Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 460/2021-T
Data da decisão: 2022-03-31  IRC  
Valor do pedido: € 904.553,00
Tema: IRC: dedutibilidade de despesas; tributação autónoma de despesas não documentadas; empréstimos a administradores.
Versão em PDF

SUMÁRIO

1.            A comprovação das despesas invocadas como necessárias à formação do rendimento por via de serviços prestados por terceiros exige que haja coerência com as receitas alegadamente geradas a partir desses serviços e uma justificação adequada para essas despesas.

2.            Uma empresa que se limita a fornecer materiais para obras alheias no estrangeiro não pode deduzir despesas de aplicação desses materiais que lhe são debitadas por uma empresa relacionada no estrangeiro, mesmo que esta esteja eventualmente envolvida nessa aplicação.

3.            A concessão de empréstimos a administradores de sociedades anónimas é proibida por lei.

4.            Para lá de proibidos, não titulam empréstimos meras declarações de recebimento de montantes avultados, assinadas apenas pelo administrador em seu nome e em nome da sociedade, sem qualquer referência às condições e prazos de empréstimo, ainda para mais registadas contabilisticamente como financiamentos a favor da sociedade.

5.            Tais saídas de valores da sociedade configuram despesas não documentadas, tal como são despesas não documentadas as que são lançadas contabilisticamente como acertos de contas e adiantamentos a uma empresa relacionada no quadro de relações comerciais que não ficaram provadas.  

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            No dia 27 de Julho de 2021 a A..., SA, Pessoa Coletiva n.º..., com sede na Rua ...,  ..., ..., ... (Requerente), apresentou no CAAD requerimento de constituição de tribunal arbitral, pretendendo, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 13.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos artigos 99.º, alínea a) e 103.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, impugnar as liquidações de IRC, com acerto de contas e liquidação de juros, referentes aos exercícios de 2017 e 2018.

2.            Nomeados os árbitros e não tendo a Requerente, nem a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 1 de Outubro de 2021.

3.            Seguindo-se os normais trâmites, em 3 de Novembro a AT apresentou resposta, juntando o processo administrativo no dia seguinte.

4.            No dia 10 de Dezembro de 2021 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com a audição das testemunhas indicadas pelas Partes, nos termos constantes da respectiva Acta e gravações, tendo-se fixado prazo para alegações.

5.            Só a Requerente apresentou estas, reiterando o que anteriormente defendera.

6.            Em 14 de Março de 2022, face às dúvidas que se tinham suscitado quanto a alguns dos documentos juntos aos autos, foi proferido despacho solicitando esclarecimentos.

7.            Em 21 de Março, a Requerente apresentou os esclarecimentos que entendeu pertinentes.

 

II.            PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

8.            O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

9.            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

10.          Não foram invocadas excepções que pudessem obstar ao conhecimento do mérito.

 

III.          DOCUMENTOS

III.1. DOCUMENTOS MAIS RELEVANTES JUNTOS AOS AUTOS

a)            Certidão Permanente, junta como Anexo I do Relatório de Inspecção Tributária – Anexo I ao RIT;

b)           Procuração emitida em 24 de Julho de 2019 pela A... ao Sr.B...– Anexo III ao RIT; 

c)            Extracto de Conta (111  Caixa) da A... entre 30 de Setembro de 2017 e 31 de Dezembro de 2017 – num total a débito de €77.876,16 e de €50.950,72 a crédito, finalizando com um valor negativo de €26.925,44 – e Extracto de Conta de Conferência (111  Caixa) da A... entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2018 – num total a débito de €758.538,35 e de €750.931,55 a crédito, finalizando com um valor negativo de €7.606,80 – Anexo IV ao RIT; 

d)           Extracto de Conta (22113901 C...) da A... entre 30 de Novembro de 2017 e 31 de Dezembro de 2017 – num total a débito de €460.000,00 e de €484.000,00 a crédito, finalizando com um valor positivo de €24.000,00 – Anexo V ao RIT; 

e)           3 Facturas (manuais) emitidas pela C..., Lda., à A... – Anexo VI ao RIT:

i.             Factura n.º 00043, de 9 de Novembro de 2017, no valor equivalente a €8 200 (com o seguinte descritivo: “Preparação/Projeto de Alumínio e Ferro Obra: ... Comercial Piso 1 -Silo”);

ii.            Factura n.º 00045, de 30 de Novembro de 2017, no valor equivalente a € 270 000 (com o seguinte descritivo: “Serviços prestados Obra: ... Comercial Piso 1-Silo”);

iii.           Factura n.º 00047, de 26 de Dezembro de 2017, no valor equivalente a € 205 800 (com o seguinte descritivo: “Serviços prestados Obra: ... Comercial Piso 1-Silo”);

f)            Extracto de Conta (21113901 D...) da A... entre 30 de Novembro de 2017 e 31 de Dezembro de 2017 – num total a débito de €469.315,89 e de €460.000,00 a crédito, finalizando com um valor negativo de €9.315,89 – Anexo VII ao RIT; 

g)            Proposta de Orçamento 021/2017 da A... e Contrato de (sub)Empreitada no valor de € 650.000 com a  D... e, com data de 9 de Outubro de 2017, referente ao “Fornecimento de Materiais Diversos para o Hospital ...” – Anexo VIII ao RIT;

h)           Cópia do Boletim da República (Publicação Oficial da República de Moçambique) III Série - n.º 30, de 28 de Julho de 2010, com o pacto social da D... Lda  – Anexo IX ao RIT;

i)             Facturas (manuais) emitidas pela C..., Lda. à A... – Anexo X ao RIT:

i.             Factura n.º 000099, de 10 de Julho de 2018, no valor de € 149.058 (com o seguinte descritivo: “Proposta p_20180006 Assentamento de caixilharia e vidros, incluindo preparação de desenho e gestão de todo o processo de montagem, Obra ..., conforme autos” (1 a 6));

ii.            Factura n.º 000123, de 12 de Outubro de 2018, no valor de € 85.995 (com o seguinte descritivo: “Proposta p_20180006 Assentamento de caixilharia e vidros, incluindo preparação de desenho e gestão de todo o processo de montagem, Obra ..., conforme autos” (7 a 9));

j)             Extracto de Conta de Conferência (22113901 C...) da A... entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2018 – num total a débito de €190.000,00 e de €259.053,00 a crédito, finalizando com um valor positivo de €69.053,00 – Anexo XI ao RIT; 

k)            9 Autos de Medição, emitidos com datas de Janeiro a Setembro pela C..., Lda. à A..., referentes a “Mão de obra qualificada -...” – Anexo XII ao RIT; 

l)             Contrato de subempreitada (Ref. 11/2017) no valor de 2.300.000 dólares, com a E... Limited, com data de 16 de Agosto de 2017, para fornecimento e instalação de uma fachada de vidro e outros trabalhos no Gana, e Contrato de subempreitada (Ref. 07/2018) no valor de 120.000  dólares com a E... Limited, com data de 2 de Abril de 2018, para o redesenho dos gradeamentos, portas de alumínio, louvers, redesenho de lojas e gestão logística da aquisição e transporte dos materiais de fachada para o Gana – Anexo XIII ao RIT;

m)          Cópia do Boletim da República (Publicação Oficial da República de Moçambique) III Série - n.º 64, de 30 de Maio de 2016, com o pacto social da C... Lda  – Anexo XIV ao RIT;

n)           Declaração, com data de 21 de Dezembro de 2019, assinada pelo Sr. F...– e também por ele, pela Administração da A..., S.A. –, segundo a qual teria recebido “na presente data”, a título de empréstimo da sociedade, a quantia de €104.000 – Anexo XV ao RIT e Documento 17 junto com o PPA;

