneador:
Por despacho de 11-01-2022, foi a requerente notificada para em 10 dias informar os pontos concretos por referência aos artigos do requerimento inicial e da resposta sobre as quais pretendia a realização das diligências de prova por si requeridas, o que fez por requerimento apresentado em 25-01-2022.
Por despacho de 4-2--2022, foi analisado o requerimento do sujeito passivo e considerando que eram indicados como factos a provar ou factos notórios ou factos que são de conhecimento oficioso por serem de carácter geral ou factos provados por documentos juntos pela demandante ou pelo processo instrutor, chegando-se ao ponto de se indicar como carecidos de prova acórdãos do TJUE, foi decidido que não existia controvérsia relativamente aos factos essenciais para a boa decisão da causa, em especial os indicados pelo demandante, entendendo-se ser suficiente para a prova dos mesmos factos, a prova documental junta e não impugnada em conjugação com a posição de cada uma das partes assumida nos respetivos articulados.
Foi assim dispensada a reunião a que se refere o artigo 18º. do RJAT e, entendendo-se que não havia diligências de prova a realizar, foram as partes notificadas para apresentar alegações escritas no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, tendo alegado tanto o requerente, como a requerida.
Por outro lado, entendeu-se que o presente processo não necessita de uma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e que não há excepções ou questões prévias a apreciar nesta fase nem aparente necessidade de correção de peças processuais.
Foi fixado para prolação e notificação da decisão final o prazo de 45 dias após o termo do prazo de alegações, prazo este prorrogado por mais dois meses, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, por despacho de 8-4-2022.
Mais foi notificada a Requerente para dar oportuno cumprimento ao disposto no artigo 4º., nº. 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ou seja, pagamento, antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa arbitral.
Além disso, determinou-se a apresentação por ambas as partes das petição e resposta em formato editável (Word) à luz do princípio da cooperação - cfr artigo 7º, do CPC -, com vista a facilitar e abreviar a tarefa de elaboração do acórdão final, designadamente no que respeita à matéria de facto.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são as legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades, que sejam de conhecimento oficioso.
3. Matéria de facto:
Considerando os articulados das partes, os documentos juntos e o processo administrativo, são considerados provados os factos que a seguir se indicam.
3.1 Factos provados:
Mostram os autos o seguinte:
a) A Requerente é a sucursal em Portugal do B..., SA, (doravante apenas «B... »), instituição de crédito de direito luxemburguês, com sede e efetiva administração no Luxemburgo. (acordo das partes)
b) Desde 2013 que o B... assegura a sua presença em Portugal através da Requerente. (acordo das partes)
c) Em 11 de Dezembro de 2020, a requerente procedeu à autoliquidação do ASSB, mediante a submissão da declaração Modelo 57 (documento 2 junto pela requerente)
d) Em 15 de Dezembro de 2020, a requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado (documento 3 junto pela requerente).
e) A autoliquidação referida em c) teve por base a média dos saldos finais do passivo de cada mês relativo às contas do primeiro semestre de 2020 e os dados contabilísticos existentes até 11 de dezembro de 2020, no montante de €9.930.684,38. (balanço/balancete junto como documento n.º 4 pela requerente).
f) Na autoliquidação referida em c) foi apurado como montante a pagar de ASSB referente ao ano de 2020 o valor de € 1.986,14, o qual foi pago pela requerente (documento 3 junto pela requerente).
g) A Requerente apresentou, em 15/3/2021, reclamação graciosa, cujo indeferimento lhe comunicado em 25/5/2021. (processo administrativo)
h) O presente pedido de pronuncia arbitral foi apresentado em 25 de Agosto de 2021.
3.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto
Não existem outros factos não provados com interesse para a decisão deste processo.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela requerente e no que consta do processo administrativo e também nas alíneas referidas com base no acordo das partes.
4. Matéria de direito
Na petição inicial, a requerente coloca a alegação de vícios, não directamente à liquidação efectuada, que aliás, foi uma autoliquidação, mas aponta baterias ao diploma que criou o Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB), criado pela Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020) e devidamente desenvolvido no Anexo VI da citada lei.
