SUMÁRIO:
I – A bolsa de formação atribuída aos Auditores de Justiça em formação no CEJ não tem natureza remuneratória, mas sim compensatória.
II – Assim sendo, esta não integra o conceito de rendimento para efeitos de IRS, pelo que não está sujeita a imposto. Dito de outro modo, porque não existe norma de incidência no CIRS na qual sejam enquadráveis os montantes recebidos pela Requerente a título de bolsa de formação no ano de 2019, estes não deviam ter sido tributados em sede IRS, tendo a AT incorrido em vício de violação de lei ao enquadrar tais montantes no âmbito do artigo 2.º, n.º 1, b), do CIRS.
III – A obrigação de reembolso do valor de imposto indevidamente recebido é uma consequência legal da anulação do ato tributário, a qual impõe à AT a obrigação de reconstituir a situação que existiria não fosse o ato ilegal praticado. Assim, anulado o ato tributário impugnado está a AT constituída na obrigação de restituir o valor de imposto indevidamente cobrado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 100º e 43º da LGT e 61º do CPPT.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 05/07/2021, A..., com NIF..., residente na Rua ..., ..., ...-... ..., doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e do disposto no artigo 99º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), para impugnação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico com o n.º ...2021..., contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2020..., de 2020/06/26, referente aos rendimentos auferidos no ano de 2019, no valor de 1.489,83€ (mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e oitenta e três cêntimos).
2. O pedido arbitral, foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado. Cumprida a tramitação prevista, a Autoridade Tributária não revogou os atos impugnados, pelo que o processo arbitral prosseguiu.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, que aceitaram. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 10/09/ 2021.
4. Em 14-09-2021 foi proferido despacho arbitral, devidamente notificado à Requerida AT, para apresentar a sua resposta, nos termos do disposto no artigo 17.º do RJAT. A Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o respetivo Processo Administrativo (PA) no dia 19/10/2021. Na sua resposta, que se dá por integralmente reproduzida, veio a AT pugnar pela legalidade do ato tributário impugnado, arguindo, ainda, a incompetência do Tribunal Arbitral para a condenação da AT no concreto reembolso do montante de € 1.489,83, caso venha a considerar procedente o pedido arbitral. Entende a AT que nesse caso apenas deve ser determinada a reformulação da liquidação.
5. Considerando que a questão a decidir se configura como questão exclusivamente de direito, a ausência de prova testemunhal a produzir e a possibilidade de as partes se pronunciarem em fase de alegações sobre todas as questões suscitadas nos autos, o tribunal arbitral proferiu despacho arbitral, em 20-11-2021, propondo a dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT. No mesmo despacho notificou as partes para apresentação de alegações escritas, facultativas, no prazo igual e simultâneo de 20 dias.
No prazo fixado a Requerente não apresentou alegações e a AT veio apresentar alegação sumária nos termos seguintes: «Ocorrendo as alegações em simultâneo, e não havendo nada de novo nos autos sobre que a AT se possa pronunciar, sob pena de se incorrer em repetição inútil, tão-somente se remete e se dá por integralmente reproduzido todo o aduzido em sede de Resposta. De todo o modo, atento o princípio do contraditório [cf. artigo 16, alínea a) do RJAT], caso nas alegações da Requerente sejam suscitados factos, elementos ou questões jurídicas novas, deve a Requerida ser notificada para se pronunciar, sob pena de violação de tal princípios.»
A Requerente veio aos autos juntar o comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente em 24-11-2022.
6. Em 08-03-2022 foi proferido despacho de prorrogação do prazo para proferir decisão arbitral, com a seguinte fundamentação: “Estando em curso mas não terminado, o processo de elaboração da decisão final por este Tribunal, e tendo em conta a tramitação processual verificada, os períodos de férias judiciais decorridos na pendência do presente processo, o disposto no art.º 17.º-A do RJAT, e o tempo necessário para o Tribunal concluir a decisão, torna-se necessário prorrogar o prazo para decisão, nos termos e para os efeitos do art.º 21.º/2 do RJAT. Considerando que a data-limite para proferir a decisão arbitral terminaria no próximo dia 10-03-2022, com esta prorrogação de dois meses a data-limite passará a ser 10-05-2022 …”
A Posição da Requerente
7. A Requerente formula o seu pedido, invocando, em síntese que no período em causa (2019) era auditor de justiça e recebia uma bolsa mensal, valor que não pode ser considerado como rendimento para efeitos de IRS. Alega que o estatuto de auditor de justiça se adquire com a celebração de contrato de formação entre o candidato habilitado no concurso e o Centro de estudos judiciários (CEJ) não se enquadra em nenhuma das categorias de rendimento para efeitos de IRS.