o)           Duas facturas, emitidas pela Requerente por programa certificado, à G..., SA:

i.             Factura n.º 2018/28, de 27 de Março, no valor de € 221 400 (com IVA) com o seguinte descritivo: “V/ Obra: ... Comercial Silo Piso 1” – Documento 8 junto com o PPA;

ii.            Factura n.º 2018/42, de 23 de Abril, no valor de € 202 456,09 (com IVA) com o seguinte descritivo: “V/ Obra: ... Comercial Silo Piso 1” – Documento 9 junto com o PPA;

p)           Comunicação da Accounting Manager da G..., SA, com a declaração de que “com a exceção da fatura n.º 2018/119 que diz respeito a materiais que foram para a nossa fábrica de ..., todas as outras dizem respeito a materiais para venda, conforme faturas de venda que junto. Conforme indicação que obtive, nenhuma inclui prestação de serviços.”. Acompanhavam essa missiva duas facturas (2110022768 e 2110022961) emitidas pela G... à H... de Moçambique (que correspondiam a materiais com a mesma descrição dos que constavam das facturas 2018/28 e 2018/42 referidas na alínea anterior) – todas incluídas no Anexo XVIII ao RIT;

q)           Declaração emitida em 15 de Julho de 2021 pela C... (junta pela Requerente pela primeira vez com o Pedido de Pronúncia Arbitral - PPA) segundo a qual da faturação emitida no exercício de 2017 com a descrição “...Comercial” (que somava um total de € 484 000,00), o valor de €309.670,00 respeitava a serviços prestados na obra do Gana – Documento 10 junto com o PPA;

r)            Documento particular rubricado e carimbado em nome da A..., da D... e da C..., com data de 31 de Dezembro de 2017 e Maputo como local de emissão, que refere que “Os intervenientes declaram que aceitam regularizar, entre eles os valores em débito no conta corrente. Assim, a D..., Lda liquida o montante de 460.000,00€ à A..., S.A. e aceita transferir para a C..., Lda, liquidando parcialmente o valor em débito pela A... a esta última.” – Documento 11 junto com o PPA;

s)            Nota (dactilografada) de Lançamento Interno 2017/001 da A... no valor de 460.000,00€, com menção da D..., Ldª e data de 31 de Dezembro de 2017 – Documento 12 junto com o PPA; 

t)            Duas facturas, emitidas pela Requerente, por programa certificado em 20171017, à E... Limited:

i.             Factura n.º 2017/3, de 7 de Novembro, no valor equivalente a € 509 009,01 - Documento 13 junto com o PPA;

ii.            Factura n.º 2017/4, de 7 de Novembro, no valor equivalente a € 527 027,03 - Documento 14 junto com o PPA;

u)           Nota de Lançamento de um valor de 104.000,00€ como “Empréstimo” (no “Diário: 4 N.º Diário: 412152”), na conta “111” a crédito e na conta “2532111” a débito, e data de 31 de Dezembro de 2018 – Documento 15 junto com o PPA; 

v)            Nota (dactilografada) de Movimentos de Caixa da A... com data de 31 de Dezembro de 2018, no valor de 104.000,00€, com a menção “Declaro que recebi” e a assinatura de F... - Documento 16 junto com o PPA; 

w)          Nota de Lançamento de um valor de 53.000,00€ como “Empréstimo” (no “Diário: 4 N.º Diário: 411120”), na conta “111” a crédito e na conta “2532111” a débito, e data de 30 de Novembro de 2018 – Documento 18 junto com o PPA;

x)            Nota (dactilografada) de Movimentos de Caixa da A... com data de 31 de Novembro de 2018, no valor de 53.000,00€, com a menção “Declaro que recebi” e a assinatura de F...- Documento 19 junto com o PPA; 

y)            Declaração, com data de 30 de Novembro de 2018, assinada pelo Sr. F... – e também por ele, pela Administração da A..., S.A. –, segundo a qual teria recebido “na presente data”, a título de empréstimo da sociedade, a quantia de €53.000 – Documento 20 junto com o PPA;

z)            Nota de Lançamento de um valor de 24.000,00€ como “Empréstimo” (no “Diário: 4 N.º Diário: 410152”), na conta “111” a crédito e na conta “2532111” a débito, e data de 30 de Novembro de 2018 – Documento 21 junto com o PPA;

aa)         Declaração, com data de 31 de Outubro de 2018, assinada pelo Sr. F...– e também por ele, pela Administração da A..., S.A. –, segundo a qual teria recebido “na presente data”, a título de empréstimo da sociedade, a quantia de €24.000,00 – Documento 22 junto com o PPA;

bb)         Nota (dactilografada) de Movimentos de Caixa da A... com data de 31 de Outubro de 2018, no valor de 24.000,00€, com a menção “Declaro que recebi” e a assinatura de F...- Documento 23 junto com o PPA; 

cc)          Nota de Lançamento de um valor de 190.000,00€ (no “Diário: 4 N.º Diário: 412173”), na conta “111” a crédito e na conta “22113901” a débito, com data de 31 de Dezembro de 2018 – Documento 24 junto com o PPA;

dd)         Cópia do Mail de 3 de Dezembro de 2020, da responsável pela inspecção tributária ao contabilista externo da A... solicitando o documento de suporte do anterior movimento, que não teve resposta – Anexo XVII ao RIT;

ee)         Av/Lançamento da A... n.º 2018/001, emitido por programa certificado em “20200913”, com data de emissão de 17 de Dezembro de 2018, de um valor de 90.000,00€ a favor da C... e menção “Entrega de valores para regularização de c/corrente” – Documento 25 junto com o PPA;

ff)           Av/Lançamento da A... n.º 2018/002, emitido por programa certificado em “20200913”, com data de emissão de 24 de Dezembro de 2018, de um valor de 100.000,00€ a favor da C... e menção “Entrega de valores Adiantamento N/Obra...” – Documento 26 junto com o PPA.

 

 

III.          2. AVALIAÇÃO DOS DOCUMENTOS JUNTOS AOS AUTOS

A. Como referido supra, em 14 de Março de 2022 foi proferido despacho para esclarecimento de dúvidas sobre alguns dos documentos, despacho que tinha o seguinte teor:

“Na avaliação dos documentos juntos aos autos, o Tribunal deparou-se com algumas incongruências que, atento seu relevo para o estabelecimento dos factos e, consequentemente, para a decisão a proferir, ganhariam em ser esclarecidas. Nesse sentido, convida as Partes a, querendo, se pronunciarem até ao próximo dia 21 do corrente mês sobre o seguinte:

1.            Dos avisos de lançamento interno n.º 2018/001, no valor de € 90 000, com data de emissão de 17.12.2018 e a seguinte designação: “Entrega de valores para regularização de c/corrente”, e n.º 2018/002, no valor de € 100 000, com data de emissão de 24.12.2018 e a seguinte designação: “Entrega de valores Adiantamento N/ Obra...”, juntos pela Requerente como Documentos 25 e 26 (e já juntos no direito de audição exercido pela Requerente em 9 de Fevereiro de 2021 como documentos 17 e 18), consta a menção de terem sido processados pelo “programa certificado nº 0006/AT (20200913)”, ou seja, consta que foram elaborados com um programa (PHC) cuja data de certificação é quase dois anos posterior à sua suposta data de emissão.

2.            Acresce que o “Extracto de Conta” da A... (Anexo V do RIT) foi processado num programa de contabilidade diferente (Sage), sendo inusitado que a mesma empresa use dois programas de contabilidade diferentes.