É a este Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB) que a requerente aponta os seguintes vícios:
- Nulidade do diploma que prevê a cobrança em geral do ASSB por violação da Lei de Enquadramento Orçamental, por haver violação do princípio geral da não consignação de receitas, nos termos do artigo 16º., n.º 1 da LEO e por violação do princípio da especificação orçamental, previsto no artigo 105º., n.º 1 e 3 da CRP e no artigo 17º.. da LEO;
- Inconstitucionalidade do mesmo diploma por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal relativamente à liquidação impugnada que teve por base o 1º. Semestre de 2020.
- Inconstitucionalidade ainda das normas legais do ASSB por violação do princípio constitucional da igualdade;
- Ilegalidade do diploma que aprovou o ASSB por violação do Direito da União Europeia, em particular a violação do direito de estabelecimento, previsto no artigo 49º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia.
- Ilegalidade, por fim, por violação do determinado na Diretiva 2014/59/EU, transposta pela Lei nº 230-A/2015, de 26 de março.
2. Porque todos os vícios apontados pela requerente se dirigem ao diploma que criou o ASSB, não há que ter em conta a doutrina do artº. 124.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), subsidiariamente aplicável à arbitragem tributária ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT, devendo seguir-se na apreciação do presente pedido de pronúncia arbitral a ordem estabelecida pela requerente.
3. Porém, antes da entrarmos na análise de cada um dos fundamentos da impugnação da requerente, cabe aqui também referir que o ASSB é naturalmente um imposto, pois que imposto é uma prestação pecuniária, unilateral, definitiva e coactiva, exigida a quem seja detentor da capacidade contributiva definida na lei, a favor de entidades que exerçam funções ou tarefas públicas para a realização dessas funções, não tendo carácter sancionatório, nem correspondendo a qualquer contraprestação a favor do contribuinte.[1]
Analisando o Anexo VI à Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020), que contém as condições de incidência, objectiva e subjectiva, a forma de liquidação, com a definição das taxas aplicáveis, e de cobrança do adicional de solidariedade sobre o setor bancário., criado pelo artº. 18º. Da citada Lei, dúvidas não restam que se trata de um verdadeiro imposto.
Já a sua qualificação como imposto indirecto que a AT entende ser a deste ASSB, embora tal não seja relevante para os presentes autos, entendemos que tem mais características de imposto directo, segundo os diferentes critérios expostos pelo Prof. José Casalta Nabais[2].
De qualquer modo, não é critério para a qualificação como imposto indirecto, o referido pela AT no artº. 11º. da sua resposta, pois que a determinação da capacidade contributiva e a liquidação do imposto a pagar não tem directamente a ver com o valor de não tributação em IVA de que cada contribuinte beneficie.
Certo é que, em qualquer caso, se trata de um imposto autónomo da Contribuição do Sector Bancário (CSB), não obstante a aparente coincidência de base de incidência objectiva e subjectiva, porque visa a satisfação de necessidades públicas próprias e tem regulamentação própria, apesar de designado de “adicional”, mas sem referência a qualquer outro imposto que de que seja assumido como adicional.
Passemos então à análise dos fundamentos do presente pedido de pronúncia arbitral.
4.1. Questão
Entende a requerente que existe nulidade das normas do diploma que prevê a cobrança em geral do ASSB por violação da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), mais exactamente por haver violação do princípio geral da não consignação de receitas, nos termos do artigo 16º., n.º 1 da LEO e por violação do princípio da especificação orçamental, previsto no artigo 105º., n.º 1 e 3 da CRP e no artigo 17º.. da LEO.
Entende a requerente que a LEO assume a regulação, não só da elaboração do Orçamento do Estado, mas de toda a sua execução (artigo 1.°, al. b) da LEO), e acima de tudo, assume-me como parâmetro das leis do orçamento: “o disposto na presente lei prevalece sobre todas as normas que estabeleçam regimes orçamentais particulares que a contrariem.’’ – cfr. artigo 4.° da LEO.