Vem peticionar ao tribunal arbitral que julgue o presente pedido de pronúncia arbitral procedente, por provado, e, consequentemente:
A) Anule a decisão de indeferimento de recurso hierárquico e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nos termos do artigo 163.º do CPA;
B) Anule a Liquidação, uma vez que foi tributado o valor de 17.849,44 € relativo ao montante de bolsa de formação auferido pela Requerente em 2019, nos termos do artigo 163.º do CPA;
C) Condene a AT à imediata e plena reconstituição da situação que existiria, nos termos do artigo 100.º da LGT, caso o valor de 17.849,44 € de bolsa de formação atribuído em 2019 à Requerente não tivesse sido tributado, designadamente o reembolso à Requerente do montante de € 1.489,83 acrescido de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, tudo com as demais consequências legais»
A Posição da Requerida AT
8. A AT considera que os valores auferidos como bolsa de formação pela Requerente no ano de 2019 foram devidamente enquadrados e tributados enquanto rendimentos de categoria A do IRS, por se encontrarem reunidos os pressupostos de facto que caracterizam um contrato de trabalho, nomeadamente a subordinação jurídica. Foi nesse pressuposto que foram considerados e tributados. Em suma, a Requerida AT vem pugnar pela legalidade do ato de liquidação e pela sua manutenção na ordem jurídica portuguesa. Alega ainda que, caso o pedido seja considerado procedente, o Tribunal Arbitral não tem competência para ordenar a reposição do IRS pago pela Requerente, mas apenas para ordenar a reformulação da liquidação impugnada.
II – SANEAMENTO DO PROCESSO
9. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do artigo 5.º e da alínea a), do n.º 2 do artigo 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e no artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo é o próprio e as partes são legítimas, têm personalidade e capacidade jurídica e judiciária.
O processo não enferma de nulidades.
Nesta conformidade o Tribunal está em condições de conhecer do pedido.
Posto isto, cumpre decidir sobre a matéria de facto e, em conformidade, sobre a matéria de direito cuja apreciação foi suscitada neste pedido arbitral.
III - DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
A) FACTOS PROVADOS:
10. Como matéria de facto relevante, o Tribunal arbitral dá por provados os seguintes factos:
a. Em A Requerente foi uma das candidatas habilitadas a ingressar no 5.º Curso para os Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF) nos termos do artigo 26.º e 28.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2008, de 14/1 e integrou o Grupo 11 do 5.º Curso para os TAF.
b. A 14/09/2018, a Requerente celebrou com o CEJ o contrato de formação a que se refere o n.º 2 do artigo 31.º da Lei n.º 2/2008, de 14/1 (“contrato de formação”), junto aos autos e que se dá por integralmente reproduzido;
c. Através da celebração do contrato de formação, a Requerente adquiriu o estatuto de auditora de justiça;
d. Do contrato de formação celebrado entre a Requerente e o CEJ consta na cláusula 4ª o seguinte:
(i) “O presente contrato não cria relação jurídica de emprego público, conforme disposto no n.º 3 do artigo 31.º da citada Lei, não sendo aplicáveis as disposições da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho”;
(ii) Cláusula 5.ª: “Não gerando nem titulando relação jurídica de emprego público, no âmbito do presente contrato, o primeiro outorgante não está obrigado ao pagamento do subsídio diário de refeição”;
(iii) Cláusula 6.ª: “O primeiro outorgante, não se constituindo como entidade empregadora pública, no âmbito do presente contrato, não está sujeito às obrigações constantes nos artigos 55.º e 56.º da Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social”;
e. Entre janeiro e agosto de 2019, a Requerente frequentou o 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática e entre setembro e dezembro de 2019, a Requerente iniciou o 2.º ciclo do curso de formação;
f. Durante o ano de 2019, foram emitidos pelo CEJ à Requerente recibos referentes ao pagamento da bolsa de formação prevista no artigo 31.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2008, de 14/1, nos quais consta a referência “CATEGORIA: AUDITOR DE JUSTIÇA”; (Cfr.:docs da PI e PA junto aos autos)
g. A 11/06/2020, a Requerente submeteu por transmissão eletrónica de dados a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2019, com o n.º ...; (Cfr.:PA junto aos autos)
h. Sobre o valor da bolsa que foi atribuído à Requerente não foram efetuadas quaisquer contribuições para a segurança social pelo CEJ e durante o ano de 2019 esta não recebeu qualquer outro rendimento; (Cfr.: Docs. 1 a 4 e PA junto aos autos)
i. A Modelo 3 de IRS apresentada originou a liquidação n.º 2020 ... de 2020/06/26, com apuramento de reembolso de imposto no valor de € 1.310,17; (Cfr.: doc.1 e PA junto aos autos)