3.            Das Notas de Lançamento com datas de 31.10.2018 (Documento n.º 21), 31.11.2018 (data inexistente no calendário mas constante do Documento n.º 18), e 31.12.2018 (Documento n.º 15), constam movimentos a débito na conta 2352111, supostamente demonstrativas de empréstimos concedidos ao sócio gerente da Requerente. Acontece que as contas 25 do SNC reflectem financiamentos à empresa, pelo que, salvo erro do signatário, tais movimentos a débito só poderiam resultar de reembolso de suprimentos – de que não há qualquer indício nos autos – e, em qualquer caso, nunca poderiam consubstanciar empréstimos ao sócio.

4.            A Declaração junta aos autos como Documento 17, assinada pelo sócio gerente da sociedade como mutuário e também por ele em representação da empresa mutuante, tem data de “21 de dezembro de 2019”, mas pretende corroborar uma “Nota de Lançamento” (Documento 18) e uma descrição de “Movimentos de Caixa” (Documento 19) ocorridos um ano antes.

Notifique-se.

O árbitro presidente e relator”

 

                B. No dia 21 de Março, a Requerente respondeu, invocando:

a)            Que os serviços de contabilidade são prestados por uma entidade externa que usa o programa SAGE, ao passo que a Requerente usa o programa PHC;

b)           Que alguns documentos foram obtidos da contabilidade (externa), enquanto outros foram retirados do sistema da Requerente;

c)            Que, nalguns casos, a Requerente procedeu ela própria à re-impressão dos documentos e que estes vão assumindo as características decorrentes da progressiva actualização do sistema;

d)           Que a data que consta no Documento 18 é 30 de Novembro de 2018;

e)           Que a explicação que foi dada pelos serviços externos de contabilidade da empresa foi a de que “o valor em causa em cada uma das Notas de Lançamento é lançado a crédito provindo da conta de caixa (Conta 111) e é debitada (lançada a débito) como sendo um empréstimo ao sócio, corroborado pelas próprias declarações do sócio;”

f)            Que a ter havido erro no lançamento, é de o imputar ao serviço externo de contabilidade;

g)            Que a data constante do Documento 17 (“21 de dezembro de 2019”) se deveu certamente a mero lapso na aposição da data, até porque “no âmbito da inspecção realizada, o apurado pelos senhores inspectores foi a saída daquele valor de €104.000,00, naquela data de 31.12.2018 e não em Dezembro de 2019.” 

 

C. O Tribunal considera plausíveis as explicações dadas em relação às dúvidas suscitadas, ainda que se possa objectar:

- quanto ao terceiro argumento da Requerente (sobre os avisos de lançamento de 2018 emitidos por um programa certificado em 2020): que se retirou do depoimento da testemunha J... que esta tenta guardar na empresa cópia de tudo o que envia para a contabilidade externa, tornando menos necessária essa dualidade de proveniências, sobretudo onde estavam em causa reimpressões de documentos (os indicados no parágrafo 1 do despacho) que já deviam estar disponíveis nalgum desses lugares para dar cumprimento à imposição legal da alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC (“Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário.”), e que em nenhuma instância foram apresentados;

- quanto ao penúltimo argumento da Requerente (sobre o registo dos empréstimos ao sócio numa conta de financiamento da sociedade): que o reconhecimento pela Requerente de que pode haver erros na sua contabilidade – e o lançamento a débito, numa conta 25 (que regista financiamentos à empresa, não da empresa a quem quer que seja, designadamente a sócios), configura um erro de contabilidade – constitui uma razão adicional para obstar a que a Requerente possa invocar a presunção de veracidade do n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT): como dispõe a alínea a) do n.º 2 dessa mesma norma, essa presunção é afastada quando “As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;”

- quanto ao último argumento da Requerente (sobre a data da saída de €104.000): que a certificação da saída de um valor é algo completamente distinto da razão pela qual se justificou essa saída, de modo que, para lá do admissível lapso – aparentemente recorrente, porque a data que dele consta é 21 (não 31) de Dezembro –, a objecção improcede.

D. O Tribunal também tem de ter em conta que os avisos de lançamento internos 2018/001 e 2018/002 (documentos identificados nas alíneas ee) e ff) do Ponto III.1.) foram emitidos depois da data da certificação do programa (13 de Setembro de 2020) que deles consta, e, portanto, não com base em documentos previamente disponíveis na contabilidade externa, ou na da empresa. Acresce que, segundo o depoimento da testemunha J..., foram emitidos por instrução directa do administrador. A mais de, assim, inexistirem documentos de suporte à altura em que a AT tomou a decisão ora sindicada, tais documentos, integrados supervenientemente nos autos, quando muito (sendo referentes a “adiantamentos”, nem isso), dariam expressão ao relacionamento entre empresas aparentadas que é feito decorrer do que consta do contrato junto como documento identificado na alínea l) do Ponto III.1., e que o Tribunal entende não poder considerar. E isto porque tal “Sub-Contract Agreement” (“OurRef. 11/2017”) com a E... Limited (supostamente para fornecimento e instalação de uma fachada de vidro e outros trabalhos no Gana), tem data de “16 August 2017” mas identifica desta forma, logo de seguida, a contraparte: “A... , S.A.,with Head Office at Rua ..., em ..., registered at Conservatária de Registo Comercial de Sintra, sob o número único de matrícula e pessoa coletiva ..., Capital Social €200.000 (duzentos mil euros)” – dados de registo esses que só vieram a ser atribuídos à Requerente quase um mês depois, em 12 de Setembro de 2017. Ora, se o lapso de datação ainda pode ser admitido num algarismo de um número no final de um documento unipessoal (como, apesar da sua bilateralidade jurídica, era o documento 17 junto com o PPA – documento identificado na alínea n) do Ponto III.1.), não é crível que um “lapso” traduzido no erro da identificação do mês (por extenso), ainda para mais à cabeça de um contrato no valor de 2,3 milhões de dólares, pudesse escapar às duas partes, sobretudo no preciso momento em que o celebrassem .

Naturalmente, a desconsideração de tal contrato implica a desconsideração do que dele é feito decorrer, designadamente o “adiantamento” (em Dezembro de 2018 – mais de um ano depois das datas das facturas emitidas pela A... à  E…), por conta dessa “sua” suposta obra no Gana (documento identificado na alínea ff) do ponto III.1.) e as facturas manuais (documentos identificados na alínea i) do ponto III.1.) emitidas, a esse pretexto, entre empresas aparentadas (como notado no RIT, os tempos entre essas duas peças da narrativa da Requerente não se compatibilizavam: essas facturas manuais emitidas pela C... em 10 de Julho e em 12 de Outubro de 2018 – e os autos de medição para que remetiam – não obedeciam aos prazos fixados nos contratos com a E... de que supostamente derivavam: a data limite fixada para que o sub-contratante completasse “all the works referred to in this Sub-Contract Agreement” no primeiro contrato era “15th of April 2018”, e no segundo contrato era “22nd of June 2018”) .

Se a “obra no Gana” só “era da A...” na medida em que esta fornecera materiais para ela – e não há nos autos nenhuma evidência de outra coisa –, desaparece de todo a suposta razão para que a A... pudesse fazer, em Dezembro de 2018, adiantamentos a uma empresa que, a ter intervenção nessa obra – o que nem sequer foi provado – já apresentara facturas sobre a sua intervenção nela (em Julho e Outubro de 2018 – documentos identificados na alínea i) do ponto III.1. – e, portanto, já para lá dos prazos limite fixados nos contratos).