Tal corresponde ao seu enquadramento constitucional resultante do artº. 112.°, n.° 3 da Constituição, onde se determina que têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressupostos normativos necessários de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas, como é, no caso concreto, o artigo 106.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), que determina, no seu n.º 1, que a lei do orçamento é elaborada, organizada, votada e executada, anualmente, de acordo com a respetiva lei de enquadramento, que incluirá o regime atinente à elaboração e execução dos orçamentos dos fundos e serviços autónomos.
Daí que, no entender da requerente, exista violação do princípio da não-consignação de receitas, pela alocação da cobrança do ASSB ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social («FEFSS»), entendendo que o princípio geral da não-consignação de receitas, plasmado no artigo 16.°, n.° 1 da LEO, determina que “não pode afetar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas’’, como acontece com o artº. 9º. do Anexo VI.
Além disso, segundo a requerente, também existe violação do princípio da especificação orçamental, constante do artigo 105.°, n. ° 1 e 3, estando também previsto, em legislação ordinária, na LEO (Lei n.° 151/2015, de 11 de setembro), mais concretamente no artigo 17°, segundo o qual deve ser feita uma discriminação concreta e individualizada das receitas e das despesas do Estado em sede de Orçamento.
Estas duas omissões determinam, segundo a requerente, a nulidade das normas que criam o ASSB já referidas, ou seja, do artº. 18º. Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020) e das normas do respectivo Anexo VI.
Por sua vez, a AT, depois de expender diversas considerações sobre a forma de financiamento da Segurança Social e sobre as razões que determinaram a aprovação do ASSB, chama a atenção para a excepção ao princípio da não consignação de receitas constante da al. c) do nº. 2 da LEO que permite a consignação de receitas ao financiamento da segurança social, aliás de acordo com o n.º 1 e n.° 5 do artigo 90° da Lei de Bases da Segurança Social, Lei n.° 4/2007, de 16 de janeiro, pelo que o disposto no artº. 9º. do anexo VI Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020) se enquadra na exceção ao princípio da não consignação de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas, contemplada na alínea c) do artigo 16. ° da LEO.
Quanto ao segundo argumento – falta de especificação orçamental -, entende a AT assinalar que a estimativa de receita do ASSB foi incluída no Mapa X – Receitas da Segurança Social por Classificação Económica, rubrica 06 – Transferências correntes – Estado, não podendo ser mais que uma estimativa, face ao facto de a Lei do Orçamento Suplementar para 2020 cumprir o determinado no artº. 105º., nº. 1 da Constituição da República, segundo qual o orçamento da segurança social faz parte do orçamento do Estado.
Acresce ainda que a Lei do Orçamento é, em geral, a autorização anual para cobrança de impostos, mesmo daqueles que anteriormente tenham sido criados e ainda dos que ela própria cria.
Defende, por isso, a improcedência desta arguição de nulidade da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020).
Cumpre decidir.
E decidindo este argumento, é manifesto que a razão está com a requerida.
Com efeito, tem de se ter em conta o artº. 16º. da Lei do Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei n.° 151/2015, de 11 de Setembro, a qual determina, no seu artº. 16º.:
Artigo 16.º
Não consignação
1 - Não pode afectar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) As receitas das reprivatizações;
b) As receitas relativas aos recursos próprios comunitários tradicionais;
c) As receitas afetas ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas, nos termos legais;
d) As receitas que correspondam a transferências provenientes da União Europeia e de organizações internacionais;
e) As receitas provenientes de subsídios, donativos e legados de particulares, que, por vontade destes, devam ser afetados à cobertura de determinadas despesas;
f) As receitas que sejam, por razão especial, afetas a determinadas despesas por expressa estatuição legal ou contratual.
3 - As normas que, nos termos da alínea f) do número anterior, consignem receitas a determinadas despesas têm caráter excecional e temporário
Ou seja, o legislador de depois de definir o princípio geral da não afectação do produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas, define as excepções a este princípio, nas quais se incluem as receitas afectas ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas, nos termos legais. Deste modo, o disposto no artº. 9º. do anexo VI da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020) está absolutamente conforme com a Lei do Enquadramento Orçamental.