j. A 29/09/2020, a Requerente apresentou, através do website do portal das finanças, reclamação graciosa contra a Liquidação, o qual integra o processo administrativo junto aos autos e que se dá por integralmente reproduzido;
k. e bem assim, as decisões de indeferimento proferidas pela AT no âmbito do procedimento administrativo de reclamação graciosa, cujos termos correram sob nº ...2020..., junto do serviço de finanças de ... e do procedimento de recurso hierárquico, cujos termos correram sob nº ...2021..., junto da Direção de Finanças de ... . (Cfr.:PA junto aos autos)
l. Conforme resulta do processo administrativo junto, a Requerente, a 29-09-2020, apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IRS nº 2020..., referente ao ano de 2019, no valor a reembolsar de € 1.310,17, pedindo a sua anulação com fundamento na não tributação dos rendimentos declarados por força da delimitação negativa prevista no artigo 2.º-A, n.º 1, alínea c) do CIRS. (Cfr.:PA junto aos autos)
m. No âmbito do referido procedimento de reclamação graciosa foi proferida decisão de indeferimento pelo Chefe do Serviço de Finanças de ..., em 28-12-2020, ao abrigo de subdelegação de competências, com suporte na seguinte fundamentação:
(…)
E acrescenta:
(Cfr. PA junto aos autos)
n. No seguimento deste indeferimento a Requerente interpôs recurso hierárquico, no âmbito do qual, após direito de audição, foi proferida decisão de indeferimento pelo Diretor de Finanças de ..., em 07-05-2021, ao abrigo de subdelegação de competências, com suporte fundamentação contida no despacho e que se dá por integralmente reproduzida, tendo concluído que:
(…)
(…)
o. Em 05-07-2021 a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
11. Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
C) FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
12. Os Quanto à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada, como bem resulta do disposto no artigo 123º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 607º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.
No presente caso, todos os factos descritos nas alíneas a) a n) foram considerados como provados com base na prova documental, junta pelas partes, a Requerente em anexo ao pedido arbitral, bem assim como da prova documental constante do Processo Administrativo junto pela AT e que consta do sistema de gestão processual do CAAD.
Acresce que, no caso, não existe qualquer divergência entre as partes quanto aos factos, mas apenas quanto à questão de direito. Pelo que, os factos provados resultam também do reconhecimento da sua veracidade, considerando a posição assumida pelas partes nos respetivos articulados. O facto constante na alínea o) resulta provado pela informação registada no sistema de gestão processual do CAAD.
IV – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO
13. Assente a matéria de facto, importa delimitar a(s) questão(ões) de direito a decidir.
No caso dos presentes autos, considerando os factos descritos, a causa de pedir e o pedido formulado, constata-se que o Requerente convoca o tribunal arbitral para decidir uma questão de direito: saber se os valores recebidos a título de bolsa de formação, recebida durante a formação de auditor judicial, devem ser ou não considerados como rendimento para efeitos de incidência de IRS.
Decidida esta questão, no caso de procedência do pedido, há que decidir a alegada incompetência do Tribunal arbitral para a condenação da devolução do valor pago pela Requerente a título de IRS, porquanto considera a AT que, nesse caso, a reposição da legalidade passará pela retificação parcial da liquidação impugnada.
14. A fundamentação subjacente aos atos tributários impugnados (indeferimento do recurso hierárquico e liquidação de imposto subjacente) assenta na interpretação do artigo 2º do Código do IRS (CIRS), segundo a qual o contrato de formação celebrado entre o Auditor de Justiça e o CEJ, designado por bolsa, reúne todos os pressupostos do contrato de trabalho dependente, incluindo o pressuposto da subordinação jurídica, o que permite qualificar esse rendimento como enquadrável na categoria A de rendimentos do IRS. Vem alegado na fundamentação (indeferimento do recurso hierárquico) que essa subordinação resulta do poder de autoridade e direção que aquela entidade detém na relação jurídica, uma vez que o curso de formação não consiste apenas na administração de meros conhecimentos teóricos, mas integra também uma componente prática, a realizar junto dos tribunais, o que lhe confere um caráter profissionalizante, uma vez que o auditor de justiça vai adquirindo as competências técnicas para o exercício das funções de juiz. Por tudo isto, considera a AT que as importâncias pagas a título de bolsa de formação prevista no n.º 5 do artigo 31.º da Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, e constante da cláusula 3ª do respetivo contrato, estão sujeitas a tributação por terem enquadramento no artigo 2.º do Código do IRS. Será assim?