Quanto às facturas ns. 2017/3 e 2017/4 – juntas com o PPA como documentos 13 e 14 (documentos identificados na alínea t) do ponto III.1.) –, referentes às relações entre a A... e a E... e, na narrativa da Requerente segregadas, por imposição da E..., entre custo de materiais (factura n.º 2017/4, conforme o descritivo) e custo de serviços (factura n.º 2017/3, cuja designação é “Serviços prestados com; Preparação/Projecto/Transporte”), a verdade é que incluem ambas, nas “Condições de entrega:”, a mesma referência: “.../Gana” – sendo CIF, nos transportes marítimos, o acrónimo de Cost, Insurance, Freight, a cargo, então, do expedidor –, e indicam ambas, como “Local de Descarga”, a “Spintex Road, Opposite Manet Court Junction 11892 Tema, Greater Accra”, sede social da E... . Ora, custos de serviços não são sujeitos a seguros e fretes de transporte, nem têm locais de descarga, pelo que uma das menções (a designação do fornecido ou as condições de entrega/local de descarga) é necessariamente incorrecta, se é que não mistificadora.

 

E. Igualmente de desconsiderar – por força do documento identificado na alínea p) do ponto III.1., mas também pelas razões já constantes da versão final do RIT (cfr. a sua transcrição a seguir) e pelo reconhecimento por parte da testemunha I..., contabilista certificado da A..., de que os pagamentos de serviços à C... não envolveram retenção na fonte a 25%, nem, em alternativa, a disponibilidade de um certificado de residência desta empresa em Moçambique e o enquadramento dessa situação numa das que a Convenção para Evitar a Dupla Tributação com Moçambique dispensaria de retenção (omissão que tem natural explicação em se tratando de facturas de fornecimento de materiais, como tudo indicava); igualmente de desconsiderar, dizia-se, é a possibilidade de, em 2017, a Requerente ter facturado à G... qualquer montante pela obra designada ... que alegadamente estaria a conduzir para esta em Moçambique. Refira-se que, em sede de Direito de Audição, a Requerente intentou demonstrar o erro do RIT inicial neste ponto invocando os documentos que então juntou sob os ns. 3 e 4 (documentos identificados na alínea o) do ponto III.1.), que eram facturas emitidas em 2018 pela Requerente à G..., sim, mas pelo fornecimento dos materiais aí discriminados e com local de descarga em ... (na sede desta), e que a própria G... declarou (Anexo XVIII ao RIT, documento identificado na alínea p) do ponto III.1.) não incluírem qualquer serviço adquirido à Requerente.

Das facturas que a G... enviou, em resposta à solicitação de esclarecimentos da AT, comprova-se que os materiais adquiridos à Requerente foram revendidos por ela à H... – como se comprova das duas facturas (2110022768 e 2110022961) emitidas pela G... à H... de Moçambique (que não só correspondiam a materiais com a mesma descrição, como se referiam a produtos que tinham o mesmo exacto peso bruto – 38.600kg e 45.679,86kg – dos que constavam das facturas 2018/28 e 2018/42 da A... à G... (documentos identificados na alínea o) do ponto III.1.) – todas incluídas no Anexo XVIII ao RIT). Como se escreveu no RIT :

“No decurso da ação inspetiva, foi descartada a hipótese de estarem incluídos estes serviços nestas faturas emitidas pela A... para a G..., pela diferença temporal de emissão das mesmas, pelo facto de não comportarem o valor das faturas da C... e pelo facto de não ter sido efetuado qualquer lançamento de correção de especialização dos exercícios, por parte da A... . Para além disto, o descritivo das mesmas e o facto de não ter sido aplicada a regra de inversão do sujeito passivo em relação ao IVA, levou-nos a concluir que as mesmas apenas se referiam a materiais e não contemplavam qualquer prestação de serviços.

Face aos argumentos agora apresentados em sede de direito de audição, que contrariam as evidências decorrentes dos documentos, foram solicitados elementos e esclarecimentos à empresa cliente (ANEXO XVIII). Em resposta, a G... confirma que relativamente a estas faturas apenas estão contemplados materiais e nenhuma prestação de serviços, tal como se depreendia da análise dos documentos. Foram remetidas as posteriores faturas de alienação destes materiais, confirmando-se que o descritivo das mesmas é idêntico, isto é, os materiais faturados pela A... são posteriormente faturados pela G... ao seu cliente.”

 

Assim, fica inevitavelmente descredibilizado o alegado pela Requerente nos ns. 20 (“a obra “...Comercial” trata-se de uma obra em Moçambique, a executar para a cliente da Requerente/Impugnante G..., S.A.”) e 21 (“Assim, a mão de obra utilizada na obra ...Comercial, cujo respectivo dono de obra é a G..., foi cedida pela C..., a pedido e, deste modo, contratada pela Requerente/Impugnante, ao passo que os materiais foram fornecidos e enviados pela Requerente/Impugnante.”) do seu PPA.

Igualmente, tratando-se de mero fornecimento de materiais a uma empresa nacional, com entrega em território nacional, para que esta os revendesse, não podemos estar, ao contrário do alegado pela Requerente no n.º 39 do seu PPA, “perante gastos que a Requerente/Impugnante suportou, naquele ano de 2017, para obter rendimento, este pago pelas respectivas donas das obras, a G... e a E..., a tributar em sede de IRC;” Confirma-se, portanto, nos seus precisos termos, o que constava do RIT :

“estas faturas emitidas pela A... à G... (em 2018) não contemplam qualquer tipo de serviços, pelo que, a contrário das alegações apresentadas, não justificam os serviços faturados pela C... à A..., em 2017.”

 

F. Tendo na devida conta o depoimento das testemunhas (a primeira das quais, J..., só entrada ao serviço da A... em Novembro de 2017, ie, após a realização dos trabalhos que supostamente justificariam a emissão das facturas da C... pelos serviços alegadamente prestados à Requerente em Maputo; a segunda das quais, o engenheiro K..., que – tendo trabalhado para a C... no acompanhamento das obras em Moçambique e no Gana até ter voltado para Portugal, em 2019, estava também, na altura do depoimento, ao serviço da A... – admitiu desconhecer os procedimentos de facturação tanto numa como em outra empresa; e a terceira das quais, I..., distante da realidade factual por trás dos documentos desta), o Tribunal concluiu que, nos casos relevantes para os autos – as obras que a A... supostamente conduziria com recurso à mão de obra da C... em Maputo, por conta da G... (que, afinal, não era dona de obra, mas mera intermediária no fornecimento de materiais à H...), e em Acra, por conta da E... (cujo contrato não é fiável, nos termos já referidos) –, a A... foi uma empresa fornecedora de materiais, não uma empresa prestadora de serviços (ainda que por sub-contratação) .

 

G. Quanto aos supostos empréstimos ao administrador, ainda que documentados nos movimentos registados no Extracto de Conta de Conferência (111  Caixa) da A... entre 1 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2018 (documento identificado na alínea c) do ponto III.1.), em documentos particulares assinados pelo dito administrador, Sr. F... – e também por ele, pela Administração da A..., S.A. (documentos identificados nas alíneas n), y) e aa) do ponto III.1.) –, e em notas particulares de movimentos de caixa com a assinatura do mesmo (documentos identificados nas alíneas v), x) e bb) do ponto III.1.), têm contra eles:

- a inexistência de registo, como crédito da empresa, numa conta de accionista (uma conta 26), ou, como referido pela testemunha I..., numa conta 27;

- o incumprimento das regras de forma, dada a sujeição de mútuos superiores a €25.000,00 a escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do n.º 1 do artigo 1143.º do Código Civil (o que implicaria a nulidade dos movimentos ocorridos em Novembro e em Dezembro);

- o incumprimento das obrigações fiscais, dada a sujeição de tais “empréstimos” ao pagamento do imposto do selo (verba 17.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo – de resto variável consoante o seu prazo de duração);

- a proibição legal de empréstimos aos administradores prevista no n.º 1 do artigo 397.º do Código das Sociedades Comerciais (“É proibido à sociedade conceder empréstimos ou crédito a administradores, efectuar pagamentos por conta deles, prestar garantias a obrigações por eles contraídas e facultar-lhes adiantamentos de remunerações superiores a um mês.”), que implicaria a nulidade de todos os supostos empréstimos, que, aliás, nem tinham condições e prazo de reembolso, nem de remuneração, nem, de resto, cabimento no objecto social da empresa.

