Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 654/2020-T
Data da decisão: 2022-03-14  IRC  
Valor do pedido: € 667.548,96
Tema: IRC – Ajustamentos pelo justo valor. Arts. 18.º, n.º 9, al. a) e 45.º, n.º 3 do CIRC. Pedido de revisão oficiosa – Valor da causa
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Leonor Fernandes Ferreira e Diogo Leite de Campos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de maio de 2021, acordam no seguinte:

 

 

          I.       Relatório

 

A..., S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Av. ..., n.º .../..., ..., ...-... Lisboa, na qualidade de sociedade dominante do “B...”, sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”) previsto nos artigos 69.º e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), apresentou, em 21 de novembro de 2020, pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ambos na redação vigente.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2012, no montante de € 667.548,96 da respetiva base tributável, com a anulação nessa parte e o consequente acréscimo aos prejuízos fiscais reportados do período de 2012, bem como a ilegalidade e a anulação parcial do subsequente despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, proferido em 4 de setembro de 2020, que confirmou aquela autoliquidação.

 

Como fundamento da sua pretensão, a Requerente alega que os referidos atos padecem de vício material de violação de lei, devido à não relevação fiscal de metade (50%) dos gastos com instrumentos financeiros, decorrentes da sua mensuração fiscal (e contabilística) ao justo valor. Juntou 19 documentos.

 

Em 23 de novembro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação à AT.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, tendo sido notificadas dessa designação em 15 de janeiro de 2021, não se opuseram.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 3 de maio de 2021.

 

            Em 7 de junho de 2021, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação. Juntou o processo administrativo (“PA”) em 14 de julho de 2021.

Por despacho de 14 de junho de 2021, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT), notificando-se as Partes para se pronunciarem, querendo.

 

Em 20 de julho de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações, e fixou a data de prolação da decisão arbitral com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente por parte da Requerente até essa data.

 

Em 13 de setembro de 2021, a Requerente apresentou as suas alegações e a Requerida contra-alegou em 28 de setembro de 2021, tendo ambas as Partes reafirmado, no essencial, as suas posições.

 

O prazo para prolação da decisão foi prorrogado ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, por despachos de 25 de outubro e 28 de dezembro de 2021 e de 28 de fevereiro de 2022, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

            Por despacho de 9 de março de 2022, foram ambas as Partes notificadas para se pronunciarem, querendo, sobre a fixação oficiosa do valor da causa e da taxa de arbitragem.

 

 

II.      Saneamento

 

            1.         Pressupostos Processuais

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, respeitante a uma autoliquidação de IRC contestada, por via administrativa, através de pedido de revisão oficiosa, atenta a conformação do objeto do processo (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT, 2.º da Portaria de Vinculação, n.º 112-A/2011, de 22 de março, e 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – “CPPT”).

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, i.e., até ao decurso de 90 dias sobre a notificação da decisão de indeferimento parcial do pedido de revisão oficiosa.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito, ou nulidades.

 

            2.         Valor da Causa

 

            No pedido de constituição do Tribunal Arbitral a Requerente indicou como valor da utilidade económica do pedido e, portanto, como valor do processo, € 166.887,24.

 

            Por despacho de 9 de março de 2022, foi oficiosamente suscitada pelo Tribunal a questão do valor da causa, nos seguintes termos:

  1. De acordo com o disposto no artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), a taxa de arbitragem é determinada em função do valor da causa (n.º 1) e deve ser paga, em 50%, antes de formulado o pedido de constituição do tribunal arbitral (n.º 2) e, nos remanescentes 50%, antes da data de emissão da decisão arbitral (n.º 4).
  2. No pedido de constituição de tribunal arbitral, a Requerente indicou como valor da utilidade económica do pedido e, portanto, como valor do processo, € 166.887,24 (cento e sessenta e seis mil oitocentos e oitenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos).
  3. No entanto, atenta a causa de pedir, constata este Tribunal Arbitral que não está em causa a discussão sobre um montante concreto de IRC a pagar, que à data dos factos (período de tributação de 2012) era inexigível, pois a Requerente registava prejuízos fiscais. Neste processo arbitral, o que a Requerente visa atacar é o ajustamento à sua matéria tributável, no valor de € 667.548,96, referente ao exercício de 2012, e o consequente acréscimo aos prejuízos fiscais declarados e reportáveis desse período de tributação.
  4. É, assim, aplicável o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b) do CPPT, para o qual o artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT opera uma remissão expressa, pelo que o valor da causa é fixado nessa quantia de € 667.548,96, que se considera o valor da utilidade económica do pedido. Assim, a taxa de arbitragem correspondente é de € 9.792,00 (nove mil setecentos e noventa e dois euros).”