Além disso, quanto à alegada omissão da falta de especificação orçamental, como bem refere a requerida, está previsto o valor que é computado para a receita do ASSB no Mapa X – Receitas da Segurança Social por Classificação Económica, rubrica 06 – Transferências correntes – Estado, não podendo ser mais que uma estimativa, para que a Lei do Orçamento Suplementar para 2020 cumpra o determinado no artº. 105º., nº. 1 da Constituição da República, segundo qual o orçamento da segurança social faz parte do orçamento do Estado. Igualmente com a aprovação do artº. 18º. dessa lei de Orçamento suplementar, existe a autorização para cobrança do ASSB.
Improcede assim a arguição de nulidade das normas que prevêem a cobrança do ASSB com fundamento em violação da Lei de Enquadramento Orçamental, quer por violação do princípio geral da não consignação de receitas, quer por violação do princípio da especificação orçamental.
4.2. Questão
Entrando na questão da inconstitucionalidade da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho, que aprovou o Orçamento suplementar para 2020, no que respeita ao ASSB, por alegada violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal relativamente à liquidação impugnada que teve por base o 1º. Semestre de 2020, alega a requerente que, nos termos do artº. 103º., nº. 3 da CRP, o princípio da proibição da retroatividade fiscal, vertido na norma constitucional implica assim que a Lei Fiscal não pode dispor para o passado, com efeitos retroactivos, ou seja, não pode prever a tributação de atos praticados quando a mesma ainda tributação ainda não tinha sido aprovada, publicada e entrado em vigor, existindo retroatividade quando ocorre a aplicação de uma lei fiscal nova a factos tributários anteriores à sua entrada em vigor. E isto, porque, no entender da requerente, a lei que aprova o ASSB (Lei n.º 27.º-A/2020 de 24 de julho – artigo 21.º) consagrou uma série de “Disposições transitórias e finais” em cujos termos a liquidação e pagamento do ASSB de 2020 terá por referência as contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do ASSB autoliquidado em 2020, sendo que as contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do ASSB só será autoliquidado em 2021.
É que o regime do ASSB entra em vigor apenas no segundo semestre de 2020, tendo sido publicado em Diário da República no dia 24 de julho de 2020, sendo o respectivo facto tributário de natureza complexa, ou seja, a média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre deste ano, pelo que embora entre em vigor apenas no segundo semestre de 2020, prevê a tributação dos saldos do passivo de janeiro, fevereiro, março abril, maio e
junho de 2020 ou sobre o saldo no final de cada um destes meses, refletido na média do primeiro semestre.
Além disso, no que respeita ao 1º. Semestre de 2020, apenas é tributado o “saldo” registado mensalmente, sendo calculado para efeitos de autoliquidação do ASSB por meio de mero cálculo contabilístico feito pela requerente referente ao 1.º semestre de 2020.
Por sua vez, a AT entende que resulta do regime jurídico que criou o ASSB (art. 18.º da Lei n.º 27-A/2020), mais precisamente do art. 3.º e do art. 4.º, que a base de incidência do ASSB “é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”, pelo que o que releva é o momento da aprovação das contas e não o do encerramento do exercício.
Em abono desta sua tese, cita os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 310/2012, proc. n.º 150/12, de 20-06-2012 e n.º 268/2021, sem indicar o processo a que se refere e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-06-2019, proferido no Processo n.º 02340/13/0BELRS (0683/17), que embora tenha como objeto a Contribuição sobre o Sector Bancário, é inteiramente transponível para o ASSB que, com aquela partilha a base de incidência.
Por isso, é que a norma de incidência objetiva da CSB se reporta literalmente ao apuramento e à aprovação do passivo a realizar pelos próprios sujeitos passivos e não por quaisquer terceiros.
Deste modo, entende a AT, que é forçoso concluir que, no momento em que entrou em vigor o regime do ASSB, ainda não tinha ocorrido o facto que determina o pagamento do imposto, pelo que não se verifica a violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal (artº. 103º n.º 3 da CRP), nem do princípio da proteção da confiança, não se podendo assacar ao acto impugnado o vício de inconstitucionalidade do ASSB.