Quer dizer que, por falta dos requisitos formais e substanciais de validade dos ditos documentos , por incumprimento das obrigações fiscais que lhe estariam associadas e por falta de registo desses alegados créditos da empresa sobre o accionista na sua contabilidade, se considera – como a AT considerou – que não há documentação que permita confirmar a concessão, de resto proibida por lei, de empréstimos da empresa ao seu administrador e, consequentemente, infirmar a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC feita pela AT, sendo os depoimentos das testemunhas – de resto, só o da testemunha J... com potencial relevo – indiferentes para colmatar essa inexistência.

 

 

IV.1. FACTOS PROVADOS

Em consequência, o Tribunal entende que resultaram provados os seguintes factos:

A. A sociedade A..., SA, é uma sociedade anónima constituída em 12 de Setembro de 2017, enquadrada no regime geral em sede de IRC, tendo como objeto social a “indústria de metalomecânica, aço, alumínio e eletrificação, indústria da construção civil, empreitadas em obras públicas e privadas, urbanização, concepção, edificação e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, a compra e venda de prédios rústicos ou urbanos e a revenda dos adquiridos para esse fim.”;

B. O accionista único da A..., SA, é a “M..., Limitada”, sociedade de Direito moçambicano cujos sócios são os Srs. F... e N..., e cujo representante em Portugal é o Sr. B...;

C.  No primeiro ano de actividade, iniciada em 25 de Setembro de 2017, a Requerente apresentou um volume de negócios de € 1 584 691,63, valor que subiu para € 3 432 054,31 em 2018;

D. O administrador único da Requerente no início e no fim da inspecção tributária era o Sr. F..., com a qual os representantes da AT não conseguiram contactar por se encontrar no estrangeiro;

E. A C... Lda. foi constituída em 10 de Março de 2016, em Moçambique, pelos Srs.  B...(com 51%) e O... (com 49%);

F. A D... Lda. foi constituída em 7 de Julho de 2010, em Moçambique, pelos Srs. O... e B... (com 45% cada) e pelo Sr. P... (com 10%);

G. O Sr. B... foi também episódico administrador de direito da Requerente (entre 17 de Maio e 18 de Junho de 2019) e foi habilitado pela Requerente, por procuração de 24 de Junho de 2019, a praticar actos de gestão;

N. No decurso das acções inspectivas externas de âmbito parcial, desenvolvidas sob as Ordens de Serviço n.º OI2019..., para o ano de 2017 (IVA e IRC), e n.º OI2019..., para o ano de 2018 (inicialmente para o período 201812 de IVA, mas depois alargado para todos os períodos de 2018 de IVA e IRC desse ano), a AT promoveu correcções em sede de IRC nos montantes de € 484.000,00 para 2017, e de € 235.053,00, para 2018.

O. A primeira das acções inspectivas foi iniciada em 14 de Março de 2019 – na sequência do pedido de reembolso de IVA no montante de € 160.000 referente ao último mês de 2018, pedido que veio a ser totalmente deferido – e a segunda em 24 de Maio de 2019;

P. Ambas as referidas acções inspectivas estiveram suspensas entre 19 de Setembro de 2019 e 19 de Setembro de 2020 na pendência de pedidos de assistência e cooperação administrativa internacional (que não foram respondidos), e ambas foram prorrogadas por um período adicional de três meses;

Q. As correcções em sede de IRC nos montantes de € 484.000 para 2017, e de €235.053, para 2018, foram fundamentadas na desconsideração das facturas identificadas em e) e em o), do ponto III.1., respeitantes a aquisições à sociedade de direito moçambicano C... Lda., e em saídas da conta de caixa sem que se encontrasse comprovada a sua origem, natureza ou finalidade;

R. As saídas da conta de caixa foram classificadas pela AT como despesas não documentadas e como tal tributadas autonomamente a 50%, no montante de € 185 500,00;

S. A AT desencadeou procedimentos internos que visavam a derrogação do dever de sigilo bancário do administrador F..., nos termos do n.º 2 do artigo 63.º-B da LGT, mas tal acabou por ser afastado por se ter concluído que “a derrogação do sigilo bancário ao administrador só teria fundamento no âmbito de um procedimento inspetivo ao próprio”;

T. No termo das acções inspectivas foram emitidas as liquidações adicionais de IRC n.º 2021... de 18/03/2021, referente ao exercício de 2017, e n.º 2021 ... de 08/04/2021, referente ao exercício de 2018 (com correções à matéria coletável não isenta de € 484.000,00 referente ao exercício de 2017, e de 235.053,00 referente ao exercício de 2018, e correcções por tributações autónomas no exercício de 2018, no valor de € 185.500,00, num total de € 904.553,00) e correspondentes acertos de contas e actos de liquidação de juros compensatórios e moratórios.

U. Por discordar dos fundamentos usados pela AT para justificar aquelas correcções/liquidações veio a Requerente intentar o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

IV. 2. FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e não foram controvertidos.

 

V. 1. FACTOS NÃO PROVADOS

                A. Não se provou que a A... tivesse usado, menos ainda contratado, os serviços da C... para realizar obras no Gana e em Moçambique (sem prejuízo de esta as ter realizado, como resultou do testemunho de K...).

                B. Não se provou que houvesse fundamento material para a declaração da C.. (apresentada com o pedido de pronúncia arbitral) imputando (aliás segundo critérios imperscrutáveis) os montantes facturados à A... que corresponderiam a serviços prestados numa obra em Moçambique – para a qual se comprovou que a A... se limitara a vender materiais à  G...–, e na obra de um hotel supostamente executada no Gana, ao abrigo de um contrato com uma empresa de comercialização de adubos (E...- https://www...  ) que, face à data que figurava nesse contrato, não poderia envolver a A... (que ainda não fora criada, tendo a testemunha I... sido peremptório na recusa da existência de uma estrutura organizacional prévia à A...).

                C. Não se provou que as saídas de caixa apresentadas como empréstimos ao administrador tivessem essa finalidade, sendo que nem podiam legalmente tê-lo.

D. Não se provou o que consta do “Av/ lanç interno n.º 2018/001”, da A... à C..., com data de 17 de Dezembro de 2018, no valor de - € 90 000, com a seguinte designação: “Entrega de valores para regularização de c/corrente” e só junto com o PPA (de resto, aí tratada, em conjunto com o aviso de lançamento que se refere a seguir, como “adiantamento” (parágrafo 124: “a Requerente/Impugnante justificou documentalmente que aquele montante de €190.000,00 corresponde a duas entregas de valores à C...: uma no valor de €90.000,00 em 17/12/2018, e outra no valor de €100.000,00, em 24/12/2018, ambas respeitantes a adiantamento relativo aos serviços prestados na obra ... GHANA”, como, aliás, resulta do respectivo teor dos avisos de lançamento juntos.”);

E. Não se provou o que consta do “Av/ lanç interno n.º 2018/002”, da A... à  C..., com data de 24 de Dezembro de 2018, no valor de - € 100 000 com a seguinte designação: “Entrega de valores Adiantamento N/ Obra ... Ghana” e só junto com o PPA.

 

                V.2. FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Os factos dados como não provados resultaram dos documentos juntos aos autos e do seu contraste com a narrativa da Requerente, que assentava na apresentação da A... como uma empresa de prestação de serviços de construção civil no estrangeiro, ainda que por intermédio de empresas suas associadas, tendo o Tribunal dado preferência aos documentos que o desmentiam por serem concludentes e provenientes de terceiros sem interesse no sentido da decisão do litígio (como os juntos pela G...).