 

Como resulta do estatuído no artigo 306.º, n.º 2, do Código do Processo Civil – “CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, o valor da causa é fixado na sentença nos processos em que não haja lugar a despacho saneador.

 

A fim de solucionar a questão da determinação do valor da causa no caso concreto, afigura-se que, em face da causa de pedir e do pedido densificados no pedido de pronúncia arbitral, são potencialmente aplicáveis, in casu, as normas constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT.

 

Nas situações em que a causa de pedir está alicerçada na alegada ilegalidade de uma liquidação, o valor da causa corresponderá, por direta aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ao valor da liquidação ou ao valor da parte impugnada, conforme se peticione, respetivamente, a sua anulação total ou parcial.

 

No entanto, conforme decidido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão proferido em 17.01.2019, no processo n.º 62/18.4BCLSB (que aqui seguimos de perto), «para que a alínea a) possa ser aplicável é necessário que estejam reunidas duas condições: (i) que haja liquidação que determine um montante de imposto a pagar superior a zero e que (ii) essa liquidação seja impugnada.

            É que a norma apela a um conceito restrito de liquidação, isto é, refere-se ao resultado positivo da operação aritmética de aplicação de uma determinada taxa de imposto à matéria colectável e não propriamente a essa operação aritmética. Caso contrário cair-se-ia no absurdo de em situações em que não se apura imposto a pagar se admitir que o valor da causa pudesse ser igual a zero.

               Dito de outro modo, no sentido em que o termo liquidação é usado na norma ele só pode ter como escopo a exigência do pagamento de um imposto; por conseguinte, a norma é imprestável para resolver os casos em que não existindo imposto a pagar, ou existindo não é impugnado, apenas se pretende atacar a fixação da matéria colectável, (…).»    

 

             Por sua vez, a alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT aplica-se, apenas, nos casos em que o objeto da impugnação são atos de fixação da matéria tributável tout court, ou seja, nos casos em que essa fixação não é acompanhada da liquidação de um tributo.

 

            Como salienta o citado aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, «a aplicação residual da alínea b) aos casos de fixação de matéria tributável sem liquidação de imposto determina um valor da causa que não tem correspondência com a utilidade económica do pedido, sendo muito superior a esta. Na verdade, a utilidade económica corresponde apenas ao valor do imposto que o contribuinte poderá deixar de pagar com a correcção da matéria tributável; não corresponde ao montante corrigido.

Contudo, a conclusão inevitável que resulta da interpretação desta norma é de que o valor da causa corresponde ao valor contestado da matéria tributável, apesar de, como observa Jorge Lopes de Sousa, a sua redacção poder gerar potenciais casos de desigualdade no tratamento dado a situações aparentemente semelhantes, consoante haja ou não lugar a liquidação de imposto a pagar. Mas a opinião deste autor é, (…), vertida numa perspectiva de iure condendo e não de iure condito.»

 

Retomando a situação concreta, atenta a causa de pedir vertida no pedido de pronúncia arbitral, constata-se que não está efetivamente em causa a discussão sobre um qualquer montante concreto de IRC a pagar em relação ao período de tributação de 2012, caso em que o valor da causa corresponderia a esse montante. Neste processo arbitral, o que a Requerente contesta é a matéria coletável de € 667.548,96, referente ao exercício de 2012, que pretende ver reduzida, com o consequente acréscimo aos prejuízos fiscais reportáveis.

 

Em síntese, além de a Requerente não ter questionado qualquer montante de imposto a pagar, resulta do ato de autoliquidação impugnado que nada foi exigido a título de IRC porque não existiram lucros no exercício de 2012, mas sim prejuízos. Assim, pretende-se que seja declarado pelo Tribunal que aquela matéria coletável é ilegal e que, por conseguinte, a situação tributária da Requerente seja alterada por força do impacto que a anulação da mesma tem nos seus prejuízos fiscais que, dessa forma, se cifrarão em valor superior ao declarado no ato de autoliquidação. 

 

É certo que, como se diz no sobredito aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, “o reconhecimento do prejuízo fiscal na amplitude reclamada pelo impugnado conduz à possibilidade desse incremento no prejuízo ser reportado e tributado nos exercícios seguintes. Mas a utilidade económica imediata do pedido não é o equivalente ao montante de imposto que o impugnado poderá hipoteticamente deixar de pagar, seguramente inferior ao montante das correcções impugnadas. A utilidade económica imediata advém da (também) hipotética utilização do montante dos prejuízos em exercícios futuros. Hipotética visto que a sua utilização está dependente de circunstâncias contingentes, que poderão ou não verificar-se.