15. No entendimento deste Tribunal a AT não tem razão e a sua conclusão está inquinada de erro sobre os pressupostos, de facto e de direito, como de seguida se demonstrará.
16. Decorre do disposto no artigo 30º, nº1 da Lei nº2//2008, de 14 de janeiro, que a formação inicial de magistrados para os Tribunais Administrativos e Fiscais, compreende um estágio que se divide em duas fases: um curso de formação teórico-prática e o estágio de ingresso. Esta segunda fase do estágio, ou seja, o 2.º ciclo do curso de formação teórico-prática e o estágio de ingresso decorre nos Tribunais, no âmbito da magistratura escolhida, como resulta do n.º 3, do supracitado artigo 30º. O 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática tem início no dia 15 de setembro subsequente ao concurso de ingresso no CEJ e termina no dia 15 de julho subsequente ao concurso de ingresso no CEJ - cfr. artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
O curso de formação teórico-prática tem como objetivos fundamentais proporcionar aos auditores de justiça o desenvolvimento de qualidades e a aquisição de competências técnicas para o exercício das funções de juiz nos tribunais – cfr. artigo 34.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2008, de 14/1. O 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática tem por objetivos específicos, no domínio das qualidades para o exercício das funções:
a) Promover a formação sobre os temas respeitantes à administração da justiça;
b) Propiciar o conhecimento dos princípios da ética e da deontologia profissional, bem como dos direitos e deveres estatutários e deontológicos;
c) Proporcionar a diferenciação dos conteúdos funcionais e técnicos de cada
magistratura – cfr. artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
Assim, O 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática integra uma componente formativa geral, uma componente formativa de especialidade, uma componente profissional e uma área de investigação aplicada relevante para a atividade judiciária, tem plano de estudos próprio e cobre um vasto conjunto de matérias previstas na lei – cfr. artigos 37.º, 38º, 40º e 41º da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
É sabido que durante o 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática, as atividades formativas se realizam na sede do CEJ, sob a orientação de docentes e de formadores incumbidos de ministrar as matérias das diversas componentes formativas, e compreendem ainda um estágio intercalar de duração não superior a quatro semanas, junto dos tribunais, sob a orientação de magistrados formadores - cfr. artigo 42.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
No 1.º ciclo, os auditores de justiça são avaliados pelos docentes e formadores sobre a sua aptidão para o exercício das funções de magistrado, segundo um modelo de avaliação global, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
17. Face ao exposto e retornando ao caso concreto da Requerente verifica-se que entre 1 de janeiro de 2019 a agosto de 2019 a Requerente frequentou o 1.º ciclo do curso de formação teórico-prática (cfr. artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 2/2008, de 14/1), tendo-lhe sido ministradas algumas das matérias previstas nos artigos 38.º e 40.º da Lei n.º 2/2008, de 14/1. Pelo que, durante este período, a Requerente não teve qualquer contacto com os tribunais, sendo a sua formação exclusivamente efetuada no CEJ através da assistência de sessões regulares de grupos ou de conjuntos de grupos de auditores de justiça, cursos especializados, colóquios, conferências, palestras e seminários conforme legalmente previsto. Entre setembro e dezembro de 2019, a Requerente iniciou o 2.º ciclo do curso de formação teórico-prática o qual decorreu no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, facto comprovado por documento junto aos autos.
18. Posto isto, já em formação no 2.º ciclo, aos Auditores de Justiça é assegurada formação, consoante o caso, por magistrados formadores da magistratura escolhida ou por juízes formadores dos tribunais administrativos de círculo e dos tribunais tributários e compreende a participação dos auditores de justiça, segundo a orientação do respetivo formador, nas atividades respeitantes à magistratura escolhida, cabendo, nomeadamente, elaborar um conjunto de trabalhos práticos, tais como: a) elaborar projetos de peças processuais; b) intervir em atos preparatórios do processo; c) coadjuvar o formador nas tarefas de direção e instrução do processo; d) assistir às diversas diligências processuais, em especial no domínio da produção de prova, da audição de pessoas e da realização de audiências; e) assistir às deliberações dos órgãos jurisdicionais.