Na verdade, o Tribunal formou a convicção de que, quando muito, a A... era apenas a fornecedora de materiais , num caso através de uma pura relação de venda à entidade G...) que revendeu esses materiais à dona da obra (a H...), noutro caso sem que houvesse quaisquer documentos externos corroborantes de uma efectiva relação tripartida (o contrato apresentado para justificar, mais do que fornecimento de materiais, uma suposta empreitada por conta de uma empresa terceira – a E...– e, em consequência, avultadas transferências entre empresas em que o Sr. B... tem participação directa ou indirecta – a A..., a D... e a C...–, revela, nos termos já referidos em III.2., indícios de criação fictícia de créditos). 

Documentos que não são temporalmente rastreáveis para o que intentam demonstrar, que são gerados no interior da empresa ou no âmbito das relações com empresas com estrutura accionista semelhante, sobretudo de produção manual, que só foram apresentados em fases adiantadas dos autos e que são excessivamente convenientes para uma narrativa que é descredibilizada por factores objectivos (como as relações com a G...) ou por anomalias no seu texto ou contexto (como o contrato com a E...) foram desconsiderados, tal como o foram documentos que são inidóneos para documentar o que se propunham evidenciar (como os que levaram à tributação por despesas indocumentadas), tudo nos termos referidos em III.2..

 

VI.          DIREITO

VI.1. Questões suscitadas

A primeira questão que o Tribunal tinha para resolver era a da licitude da desconsideração que a AT tinha feito das despesas apresentadas pela A... com a C... . Ficou resolvida no plano dos factos.

A segunda questão suscitada perante o Tribunal era a do enquadramento das saídas de caixa apresentadas como empréstimos ao administrador. Tendo em conta o incumprimento dos requisitos de forma (e ausência dos elementos essenciais de um verdadeiro contrato de mútuo), a omissão das obrigações fiscais associadas e a proibição legal de tais empréstimos, a questão do seu tratamento como despesas não documentadas ficou semi-resolvida.

A terceira questão colocada ao Tribunal era a do enquadramento das transferências da A... para a C... a título de “regularização de c/corrente” e de “adiantamento” (ou só deste, segundo o PPA). Ficou resolvida por implausibilidade documental originária e inadequação temporal, e por ausência de fundamento material para os documentos juntos com o PPA.

Como se escreveu na decisão do Processo n.º 282/2019-T, na questão da dedutibilidade das despesas – e o mesmo se poderia dizer, mutatis mutandis, nas questões das saídas de caixa e das transferências que também estão aqui em causa – podem distinguir-se “dois planos de facto”:

“- num primeiro plano a questão jurídica relevante é a da adequação das facturas à realidade (os gastos foram ou não incorridos? E tendo-o sido, foram-no em quê?), podendo eventualmente prolongar-se nos requisitos da evidenciação dessa adequação (como é que se comprova a correspondência do facturado ao alegado?);

- num segundo plano, a questão jurídica relevante é a da adequação dessas facturas a um certo contexto contratual (…)”.

Tornou-se já evidente que as questões suscitadas pela Requerente ficaram resolvidas, ou praticamente resolvidas, nalgum destes dois planos. Assim, não há que discutir qualquer dos vícios invocados pela Requerente: a do princípio da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes, a do princípio “in dubio contra fiscum”, e, muito menos ainda, de violação do princípio da verdade tributária – ao menos por parte da AT. Também não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa que o Tribunal tivesse de conhecer.

Face à delimitação dos factos provados e não provados, as questões de Direito a resolver quase se desvaneceram: não podendo as despesas invocadas em 2017 e 2018 serem relevadas para efeitos de dedução ao IRC, nem as movimentações entre o património da A... e o do seu administrador ou da C... em 2018 serem perceptíveis, válidas ou documentadas, como entendeu a AT, o Direito aplicável não tem grande discussão.

Ainda assim, reconstitui-se a argumentação das Partes: 

 

VI.2. Posição da Requerente

a.            A propósito da não consideração do montante de € 484 000,00 relativos às três faturas emitidas em 2017 pela C..., Lda., como gasto dedutível – porque analisada a facturação emitida pela A... nesse ano, a AT verificou que não existiam facturas emitidas por esta que referissem a obra  ... Comercial e porque concluira que “não existe qualquer prova de qualquer fluxo financeiro que comprove o pagamento das facturas emitidas pela C...” – a Requerente invocou:

- que desenvolvia a sua atividade em Moçambique e no Gana recorrendo a fornecedores e prestadores de serviços de direito moçambicano, como era o caso da C..., que tinha contratado para a prestação de serviços de preparação de projecto e de mão de obra nas obras a executar;

- que tinha duas obras em curso, no ano de 2017, e que em ambas a C... fora contratada para fornecer a mão de obra: a obra ... comercial, em Moçambique, cujo dono de obra era a G..., SA (NIPC...), e a obra ... Ghana para a cliente E... Limited, sedeada em ..., no Gana;

- que por lapso dos serviços administrativos da C..., esta apenas fizera constar a obra ... Comercial nas faturas emitidas, quando na realidade estavam ali incluídos serviços prestados para a obra em curso no Gana, e aquando da receção das faturas a Requerente não dera conta do lapso;

- que a C... emitira declaração (apresentada com o pedido de pronúncia arbitral) a reconhecer o lapso verificado, sendo que € 309.670,00 respeitariam a serviços prestados na obra executada no Gana, cujo cliente era a E...;

- que o pagamento das faturas ocorrera por acerto de contas e mediante uma operação de compensação de créditos, decorrente da celebração de um contrato de cessão de crédito entre a Requerente, a C... e a D... (apresentado no decurso da inspecção tributária);

- que a AT actuara em violação dos princípios jurídico-tributários da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes (artigo 75.º, n.º 1 da LGT), do ónus da prova (artigo 74.º, n.º 1 da LGT), do princípio “in dubio contra fiscum” de que é corolário o disposto no artigo 100.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário e do princípio da verdade tributária.      

 

b.            A propósito da não consideração dos montantes relativos às duas faturas emitidas em 2018 pela C..., no montante de € 235 053,00 – porque a AT considerara que não podia estabelecer uma relação clara e inequívoca entre as facturas emitidas pela C... e as facturas emitidas pela Requerente, até porque a A... facturara materiais e serviços à E... até Novembro de 2018 e a C... apenas facturara mão de obra nos meses de Janeiro a Setembro de 2018 – invocou a Requerente:

- que tais facturas estavam devidamente lançadas na conta corrente;

- que respeitavam a custos de mão de obra contratada à C...;

- que a A... tinha facturas emitidas para o cliente E... que referiam a prestação de serviços e fornecimentos para o Gana;

- que a existência de duas faturas – uma relativa a materiais e outra relativa a mão de obra – fora uma exigência do cliente E...;

- que, mesmo havendo dúvidas, estas teriam de ser resolvidas a favor da Requerente e não do Fisco;

- que a AT actuara em violação dos princípios jurídico-tributários da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes (artigo 75.º, n.º 1 da LGT), do ónus da prova (artigo 74.º, n.º 1 da LGT), do princípio “in dubio contra fiscum” de que é corolário o disposto no artigo 100.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário e do princípio da verdade tributária.