Por isso não nos parece correcto que se afirme que tal utilidade económica imediata é igual ao imposto que deixará de ser pago. Na definição clássica de imposto este é tido como a imposição coactiva de uma prestação patrimonial, sem natureza sinalagmática; fazer equivaler o hipotético montante do imposto que a impugnada embolsaria no futuro (por não ter de o pagar) ao valor da causa equivale a substituir o conceito de utilidade económica imediata por uma virtual desoneração do sacrifício futuro que o imposto representa para o contribuinte.

[…] Bem vistas as coisas, o que se pretende evitar é que as correcções não permaneçam na ordem jurídica, com o fito do respectivo montante poder, eventualmente, ser fiscalmente usado a favor do impugnado no futuro, diminuindo o lucro tributável e evitando assim o pagamento do imposto correspondente ao seu valor.

Por conseguinte, a utilidade económica que resulta da anulação das correcções não é imediata.

Donde, a utilidade económica imediata só poder ser aferida pelo valor das correcções impugnadas, na medida em que o prejuízo que as mesmas representam passa a integrar imediatamente o leque de direitos do impugnado se este obtiver ganho de causa. Dito de outro modo, a utilidade económica imediata não é nem pode ser o hipotético valor do imposto futuro, que nem se sabe se vai ser liquidado.

Por isso toda a construção do valor do processo, assente numa realidade hipotética, virtual, incerta pela natureza das coisas, não se adequa ao conceito de utilidade económica imediata”.

 

Impõe-se concluir que a determinação do valor da causa, no caso concreto, não pode ser feita por via da aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, mas, antes, por apelo à alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, relativamente à qual entendemos, tal como foi sufragado no sobredito Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que «a letra da lei não deixa margem para dúvidas: quando não tenha havido liquidação (no sentido de imposto a pagar) ou o imposto liquidado não seja impugnado, o valor da causa é igual ao valor contestado da fixação da matéria tributável.  

[…] basta compararmos a teleologia associada à alínea a) e à alínea c) do n.º 1 do artigo 97.º-A, do CPPT, para imediatamente se concluir que o legislador deste diploma disse na alínea b) o que efectivamente queria dizer.

Se na alínea a) não há dúvidas de que a utilidade económica do pedido corresponde ao montante de imposto impugnado e já liquidado, ou seja, a quantia certa e líquida que na procedência da impugnação o impugnante deixará de pagar ou lhe será devolvida, já na alínea c) não é o montante do imposto que representa o valor da causa mas antes o valor patrimonial contestado, que servirá para o cálculo desse imposto.

Quer isto dizer que nestes dois casos o legislador se guiou por um critério objectivo na determinação do valor da causa, com o horizonte posto na utilidade económica do pedido; se assim é nestes dois casos, então por que razão a determinação do valor da causa, no caso da alínea b), devia ser fixada com base em critérios subjectivos […]?

Não cremos que tenha sido essa a intenção do legislador. Também na alínea b) se constata que este pretendeu consagrar um critério objectivo de determinação do valor da causa, baseado numa realidade com expressão monetária: o valor contestado da matéria tributável.

[…]

Em resumo, para resolver o problema do valor da causa relativo a impugnações da matéria colectável em que não haja imposto a pagar ou em que a liquidação (do imposto) não seja impugnada – situação que quadra no caso presente –, deve aplicar-se a alínea b) do artigo 97.º-A, do CPPT e não, como já se demonstrou, a alínea a).

Por outro lado, como já se concluiu que esta alínea b) impõe que a determinação do valor da causa se faça segundo o critério objectivo nela consagrado, fica arredada a possibilidade dessa determinação ser feita em função de um critério subjectivo na disponibilidade do contribuinte.»

 

No mesmo sentido se pronuncia o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de outubro de 2020, no processo n.º 062/18.

 

Nestes termos, fixa-se o valor da causa, por aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, no montante de € 667.548,96 que representa o valor da aludida correção à matéria tributável de IRC, referente ao exercício de 2012, da Requerente.

 

Há, assim, lugar ao pagamento, pela Requerente, do valor remanescente da taxa de arbitragem em correspondência com o valor da causa fixado.