Face ao que vem exposto, resulta claro que mesmo neste 2.º ciclo de formação, realizada nos tribunais, todo o trabalho faz parte do plano de formação, sob orientação de juízes-formadores, sendo que os projetos de peças processuais são apenas isso, trabalhos práticos para avaliação deste 2º ciclo de formação, não substituem trabalho efetivo dos juízes titulares, e não se vê a subordinação jurídica a que alega a AT em ação. Na verdade, os auditores devem elaborar todos os seus trabalhos do 2º ciclo de formação e estágio, pelos quais são avaliadas, as suas competências técnicas e capacidade de decisão. Quanto às diligências a que assistem, também elas fazem parte do plano de formação, sendo certo que não dirigem, nem participam nas diligências. É, pois, evidente que os auditores de justiça não substituem mão de obra, estão em processo de formação e avaliação, pelo que, não colhe a tese da subordinação jurídica alegada pela AT, apenas com o propósito de justificar, de algum modo, o enquadramento do rendimento no artigo 2º do CIRS, como rendimento de trabalho dependente e tributar estes rendimentos, o que é inaceitável.
19. Ao que vem exposto acresce que o estatuto de auditor de justiça se adquire com a celebração de um contrato de formação entre o candidato habilitado no concurso e o CEJ. Este contrato referido no número anterior não confere em nenhum caso a qualidade de funcionário ou agente como resulta claramente do disposto no artigo 31.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2008, de 14/1. Assim, a conclusão que se extrai do regime jurídico em análise é que a frequência do curso de formação teórico-prática confere ao auditor de justiça «o direito a receber uma bolsa de formação de valor mensal correspondente a 50 % do índice 100 da escala indiciária para as magistraturas nos tribunais judiciais, paga segundo o regime aplicável aos magistrados em efetividade de funções, excluídos suplementos devidos pelo exercício efetivo das respetivas funções» - cfr. artigo 31.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2008, de 14/1.
Considerando o teor do contrato de formação celebrado entre a Requerente e o CEJ, há que ressaltar que na sua cláusula 4.ª do contrato: “O presente contrato não cria relação jurídica de emprego público, conforme disposto no n.º 3 do artigo 31.º da citada Lei, não sendo aplicáveis as disposições da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho”.
E a cláusula 5.ª acrescenta: “Não gerando nem titulando relação jurídica de emprego público, no âmbito do presente contrato, o primeiro outorgante não está obrigado ao pagamento do subsídio diário de refeição”.
E ainda a cláusula 6.ª que dispõe: “O primeiro outorgante, não se constituindo como entidade empregadora pública, no âmbito do presente contrato, não está sujeito às obrigações constantes nos artigos 55.º e 56.º da Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social”.
Cláusula 8.ª: “O presente contrato é celebrado por prazo correspondente ao da duração do curso de formação teórico-prática”.
De referir ainda que a desistência do curso de formação teórico-prática, a exclusão e a aplicação da pena de expulsão determinam a perda do estatuto de auditor de justiça, a extinção do contrato de formação ou a cessação da comissão de serviço, consoante o caso, e a extinção do direito à bolsa de formação, como resulta do disposto no artigo 31.º, n.º 7, da Lei n.º 2/2008, de14/1.
Face ao teor das normas supracitadas, bem assim como das cláusulas do contrato de formação resulta evidente que não foi vontade do legislador criar algum vínculo de subordinação jurídica ou de qualquer outro tipo com os Auditores de Justiça, mas apenas um contrato de formação com objetivos bem delineados, um plano da formação e uma bolsa de apoio a esta formação. Não subsiste, pois, qualquer dúvida quanto à natureza do contrato, deixando claro que este não está sujeito a obrigações contributivas nem confere outros benefícios remuneratórios, normalmente, associados ao contrato de trabalho. Assim, a interpretação da AT afigura-se contrária à letra e à ratio legis dos normativos aplicáveis e do contrato celebrado com os auditores de justiça e, nessa medida, ilegal.