 

c.            A propósito da tributação autónoma de saídas de caixa em 2018 que a AT considerara não comprovadas invocou a Requerente:

- que despesas não documentadas são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique, não tendo o destinatário cognoscível, ou seja, são aquelas em que não é possível determinar o seu beneficiário ou a natureza da despesa, sendo que ambos os requisitos estavam demonstrados quanto aos empréstimos concedidos ao seu administrador;

- que o movimento nº 412173, Diário 4, de 31-12-2018 registado na conta caixa no valor de € 190.000,00 por contrapartida do fornecedor 22113901 – C..., corresponderia a duas entregas de valores à C..., “respeitantes a adiantamento relativo aos serviços na obra ... GHANA”;

- que o facto de tal movimento financeiro não ter passado pelo Banco Q... resultara das significativas dificuldades em efectuar a transferência de divisas para o exterior de Moçambique, que a Requerente contornava mantendo elevados montantes em moeda local, resultante de recebimentos obtidos localmente;

- que a AT actuara em violação dos princípios jurídico-tributários da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes (artigo 75.º, n.º 1 da LGT), do ónus da prova (artigo 74.º, n.º 1 da LGT), do princípio “in dubio contra fiscum” de que é corolário o disposto no artigo 100.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário e do princípio da verdade tributária.

Nas suas alegações, a Requerente reiterou ainda (sublinhados e destaques do original):

d.            Que tinha a sua “escrita organizada, elaborada e em dia, e da qual resulta que as operações que vêm reflectidas na mesma, goza da presunção de veracidade do declarado, nos termos do disposto no artigo 75.º, da Lei Geral Tributária;”

e.            Que “cabia à AT o ónus de demonstrar que o conteúdo do vertido contabilisticamente nas declarações de IRC apresentadas, mormente para aqueles anos de 2017 e 2018, não estavam conformes, não eram verdadeiras, como impõe o artigo 74.º, da Lei Geral Tributária;”

f.             Que “a C... e a D..., são pessoas jurídicas distintas e autónomas;”

g.            Que a testemunha K... atestou “com conhecimento directo dos factos que esta [C...] era a sociedade contratada para prestar serviços à Requerente, porquanto, esta não tinha mão de obra naqueles territórios;”

h.            Que “os serviços facturados pela C... foram efectivamente prestados, tratando-se de serviços necessários para a execução das obras a cargo da Requerente”;

i.             Que resultou “da prova que tais valores de €484.000,00 (no ano de 2017) e de €235.053,00 (no ano de 2018) são gastos em que a Requerente incorreu para obtenção de rendimentos”;

j.             Que “a tributação autónoma correspondente a 50% da soma dos movimentos a crédito identificados na conta de caixa num total de €371.000,00” não foi fundamentada, nem sequer tendo a AT procedido “à conferência física dos valores em caixa”;

k.            Que “não cabia à Requerente, nem lhe era legalmente exigível, a prova da entrada das quantias em causa na esfera patrimonial do administrador”;

l.             Que “juntou documentos comprovativos dos empréstimos das quantias de €24.000,00, €53.000,00 e €104.000,00 ao seu administrador” e “comprovou e justificou documentalmente a operação de €190.000,00”;

m.          Que o Relatório de Inspecção Tributária (RIT) “padece de grave ilegalidade”, “que se consubstancia na grave violação do princípio da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes e do disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, do ónus da prova a que se refere o artigo 74.º, n.º 1, da LGT, do princípio “in dúbio contra fiscum”, com assento no artigo 100.º, n.º 1, CPPT, o princípio da verdade tributária, do disposto nos artigos 20.º, 23.º e 88.º, n.º 1, do Código do IRC, bem como no artigo 266.º, da Constituição da República Portuguesa.”

 

VI.3. Posição da Requerida

Em contrapartida a Requerida tinha entendido, na sua resposta ao PPA:

a)            Que, em 2017, a conta 22113901 - C... da contabilidade da Requerente apresentava apenas dois movimentos a crédito com datas de 7 e 30 de Novembro de 2017 (referentes às facturas 43 e 45 – referidas na alínea e) do ponto III.1. –, no valor de € 8 200 e € 270 000, respectivamente) e outros dois com data de 31 de Dezembro de 2017 (um a crédito dessa conta referente à factura 47 – referida na alínea e) do ponto III.1. –, no valor de € 205 800, e outro a débito dessa conta referente a um “Enc Contas” – referido na alínea r) do ponto III.1. –, no valor de € 460 000);

b)           Que, em 2018, a conta 22113901 – C...da contabilidade da Requerente apresentava um movimento a crédito com data de 10 de Julho de 2018 (referente à factura 000099 – referida na alínea i) do ponto III.1. –, no valor de € 149 058), e outro movimento a crédito com data de 12 de Outubro de 2018 (referente à factura 000123 – referida na alínea i) do ponto III.1. –, no valor de € 85 995;

c)            Que o único movimento a débito dessa conta, em 31 de Dezembro de 2018, foi efectuado por contrapartida da conta de caixa, no valor de € 190 000,00, sem documento de suporte;

d)           Que o suposto erro de facturação da C... só veio a ser alegado perante o Tribunal Arbitral e que o sócio gerente desta sociedade,  B..., foi transitoriamente gerente da Requerente;

e)           Que ainda que os valores que a C... alegou respeitarem à obra no Gana lhe correspondessem, continuaria a não haver facturas desses valores;

f)            Que a G..., alegada dona da obra em Moçambique, negou ter adquirido quaisquer serviços à Requerente, transcrevendo-se na resposta da AT o seguinte trecho do RIT:

“No decurso da ação inspetiva, foi descartada pela inspeção a hipótese de estarem incluídos estes serviços nestas faturas emitidas pela A... para a G..., pela diferença temporal de emissão das mesmas, pelo facto de não comportarem o valor das faturas da C... e pelo facto de não ter sido efetuado qualquer lançamento de correção de especialização dos exercícios, por parte da A... . Para além disto, o descritivo das mesmas e o facto de não ter sido aplicada a regra de inversão do sujeito passivo em relação ao IVA, levou-nos a concluir que as mesmas apenas se referiam a materiais e não contemplavam qualquer prestação de serviços.

Face aos argumentos agora apresentados, em sede de direito de audição, que contrariam as evidências decorrentes dos documentos, mas no sentido de apurar a verdade tributária, foram solicitados elementos e esclarecimentos à empresa cliente (G...) (ANEXO XVIII). Em resposta, a G... confirma que relativamente a estas faturas apenas estão contemplados materiais e nenhuma prestação de serviços, tal como se depreendia da análise dos documentos.

Foram remetidas as posteriores faturas de alienação destes materiais, confirmando-se que o descritivo das mesmas é idêntico, isto é, os materiais faturados pela A... são posteriormente faturados e enviados pela G... ao seu cliente. Fica assim provado que em sede de inspeção foi efetuado o correto enquadramento da situação pela análise dos documentos e que o alegado pelo sujeito passivo em sede de direito de audição não corresponde à verdade.

Conclui-se, inequivocamente e comprovadamente, que estas faturas emitidas pela A... à G... (em 2018) não contemplam qualquer tipo de serviços pelo que, a contrário das alegações apresentadas, não justificam os serviços faturados pela C... à A..., em 2017.”;

g)            No que respeita às relações da Requerente com a outra interveniente no acordo de compensação de créditos (a D...) – igualmente empresa relacionada com a A... e a C...– também a Resposta da AT sublinhou que “não substitui o contrato de prestação de serviços que justificaria a operação”, remetendo para o RIT:

“De salientar que na conta corrente deste cliente, conta 21113901 – D..., Lda, (ANEXO VII) estão registadas as faturas emitidas, em 2017, no montante global de 469.315,89 EUR. No ano de 2017 a conta corrente deste cliente termina o ano com um saldo a débito de 9.315,89 EUR, em função do lançamento de compensação com a conta 22113901 – C... LDA.

Em 2018, na conta corrente do cliente estão registadas faturas emitidas no montante global de 75.334,83 EUR e recebimentos no montante global de 133.888,30 EUR, ficando a conta corrente do cliente com um saldo a crédito de 55.553,47 EUR, desde 2018-06-30, o que significaria que o cliente pagou mais do que os montantes faturados.