 

 

 

 

          III.    Fundamentação de Facto

 

            1.         Matéria de Facto Provada

 

            Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

  1. A sociedade C... SGPS, S.A., que integra o B... cuja sociedade dominante, A..., S.A., é aqui Requerente, detinha, em 31 de dezembro de 2012, 4,97% do capital social da D... SGPS, S.A. (“D...”) e 0,42% do capital social da E... SGPS, S.A. (“E...”) – cf. documentos 4 e 6.
  2. No período de 2012, a participação detida pela C... SGPS, S.A. na D... verificou uma perda de € 1.335.097,92 e a participação na E... um ganho de € 57.460,00 que concorreram para a formação do resultado contabilístico – cf. documentos 4 e 6.
  3. Na primeira declaração Modelo 22 de IRC submetida pela C... SGPS, S.A., em 28 de maio de 2013, esta apresentava um resultado contabilístico negativo de € 580.867,60 o que, após acréscimos e deduções no Quadro 07, deu origem a um lucro tributável de € 398.247,32, para o qual contribuíram 50% do saldo entre as perdas e os ganhos de justo valor no montante de € 638.818,96. Este lucro tributável foi computado na declaração modelo 22 do Grupo, apresentada em 29 de maio de 2013 – cf. documentos 1 e 4.
  4. A C... SGPS, S.A. decidiu alterar a política contabilística de reconhecimento das perdas de justo valor e entendeu que as reduções de justo valor não seriam dedutíveis fiscalmente e deveriam ter por contrapartida capitais próprios, ao invés de resultados, tendo apresentado uma declaração de substituição Modelo 22 individual, em 12 de janeiro de 2015, na qual acresceu ao lucro tributável no campo 702 do Quadro 07 o valor do saldo entre as perdas e os ganhos de justo de valor (de € 1.277.637,92[1]), que deixou de concorrer na totalidade para a formação do lucro tributável de 2012, com o consequente aumento da sua matéria coletável e, também, da matéria coletável do B... – cf. documentos 2, 5, 6 e 7.
  5. Nesta sequência, a A..., S.A., aqui Requerente, entregou em 13 de janeiro de 2015 declaração Modelo 22 de substituição agregada (do Grupo), reportada ao ano 2012, na qual operou a diminuição das perdas do exercício e, em consequência, dos prejuízos fiscais reportáveis decorrentes de a sociedade participada, C... SGPS, S.A., integrante do mesmo Grupo Fiscal, ter alterado a sua política contabilística – cf. documentos 2, 5, 6 e 7.
  6. Em ação de inspeção efetuada à C... SGPS, S.A., relativa ao período de 2013, a AT determinou que as variações de justo valor deviam ser refletidas em contas de resultados e concorrer para a formação do lucro tributável, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC, com a limitação da dedutibilidade a 50% prevista no artigo 45.º, n.º 3 do mesmo diploma, em vigor à data dos factos. Ou seja, rejeitou a mudança de política contabilística que havia sido efetuada pela C... SGPS, S.A., com repercussões também ao nível da matéria coletável do B... – cf. documentos 4, 6 e 7.
  7. Nesta ação de inspeção à C... SGPS, S.A.[2] (a 2013), a AT tributou os ganhos de cotação ocorridos no período de 2013, mas não atendeu às perdas de cotação ocorridas em períodos anteriores, nomeadamente em 2012, cuja consideração aumentaria os prejuízos fiscais reportáveis do B... para os períodos de tributação subsequentes – cf. documentos 4, 6 e 7.
  8. Por essa razão, a Requerente, na qualidade de sociedade dominante do B..., apresentou um pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC referente ao período de 2012, por forma a que a autoliquidação de IRC da sociedade C... SGPS, S.A. fosse parcialmente anulada, passando a considerar as perdas ocorridas pela aplicação do modelo do justo valor, de € 1.277.637,92, com o consequente incremento dos prejuízos fiscais reportáveis ao nível do B... – cf. documentos 3, 4, 6 e 7.
  9. A pretensão da Requerente foi parcialmente atendida por despacho de 4 de setembro de 2020, considerando-se a Requerente notificada em 21 de setembro de 2020, tendo a AT considerado que as variações – positivas e negativas – de justo valor devem concorrer para a formação do lucro tributável da C... SGPS, S.A. e, por conseguinte, para a matéria coletável do B..., nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC. No entanto, em relação às perdas de justo valor (variações negativas) entendeu que estas estão sujeitas à limitação prevista no artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, em vigor à data, apenas podendo concorrer para a formação do resultado tributável em 50% do seu valor – cf. documentos 3 e 4.
  10. Assim, estabeleceu o deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa que fosse apenas computada metade da perda de justo valor, ou seja, € 667.548,96 (€ 1.335.097,92:2) – cf. documentos 3 e 4.
  11. Inconformada com o deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa e com a (auto)liquidação de IRC do período de tributação de 2012, na parte relativa à não dedução (em 50%) das perdas derivadas do ajustamento de ativos financeiros mensurados pelo justo valor e reconhecidos através de resultados, a Requerente apresentou no CAAD, em 21 de novembro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

            2.         Factos não Provados

 

Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.