20. Acresce, ainda, que a tributação obedece ao princípio da legalidade fiscal e as normas de incidência são precisas, e devem ser interpretadas. Ora, os rendimentos de trabalho dependente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 e n.º 3, do CIRS, correspondem às remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular, com origem num conjunto de situações relacionadas com o trabalho, a saber:
a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;
b) Trabalho prestado ao abrigo de contrato de aquisição de serviços ou outro de idêntica natureza, sob a autoridade e a direção da pessoa ou entidade que ocupa a posição de
sujeito ativo na relação jurídica dele resultante;
c) Exercício de função, serviço ou cargo públicos;
(…)
A factualidade dada como assente demonstra que a Requerente celebrou com o CEJ um «contrato de formação» que não se confunde com o conceito de contrato de trabalho ou contrato equiparado a contrato de trabalho, nos termos previstos no Código do Trabalho, a bolsa de formação não se pode enquadrar no âmbito do artigo 2.º, n.º 1, a), do CIRS. Por outro lado, auferindo a Requerente a bolsa de formação na qualidade de auditora de justiça, os valores recebidos não correspondem a remunerações dos membros dos órgãos estatutários das pessoas coletivas, nem a uma situação de pré-reforma, pré-aposentação
ou reserva, não se enquadrando no âmbito do artigo 2.º, n.º 3, a) e n.º 1, d), do CIRS, respetivamente.
Este contrato de formação não dá origem a um contrato de trabalho, não constitui uma relação jurídica de emprego público, nos termos do artigo 31.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2008, de 14/1 e da Cláusula 4.ª do referido contrato, também se tem de concluir que os valores recebidos a título de bolsa de formação não resultam do exercício de função, serviço ou cargo públicos, não se podendo também enquadrar no âmbito do artigo 2.º, n.º 1, c), do CIRS.
Nem tão pouco se enquadra na previsão do artigo 2.º, n.º 1, b), do CIRS, por não se tratar de um contrato de prestação de serviços, exercido sob a autoridade e direção da entidade que titula o contrato, pois como se disse o âmbito do contrato de formação é muito claro e dele não resulta qualquer prestação de serviços contratualizada. Os auditores de justiça, como já vimos, não são «mão de obra» ao serviço da entidade que os acolhe no 2º ciclo de formação (TAF’s) ou do CEJ, entidade responsável pela formação. Aliás, a AT em momento algum apresenta prova bastante para sustentar a existência de prestação de serviços ou de trabalho subordinado, que se limita a alegar na tentativa de enquadrar a tributação dos montantes percecionados a título de bolsa de formação.
Chegados aqui, importa ter em conta que a «subordinação jurídica», alegada pela AT, não se afigura suficiente para sustentar a conclusão da AT que a levou a emitira liquidação de IRS em causa. Na verdade, o caráter profissionalizante do Auditor de Justiça não é suficiente para caracterizar a sua atividade como trabalho dependente.
O que caracteriza, verdadeiramente, a segunda fase de preparação dos Auditores de Justiça é a elaboração de trabalhos práticos, que realizam com a indispensável autonomia científica, para permitir a sua avaliação (como se pretende) pelas suas competências técnicas, conhecimentos jurídicos e capacidade de decisão, necessárias para o futuro exercício da profissão de magistrado. para pelos quais são avaliados. A elaboração dos trabalhos práticos por cada Auditor de Justiça, decorre de acordo com a sua capacidade de análise, decisão técnica e autonomia científica. Nem podia ser de outra forma, porquanto o objetivo final desta formação é aferir se o Auditor de Justiça adquiriu as competências próprias, adequadas e suficientes para poder exercer a Magistratura. Se os Auditores de Justiça, durante a segunda fase de estágio, não usufruíssem dessa autonomia, não se poderia aferir, verdadeiramente, a sua capacidade de decisão (tarefa em si mesma solitária) e as suas competências técnicas para o exercício da função. Naturalmente, todo o processo se desenvolve sob a direção e autoridade da entidade responsável pela formação, o que, sem mais, não basta para que se conclua pela existência de uma relação jurídica de trabalho, da qual se possam extrair as consequências pretendidas pela AT.
E, mais uma vez, há que ter em conta que eles não representam «mão de obra» ao dispor dos Tribunais onde se encontram a realizar a fase final da sua formação / estágio.
Dito isto, e já em repetição de argumentação, o que releva é que o período de preparação dos Auditores de Justiça para o exercício da Magistratura é longo (uma vez que decorre em duas fases distintas como já se esclareceu), e oneroso. Por isso, o esforço desenvolvido durante o estágio é compensado com o pagamento de uma bolsa, porque assim foi estabelecido pelo legislador. Não se trata de remuneração, mas de apoio à formação dos Auditores de Justiça, muitos deslocados da sua área de residência e sem outros meios de suporte financeiro durante um período de formação para servir o Estado. Se outra fosse a intenção do legislador não teria, com toda a certeza, escolhido a designação de «bolsa». Não cabe, pois, à AT fazer interpretações claramente contrárias ao sentido que se extrai diretamente da letra da lei, sem margem para dúvida.