No sentido de tentar esclarecer esta situação e concluir sobre a razão destes fluxos financeiros de montante superiores às faturas emitidas, foram solicitados os contratos referentes aos fornecimentos e prestações de serviços emitidas para este cliente. Em resposta, foi enviado um contrato de prestação de serviços, referente ao “Hospital Distrital de Macia”, no montante global de 650.000,00 EUR (ANEXO VIII).

Os montantes faturados para este cliente não se relacionam com os serviços faturados pela C... LDA.”;

h)           Sobre as facturas emitidas pela Requerente à E..., a AT conclui que “Dos elementos disponibilizados não é possível aferir que estamos perante a mesma obra, relativamente aos gastos contabilizados relativos às faturas emitidas pela C... .”;

i)             Quanto aos montantes dos empréstimos concedidos em 2018 ao administrador da Requerente (€ 24 000 em 31 de Outubro, € 53 000 em 30 de Novembro e € 104 000 em 21 de Dezembro – num total de € 181 000), e aos € 190 000 registados na conta de caixa sem documento de suporte, por contrapartida da conta 22113901 do fornecedor C... (como adiantamento dos serviços a prestar na obra ..., no Gana), refere a AT que “A contabilidade implica o cumprimento da regra segundo a qual, “Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário” (cf alínea a) do nº 2 do artº 123º do CIRC).”;

j)             Lembrando anterior jurisprudência do CAAD sobre despesas não documentadas (Processos ns. 256/2018-T, 393/2018-T e 487/2018-T), invocou a AT, quanto aos empréstimos concedidos, que “não foi possível obter junto da empresa e/ou junto do administrador qualquer prova que estes montantes, entraram efetivamente na sua esfera patrimonial”, que “quanto ao alegado pela peticionária de que poderia a AT usar da faculdade de levantamento do sigilo bancário, foram efetuados dois ofícios (Ofício nº..., de 04-06-2019, sob o registo postal nº RF...PT e ofício nº..., de 11-09-2019, com registo nº RF...PT) ao administrador –F..., os quais não foram rececionados, efetuando pedido de elementos e solicitando o envio de declaração em que manifestasse expressamente se autorizava ou não a AT a aceder a informação e documentos bancários, nos termos dos artºs 63º e 63º-B da LGT.”, e que sendo a Requerente “uma sociedade sedeada em Portugal” “tem de obedecer às leis portuguesas e consequente à sua legislação fiscal”, incluindo as “restrições legais ao pagamento com numerário (Lei n.º 92/2017, de 22 de agosto) a qual veio aditar o artº 63-E da LGT – Proibição de pagamento em numerário.”;

k)            Conclui a AT, portanto, que “encontra-se comprovado que se trataram de efetivos movimentos financeiros de saída de dinheiro do património da empresa sem quaisquer documentos idóneos de prova do destino dado aos mesmos, que garanta a identificação do beneficiário, pelo que estamos perante despesas não documentadas e como tal sujeitas a tributação autónoma, nos termos efetuados pelos SIT.”.

 

VI.4. Apreciando

                Não será desadequado começar por sublinhar que a Requerente acabou por alegar (num caso) ou admitir (no outro) duas coisas contraditórias:

- por um lado, que os seus registos contabilísticos gozam de presunção de veracidade;

- por outro, que as facturas emitidas pela C... (que é uma empresa relacionada e cujos documentos justificativos incluiu na sua contabilidade), e os lançamentos de empréstimos a que procedeu na conta 25,  não gozam de presunção de veracidade (porque, no primeiro caso, onde registam serviços prestados para uma obra em Moçambique, deviam supostamente registar, segundo um critério de repartição que não é esclarecido, serviços prestados para uma obra no Gana; e porque, no outro caso, implicam erro de um serviço externo à empresa).

E também não será desadequado voltar a sublinhar que a narrativa apresentada pela Requerente no PPA e nas alegações – que a A... era a entidade que estabelecia relações directas, não só de fornecimento de materiais (como é claro que fazia), mas também da sua aplicação no local de destino, em Moçambique e no Gana, tendo para isso de subcontratar serviços de mão-de-obra à C... (como nada provava que fizesse, e a própria presunção de veracidade da contabilidade, registando em 2017 despesas para as quais não havia qualquer contrapartida de receita, desmentiria) –, tal narrativa, dizia-se, ou não tinha suporte documental minimamente adequado, ou, onde, prima facie, haveria tal suporte, veio este a afigurar-se não fidedigno.

                Quanto ao mais:

- dispõe o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Gastos e perdas”, que “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.” Há ampla doutrina e jurisprudência sobre a latitude que a lei admite para englobar despesas dentro dessa previsão, mas há limites óbvios: as despesas têm de ser reais (ie: não podem ser fictícias, ou simuladas) e têm de ter relação com a actividade da empresa (ie: não podem ter como elo de ligação a mera conveniência na imputação de valores a uma empresa ou a outra, mesmo que – ou sobretudo quando – aparentadas). Acontece que o fornecimento de materiais por uma empresa não permite deduzir despesas de colocação em obra desses materiais quando estes foram vendidos a uma empresa que não precisa de todo desses serviços (como foi o caso da venda de materiais à G...), nem permite deduzir despesas de colocação em obra de materiais que não podem ser relacionados com a colocação desses materiais (como foi o caso da venda de materiais à E...);

- dispõe o n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, que “As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.” Sobre a delimitação do que sejam despesas indocumentadas também há doutrina e jurisprudência quanto baste, mas não sobram dúvidas que empréstimos a administradores de sociedades anónimas – vedados por lei – e que, para mais, não tenham elementos identificativos de um verdadeiro contrato de mútuo (prazo de amortização – aliás necessário para o cumprimento das obrigações em matéria de Imposto do Selo – e taxa de juro), nem adoptem a forma legalmente prevista, não poderão ser consideradas despesas documentadas;

 

- também são de considerar despesas não documentadas aquelas cujos documentos de suporte, qualquer que seja a credibilidade que lhes seja atribuída, são gerados ad libitum por indicação interna à empresa, sem documento algum de suporte externo – e, acrescente-se, por conta de eventualidades futuras (“adiantamentos”).

 

VII.         PEDIDO DE REEMBOLSO

 

A Requerente, peticiona, como decorrência da invocada anulabilidade dos actos de liquidação adicionais de IRC “o correspondente acerto de contas e actos de liquidação de juros compensatório e moratórios”.

Em contrapartida, o que o artigo 43.º da LGT prevê é que são devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, circunstância que, na presente situação, não se verificou, uma vez que se concluiu pela validade e manutenção dos actos tributários sindicados, improcedendo, em consequência, os pedidos dependentes da pretendida anulação.

 

VIII.       DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

a) Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

b) Manter na ordem jurídica os actos de liquidação adicional de IRC identificados em IV.1.T., incluindo juros compensatórios e acertos de contas; e

c) Condenar a Requerente nas custas, nos termos infra.

 

IX.          VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em €904.553,00 (novecentos e quatro mil, quinhentos e cinquenta e três euros), valor atribuído pela Requerente e não impugnado pela AT e correspondente à soma dos valores acrescidos aos resultados fiscais da Requerente em 2017 e 2018.

 

X.            CUSTAS

Custas a cargo da Requerente, no montante de €12.852,00 (doze mil oitocentos e cinquenta e dois euros), nos termos da Tabela I do Regime de Custas nos Processos Arbitrais Tributários, dado que o presente pedido foi julgado improcedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

Lisboa, 31 de Março de 2022

 

O Árbitro presidente e relator

Victor Calvete

 

A Árbitro Adjunta

Adelaide Moura

 

O Árbitro Adjunto

Paulo Mendonça

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.