 

           

 

 

            3.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

A convicção do Tribunal funda-se nos elementos documentais carreados para os autos pelas Partes, não sendo a matéria de facto controvertida.

 

 

          IV.     Do Mérito

 

            1.         Questão a Decidir: Sobre a Aplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC

 

Está em causa a dedução fiscal de perdas reportadas ao exercício de 2012, derivadas do ajustamento de ativos financeiros mensurados pelo justo valor, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC.

 

A questão que se suscita nesta ação é estritamente de direito e prende-se com a interpretação do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC. Importa aferir se, à data dos factos, a previsão desta norma (entretanto revogada[3]) englobava os gastos (variações anuais negativas) derivados do método do justo valor relativamente aos instrumentos de capital próprio mencionados no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo diploma, com a consequente limitação da respetiva dedutibilidade fiscal em 50%.

 

As variações negativas de justo valor verificadas no exercício de 2012, resultantes da oscilação da cotação das ações, apenas foram tidas em conta no cômputo do lucro tributável em 50% do seu valor, entendimento que a Requerente coloca em crise.

 

A matéria que se discute nestes autos tem sido objeto de apreciação em inúmeros processos arbitrais, consolidando-se uma corrente maioritária no sentido da inaplicabilidade do regime do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC aos gastos provenientes de variações de ativos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor[4].

 

Posição maioritária que veio a ser confirmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 0582/17, de 6 de junho de 2018, segundo o qual “[a] norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos ativos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo.”

 

De acordo com este entendimento, rejeita-se uma pura interpretação literal do preceito em análise (artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC), com base nos seguintes argumentos:

 

“[…] o n.º 3 introduzido no art. 42.º do CIRC (depois, art. 45.º) pelo Orçamento do Estado para 2003 veio impor uma limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias, nos termos da qual a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre em apenas metade do seu valor para a formação do lucro tributável.

            Sob essa ótica, na realização de uma menos-valia seria determinante apurar se esta resulta da transmissão onerosa de partes de capital. Na afirmativa, haveria de se aplicar a limitação dos 50% da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias.

            Com o Orçamento do Estado para o ano de 2006, a referida limitação viu o seu âmbito de aplicação ser alargado: para além das menos-valias resultantes de alienações onerosas, passou também a incluir as transmissões onerosas de «outras componentes do capital próprio».

            A norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, na medida em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.         

            […]

            A existência desta norma visou, portanto, de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar.

            Vejamos agora em que medida a mensuração dos ativos-instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados - ao Justo Valor pode ser compatibilizada com esta norma do CIRC.

            […]

            O conceito de Justo Valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística – SNC, Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho), quer internacionais (NIC), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na “quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes”. 

            […]

            Portanto, a consideração do Justo Valor, no que aqui nos interessa (a introdução do modelo do Justo Valor no âmbito do IRC quando estejam em causa instrumentos financeiros, operou-se pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do CIRC se encontra diretamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos -realização das mais ou menos valias- passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de ações de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138. 
Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo Justo Valor são meramente potenciais ou provisórias (…)  porque não há uma efetiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do CSC.

            Não há, assim, qualquer dúvida que o Justo Valor negativo, (…) não lhe …subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos ativos transacionados em mercado organizado, onde a cotação do ativo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo…cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 1144[5].                       […]

            Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação – ao Justo Valor – do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos ativos –a posição financeira- acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo.”

 

Acompanhamos este entendimento, por concordância com os respetivos fundamentos, nos moldes infra explicitados que reproduzem a fundamentação da decisão arbitral n.º 397/2019-T, na parte em que aprecia esta matéria. 

 

2.         Da Errónea Interpretação do Artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC

 

Os Elementos Literal e Histórico

 

O artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, quer na sua redação primitiva, resultante da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, explica-se, de acordo com a motivação explicitada pelo legislador, por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à consolidação das contas públicas. Trata-se, à semelhança de outras normas dispersas pelo compêndio do IRC, de atenuar os efeitos de práticas de erosão na base tributável.