Cumpre decidir.
Diga-se, desde já, que também é nosso entendimento, que a liquidação de qualquer imposto, nomeadamente do Contribuição sobre o Sector Bancário, ocorrida com base em aprovação de contas feita num ano, relativamente às contas do ano anterior, quando a lei que criou o imposto entrou em vigor em 1 de Janeiro do ano seguinte ao do exercício, mas anterior à deliberação, não envolve qualquer aplicação retroactiva de lei fiscal.
Por isso, concordamos com a jurisprudência citada pela AT, nomeadamente com o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-06-2019, proferido no Processo n.º 02340/13/0BELRS (0683/17).
Porém, a questão objecto dos presentes autos é bem diversa.
Com efeito, o imposto pago e liquidado até 15 de Dezembro de 2020, a título de ASSB, que é objecto dos presentes autos, apenas tem como fundamento o facto material contabilístico do apuramento de saldos passivos, sem qualquer intervenção da requerente ou dos seus representantes na aprovação desses saldos ou de quaisquer contas que permitam o seu apuramento.
Na verdade, o artº. 18º., conjugado com o artigo 21º., nº. 1, al. b) da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020) impõe o pagamento desse imposto relativamente ao primeiro semestre de 2020, até 15 de Dezembro de 2020, bem sabendo o legislador que não existe legalmente prevista qualquer forma de aprovação de contas relativas ao primeiro semestre ou aos meses que nele se incluem durante um qualquer exercício anual.
E não obstante a norma do artº. 4º., nº. 4 do Anexo VI, na qual se refere que “a base e incidência apurada nos termos do artigo 3.° e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”, o certo é que a lei obriga o sujeito passivo a autoliquidar o imposto relativo ao primeiro semestre de 2020 até 15 de Dezembro de 2020, ou seja, muito antes de encerrado o exercício de 2020 e sobretudo antes de aprovadas as respectivas contas.
Por isso, o facto tributário neste caso não é a aprovação de contas, que não existe, nem é forçoso que exista, mas o facto material de contabilisticamente ser apurada a existência de passivo, nos termos dos artºs. 3º. e 4º. do Anexo VI.
Ora, esse facto material ocorreu sempre antes da publicação da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020), quer se entenda que o passivo a ter em conta, seja o que se verifica no fim de cada um dos meses de Janeiro a Junho, individualmente considerados, quer seja o que se verifica contabilisticamente em 30 de Junho no final do 1º. Semestre de 2020, pela determinação da média desses passivos.
É que há lugar à liquidação de imposto ASSB se houver passivo efectivamente apurado e não passivo aprovado, porque não pode existir, dado que não está prevista legalmente qualquer aprovação de contas intermédia para além da anual.
Deste modo, o artº. 18º., conjugado com artº. 21º., nº.1, al. c) da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho, na parte em que prevê a liquidação do ASSB relativamente aos saldos passivos do primeiro semestre de 2020 é inconstitucional por violação do disposto no artº. 103º., nº. 3 da CRP, que estabelece o princípio da proibição da retroatividade fiscal, dado que ocorre uma aplicação retroactiva desse diploma que cria um novo imposto, a factos tributários que já tinham ocorrido na data da sua publicação.
Procede assim a alegação da inconstitucionalidade das normas da Lei nº. 27-A/2020, 24 de Julho (Orçamento suplementar para 2020), que criam o adicional de solidariedade sobre o sector bancário (artº. 18º.) e obrigam a autoliquidar esse dito adicional até 15 de Dezembro de 2020, relativamente às contas do primeiro semestre de 2020 (artº. 21º., nº. 1, als. a) e b), por o facto tributário gerador da obrigação de liquidação e pagamento, o apuramento material e meramente contabilístico de saldos passivos no final de cada um dos meses desse semestre e no final do mesmo semestre terem ocorrido sempre antes da publicação da referida lei.
Essa inconstitucionalidade resulta da violação por essas normas, interpretadas conjugadamente nos termos expostos, do princípio da proibição da retroatividade fiscal, consagrado de forma explícita no artº. 103º., nº. 3 da Constituição da República Portuguesa.