Por outro lado, ficou provado que a Requerente não auferiu qualquer outro rendimento no período em causa, pelo que a bolsa de formação foi o único suporte de sobrevivência ou apoio de que beneficiou. Logo, como bem salienta a Requerente, não se pode considerar que a mesma se enquadre no normativo do artigo 2.º, n.º 3, b), do CIRS, por não ter natureza acessória relativamente a qualquer espécie de rendimento.
Em suma, não existe enquadramento legal para considerar a bolsa de formação um rendimento de trabalho dependente, com enquadramento legal, pelo que, mais uma vez, se impõe concluir pela ilegalidade do indeferimento do recurso hierárquico e da liquidação impugnada.
Ainda a este respeito, alegou a Requerente que a situação dos auditores de justiça se assemelha à dos contratos de bolsa, no âmbito das bolsas de investigação atribuídas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), ao abrigo da Lei nº 40/2004, de 18/8, em relação ao qual a AT já se pronunciou nos termos seguintes:
“As importâncias recebidas no âmbito dos contratos de bolsa ao abrigo do Estatuto do Bolseiro de Investigação aprovado pela Lei n.º 40/2004, de 18 de agosto, não constituem rendimentos de trabalho dependente, salvo quando se verifique que, nos termos da segunda parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IRS, os mesmos consubstanciam a prestação de trabalho sob autoridade e a direção da entidade de acolhimento. Nestes termos apenas serão passíveis de enquadramento como rendimentos da categoria A, as bolsas relativamente às quais se verifique, numa análise casuística, a existência de vantagens económicas proporcionadas pelo bolseiro à entidade de acolhimento e que este atua sob a autoridade e direção desta. As bolsas de investigação concedidas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que não verifiquem estes requisitos não estão sujeitas a tributação em sede de IRS.”
Ou seja, como bem alega a Requerente, «quanto à tributação das bolsas da FCT, a AT considerou que estas seriam apenas tributadas verificados dois requisitos cumulativos: (i) existência de vantagens económicas proporcionadas pelo bolseiro à entidade de acolhimento e (ii) a atuação do bolseiro sob autoridade e direção da entidade de acolhimento. Assim, em tal entendimento considerou-se que para além da existência de poder de direção da entidade de acolhimento sobre o bolseiro, este terá de proporcionar àquela vantagens económicas para que a bolsa seja tributada em IRS. Não basta, portanto, constatar que o bolseiro atua sob autoridade e direção da entidade de acolhimento para que a bolsa seja tributada nos termos da segunda parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRS.
Com efeito, apesar de ser verdade que, conforme referido pela AT na decisão de indeferimento do recurso hierárquico, os auditores de justiça “estão sujeitos ao regime de direitos, deveres e incompatibilidades constantes na Lei n.º 2/2008 de 14/1, no regulamento interno do CEJ e, subsidiariamente, no regime dos funcionários da Administração Pública (art.º 31.º n.º 1 daquela Lei)”, tal não é bastante para considerar que a bolsa de formação recebida pela Requerente deve ser enquadrada no âmbito da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRS.
(…)
Ora, o facto de a bolsa ter de ser devolvida, nos termos do preceito citado supra, demonstra bem que a mesma é atribuída aos auditores de justiça sem ter como contrapartida a prestação de trabalho.
Com efeito, o sinalagma estabelece-se entre a prestação financeira (bolsa de formação) e a frequência de um curso teórico-prático no CEJ, e posterior prestação de serviço como juiz durante o período mínimo de 5 anos, sob pena de, incumprindo essa obrigação de permanência em funções por 5 anos ser obrigado a reembolsar o CEJ dos valores entretanto recebidos a título de bolsa.
Para a conclusão mencionada nos dois pontos anteriores, contribui ainda o facto de
através do ofício n° .../2013-GD, de 15.11.2013, o Instituto da Segurança Social, IP, ter comunicado ao CEJ o seguinte: “O Centro de Estudos Judiciários, pela celebração de contratos de formação com os auditores de justiça não assume a qualidade de entidade empregadora ainda que sejam abonadas determinadas quantias, a título de compensação de despesas ou de bolsas de formação, da mesma forma que não se atribui a qualidade de beneficiários aos candidatos a magistrados, destinatários da formação.