 

Na sua redação original, dispunha esse n.º 3 que “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.  O âmbito desta restrição foi estendido (pela Lei n.º 60-A/2005) a “outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares”.

 

Visou-se, assim, com aquela alteração legislativa abranger, ou explicitar que se encontravam abrangidas, as transmissões de outras componentes do capital próprio que não estritamente partes sociais.

 

No mesmo sentido refere Tomás Cantista Tavares, quanto ao fito da alteração legislativa que [a] regra ínsita no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, restringia-se, inicialmente, à limitação fiscal das perdas económicas em partes de capital. No entanto, por superveniente alteração legal, essa estatuição estendeu-se também às variações patrimoniais negativas de capital próprio (…) (cf. “IRC e Contabilidade – da Realização ao Justo Valor”, Almedina, Coimbra, 2011, p. 246).

 

Na ausência de qualquer alteração ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, concomitante com a adoção limitada, em 2010, do modelo do justo valor, aquela norma não comportou uma interpretação diferente da que vinha sendo aplicada até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho. Assim, continuou a aplicar-se à diferença negativa entre as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que houvesse “realização”.

 

O facto de o legislador não ter diferenciado, quando da introdução do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC entre perdas e variações patrimoniais realizadas e perdas e variações patrimoniais não realizadas, para efeito de subtrair estas à restrição consagrada, não pode ser valorado como manifestação de vontade, ainda que meramente implícita, no sentido de os gastos resultantes da aplicação do justo valor serem abrangidos pela limitação à dedutibilidade. Tais gastos apenas com o Decreto-Lei n.º 159/2009 e a consequente adaptação do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade passaram a concorrer para a formação do lucro tributável, operando assim a reconstituição do pensamento legislativo em sentido contrário: o legislador não manifestou, ainda que tacitamente, qualquer vontade de incluir no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, os gastos resultantes da aplicação do justo valor aos instrumentos financeiros.

 

Na verdade, embora a letra da lei aparente autorizar a interpretação abrangente sustentada pela AT, é também a análise atenta e rigorosa do elemento literal que permite apreciar o sentido próprio e distinto dos conceitos ali em causa. Segue-se, na análise desta questão, a fundamentação do acórdão arbitral proferido no processo n.º 108/2013-T.

 

Com efeito, “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” são conceitos não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto. Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do Código do IRC, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009. Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do Código do IRC referiam, respetivamente, que: – “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”; – “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício, exceto: (...)”.

 

Verifica-se, deste modo, que, quando da consagração da redação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC vigente em 2012, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

 

a)    Custos;

b)    Perdas;

c)    Variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC dever-se-á considerar, assim, reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redações anteriores ao Decreto-Lei n.º 159/2009.

 

Deste modo, da previsão daquela norma [artigo 45.º, n.º 3] dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos a partes sociais, pois a mesma não os contempla, como se pode constatar do seu teor literal: “3. A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.” (sublinhado nosso)

 

A alteração normativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009 não introduziu modificação relevante na matéria em causa. Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do Código do IRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

            O Elemento Sistemático

 

Importa ainda interpretar o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC tendo em conta a unidade do sistema jurídico[6]. Neste contexto, a limitação aí prevista não se aplica aos gastos por justo valor contemplados no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC, na medida em que esta constitui uma norma excecional–particular, que não é nem pode considerar-se ab initio derrogada pelo artigo 45.º, n.º 3, norma excecional-comum pré-existente àquela.

 

Com efeito, o artigo 23.º do Código do IRC prevê a dedutibilidade, para efeitos fiscais, da generalidade dos gastos contabilísticos, desde que observados determinados critérios formais e substanciais, i.e., que sejam comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, determinando a alínea i) do n.º 1 deste preceito a dedutibilidade fiscal dos gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros. Assim, o artigo 23.º do Código do IRC afigura-se uma norma geral, porquanto aplicável à generalidade das situações em que se apurem gastos.

 

Pelo contrário, o corpo do n.º 9 do artigo 18.º consagra uma exceção comum à dedutibilidade dos referidos gastos e a alínea a) do mesmo número estabelece, por sua vez, uma exceção particular à exceção comum, voltando a repor a regra de dedutibilidade quanto aos instrumentos de capital próprio mensurados ao justo valor através de resultados.

 

Note-se que não estão em causa na referida alínea todos e quaisquer instrumentos financeiros.

Por último, o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC limita, em contradição com a regra geral prevista no artigo 23.º do mesmo diploma legal, a dedutibilidade de certos gastos fiscais, quais sejam, as perdas geradas com a transmissão de todas e quaisquer partes de capital.