Consequentemente, anula-se a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada pela ora requerente e, mediatamente, decreta-se a anulação do ato de autoliquidação do ASSB referente ao passive apurado no primeiro semestre de 2020 e pago pela Requerente, com o consequente dever de restituição do imposto pago.
4.3. Restantes Questões:
Fica assim prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela requerente, relativamente à inconstitucionalidade ainda das normas legais do ASSB por violação do princípio constitucional da igualdade, bem como da ilegalidade do diploma que aprovou o ASSB por violação do Direito da União Europeia, em particular a violação do direito de estabelecimento, previsto no artigo 49º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, como, por fim, a da ilegalidade, por violação do determinado na Diretiva 2014/59/EU, transposta pela Lei nº 230-A/2015, de 26 de março, pois mesmo que fossem julgadas improcedentes, não teriam qualquer efeito prático, dado que, por força da procedência da inconstitucionalidade da criação e aplicação do ASSB à liquidação do 1º. Semestre de 2020, por retroactividade da lei fiscal sempre a presente impugnação teria de proceder.
Em todo o caso, sempre se acrescentará que, também entendemos que a aplicação do ASSB às sucursais viola o Direito Europeu, em especial o disposto nos artigos 49º. (restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro) e 54 º. (equiparação das sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro às sociedades de outro Estado-Membro, com a consequente princípio de proibição sob qualquer forma, ainda que dissimulada de discriminação, que, por aplicação de outros critérios de distinção, que conduza, de facto, ao mesmo resultado) , como tem sido jurisprudência uniforme do TJUE.
5. DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS:
A requerente peticiona, além da restituição da totalidade da quantia já paga por força da liquidação ora anulada, ainda a condenação da requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, calculados desde a data em que procedeu ao pagamento do imposto liquidado até à data em que vier a ser reembolsado ao requerente o indevidamente pago, juros esses vencidos e vincendos, desde aquela data.
A propósito dos juros indemnizatórios, prescreve o artigo 43º nº 1 da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
No caso ora em apreciação, o erro que afeta a liquidação impugnada é exclusivamente imputável à requerida AT que defendeu a aplicação da lei julgada inconstitucional e, por isso, indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela requerente contra a liquidação do Imposto ASSB, pelo que dúvidas não existem de que tem o requerente direito ao recebimento dos juros indemnizatórios.
É que, nos termos da alínea b) do artigo 24º do RJAT, 35º nº 10 e 43º nº 1 da Lei Geral Tributária e 61º nº 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a requerida incorreu em erro que lhe é imputável ao manter a liquidação ora anulada, pelo que deve pagar ao Requerente juros indemnizatórios sobre a quantia paga, contados à taxa legal, desde o pagamento do imposto até à restituição do imposto já pago.
Portanto, tem a ora requerente direito a ser reembolsada relativamente a tudo quanto pagou indevidamente e, ainda, a ser indemnizada por esse pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios por parte da requerida, desde a data do pagamento da quantia, até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
6. Decisão
Nestes termos, julga-se totalmente procedente e provado, nos termos expostos, o pedido de pronúncia arbitral, decidindo este tribunal arbitral:
a) julgar procedentes os pedidos de anulação do indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada pela ora requerente e, mediatamente, de anulação do ato de autoliquidação do ASSB referente ao passivo apurado no primeiro semestre de 2020 e pago pela Requerente.
b) consequentemente, julgar procedente o pedido de restituição do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios por parte da requerida, desde a data do pagamento da quantia, até efectivo reembolso, calculados à taxa legal supletiva que é actualmente de 4% ao ano,
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.986,14, indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, integralmente a cargo da requerida
9. Notificação ao Ministério Público
Nos termos do artº. 17º., nº. 3 do RJAT, determina-se a notificação do representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, dado que a procedência do pedido teve por fundamento a declaração de inconstitucionalidade de normas legais
Lisboa, 16-05-2022
O Árbitro
(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 10ª. Edição, Coimbra, 2017, págs. 34 e segs.
[2] Ob cit., págs. 64 e segs.