Com efeito, não se verificando a existência de exercício actividade profissional, não é devido o enquadramento na Segurança Social, por não se encontrarem presentes os pressupostos da relação jurídica contributiva” (destaque e sublinhado nosso) – cfr. referência efetuada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01/14/2015,
processo n.º 01488/14”.
Assim é. Por tudo o que se deixa exposto ao longo da já extensa fundamentação, e sem necessidade de mais explanações, entende esta Tribunal arbitral que da existência de “um poder de direção por parte do CEJ” não resulta a caracterização de uma relação de emprego ou exercício de atividade suscetível de ser enquadrada em alguma das alíneas do artigo 2º do CIRS. No mínimo, seria necessário, ainda, que o CEJ usufruísse de vantagens económicas, para que a bolsa recebida devesse ser tributada em IRS. O que, manifestamente não sucede.
Em conclusão, não tendo a bolsa de formação em causa natureza remuneratória, mas sim compensatória, esta não integra o conceito de rendimento para efeitos de IRS, pelo que não está sujeita a imposto. Dito de outro modo, porque não existe norma de incidência no CIRS na qual sejam enquadráveis os montantes recebidos pela Requerente a título de bolsa de formação no ano de 2019, estes não deviam ter sido tributados em se de IRS, tendo a AT incorrido em vício de violação de lei ao enquadrar tais montantes no âmbito do artigo 2.º, n.º 1, b), do CIRS.
Face a tudo o exposto, a decisão de indeferimento de recurso hierárquico e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a liquidação subjacente padecem de vício de violação de lei ferem o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, b), do CIRS e 36.º, n.º 4, da LGT, pelo que se anulam, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA, ex-vi artigo 2.º, c), da LGT, com todas as consequências legais.
Questão da competência para condenar no reembolso
21. Na Contestação veio a AT alegar que, caso os atos tributários viessem a ser considerados ilegais este Tribunal estaria impedido de condenar no pedido de reembolso do valor de imposto pago pela Requerente.
Ora, parece-nos que a AT ignora, propositadamente, os efeitos da anulação dos atos tributários, competência que assiste a este Tribunal e que a AT não questiona.
É que tendo este Tribunal competência anulatória, não pode deixar de extrair da mesma as consequências que a lei faz decorrer da anulação, a saber: a reintegração da situação que existiria se não tivesse sido praticado o ou os atos tributários anulados.
Assim, como consequência da anulação dos atos impugnados e anulados fica, automaticamente, a AT obrigada a restituir à Requerente qualquer valor que esta tenha pago a título de imposto, quando seja anulada a respetiva liquidação.
Improcede, pois, a alegação da AT nesta matéria.
Quanto a juros indemnizatórios
22. A Requerente peticiona, ainda, o reembolso da importância indevidamente cobrada a título de IRS, do ano de 2019, peticionando que lhe seja devolvido, nos termos do artigo 100.º da LGT, o valor de 1.489,83 €, o qual foi indevidamente tributado em sede de IRS (2.800,00 €1.310,17 € = valor total de retenções na fonte efetuadas em 2019 – valor do reembolso efetuado pela AT), acrescida de juros indemnizatórios.
O artigo 43.º, nº1, da LGT, dispõe que são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."
O direito a juros indemnizatórios pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, a Requerente efetuou o pagamento de importância manifestamente indevida.
Nestes termos, sendo anulados todos os atos tributários impugnados, incluindo a liquidação impugnada, por ilegalidade, tem a Requerente direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art.43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).
V – DECISÃO
Termos em que decide este Tribunal Arbitral:
1) Considerar totalmente procedente o pedido de anulação dos atos tributários impugnados, a saber: decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico e Liquidação de IRS subjacente;
2) Em consequência da anulação tem a Requerente direito a ser reembolsada do valor de imposto liquidado ilegalmente e pago pela Requerente, acrescido de juros à taxa legal, nos termos acima expostos.
a) Julgar totalmente improcedente a alegada incompetência do Tribunal arbitral, nos termos acida descritos.
b) Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.
IV. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor da causa em 1.489,83€ (mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e oitenta e três cêntimos) nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
V. CUSTAS
Ao abrigo do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 306,00 € (trezentos e seis euros), a cargo da parte vencida.
Notifique-se.
Lisboa, 10/05/ 2022
O Tribunal Arbitral singular,
Maria do Rosário Anjos