 

A aludida norma consubstancia, pois, uma norma excecional-comum e por isso, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que não derroga a norma excecional-particular introduzida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC.

 

A relevância fiscal de tais valorizações ou desvalorizações (ganhos ou perdas potenciais), constitui exceção à consagração da regra geral de irrelevância de perdas e ganhos de justo valor, pelo que se o legislador pretendesse que os ajustamentos pelo justo valor, quando negativos, apenas concorressem em metade do seu valor, tê-lo-ia que dizer expressamente, não sendo a norma particular aditada derrogada pela norma comum pré-existente.

 

Em suma, interpretando o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC no quadro do sistema jurídico em que este se insere, conclui-se que o mesmo não pode aplicar-se às reduções de justo valor em apreço.

 

            O Elemento Teleológico

 

Como assinala o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0582/17 acima citado, subjaz à norma em análise um marcado propósito anti-abusivo, de evitar uma manipulação do resultado (fiscal) pelo sujeito passivo através da gestão do momento e/ou do quantum da perda com a transmissão de partes de capital.

 

Sucede que o desincentivo à obtenção de certas perdas em partes de capital só faz sentido nos casos em que a vontade do sujeito passivo seja determinante do momento e do montante da perda (assim o refere igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de fevereiro de 2016, no processo n.º 01401/14).

 

De facto, no que respeita aos presentes valores mobiliários e correspondentes desvalorizações, não é possível qualquer controlo ou prática do tipo “wash sales"” e, a aplicar-se a limitação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, seria inequívoca a assimetria de tratamento entre ganhos, tributados na totalidade pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, e perdas, aceites apenas em metade do valor.

 

Nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC, como as ações com as características do caso sub judice, passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor passam a relevar diretamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do Código do IRC) no próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do Código do IRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC).

 

Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um ato de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objetivamente fixada (assente nos pressupostos da transacionabilidade regular, regulamentação do mercado e divulgação pública dos preços). Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

 

Penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico, constituindo um desvio à regra do tratamento simétrico de ganhos e de perdas. Aliás, basta notar que a desvalorização de um ativo aqui considerado no ano “n” relevaria para o cálculo do lucro tributável do sujeito passivo que dele fosse titular por metade do montante dessa desvalorização (ditada pelas regras de mercado e, logo, sem influência do sujeito passivo) e uma valorização de igual valor no ano subsequente (“n+1”), seria agora relevante para os mesmos efeitos pelo seu valor total, dando lugar, no cômputo dos dois exercícios, à tributação de metade do valor absoluto dessa variação, quando nenhum ganho é apurado pelo sujeito passivo. O que demonstra o desacerto da interpretação pugnada e a sua manifesta contradição com o princípio da tributação pelos rendimentos reais ou, dito de outra forma, a insusceptibilidade de tributar sempre que nenhuma capacidade contributiva seja exteriorizada.

 

Conduziria, aliás, a resultados económicos e fiscalmente absurdos, nomeadamente os ilustrados na decisão do processo arbitral n.º 85/2018-T, pois possibilitaria o apuramento de lucro tributável em exercícios em que nenhum incremento patrimonial existisse na carteira de investimento do sujeito passivo. 

 

Como se refere no acórdão proferido no processo arbitral n.º 393/2016-T, “Tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

O desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Para além disso, o direito tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (como patenteia a existência de decisões arbitrais contraditórias), ter de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT), que, em situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento.

O que permite concluir que, ao contrário do que se terá entendido no processo arbitral n.º 90/2016-T, citado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na interpretação em matéria tributária, os Tribunais têm de atender ao «mérito das normas» que aplicam, numa dupla aceção, pelo menos: não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil; nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes, porque tal não se compagina com as diretrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3, e dos princípios que lhe estão subjacentes, da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), que têm suporte constitucional em princípios basilares do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP).

Assim, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”.

 

Quanto à eventual lesão de princípios constitucionais provocada pelo regime da dedutibilidade em apenas 50% das perdas decorrentes das reduções do justo valor, a AT refere que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre tal questão no sentido de o mesmo não ferir tais princípios. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, de 16 de abril, é habitualmente mencionado neste contexto, tendo sido reiterado posteriormente pelo Acórdão n.º 753/2014, de 12 de novembro. Porém, interessa notar que estes acórdãos apreciam apenas a primeira parte do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, e não a segunda parte, onde constam as perdas aqui em causa. Sendo que a motivação subjacente à admissão, por parte do Tribunal Constitucional, da redução a 50% das menos-valias realizadas se estriba no controlo da evasão fiscal, fator que não pontua no caso concreto dos gastos ou perdas de justo valor em instrumentos financeiros cotados com percentagem de participação abaixo de 5%. 

 

Acresce que aquele Tribunal não se pronuncia sobre a melhor interpretação das normas no plano infra-constitucional, nem para a mesma aduz critérios hermenêuticos preferenciais. Limita-se a um estrito controlo negativo que visa aferir a desconformidade ou não desconformidade ao parâmetro constitucional de uma determinada interpretação de uma norma que lhe é dada.

 

À face do exposto, conclui-se não se encontrar, preenchida a ratio legis artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC no que respeita às desvalorizações do justo valor, razão pela qual aquele preceito não se lhes aplica, devendo as mesmas ser fiscalmente dedutíveis na totalidade.

 

No caso dos autos, esta interpretação significa que se impunha à AT, em observância do princípio da legalidade, proceder à revisão oficiosa da autoliquidação de IRC da Requerente (na qualidade de sociedade dominante do B...) reportada ao período de tributação de 2012, nos termos por esta peticionados, relevando como dedutíveis na totalidade, e não apenas em 50%, as perdas de justo valor registadas nesse período. 

 

            Pelo exposto, procede o vício substantivo invocado pela Requerente, gerador de invalidade, sendo a liquidação de IRC referente ao período de tributação de 2012 parcialmente anulada, na parte correspondente à não relevação de 50% da redução de justo valor no montante de € 667.548,96, e, bem assim, a decisão de deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa que confirmou, nessa parte, tal autoliquidação, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do novo CPA, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), nomeadamente de inconstitucionalidade, à face da interpretação adotada.

 

 

V.      Decisão

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC relativa ao período de tributação de 2012, por desconsiderar, em 50%, reduções de justo valor, no valor de 667.548,96, anulando-a parcialmente e,
  2. Declarar a ilegalidade da decisão de deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa que recaiu sobre aquele ato de autoliquidação, na parte em que confirmou a não aceitação parcial daquelas reduções de justo valor;

tudo com as legais consequências, nomeadamente no que se refere ao acréscimo aos prejuízos fiscais reportáveis de 2012.

 

 

 

VI.     Valor do Processo

 

Em conformidade com o acima exposto e decidido (secção II, ponto 2 supra) é oficiosamente fixado o valor do processo em € 667.548,96, correspondente ao valor da utilidade económica do pedido – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

 

VII.   Custas

 

            Custas no montante de € 9.792,00 (nove mil setecentos e noventa e dois euros), a cargo da Requerida, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de março de 2022

 

 

Os árbitros,

 

 

Dra. Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

Prof.ª Doutora Leonor Fernandes Ferreira

 

 

Prof. Doutor Diogo Leite de Campos

 



[1] Depois de expurgar o valor de € 638.818,97, correspondente a 50%, que antes havia acrescido no campo 737 do Quadro 07, pois só metade tinha concorrido para a formação do lucro tributável na declaração modelo 22 inicial.

[2] Também repercutida na esfera da sociedade dominante do Grupo, aqui Requerente, em procedimento inspetivo próprio.

[3] Revogação operada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

[4] São múltiplas as decisões arbitrais no sentido preconizado, referindo-se, a título exemplificativo, as proferidas nos processos arbitrais n.ºs 108/2013-T, 148/2013-T, 776/2014-T, 271/2014-T, 30/2015-T, 58/2015-T, 59/2015-T, 208/2015-T, 231/2015-T, 396/2015-T, 531/2015-T, 563/2015-T, 738/2015-T, 77/2016-T, 89/2016-T, 393/2016-T, 437/2016-T, 763/2016-T, 108/2018-T, 84/2018-T, 85/2018-T, 196/2018-T, 67/2018-T, 345/2018-T, 94/2019-T, 184/2019-T, 231/2019-T, 373/2019-T, 397/2019-T, 419/2019-T, 425/2019-T, 491/2019-T, 525/2019-T e 536/2019-T. Em sentido oposto, são exemplo as decisões dos processos arbitrais n.ºs 25/2015-T, 90/2016-T e 707/2016-T.

[5] Tomás de Castro Tavares, Justo Valor e tributação das mais-valias de ações de sociedade cotadas: a propósito da interpretação do art. 18.º, N.º 9, Al. a), do CIRC, Estudos em memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, Volume IV, págs. 1143-1144.

[6] Tendo presente o complexo de regras em que se insere – cf. artigo 11.º, n.º 1 da LGT e 9.º do Código Civil.